(monólogo
para voz e canto em um pequeno ato)
ISAIAS EDSON SIDNEY
Telefone: 5011-9628
Sbat 1418 |
Data: 29.11.2000 |
FBN: 217.985 livro 381 folha 145 |
2000
♣
Ator
entra com um castiçal com velas acesas. Apaga-as lentamente, uma a uma.
ATOR:- Uma
vida... uma jovem mãe de 28 anos - morreu de câncer! Outra vida, um professor,
35 anos - ataque do coração... fulminante!... Outra: um jovem de 24 anos,
músico - morreu de herpes... sim, de herpes! Tinha AIDS... E esse aqui? Um
menino ainda, doze anos – morreu de morte matada! Tiro! Tiro no peito... num
assalto... uma bala perdida... que importa? (Cantarola). “Vidas que se
apagam e nada mais...” Sim: lembro o genial Chaplin... Quem não se lembra dele
quando ouve Luzes da Ribalta? (Apaga a última vela e incorpora por alguns
instantes a personagem Carlitos). “Se tivesse acreditado na minha
brincadeira de dizer verdades, teria ouvido verdades que teimo em dizer
brincando: falei como um palhaço, mas jamais duvidei da sinceridade da platéia
que sorria.” O artista acredita em seu público. E o público? Acredita no
artista? Quando aqui apaguei essas velas, falando de vidas... todos se
emocionaram, não foi? E, no entanto, usei um truque de palhaço para levá-los a
pensar nos tempos de hoje. Século XX! Foi o nosso século, sabia? O terceiro
milênio é ainda apenas uma folhinha na parede: nada aconteceu que pudéssemos
afirmar: ESTE É O SÉCULO VINTE E UM! O tempo é a dimensão do homem e não o
contrário... Mas isso está ficando meio chato: voltemos às velas, voltemos ao
século XX. Cada vela apagada numa ação que estava acontecendo naquele momento
instalou na mente de cada um de vocês, na platéia, um drama: o drama do século
XX – a VIOLÊNCIA. Esse foi o nosso tempo! UM TEMPO DE GUERRA! UM TEMPO DE
VIOLÊNCIA! (Passa a falar como locutor de documentário, enquanto cenas de
guerra, de violência etc. são projetadas ao fundo). Na história da
humanidade, nunca houve um período mais sangrento do que o século XX: duas
guerras mundiais, milhares de pequenas guerras regionais, centenas de milhares
de massacres, milhões de assassinatos por motivos políticos, milhões de
assassinatos por motivos fúteis... Quem pode contar as vidas humanas que não se
cumpriram? E a miséria? A fome? Os sistemas corruptos e corruptores? Quantas vidas
tiraram? (Pequena pausa. Incorpora duas personagens). – Maria! – O que
é, Zé! – Eu vi! – O que é qu’ocê viu, home de Deus? – Eu vi, Maria, com esses oios
que a terra há de comê! Ninguém me contô, não! – Desembuxa, home, tu viu o quê,
diacho! – Vi ocê mais o Tião!... – E daí, home, e daí? Cê sabe que eu mais o
Tião e mais ocê somo tudo cumpadre! Que nóis veve assim, ó, um do lado do
outro! – Do lado, sua diaba... do lado! Mais percisava o Tião tá em cima docê?
Percisava? Eu vô te matá, diaba! (Puxa um revólver e dá dois tiros). –
Mais, home... quem ama num mata! (Volta o ator). Pequenas tragédias,
pequenos assassinatos, a gente ri um riso nervoso, como se a morte violenta de
um ser humano pudesse ter classificação: esta aqui é uma morte grande, aquela
ali, média e essa outra, uma... uma... uma morte de nada... titica de
galinha... É isso o que vale a vida, nesses nossos tempos? Uma titica de
galinha? Num gosto d’ocê e tuma! Pum! Pum! Pum! (Canta) “Na segunda
batucada/ Disputando a namorada/ Foram os dois improvisar/ E como em toda
façanha/ Sempre um perde e outro ganha/ Um dos dois parou de versejar/ E
perdendo a doce amada/ Foi fumar na encruzilhada/ Ficando horas em meditação/
Quando o sol raiou foi encontrar/ Na ribanceira estirado/ Com um punhal no coração/
Lá no morro uma luz somente havia/ Era o sol quando o samba acabou/ De noite
não houve lua/ Ninguém cantou”. (1) (Canta): “Favela, oi,
favela/ Favela que trago no meu coração/ Ao recordar com saudade/ A minha
felicidade/ Favela dos sonhos de amor e do samba canção/ Minha favela querida/
Onde eu senti minha vida/ presa a um romance de amor/ Numa doce ilusão/ Em uma
saudade bem rara/ Na distância que nos separa/ Eu guardo de ti esta
recordação...” (2) Pois é, quem cantaria assim o morro, a favela, o
sonho... O morro desceu à cidade e o que ele trouxe? Dirão todos: VIOLÊNCIA!
