sexta-feira, 30 de abril de 2021

NÃO HÁ DOR MAIOR...

  

(Valquíria Cavalcante)

     

SABT – 1345 (11.10.2000)

FBN – 214.047 – livro 373 – folha 207

  

ISAIAS EDSON SIDNEY

 

Rua dos Buritis, 251

Jabaquara, São Paulo, SP

cep.04321-001

telefone: (11)5011-9628

 

 

“NESSUN MAGIOR DOLORE CHE RICORDARSI DEL TEMPO FELICE NE LA MISERIA.”

 

Dante Alighieri

 

  CENÁRIO

 

Uma “casa” compacta, na verdade um abrigo provisório, semelhante a um “container”: sala, quarto, banheiro e cozinha compõem uma peça única, mal dividida por móveis ou cortinas. Todos os móveis são velhos e desgastados. Há somente uma porta. Paredes cinza. Uma lâmpada amarelada ao centro. Sobre um dos móveis, um rádio antigo.

 

 

PERSONAGENS

 

Os personagens - um homem e uma mulher - têm, aproximadamente 38 e 36 anos. Devem vestir-se com roupas simples e surradas, embora tenham comportamentos que denotam posição social acima daquela em que estão no momento.

 

 

MÚSICA-TEMA

 

3º movimento da Sinfonia nº 3 em Fá Maior, opus 90, de BRAHMS.


(Sob intensa escuridão, um barulho forte de motor que começa em algum ponto, percorre todo o espaço e termina no ponto oposto. Esse mesmo ruído ocorrerá várias vezes durante o desenrolar da história. Um foco de luz ilumina aos poucos o casal na cama. Está amanhecendo).

 

 

MULHER:- Você não vai, hoje?

 HOMEM:- Chegaram mais cedo...

 MULHER:- Você não vai, hoje?

 HOMEM:- Que dor de cabeça!...

 MULHER:- Você não vai, hoje?

 HOMEM:- Não consegui dormir direito...

 MULHER:- Já sei: você não vai hoje, de novo...

 HOMEM:- Dá um tempo... dá um tempo...

  

(Acende a luz, recosta-se na cama, aperta as têmporas).

  

HOMEM:- Tem um trator dentro da minha cabeça...

 MULHER:- Ontem era uma betoneira...

 HOMEM:- E amanhã pode ser um guindaste hidráulico... desses enormes... que levantam toneladas... uma casa inteira... com mulheres irritantes dentro...

 MULHER:- Não queria te irritar...

 HOMEM:- Mas irritou... que saco! Todo dia... todo dia... até quando?

 MULHER:- Você não vai lá... não pressiona...

 HOMEM:- Olha: eu já tô cheio dessa merda toda... Vai lá você...

 MULHER:- Eles não falam com mulheres... E você já está falando como eles!

 HOMEM:- Eu vou conseguir... eu vou conseguir... eu vou conseguir...

 MULHER:- Nós vamos conseguir!

  

(Enquanto o homem permanece sentado à beira da cama, com o rosto entre as mãos, a mulher levanta-se, vai até o banheiro, lava-se, arruma-se um pouco, vai até o fogão).

  

MULHER:- É o último café... Você tem que buscar a cesta... O arroz também está acabando... Tudo está acabando... Até eu... Você sabe que dia é hoje?

 HOMEM:- São todos iguais... como saber?

 MULHER:- Parece que foi ontem... você me trouxe flores... uma caixa de bombons... dentro, as passagens... as passagens para a Ilha... o paraíso... uma semana... só nós dois...

 HOMEM:- Não lembre, não lembre...

  

(Vai até a mulher, faz um gesto de abraçá-la por trás, desiste).

  

HOMEM:- Dói muito... lembrar... Não tenho nada para te oferecer, hoje...

  

(Vai até o banheiro, lava-se e apronta-se para sair).

  

HOMEM:- Eu vou buscar a cesta... eu vou buscar...

 MULHER:- O vento... eu lembro o vento... sempre... não parava nunca... às vezes, só uma brisa... às vezes, forte... trazia perfumes... levava para longe, para o mundo inteiro, a nossa felicidade... eu te amava... você também me amava... eu acho... Ah! o mar! Sempre azul...

 HOMEM (sentando-se à mesa):- Eu só lembro o estrondo... o fogo...

 MULHER:- Hoje, não... hoje, não! (Serve-lhe um pouco de café). Não tem pão...

 HOMEM:- Também não tenho fome...

  

(Toma o café, fica um instante pensativo).

  

HOMEM:- Eu não vou agüentar muito tempo... Você, você, sim... você é que é forte...  Me amparou quando tudo aconteceu... Segurou as pontas... Me animou... criou esperança...

 MULHER:- Já disse: hoje, não! Chega! Vai buscar a cesta... se não, não vai ter almoço hoje...

 HOMEM:- Não é de uma bosta de cesta que precisamos!... Nós temos de conseguir...

 MULHER:- Sim, conseguir... o quê? Dinheiro? Carro? Casa? Filhos que não tivemos?

 HOMEM:- Dignidade! É isso: DIGNIDADE!

 MULHER:- Dignidade! Nossa dignidade afundou junto com tudo aquilo que juntamos a vida inteira. Agora só resta isso... Temos tanta dignidade quanto esse fogão velho, essa geladeira enferrujada, esse banheiro malcheiroso... Nós morremos! Faz dez meses que nós morremos... Morremos para o governo... morremos para nossos amigos que morreram também... morremos para nós mesmos... Aqui é o nosso túmulo... Mortos não têm dignidade, meu velho... mortos são apenas mortos... Roídos por ratos...

