segunda-feira, 10 de maio de 2021

UM ARTISTA POPULAR

 

(James Ensor)

 

(monólogo para voz e canto em um pequeno ato)

 

ISAIAS EDSON SIDNEY

 

Telefone: 5011-9628

 

Sbat

1418

Data:

29.11.2000

FBN:

217.985

livro 381

folha 145

 

2000

 

 

Ator entra com um castiçal com velas acesas. Apaga-as lentamente, uma a uma.

 

ATOR:- Uma vida... uma jovem mãe de 28 anos - morreu de câncer! Outra vida, um professor, 35 anos - ataque do coração... fulminante!... Outra: um jovem de 24 anos, músico - morreu de herpes... sim, de herpes! Tinha AIDS... E esse aqui? Um menino ainda, doze anos – morreu de morte matada! Tiro! Tiro no peito... num assalto... uma bala perdida... que importa? (Cantarola). “Vidas que se apagam e nada mais...” Sim: lembro o genial Chaplin... Quem não se lembra dele quando ouve Luzes da Ribalta? (Apaga a última vela e incorpora por alguns instantes a personagem Carlitos). “Se tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades, teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando: falei como um palhaço, mas jamais duvidei da sinceridade da platéia que sorria.” O artista acredita em seu público. E o público? Acredita no artista? Quando aqui apaguei essas velas, falando de vidas... todos se emocionaram, não foi? E, no entanto, usei um truque de palhaço para levá-los a pensar nos tempos de hoje. Século XX! Foi o nosso século, sabia? O terceiro milênio é ainda apenas uma folhinha na parede: nada aconteceu que pudéssemos afirmar: ESTE É O SÉCULO VINTE E UM! O tempo é a dimensão do homem e não o contrário... Mas isso está ficando meio chato: voltemos às velas, voltemos ao século XX. Cada vela apagada numa ação que estava acontecendo naquele momento instalou na mente de cada um de vocês, na platéia, um drama: o drama do século XX – a VIOLÊNCIA. Esse foi o nosso tempo! UM TEMPO DE GUERRA! UM TEMPO DE VIOLÊNCIA! (Passa a falar como locutor de documentário, enquanto cenas de guerra, de violência etc. são projetadas ao fundo). Na história da humanidade, nunca houve um período mais sangrento do que o século XX: duas guerras mundiais, milhares de pequenas guerras regionais, centenas de milhares de massacres, milhões de assassinatos por motivos políticos, milhões de assassinatos por motivos fúteis... Quem pode contar as vidas humanas que não se cumpriram? E a miséria? A fome? Os sistemas corruptos e corruptores? Quantas vidas tiraram? (Pequena pausa. Incorpora duas personagens). – Maria! – O que é, Zé! – Eu vi! – O que é qu’ocê viu, home de Deus? – Eu vi, Maria, com esses oios que a terra há de comê! Ninguém me contô, não! – Desembuxa, home, tu viu o quê, diacho! – Vi ocê mais o Tião!... – E daí, home, e daí? Cê sabe que eu mais o Tião e mais ocê somo tudo cumpadre! Que nóis veve assim, ó, um do lado do outro! – Do lado, sua diaba... do lado! Mais percisava o Tião tá em cima docê? Percisava? Eu vô te matá, diaba! (Puxa um revólver e dá dois tiros). – Mais, home... quem ama num mata! (Volta o ator). Pequenas tragédias, pequenos assassinatos, a gente ri um riso nervoso, como se a morte violenta de um ser humano pudesse ter classificação: esta aqui é uma morte grande, aquela ali, média e essa outra, uma... uma... uma morte de nada... titica de galinha... É isso o que vale a vida, nesses nossos tempos? Uma titica de galinha? Num gosto d’ocê e tuma! Pum! Pum! Pum! (Canta) “Na segunda batucada/ Disputando a namorada/ Foram os dois improvisar/ E como em toda façanha/ Sempre um perde e outro ganha/ Um dos dois parou de versejar/ E perdendo a doce amada/ Foi fumar na encruzilhada/ Ficando horas em meditação/ Quando o sol raiou foi encontrar/ Na ribanceira estirado/ Com um punhal no coração/ Lá no morro uma luz somente havia/ Era o sol quando o samba acabou/ De noite não houve lua/ Ninguém cantou”. (1) (Canta): “Favela, oi, favela/ Favela que trago no meu coração/ Ao recordar com saudade/ A minha felicidade/ Favela dos sonhos de amor e do samba canção/ Minha favela querida/ Onde eu senti minha vida/ presa a um romance de amor/ Numa doce ilusão/ Em uma saudade bem rara/ Na distância que nos separa/ Eu guardo de ti esta recordação...” (2) Pois é, quem cantaria assim o morro, a favela, o sonho... O morro desceu à cidade e o que ele trouxe? Dirão todos: VIOLÊNCIA! Mas eu inverto a pergunta: não terá sido a cidade que subiu o morro e levou FOME? e levou miséria? e levou DESEMPREGO? e levou VIOLÊNCIA? (Fazendo discurso como líder político, subindo num caixote.) E eu pergunto: quem nasceu primeiro: a miséria ou a violência? E eu pergunto: quem globalizou primeiro.... (Volta ao “normal”) Ih! Não é nada disso. Pára! Cara bobo! Esquece. Não vamos falar de globalização, aqui. Não vamos falar de economia. Não vamos falar de ditadores nem de democratas em pele de lobo... (Ao som de um solo de violão, declama, assumindo a personagem):