Mas eu inverto a pergunta: não terá sido a cidade que subiu o morro e levou
FOME? e levou miséria? e levou
DESEMPREGO? e levou VIOLÊNCIA? (Fazendo discurso como líder político,
subindo num caixote.) E eu pergunto: quem nasceu primeiro: a miséria ou a
violência? E eu pergunto: quem globalizou primeiro.... (Volta ao “normal”)
Ih! Não é nada disso. Pára! Cara bobo! Esquece. Não vamos falar de
globalização, aqui. Não vamos falar de economia. Não vamos falar de ditadores
nem de democratas em pele de lobo... (Ao som de um solo de violão, declama,
assumindo a personagem):
“tio, me dá um real...
um real, tio, é a vida
é a vida cheirada,
é a vida comida
é a vida enrolada
em papel de jornal
é a vida sem bola
na noia da cola
um real pelo medo
pintado na cara
um real pelo dedo
que puxa o gatilho
o olho no brilho
o brilho da fome
a fome que come
o brilho da faca
e a faca que vale
um real, tio, um real
e antes que eu fale
da surra do pai
da vida vadia
da vida que eu via
no sangue que cai
do brilho do tiro
do leite que eu tiro
do medo do otário
tio, um real, é tudo
tudo que peço
de todo o salário
que eu ganho e não meço
às vezes exijo
às vezes imploro
mas nunca eu choro
se tenho na arma
o dedo mais rijo
de toda a cidade
que mata quem teme
não sou o que treme
se a fome me invade
sou sempre aquele
que mostra a cara
não foge da rua
a vida não pára
no tiro e no risco
da faca na cara
do medo estampado
atrás da vidraça
no meio da praça
o corpo estirado
um real, meu tio,
e afundo no frio
da noia do craque
sem medo do baque
sem medo de escuro
que a vida que trago
é o tempo que eu duro
é tempo de estrago
não tenho futuro...”
Segunda
viagem de Colombo à América (que nem era ainda a América!). Diário de bordo, segundo
Bernáldez, em 1493. Índio:- Esta
terra é uma ilha, señor, es la isla de Cuba! (É! Era mais ou menos isso que
eles deviam estar dizendo a Colombo, lá na língua deles. Mas não convinha a
Colombo acreditar que havia descoberto apenas uma ilha – a ilha de Cuba.
Colombo sonhava... sonhava continentes no oriente, ásias de ouro e escravos,
para honra e gloria dos reis católicos de Espanha). Colombo:- Homens bestiais! Pensam que o mundo inteiro é uma
ilha! Nem sabem o que é um continente... não possuem cartas... não possuem
documentos antigos... Hombres bestiales! Só encontram prazer em comer e estar
com las mujeres! ¡¿Cómo pueden decir que eso es una isla?! ¿Cómo? ¿Cómo?” Um amigo meu, filólogo e filósofo, autor de um livrinho
chamado A CONQUISTA DA AMÉRICA (acho que vocês deviam ler), pois é, o meu amigo
Todorov pergunta (imitando gringo): “Em que, exatamente, o amor pelas
mulheres invalida a afirmação de que o país é uma ilha?” (3) E isso
é apenas o começo da “encrenca” entre Colombo – ou seja, os espanhóis,
europeus, civilizados, cristãos – e os habitantes da nova terra – aborígines,
incivilizados, pagãos. O resultado desse encontro? Cortez, que não implicava
apenas com o amor pelas mulheres dos nossos índios, mata-os a todos, a fio de
espada... o encontro de duas civilizações diferentes resulta na eliminação de
uma delas, a que era diferente. Quem não viu King-kong? (Imita o macaco).
O macacão tinha de morrer... era bestial... diferente... difícil de entender...