 HOMEM:- Não! Você não pode estar dizendo isso... eu me recuso a ouvir! Você não pode estar dizendo isso! Você, não... Você era o contrário de tudo o que está dizendo... Eu preciso de você... Diga... diga que é mentira! Eu não ouvi o que você falou... Foi um pesadelo... Vamos! Me belisque... Eu preciso acordar! É tudo um pesadelo!...

 MULHER:- Sai!... Vai embora!... Vai buscar o almoço!... É a única coisa sensata a fazer!

  

(Os dois se encaram por alguns instantes, com rancor. O homem levanta-se e lentamente se dirige para fora. Volta-se e coloca a cabeça para dentro).

  

HOMEM:- Parabéns pelo aniversário!

 

 (Sai rapidamente. A xícara lançada pela mulher explode contra a porta).

  

MULHER:- Trinta e seis anos... trinta e seis anos... e aqui... neste buraco... como rato... esquecida de tudo e de todos... Até parece que... É isso: sem passado, sem futuro... Sem passado, sem futuro!

  

(Levanta-se repetindo essa frase, brincando com as palavras, dançando, ora séria ora rindo. Vai até o velho rádio, liga-o e fica, por  um instante ouvindo A MÚSICA-TEMA).

  

MULHER:- Brahms... acho que nunca mais vou conseguir ouvir Brahms... e era o meu favorito!

  

(Muda de estação. Encontra uma valsa de Straus. Começa a dançar, a princípio lentamente, acompanhando o ritmo da música).

  

MULHER:- Que delícia!... Eu tinha dezesseis anos... Foi meu baile de formatura... Dançava com meu pai... Num ritmo lento... suave... flutuava... (Pára um instante). Não era o rato que sou agora... escondida neste buraco... (Prossegue a dança). Meu pai: parecia ter asas nos pés... Eu estava superfeliz... eu era feliz... De repente... no canto do salão... eu vi... sim, eu vi... Dois olhos! Dois olhos que me seguiam! Ternos... ávidos... românticos... belos... penetrantes... Gelei... um frio no estômago... Não... meu coração não disparou... foi meu estômago que sentiu... um frio... assim... como se... como se... como se eu fosse ficar menstruada!...

  

(A música pára de repente, mas ela continua dançando).

  

MULHER:- Só voltei a sentir esse frio na barriga...  quase desse mesmo jeito, quatro anos depois... quando nos casamos... O mundo parou, quando nos casamos... o mundo parou! E como eu era feliz! Meu Deus, como eu era feliz...

  

(Percebe que a música parou. Pára, também, de dançar. Fica como se estivesse ouvindo um ruído imaginário de ratos).

  

MULHER:- Os ratos... os ratos comeram minha música... eles estão comendo tudo... os ratos estão comendo minha vida...

  

(Vai até o rádio, dá-lhe um murro, ele volta a funcionar, mas ela já não se interessa pela música que continua tocando baixo. Olha ao redor lentamente, como se visse tudo aquilo pela primeira vez. Pega cada objeto velho como se fosse uma preciosidade).

  

MULHER:- Eu preciso arrumar tudo isso... eu preciso arrumar... a empregada... ela... ela foi embora... estou sozinha... preciso arrumar... ali... meus cristais... estão um pouco empoeirados, não estão? Aqui, a prataria... precisa de polimento... como eu gosto deste prato... tão bonito... tão brilhante... posso ver o meu rosto refletido nele... Acho que vou fazer uma plástica aqui... levantar um pouquinho... ou não? Eu gosto do meu rosto... mas pode melhorar, não pode? Sempre pode melhorar! Ah! Minha coleção da dinastia Ming... um prato de cada viagem que fizemos pelo mundo... eu reuni todos eles... aqui... são meus... meus! São a minha vida... o meu mundo... meus móveis... da casa Bauhaus... estilo! Eu tinha estilo! Nos móveis... nas viagens que fazíamos... nas roupas que usávamos... nas pratas... nos pratos... nos ratos! Não! Nos ratos, não! Não havia ratos em nossa vida... agora eles estão por toda parte...

  

(O barulho de motor começa a surgir e, à medida que ele aumenta, a voz da mulher vai sumindo, embora ela continue a falar).

 

 MULHER:- Eles estão por toda a parte... eles estão comendo o meu cérebro... [...]... enlouqueço... não posso mais continuar assim... eu tenho passado, sim... eu tenho passado... Eles não querem... mas eu tenho... eu tive passado até o dia em que... Aquele concerto... Brahms... era Brahms a peça principal... pièce de resistence...

  

(A Mulher cantarola os primeiros acordes DA MÚSICA TEMA, QUE começa a vir aos poucos e aumentando, tomando todo o espaço, como se estivesse na sua cabeça. E ela dança, acompanhando o ritmo, com expressão enlevada, até que um grande estrondo se faz ouvir, calando tudo de repente, assustando-a a tal ponto, que ela começa a correr como louca de um lugar para o outro, até se esconder, trêmula, em algum canto. Silêncio. O Homem abre a porta e entra com embrulhos).

 

 HOMEM:- Mulher... trouxe o almoço... Onde você está?

 MULHER (saindo do esconderijo, trêmula):- Você... você... você ouviu? Ouviu?...

 HOMEM:- Ouviu o quê?!

 MULHER:- O estrondo... o estrondo de novo... igual... igual...

 HOMEM:- Vamos... se acalme... não houve estrondo algum... Toma um pouco d’água... Você está nervosa... Precisa sair um pouco... tomar ar... Ficar presa aqui... já disse... não pode fazer bem... Você precisa sair...