 

“tio, me dá um real...

um real, tio, é a vida

 é a vida cheirada,

é a vida comida

é a vida enrolada

em papel de jornal

é a vida sem bola

na noia da cola

um real pelo medo

pintado na cara

um real pelo dedo

que puxa o gatilho

o olho no brilho

o brilho da fome

a fome que come

o brilho da faca

e a faca que vale

um real, tio, um real

e antes que eu fale

da surra do pai

da vida vadia

da vida que eu via

no sangue que cai

do brilho do tiro

do leite que eu tiro

do medo do otário

tio, um real, é tudo

tudo que peço

de todo o salário

que eu ganho e não meço

às vezes exijo

às vezes imploro

mas nunca eu choro

se tenho na arma

o dedo mais rijo

de toda a cidade

que mata quem teme

não sou o que treme

se a fome me invade

sou sempre aquele

que mostra a cara

não foge da rua

a vida não pára

no tiro e no risco

da faca na cara

do medo estampado

atrás da vidraça

no meio da praça

o corpo estirado

um real, meu tio,

e afundo no frio

da noia do craque

sem medo do baque

sem medo de escuro

que a vida que trago

é o tempo que eu duro

é tempo de estrago

não tenho futuro...”

 

Segunda viagem de Colombo à América (que nem era ainda a América!). Diário de bordo, segundo Bernáldez, em 1493. Índio:- Esta terra é uma ilha, señor, es la isla de Cuba! (É! Era mais ou menos isso que eles deviam estar dizendo a Colombo, lá na língua deles. Mas não convinha a Colombo acreditar que havia descoberto apenas uma ilha – a ilha de Cuba. Colombo sonhava... sonhava continentes no oriente, ásias de ouro e escravos, para honra e gloria dos reis católicos de Espanha). Colombo:- Homens bestiais! Pensam que o mundo inteiro é uma ilha! Nem sabem o que é um continente... não possuem cartas... não possuem documentos antigos... Hombres bestiales! Só encontram prazer em comer e estar com las mujeres! ¡¿Cómo pueden decir que eso es una isla?! ¿Cómo? ¿Cómo?” Um amigo meu, filólogo e filósofo, autor de um livrinho chamado A CONQUISTA DA AMÉRICA (acho que vocês deviam ler), pois é, o meu amigo Todorov pergunta (imitando gringo): “Em que, exatamente, o amor pelas mulheres invalida a afirmação de que o país é uma ilha?” (3) E isso é apenas o começo da “encrenca” entre Colombo – ou seja, os espanhóis, europeus, civilizados, cristãos – e os habitantes da nova terra – aborígines, incivilizados, pagãos. O resultado desse encontro? Cortez, que não implicava apenas com o amor pelas mulheres dos nossos índios, mata-os a todos, a fio de espada... o encontro de duas civilizações diferentes resulta na eliminação de uma delas, a que era diferente. Quem não viu King-kong? (Imita o macaco). O macacão tinha de morrer... era bestial... diferente... difícil de entender... (Canta, imitando Carmen Miranda): “ E dizem que eu voltei americanizada/ Com o burro do dinheiro/ Que estou muito rica/ Que não suporto mais o breque do pandeiro/ Que fico arrepiada/ Ouvindo uma cuíca/ Disseram que com as mãos estou preocupada/ E corre por aí um zunzum/ Que já não tenho molho, ritmo nem nada/ Que os balangandãs já nem existem em mim/ Pois pra cima de mim?/ Pra que tanto veneno?...” (4). Pois é, quando não matam, assimilam... o que, no fundo, é a mesma coisa... (Imita um personagem “grosso”): - Pô, cara... qual é a sua... dando uma de boiola... imitando Carmem Miranda! É o fim da picada! Nós, os carecas...” (Normal). O que é que eu estou fazendo aqui? Quem sou eu? Bem, a primeira pergunta – o que é que estou fazendo aqui – pode até ser mais fácil de responder: estou tentando transmitir uma... uma... uma... Vamos pra segunda pergunta: quem sou eu? Essa é fácil: eu sou... eu sou... Cristóvão Colombo! Não... não... Charles Chaplin!... Não... ferrou... Eu sou um gringo que escreve!... Também não... Que droga! Já sei: King-kong! Carmem Miranda! Noel Rosa! O... o... autor dessa... dessa... bem, deixa pra lá! Aqui no palco, posso ser o que eu quiser: homem! Mulher! Bicha! (Por que não? Não viram Priscila, a rainha do deserto?) Posso ser Castro Alves! (Declama): “Deus, ó Deus, onde estás que não respondes?” (5) Posso ser Bil Clinton: “No, no, not yet, Monica... aqui, no, caralho!” Posso ser Caetano Veloso (canta, fazendo a voz de Caetano e requebros de Carmem Miranda):- “Caminhando contra o vento/ Sem lenço sem documento/ No sol de quase dezembro/ Eu vou/ O sol se reparte em crimes/ Espaçonaves, guerrilhas/ Em Cardinales bonitas/ Eu vou...” (6) Posso ser Che Guevara: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Puedo ser un indio paraguayo: “Este carro es suyo? – Não, não, está sujo porque estava chovendo... llovendo... mas eu vou lavar... – Era suyo, agora és mio!” (Olha o preconceito, señor artista!) Puedo