(Canta, imitando Carmen Miranda): “ E dizem que eu voltei americanizada/
Com o burro do dinheiro/ Que estou muito rica/ Que não suporto mais o breque do
pandeiro/ Que fico arrepiada/ Ouvindo uma cuíca/ Disseram que com as mãos estou
preocupada/ E corre por aí um zunzum/ Que já não tenho molho, ritmo nem nada/
Que os balangandãs já nem existem em mim/ Pois pra cima de mim?/ Pra que tanto
veneno?...” (4). Pois é, quando não matam, assimilam... o que, no
fundo, é a mesma coisa... (Imita um personagem “grosso”): - Pô, cara...
qual é a sua... dando uma de boiola... imitando Carmem Miranda! É o fim da
picada! Nós, os carecas...” (Normal). O que é que eu estou fazendo aqui?
Quem sou eu? Bem, a primeira pergunta – o que é que estou fazendo aqui – pode
até ser mais fácil de responder: estou tentando transmitir uma... uma... uma...
Vamos pra segunda pergunta: quem sou eu? Essa é fácil: eu sou... eu sou...
Cristóvão Colombo! Não... não... Charles Chaplin!... Não... ferrou... Eu sou um
gringo que escreve!... Também não... Que droga! Já sei: King-kong! Carmem Miranda!
Noel
Rosa! O... o... autor dessa... dessa...
bem, deixa pra lá! Aqui no palco, posso ser o que eu quiser: homem! Mulher!
Bicha! (Por que não? Não viram Priscila, a rainha do deserto?) Posso ser Castro
Alves! (Declama): “Deus, ó Deus, onde estás que não respondes?” (5)
Posso ser Bil Clinton: “No, no, not yet, Monica... aqui, no, caralho!” Posso
ser Caetano Veloso (canta, fazendo a voz de Caetano e requebros de Carmem
Miranda):- “Caminhando contra o vento/ Sem lenço sem documento/ No sol de
quase dezembro/ Eu vou/ O sol se reparte em crimes/ Espaçonaves, guerrilhas/ Em
Cardinales bonitas/ Eu vou...” (6) Posso ser Che Guevara: “Hay
que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Puedo ser un indio paraguayo: “Este carro es suyo? – Não,
não, está sujo porque estava chovendo... llovendo... mas eu vou lavar... – Era
suyo, agora és mio!” (Olha o preconceito, señor artista!) Puedo ser, digo,
posso ser qualquer coisa... coisa!... coisa?... Não, coisa, não!... Posso ser
qualquer ser humano, que nunca duvidarei da minha platéia... que nunca duvidará
de mim... Shakespeare não era o fresco de linguagem empolada que o teatro
elisabetano e o cinema e todos pensam que ele era. Seu teatro era para o povo,
que assistia às suas peças em pé, no Globe Theater, comendo churrasquinho de
gato e jogando farofa nos atores, quando não gostavam da cena. Rei Lear, ato
quarto! Uma cena entre Lear, Edgard e Gloucester. Não vou explicá-la. Apenas
sigam-na. “GLOUCESTER:- Permiti que vos beije a mão. LEAR:- Vai limpá-la
primeiro; fede a coisa morta. GLOUCESTER:- Ah! Fragmento arruinado da natureza!
Este grande universo também há de reduzir-se ao nada! Conheceis-me? LEAR:-
Lembro-me muitíssimo bem dos teus olhos. Para que me fitas de través? Não, faze
o que quiseres, Cupido cego, eu já não pretendo amar. Lê-me este cartão,
observa especialmente o modo como está redigido. GLOUCESTER:- Mesmo que fossem
sóis essas letras, eu já não as poderia ler. EDGARD:- Se me narrassem
semelhante cena, não acreditaria nela; e, contudo, é verdadeira. É de cortar o
coração vê-la. LEAR:- Vamos, lê!
GLOUCESTER:- De que maneira, se não tenho olhos? LEAR:- Oh, oh! Estais aqui comigo? Sem olhos na cara e sem dinheiro na
bolsa? Os vossos olhos são um caso sério, a vossa bolsa um caso leve. É, porém,
certo que vedes como vai o mundo. GLOUCESTER:- Vejo-o, porque o sinto. LEAR:-
Como? Estais doido? Um homem pode ver sem olhos como vai o mundo. Olhai com as
vossas orelhas: vedes como aquele juiz se zanga com aquele ladrão simplório?