 MULHER:- Não!... Não!... Sair, não... Sair só no caixão... morta...

 HOMEM:- Não fale bobagem... Nós vamos sair daqui, sim... nós vamos sair... você verá...

 MULHER:- Eles... eles mataram nosso passado...

 HOMEM:- Como??

 MULHER:- Eles mataram nosso passado... e mataram nosso futuro... Mataram nosso futuro! MATARAM NOSSO FUTURO!

 HOMEM:- Está bem, está bem... agora chega... Olhe, vamos almoçar, você deve estar com fome... depois a gente conversa sobre isto... Está bem?...

 

(Durante todo esse diálogo, o Homem esboçou alguns gestos de carinho ou de aproximação física em relação à Mulher, mas todos ficaram apenas na intenção. Ele se dirige à mesa, onde colocara os embrulhos ao entrar, e começa a desfazê-los para tirar o alimento. Mais calma, ela também se senta e eles comem em silêncio, por alguns instantes).

  

HOMEM:- Te achei estranha... você... não...

 MULHER:- Não!

 HOMEM:- Mas... por que tudo isso?...

 MULHER:- Olha! Se você acha que...

 HOMEM:- Não acho nada... Se você diz que não, então é não... acabou...

 MULHER:- Mas você está desconfiando de mim!...

 HOMEM:- Foi só por um momento... já disse: passou!

 MULHER:- Passou, não, que eu não admito...

 HOMEM:- Pronto! Vai começar!...

 MULHER:- Vai começar o quê? Me diga: o quê?

 HOMEM:- O de sempre...

 MULHER:- Você acha que pode vir entrando assim... e desconfiando... e achando isso e achando aquilo? Você se acha melhor do que eu só porque sai, vai pra rua, fazer não sei o quê... traz essa merda dessa comida que nem rato come? E fica achando que eu vou começar alguma coisa? Me diga: o que eu vou começar? Heim? O quê? E não adianta ficar aí com essa cara de cachorro sem dono, achando que eu vou parar só porque você não fala nada... Pois você está muito enganado, meu amigo... Eu vou falar e vou falar tudo o que eu quiser... não vai ser esse seu sorrisinho idiota que vai me fazer parar de falar... vou dizer tudo, ouviu, tudo o que está engasgado aqui, nesse tempo todo... Só eu sei o que tenho passado nessa casa... se é que se pode chamar esse pardieiro de casa... a gente parece cachorro... morando desse jeito... nem cachorro merece isso... Eu não agüento mais, ouviu? EU NÃO AGÜENTO MAIS! Eu quero morrer... morrer... acabar com tudo... É isso o que você quer, não é? Que eu morra! Assim, você pode começar tudo sozinho... fugir daqui... ir pra outro lugar... sem ter que levar essa doida aqui... não é? É isso o que você quer, eu sei... (Chora). Nunca pensei que a minha vida chegasse nesse ponto... O que foi que eu fiz, meu Deus, o que foi que eu fiz? Cadê meu pai! Eu quero meu pai! Cadê todo mundo... nossos amigos... nossos parentes...

  

(A Mulher debruça-se na mesa, chorando. O Homem, lentamente, levanta-se, chega por detrás dela, ameaça abraçá-la, tocar-lhe os cabelos, hesita, afasta-se crispado. Pega uma cadeira e joga-a com toda força contra a parede. Blackout. Luz sobre a Mulher, em cima de uma cadeira, buscando algo num armário. Encontra um pequeno jarro ou vaso, brilhante, desce com cuidado, caminha até o Homem sentado no outro canto da casa).

  

MULHER:- Você disse que eu... Olha: está aqui... tudo... inteiro...

 HOMEM:- O nosso tesouro!... Venha, vamos olhá-lo de perto...

 

 (Com passos lentos, como numa cerimônia religiosa, colocam sobre a mesa o vaso. Contemplam-no por alguns instantes com devoção).

  

HOMEM:- Vamos olhar melhor? Vamos?

  

(Com cuidado, retira um papelote de dentro, desembrulha-o delicadamente e despeja o pó branco sobre um pequeno espelho. Com uma lâmina, junta tudo numa carreirinha e ficam ambos, extasiados, contemplando o pó).

 

 HOMEM:- Não é lindo? Diga: não é lindo?

 MULHER:- Vamos... vamos dar... uma... cheiradinha... Uma só... de leve... Temos muita...

 HOMEM:- N... nã... não! Ainda não! Temos que ser firmes: vai chegar o momento! Vamos ser ricos de novo... Aí, sim, vamos ter muito mais... vamos cheirar até abrir um buraco no nariz... Mas agora, não! Você sabe que não dá... Já tentamos... É pior...

 MULHER:- Sim... sim... nós vamos... nós vamos ficar ricos de novo!

  

(Cuidadosamente, o homem coloca de volta o pó no papelote e o papelote no vaso. A Mulher, também cuidadosamente coloca o vaso no mesmo lugar em que ele estava guardado. Desce da cadeira. O Homem pega um paletó, arruma-se ao espelho).

  

MULHER:- Vai sair?

 HOMEM:- Procurar emprego... Diz que tão precisando de açougueiro num bairro aqui perto...

 MULHER:- O que entende você de carne?

 HOMEM:- Dos tantos churrascos que a gente já foi...

 MULHER:- Só pra comer...

 HOMEM:- Pelo menos eu sei o que é um bom filé...

 MULHER:- E você acha que vai vender filé neste bairro... Isso se tiver filé pra vender, o que eu duvido!