ser, digo, posso ser qualquer coisa... coisa!... coisa?... Não, coisa, não!... Posso ser qualquer ser humano, que nunca duvidarei da minha platéia... que nunca duvidará de mim... Shakespeare não era o fresco de linguagem empolada que o teatro elisabetano e o cinema e todos pensam que ele era. Seu teatro era para o povo, que assistia às suas peças em pé, no Globe Theater, comendo churrasquinho de gato e jogando farofa nos atores, quando não gostavam da cena. Rei Lear, ato quarto! Uma cena entre Lear, Edgard e Gloucester. Não vou explicá-la. Apenas sigam-na. “GLOUCESTER:- Permiti que vos beije a mão. LEAR:- Vai limpá-la primeiro; fede a coisa morta. GLOUCESTER:- Ah! Fragmento arruinado da natureza! Este grande universo também há de reduzir-se ao nada! Conheceis-me? LEAR:- Lembro-me muitíssimo bem dos teus olhos. Para que me fitas de través? Não, faze o que quiseres, Cupido cego, eu já não pretendo amar. Lê-me este cartão, observa especialmente o modo como está redigido. GLOUCESTER:- Mesmo que fossem sóis essas letras, eu já não as poderia ler. EDGARD:- Se me narrassem semelhante cena, não acreditaria nela; e, contudo, é verdadeira. É de cortar o coração vê-la. LEAR:- Vamos, lê!  GLOUCESTER:- De que maneira, se não tenho olhos? LEAR:- Oh, oh! Estais aqui comigo? Sem olhos na cara e sem dinheiro na bolsa? Os vossos olhos são um caso sério, a vossa bolsa um caso leve. É, porém, certo que vedes como vai o mundo. GLOUCESTER:- Vejo-o, porque o sinto. LEAR:- Como? Estais doido? Um homem pode ver sem olhos como vai o mundo. Olhai com as vossas orelhas: vedes como aquele juiz se zanga com aquele ladrão simplório? Prestai atenção: trocai-os de lugar e depois adivinhai qual é o juiz e qual é o ladrão. Já vistes um cão de guarda ladrar a um mendigo? GLOUCESTER:- Sim, senhor. LEAR:- E o mendigo fugir do cão? Pois  bem, isso é a sensível imagem da autoridade; é ao cão que se obedece quando está no exercício das suas funções... Esbirro truculento, detém tua mão sanguinária. Por que açoitas assim essa devassa? Castiga as tuas próprias costas: estás morto por praticares com ela o ato pelo qual chicoteias. É o usuário quem enforca o falsário. Através das vestes esfarrapadas é que se vêem os pequenos vícios; mas os vestidos de cauda e os mantos de peles, esses escondem tudo. O pecado com uma couraça de ouro faz que a lança da justiça se quebre sem lhe ter causado o mínimo arranhão: mas se o armares de trapos, o talo de grama dum pigmeu o atravessa de lado a lado. Ninguém pratica crime algum: vê bem o que te digo ninguém. Vou anistiar a todos. Aceita isto que te digo, como dito por mim e de mim proveniente: eu tenho o poder de fechar a boca aos acusadores. Põe óculos e, tal qual um político miserável, finge ver o que não vês. Vamos, vamos, vamos. Tira-me as botas; força! Mais força! Assim. EDGAR:- Oh! Que mistura de bom senso e de loucura! É a razão em delírio.” (7).  (Fora da personagem). É a razão em delírio... é a razão em delírio... (Canta) “Dizem que eu voltei americanizada...” (Pega o candelabro e vai acendendo uma a uma todas as velas). E eu pensei que podia duvidar da platéia que me ouvia... Uma vida... duas vidas... eu pensei que podia duvidar... Três vidas... muitas vidas... Eu, que sou apenas um artista popular! (Canta). “Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão... Se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão...” Eu, que sou um artista popular! Eu, que sonho todos os sonhos do meu tempo e de todos os tempos! Acho que é para isso que existo... Acho que é para isso que eu subo num palco e banco o palhaço, o herói, o covarde, o louco, o cidadão comum que trabalha, que sonha, que leva porrada... e disfarça, porque (declama) “Nunca conheci quem tivesse levado porrada./ Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo./ E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,/ Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita/ Indesculpavelmente sujo/... Toda a gente que conheço e que fala comigo/ Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho/ Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida.../ Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?/ Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado,/ Poderão ter sido traídos – mas ridículos nunca! E eu que tenho sido ridículo sem ter sido traído,/ Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?/ Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,/ Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.” (8)  “(Canta). . “O sol é tão bonito/ Eu vou/ Sem lenço, sem documento/ Nada no bolso ou nas mãos/ Eu quero seguir vivendo/ Amor/ Eu vou/ Por que não? Por que não?” (6) POR QUE NÃO?!