Prestai atenção: trocai-os de lugar e depois adivinhai qual é o juiz e qual é o
ladrão. Já vistes um cão de guarda ladrar a um mendigo? GLOUCESTER:- Sim,
senhor. LEAR:- E o mendigo fugir do cão? Pois
bem, isso é a sensível imagem da autoridade; é ao cão que se obedece
quando está no exercício das suas funções... Esbirro truculento, detém tua mão
sanguinária. Por que açoitas assim essa devassa? Castiga as tuas próprias
costas: estás morto por praticares com ela o ato pelo qual chicoteias. É o
usuário quem enforca o falsário. Através das vestes esfarrapadas é que se vêem
os pequenos vícios; mas os vestidos de cauda e os mantos de peles, esses
escondem tudo. O pecado com uma couraça de ouro faz que a lança da justiça se
quebre sem lhe ter causado o mínimo arranhão: mas se o armares de trapos, o talo
de grama dum pigmeu o atravessa de lado a lado. Ninguém pratica crime algum: vê
bem o que te digo ninguém. Vou anistiar a todos. Aceita isto que te
digo, como dito por mim e de mim proveniente: eu tenho o poder de fechar a boca
aos acusadores. Põe óculos e, tal qual um político miserável, finge ver o que
não vês. Vamos, vamos, vamos. Tira-me as botas; força! Mais força! Assim.
EDGAR:- Oh! Que mistura de bom senso e de loucura! É a razão em delírio.” (7). (Fora da personagem). É a razão em
delírio... é a razão em delírio... (Canta) “Dizem que eu voltei
americanizada...” (Pega o candelabro e vai acendendo uma a uma todas as
velas). E eu pensei que podia duvidar da platéia que me ouvia... Uma
vida... duas vidas... eu pensei que podia duvidar... Três vidas... muitas
vidas... Eu, que sou apenas um artista popular! (Canta). “Se gritar pega
ladrão, não fica um, meu irmão... Se gritar pega ladrão, não fica um, meu
irmão...” Eu, que sou um artista popular! Eu, que sonho todos os sonhos do meu
tempo e de todos os tempos! Acho que é para isso que existo... Acho que é para
isso que eu subo num palco e banco o palhaço, o herói, o covarde, o louco, o
cidadão comum que trabalha, que sonha, que leva porrada... e disfarça, porque (declama)
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada./ Todos os meus conhecidos têm sido
campeões em tudo./ E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes
vil,/ Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita/ Indesculpavelmente sujo/...
Toda a gente que conheço e que fala comigo/ Nunca teve um ato ridículo, nunca
sofreu enxovalho/ Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida.../
Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?/ Então sou só eu
que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado,/
Poderão ter sido traídos – mas ridículos nunca! E eu que tenho sido ridículo
sem ter sido traído,/ Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?/
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,/ Vil no sentido mesquinho e infame da
vileza.” (8) “(Canta).
. “O sol é tão bonito/ Eu vou/ Sem lenço, sem documento/ Nada no bolso ou nas
mãos/ Eu quero seguir vivendo/ Amor/ Eu vou/ Por que não? Por que não?” (6)
POR QUE NÃO?!
FIM
Isaias Edson Sidney
Quarta-feira, 4 de outubro de 2000
NOTAS
(1) QUANDO O SAMBA ACABOU – samba de Noel Rosa; 69.377.461 –
gravação de Mário Reis, col. Raízes do Samba – Mário Reis – EMI.
(2) FAVELA – samba de Roberto Martins e Waldemar Muniz da
Silva; Direto 61654841 – gravação de Sílvio Caldas, col. Celebridades da MPB –
Disco 1 – Sony Music.
(3) Todorov, Tzvetan – A Conquista da América, a Questão
do Outro –trad. De Beatriz Perrone Moisés; Martins Fontes, São Paulo –
1983.
(4) DISSERAM QUE EU VOLTEI AMERICANIZADA – samba de Vicente
Paiva e Luiz Peixoto – 61.683.167 – gravação de Carmen Miranda – col. Raízes do
Samba – Carmen Miranda – EMI.
(5) Castro Alves
– O Navio Negreiro.
(6) ALEGRIA,
ALEGRIA – canção de Caetano Veloso – Nova História da Música Popular Brasileira
– Abril Cultural – 1997.
(7) REI
LEAR – Shakespeare – Clássicos Jakson – vol. X – trad. de Artur de Sales e
J. Costa Neves; W. M. Jakson Inc. Editora – Rio de Janeiro.
(8) POEMA EM
LINHA RETA – Fernando Pessoa; O Eu Profundo e Outros Eus – Fernando
Pessoa; Editora Nova Fronteira; Rio de Janeiro; 1980.
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