  

(A Mulher está ao fogão, de costas para o Homem. Ele termina de se arrumar, aproxima-se dela, esboça um gesto, desiste e sai. Silêncio. Ela liga o rádio. Ouvem-se notícias de tragédias envolvendo populações pobres, no mundo inteiro. A Mulher senta-se numa cadeira, começa a costurar.)

  

RÁDIO (voz em off):-

 

PORTO PRÍNCIPE, HAITI: Estima-se que cerca de 400 pessoas tenham morrido afogadas, ontem, quando a balsa Orgulho de Gonave afundou, enquanto os passageiros se preparavam para desembarcar. Informações não confirmadas dão conta de que viajavam principalmente comerciantes e agricultores pobres da região do Golfo de Gonave, a 80 quilômetros de Porto Príncipe.

 

ARGÉLIA: Pelo menos 63 pessoas, a maioria mulheres e crianças, morreram na madrugada de ontem em uma pequena e pobre cidade da Argélia, em um massacre perpetrado por um comando extremista, que também deixou cerca de 60 feridos.

 

CURITIBA: Pelo menos 700 casas foram destelhadas por causa de ventos e chuva de granizo que atingiram as regiões mais pobres do oeste e sudoeste do Paraná na manhã de ontem, onde foi decretado estado de emergência.

 

BELO HORIZONTE: A cheia do rio São Francisco atingiu ontem dezenas de populações do Vale do Jequitinhonha,  uma das regiões mais pobres do Estado, deixando milhares de desabrigados que perderam tudo do pouco que tinham.

 

 (O barulho do motor vem e passa. Ela desliga o rádio. Continua a costurar).

  

MULHER:- Pra todo lado, desgraças... enchentes, massacres, incêndios... até terremotos... Sempre gente pobre a perder o que não tinha... Coitados! (Pausa) Coitados, nada! Aí junta um monte de   instituições de caridade do mundo inteiro... fazem apelos nos jornais, na televisão, na Internet... e o que acontece?... Repõem tudo o que perderam... e ainda com lucro... tanto para os pobres quanto para os que ajudaram a arrecadar... Até a desgraça seguinte... e começa tudo de novo... Mas quando vem uma grande desgraça pra gente como a gente... assim, remediada... remediada o cacete... diabo de palavra mais idiota... pra que vou ficar com falsa modéstia... gente rica, isso, gente rica, como eu e meu marido... o que acontece? A gente perde tudo... casa, automóveis, jóias... amigos... emprego... Recebe de volta? Nada... nadinha... nem uma mansãozinha pra morar... nem uma mercedinha, assim, mais velhinha pra andar... nem um empreguinho numa multinacional... nada! Jogam a gente neste buraco.. cheio de ratos... e esquecem!... Tem certa hora que é bom, mesmo, é ser pobre! Viver como eles vivem, como ratos... Ratos de esgoto... magros... esquálidos... esquálidos... palavra besta, essa... Um dia eu também fui um rato, só que um gordo, rato de armazém... que só sabe fugir de gato, até que um dia faz um trato com o gato... Eu... eu e meu pai... Meu pai também era um rato... um rato gordo... que fez  trato com todos os gatos, que chegou mesmo a dar susto em alguns... Meu pai, um rato! Muito engraçado... (Imita um rato)... assim, ó... gordo... um Mickey Mouse de terceiro mundo, mas um grande rato... O rato roeu a roupa do rei... a roupa do rei... a roupa do...  do rei... o rei, senhor meu marido... ele também  um belo rato... não tão rato quanto meu pai ou o pai dele... mas teve o seu quinhão de queijo... E que queijo!

 

 (O Homem entra. Senta-se a seu lado, desanimado).

  

HOMEM:- Não me aprovaram... disseram que eu tenho o perfil acima do cargo...

 MULHER:- Você caiu na besteira de dizer que tinha curso superior...

 HOMEM:- Perfil acima do cargo... (Ri). Perfil acima do cargo...

  

(Gargalha. A Mulher também começa a rir).

  

HOMEM:- Perfil acima do cargo... de açougueiro... (Os dois estão gargalhando como loucos). O... o... dono... do açougue... ele... disse... que... eu... tenho... o perfil acima do cargo...

 

 (Ele rola pelo chão, de tanto rir. A Mulher debruça-se na mesa, também gargalhando).

  

HOMEM:- Meu... diploma... meu mestrado... não permite... que eu... seja... açougueiro... Perfil... perfil acima... acima... do cargo!...

  

(Eles param de repente de rir. Limpam as lágrimas. Ele encara a Mulher).

  

HOMEM:- Cadê... onde você guardou?

 MULHER:- Guardou o quê?

 HOMEM:- O pó... o pó... nosso santo pó... Eu preciso... eu preciso... eu quero... uma cheirada... uma só... onde está?

  

(Vai como louco até onde a Mulher havia colocado o vaso. Não o encontra).

  

HOMEM:- Onde... onde você guardou... desgraçada... eu te mato... eu preciso...

  

(Abre outro armário, encontra uma corda).

 

 HOMEM:- O que é isso?... O que essa corda está fazendo aqui?... Cadê a cocaína, maldita?

  

(A mulher encara-o com firmeza. Com os olhos esbugalhados, segurando a corda, ele pára diante dela, curvado, quase de joelhos).

 

 MULHER:- Por que você não se enforca com essa corda? Vamos... tenha coragem uma vez na vida... ou você não tem o perfil pra isso também?