 

FIM

 

 

 

Isaias Edson Sidney

Quarta-feira, 4 de outubro de 2000

 

 

 

NOTAS

 

(1) QUANDO O SAMBA ACABOU – samba de Noel Rosa; 69.377.461 – gravação de Mário Reis, col. Raízes do Samba – Mário Reis – EMI.

 

(2) FAVELA – samba de Roberto Martins e Waldemar Muniz da Silva; Direto 61654841 – gravação de Sílvio Caldas, col. Celebridades da MPB – Disco 1 – Sony Music.

 

(3) Todorov, Tzvetan – A Conquista da América, a Questão do Outro –trad. De Beatriz Perrone Moisés; Martins Fontes, São Paulo – 1983.

 

(4) DISSERAM QUE EU VOLTEI AMERICANIZADA – samba de Vicente Paiva e Luiz Peixoto – 61.683.167 – gravação de Carmen Miranda – col. Raízes do Samba – Carmen Miranda – EMI.

(5) Castro Alves – O Navio Negreiro.

(6) ALEGRIA, ALEGRIA – canção de Caetano Veloso – Nova História da Música Popular Brasileira – Abril Cultural – 1997.

(7) REI LEAR – Shakespeare – Clássicos Jakson – vol. X – trad. de Artur de Sales e J. Costa Neves; W. M. Jakson Inc. Editora – Rio de Janeiro.

(8) POEMA EM LINHA RETA – Fernando Pessoa; O Eu Profundo e Outros Eus – Fernando Pessoa; Editora Nova Fronteira; Rio de Janeiro; 1980.

 

 

 

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