  

(Ele cai de bruços, soluçando. Tranqüilamente, ela toma A corda de suas mãos, enrola-a, guarda-a no armário e tenta pôr um pouco de ordem na bagunça que ele fizera).

  

MULHER:- Você mesmo disse que o pó agora não, só depois... quando a gente for rico de novo... E você prometeu: nós vamos ser ricos de novo! Nós vamos ser ratos de novo... Não! Ratos, não! Só ricos... ouviu, ricos!...

 

 (O Homem levanta-se, vai até o banheiro, lava o rosto, penteia os cabelos, arruma-se um pouco e volta para junto da Mulher, tira do bolso um pequeno embrulho de presente e, com um pouco de relutância, entrega-lhe).

  

HOMEM:- Pelo seu aniversário... Parabéns...

  

(A Mulher recebe o pequeno embrulho, olha-o durante alguns instantes, vai até o armário, guarda-o numa gaveta).

  

HOMEM:- Não vai abrir?

 MULHER:- Não.

 HOMEM:- Você já sabe o que é?

 MULHER:- Não importa o que ele é. Basta que seja.

 HOMEM:- Não entendi...

 MULHER:- Não precisa entender... Obrigado pelo... pela lembrança...  Senta aí... o jantar está pronto...

  

(Ele dá de ombros, senta-se à mesa. A Mulher serve o jantar. Comem em silêncio. O barulho do motor vem e vai embora).

 

 HOMEM:- Ele foi embora...

 MULHER:- Quem?

 HOMEM:- O barulho... foi embora... vamos ter um pouco de sossego...

 MULHER:- Estranho...

 HOMEM:- O quê?

 MULHER:- Essa cesta que você traz... Cada dia menor...

 HOMEM:- É!... Estão racionando... a coisa está feia aí fora... Há muita fome... desemprego... (Terminando o jantar). Vou dormir... estou morto...

  

(O homem dirige-se para a cama, tira apenas os sapatos, deita e enrola-se na coberta. Só um foco de luz na mulher, que espera. O ressonar do homem indica que ele está dormindo. Ela levanta, vai até o armário, retira alguns objetos, inclusive a corda e, do fundo, o recipiente com a cocaína. Em gestos lentos, como num ritual, leva-o para a mesa, retira um papelote, faz carreirinhas e aspira com prazer e sofreguidão. Delira).

  

MULHER:-Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar... volta e meia vamos dar.. vamos dar... vamos dar...” Papai... você me leva para ver o Mickey, Papai... a Margarida, o tio Patinhas... o tio Patinhas, papai! Não é ele o seu herói? Ah! O Mickey... olha, Papai... o Mickey... ele não é lindo? Ele tem piupiu, tem?... igual ao primo André?... Ai! Não me bate, não me bate! Eu não falo mais... eu juro... não me bate... Ah! Papai... eu te amo tanto... foi tão bom... Não, não me deixe... não deixe...

  

(Brinca de pula-corda por alguns instantes).

  

MULHER:- Eu não quero, não quero e não quero... Pronto! Eu odeio bacalhau... eu quero macarrão... eu não quero bacalhau... Manda ela embora, papai... ela é má... manda ela embora... “Frère Jacques... Frère Jacques... Dormez-vous? Dormez-vous? Sonne le matine... Din... den... don...” Eu não quero, ouviu, eu não quero aprender francês... I want to study English... Eu quero estudar inglês... A língua dos Beatles... “I want to hold your hand/ I want to hold your hand...” Quando eu crescer, quero viajar, conhecer o mundo... Acho que vou estudar Administração de Empresas... mas antes... o mundo... o mundo... “Volta e meia vamos dar... Ciranda, cirandinha...”o baile... foi naquele maldito baile... uns olhos que me olhavam... pareciam me devorar... olhos de rato... olhos de rato...

  

(Encena com o Homem, que passa a contracenar com ela).

  

MULHER:- Me tirou pra dançar... um bolero! Imagine: um bolero!... E eu queria dançar rock...

 

 (Dançam por alguns instantes um bolero. Depois ela o empurra e começa a dançar um rock, sozinha, sob o olhar contrariado do Homem).

  

MULHER:- Eu queria dançar todos os sons do meu tempo... Merda! Fui me apaixonar por... por... esse aí... Até que ele era bem apanhado, o danadinho... Tinha futuro, como dizia o meu pai...

  

(O Homem vai embora).

 

 MULHER:- Foi paixão... daquelas brabas... namoramos... eu tinha dezesseis e ele dezoito... aquele namoro tradicional... só pegar na mão... no sofá da sala... Quando fiz dezoito, foi aquela doideira... não podia esperar mais... “Ciranda, cirandinha... volta e meia vamos dar...” Dar? Dar é pouco para descrever a loucura... Eu, educada nos melhores colégios católicos... de ir à missa todo domingo... confessar e comungar cada quinze dias... eu... de repente... tava lá com ele... sabe onde? Num quarto de motel... e foi aquela loucura... nem quando brincava de médico com o primo André... eu tava lá... como uma galinha assada... pernas arreganhadas... ai! ai! ai! ui! ui! ui! mais! mais! como é gostoso! ai! oh! yes! yes !yes! it’s coming! yes!... e olhava a cara dele... como ninguém pode ver outra pessoa... assim, bem de pertinho... bufando... vermelho... e mais! e mais! oh! yes!

  

(Fica séria de repente, mudando o tom).

  

MULHER:- Dois anos depois nos casamos... e a foda nunca mais foi a mesma: tudo no maior respeito, papai-mamãe e de vez em quando uma variaçãozinha, sabe como é? depois de umas doses de uísque... E assim mesmo foram dezesseis anos... dezesseis anos de sexo aguado... até o grande estrondo... “Ciranda, cirandinha, vamos todos nos foder... vamos dar a foda e meia, foda e meia vamos dar...” Fodidos... todos... no meio desses desgraçados desses ratos...

  

(Começa a caçar ratos imaginários com uma vassoura).

  

MULHER:- Malditos! Malditos! Se eu pudesse, enforcava um por um... Vão embora... nós... somos... ratos... ratos...

  

(Pega o rádio, senta-se exausta, liga-o. O som de uma voz profunda de homem faz-se ouvir).

 

 GRAVAÇÃO:- Minha filha, teu pai sempre te amou, sempre... Eu sei que nem sempre os meus atos corresponderam ao meu pensamento, aos meus sentimentos, mas quero deixar para você o meu testamento... de pai...

 MULHER:- Meu pai, o rato-mor! Além da casa, da firma e de dinheiro na Suíça, ele deixou um testamento... para mim... sua filha... sua única filha... O rato-mor que roeu a vida da filhinha...

 GRAVAÇÃO:- Seja sempre honesta, minha filha... respeite o seu marido... ele é o seu... o seu, vamos dizer, o seu farol, o seu guia... ele também te respeitará... se você o fizer feliz... Nossos negócios estão em boas mãos, você deve confiar, confiar na escolha que seu pai fez...

 MULHER:- Escolha?... que escolha? Eu é que escolhi!... Ouviu, seu ratão! Eu é que escolhi!...

 GRAVAÇÃO:- ... Vou te confessar um pecadilho de seu pai... você vai me compreender... e perdoar... Quando sua mãe morreu... quando sua mãe morreu... quando sua mãe morreu... você era muito novinha, nem se lembra dela... coitada, o câncer a levou para os braços de Deus... rezemos, minha filha, rezemos um Pai Nosso pela alma de sua mãe... (Ele reza e ela o acompanha). Amém! Mas como eu ia te falando... eu prometi à sua mãe... prometi que você só se casaria com o filho de nosso melhor amigo... amigo, mesmo... de todas as horas... ele era dois anos mais velho que você, o menino... Então, nós... eu e os pais dele elaboramos uma estratégia para aproximá-los...

 MULHER:- Estratégia para nos aproximar? Que porra de sacanagem é essa?

 GRAVAÇÃO:- E vocês se apaixonaram... e se casaram e devem ser muito felizes... E tenho certeza de que me darão netos... muitos netos... E serão mais do que um casal, uma família, serão uma sociedade, uma sociedade progressista, liberal, cumpridora das leis dos homens e, sobretudo, das leis de Deus... para o progresso de nosso país e de nossa sociedade...

 

 (desliga com raiva o rádio)

 

 MULHER:- Estou mal... estou ruim... estou pior do que pensei... estou delirando... esse merda de rádio... com a voz de meu pai... me dizendo esse monte de merda... que eu fui enganada... enganada pelo meu próprio pai...

  

(Enrola-se na corda).

 

 MULHER:- Minha vida foi uma farsa! Uma farsa! E eu pensei que... de tanto ser rato, taí, ó: caí nessa porra de ratoeira! Merda! Mil vezes merda! (Chora). Mas eu vou me vingar... eu vou... eu vou sair dessa ratoeira... Ele me paga... ele me paga...

  

(Começa a enrolar a corda numa cadeira, como se estivesse amarrando alguém).

  

MULHER:- Vou deixá-lo aqui, amarrado... para sempre... e vou embora... vou ter coragem de ir embora... e ele vai ficar aqui.. com os ratos... e eu vou ter coragem... de sair... de ir para bem longe desse buraco nojento... longe desses ratos... ele vai ficar... aqui... amarrado... para sempre... eu vou viver... EU VOU VIVER...   (Blackout).

  

(Está amanhecendo. Luz aos poucos sobre a cama do casal. O barulho forte do motor vem e passa).

  

MULHER:- Você não vai, hoje?

 HOMEM:- Chegaram mais cedo...

 MULHER:- Você não vai, hoje?

 HOMEM:- Que dor de cabeça!...

 MULHER:- Você não vai, hoje?

 HOMEM:- Não consegui dormir direito...

 MULHER:- Já sei: você não vai hoje, de novo...

 HOMEM:- Dá um tempo... dá um tempo...

 

 (Acende a luz, recosta-se na cama, aperta as têmporas).

  

HOMEM:- Tem uma betoneira dentro da minha cabeça...

 MULHER:- Ontem era um trator...

 HOMEM:- E amanhã pode ser um guindaste hidráulico... desses enormes... que levantam toneladas... uma casa inteira... com mulheres irritantes dentro...

 MULHER:- Não queria te irritar...

 HOMEM:- Mas irritou... que saco! Todo dia... todo dia... até quando?

 MULHER:- Você não vai lá... não pressiona...

 HOMEM:- Olha: eu já tô cheio dessa merda toda... Vai lá você...

 MULHER:- Eles não falam com mulheres... E você já está falando como eles!

 HOMEM:- Eu vou conseguir... eu vou conseguir... eu vou conseguir...

 MULHER:- Nós vamos conseguir!

  

(Enquanto o homem permanece sentado à beira da cama, com o rosto entre as mãos, a mulher levanta-se, vai até o banheiro, lava-se, arruma-se um pouco, vai até o fogão).

 

 MULHER:- É o último café... Você tem que buscar a cesta... O arroz também está acabando... Tudo está acabando... Até eu... Você sabe que dia é hoje?

 HOMEM:- São todos iguais... como saber?

 MULHER:- Parece que foi ontem... Você estava tão bonito... a igreja... os convidados... a festa... depois, só nós... naquele navio fantástico... Paris... Ilhas Gregas... você se lembra daquela praia em Mikonos?...

 HOMEM:- Não lembre, não lembre...

  

(Vai até a mulher, faz um gesto de abraçá-la por trás, desiste).

  

HOMEM:- Dói muito... lembrar... Não tenho nada para te oferecer, hoje...

 

 (Vai até o banheiro, lava-se e apronta-se para sair).

 

 HOMEM:- Eu vou buscar a cesta... eu vou buscar...

 MULHER:- O mar... eu lembro o mar... sempre tão azul... os perfumes, os sons... aquela música maravilhosa... a levar para o mundo inteiro a nossa felicidade... eu ainda te amava... você também... ainda... me amava... eu acho... Ah! as lojas de Paris! Sempre uma tentação...

 

HOMEM (sentando-se à mesa):- Eu só lembro o estrondo... o fogo...

 MULHER:- Hoje, não... hoje, não! (Serve-lhe um pouco de café). Não tem pão...

 HOMEM:- Também não tenho fome...

  

(Toma o café, fica um instante pensativo).

  

HOMEM:-  Eu não vou aguentar muito tempo... Você, você, sim... você é que é forte...  Me amparou quando tudo aconteceu... Segurou as pontas... Me animou... criou esperança...

 MULHER:- Já disse: hoje, não! Chega! Vai buscar a cesta... se não, não vai ter almoço hoje...

 HOMEM:- Não é de uma bosta de cesta que precisamos!... Nós temos de conseguir...

 MULHER:- Sim, conseguir... o quê? Dinheiro? Carro? Casa? Filhos que não tivemos?

 HOMEM:- Esperança! É isso: ESPERANÇA!

 MULHER:- Esperança! Nossa esperança afundou junto com tudo aquilo que juntamos a vida inteira. Agora só resta isso... Temos tanta esperança quanto esse fogão velho, essa geladeira enferrujada, esse banheiro malcheiroso... Nós morremos! Faz quase dois anos que nós morremos... Morremos para o governo... morremos para nossos amigos que morreram também... morremos para nós mesmos... Aqui é o nosso túmulo... Mortos não têm esperança, meu velho... mortos são apenas mortos... roídos pelos ratos...

 HOMEM:- Não! Você não pode estar dizendo isso... eu me recuso a ouvir! Você não pode estar dizendo isso! Você, não... Você era o contrário de tudo o que está dizendo... Eu preciso de você... Diga... diga que é mentira! Eu não ouvi o que você falou... Foi um pesadelo... Vamos! Me belisque... Eu preciso acordar! É tudo um pesadelo!...

 MULHER:- Sai!... Vai embora!... Vai buscar o almoço!... É a única coisa sensata a fazer!

  

(Os dois se encaram por alguns instantes, com rancor. O homem levanta-se e lentamente se dirige para fora. Volta-se e coloca a cabeça para dentro).

 

 HOMEM:- Parabéns pelo nosso aniversário de casamento!

  

(Sai rapidamente. A  xícara lançada pela mulher explode contra a porta).

 

MULHER:- Dezessete anos de casamento... comemorar o quê? Neste buraco? Esquecidos de tudo e de todos... Sem nenhuma esperança... sem nenhuma possibilidade... Presos numa ratoeira... ratoeira... ratoeira...

  

(Levanta-se repetindo essa frase, brincando com as palavras, ora séria ora rindo. Vai até o velho rádio, liga-o e fica, por um instante, ouvindoA MÚSICA-TEMA).

  

MULHER:- Não... não posso mais ouvir Brahms... era o meu compositor favorito... mas acabou... A-CA-BOU...

  

(Muda de estação, encontra um rock. Começa a dançar, acompanhando o ritmo da música).

 

 MULHER:- Tempos loucos aqueles... festas... amigos... Mesmo depois da morte de meu pai... (Pára um instante). Foi difícil... meu pai morto... meu marido assumindo todos os negócios... dando novas diretrizes para a empresa... quase não parava em casa... Festa e solidão... (Volta a dançar)... Foi numa daquelas festas que meu marido vivia patrocinando... para gringos... precisava expandir os negócios... Foi numa dessas festas... Foi nesta festa... Quando eu vi... aqueles olhos que me seguiam... cheios de tesão... de paixão... Meu estômago apertou... embrulhou... como se... como se eu fosse ficar menstruada...

  

(A música pára de repente, mas ela continua dançando).

  

MULHER:- Conhecia bem aquele frio na barriga... Eu não podia... eu sei que não podia... Sim, foi a solidão... o pior tipo de solidão que existe... sabe, aquela solidão a dois? Quando um não olha pro outro, quando parece que são apenas dois conhecidos? Quando o sexo fica chocho? Vira obrigação? Pois é, a culpa não foi minha: foi dele! Ele é que me jogou nos braços daquele... daquele... daquele tesão de homem... loiro... alto... forte... gentil... tão gentil, que usava camisinha perfumada e cada dia com uma cor diferente... O mundo parou! E como eu era feliz! Meu Deus, como eu era feliz...

  

(Percebe que a música parou. Pára, também, de dançar. Fica como se estivesse ouvindo um ruído imaginário de ratos).

  

MULHER:- Os ratos... os ratos... cada dia tem mais ratos... eles estão roendo tudo... estão roendo minha vida... por dentro...

  

(Pega uma vassoura e começa, como louca a perseguir ratos invisíveis, em poses grotescas, gritando até que o barulho do motor vem, encobre seus gritos e passa. Pequeno silêncio, durante o qual ela também fica imóvel, como se esperasse algo. Soam, baixinho, os primeiros acordes DA MÚSICA-TEMA. O som vai aumentando aos poucos, tomando todo o espaço, como se estivesse na sua cabeça. E ela dança, acompanhando o ritmo, com expressão enlevada, até que um grande estrondo se faz ouvir, calando tudo de repente, assustando-a a tal ponto, que ela começa a correr como louca de um lugar para o outro, até se esconder, trêmula, em algum canto. Silêncio. O Homem abre a porta e entra com embrulhos, com menos embrulhos do que na primeira vez).

  

HOMEM:- Mulher... trouxe o almoço... Onde você está?

 MULHER (saindo do esconderijo, trêmula):- Você... você... você ouviu? Ouviu?...

 HOMEM:- Ouviu o quê?!

 MULHER:- O estrondo... o estrondo de novo... igual... igual...

 HOMEM:- Vamos... se acalme... não houve estrondo algum... Toma um pouco d’água... Você está nervosa... Precisa sair um pouco... faz dois anos, dois anos que você está trancada aqui... ninguém agüenta isso... sem ficar...

 MULHER:- ... louca? Você pensa que eu estou louca? Não!... Não!... Eu não estou louca...  Sair, não... Sair só no caixão... morta...

 HOMEM:- Não fale bobagem... Nós vamos sair daqui, sim... nós vamos sair... você verá...

 MULHER:- Eles... eles mataram nossa esperança...

 HOMEM:- Como??

 MULHER:- Eles mataram nossa esperança... e mataram nossa vida... Mataram nossa vida!

 HOMEM:- Está bem, está bem... agora chega... Olhe, vamos almoçar, você deve estar com fome... depois a gente conversa sobre isto... Está bem?...

  

(Durante todo esse diálogo, o Homem esboçou alguns gestos de carinho ou de aproximação física em relação à Mulher, mas todos ficaram apenas na intenção. Ele se dirige à mesa, onde colocara os embrulhos ao entrar, e começa a desfazê-los para tirar o alimento. Mais calma, ela também se senta e eles comem em silêncio, por alguns instantes).

  

MULHER:- Te achei estranho... você... não...

 HOMEM:- Não!

 MULHER:- Mas... essa comida?...

 HOMEM:- O que tem essa comida?

 MULHER:-  Cada dia mais escassa... cada dia menos coisa...

 HOMEM:- Você está desconfiando de mim!...

 MULHER:-  Foi só por um momento... passou!

 HOMEM:-  Passou, não, que eu não admito...

 MULHER:-  Pronto! Vai começar!...

 HOMEM:-  Vai começar o quê? Me diga: o quê?

 MULHER:- O de sempre...

 HOMEM:- Você acha que pode vir desconfiando assim, sem mais nem menos... e achando isso e achando aquilo? Você se acha melhor do que eu só porque fica aí em casa o dia todo? E fica achando que eu vou roubar alguma coisa de você? Me diga: o que eu vou roubar? Heim? O quê? E não adianta ficar aí com essa cara de cachorro sem dono, achando que eu vou parar só porque você não fala nada... Pois você está muito enganada, minha amiga... Eu vou falar e vou falar tudo o que eu quiser... não vai ser esse seu sorrisinho idiota que vai me fazer parar de falar... vou dizer tudo, ouviu, tudo o que está engasgado aqui, nesse tempo todo... Só eu sei o que tenho passado nessa casa... se é que se pode chamar esse pardieiro de casa... a gente parece cachorro... morando desse jeito... nem cachorro merece isso... Eu não agüento mais, ouviu? EU NÃO AGÜENTO MAIS! Eu quero ir embora... fugir... esquecer tudo isso... É o que você quer, não é? Que eu vá embora! Assim, você pode ficar aqui sozinha... e a comida será só pra você... não é? Quem sabe até arranjar outro trouxa que te sustente... se é que já não arranjou... É isso o que você quer, eu sei... (Histérico). Nunca pensei que a minha vida chegasse nesse ponto... O que foi que eu fiz, meu Deus, o que foi que eu fiz? Cadê o seu pai! Eu quero o seu pai, o meu sogro querido!... Cadê todo mundo... nossos amigos... nossos parentes...

  

(Ela dá-lhe um bofetão. Ele pára, assustado, o ataque histérico e fica olhando para ela como um idiota).

  

MULHER:- Não conseguiu emprego de novo...

 HOMEM:- N... n... não!

 MULHER:- Nem como ajudante de servente de pedreiro...

 HOMEM:- Disseram que eu tenho o perfil acima do cargo...

 MULHER:- Você caiu na besteira de sempre: disse que tinha curso superior!?

 HOMEM:- Perfil acima do cargo... (Ri). Perfil acima do cargo...

  

(Gargalha. A Mulher também começa a rir).

 

 HOMEM:- Perfil acima do cargo... de ajudante de servente de pedreiro...

  

(Os dois estão gargalhando como loucos).

  

HOMEM:-  O... o... capataz... da obra... ele... disse... que... eu... tenho... o perfil acima do cargo...

  

(Ele rola pelo chão, de tanto rir. A Mulher debruça-se na mesa, também gargalhando).

  

HOMEM:- Meu... diploma... meu mestrado... não permite... que eu... seja... ajudante de servente de pedreiro... meia-colher, então, nem pensar!... Perfil... perfil acima... acima... do cargo!...

  

(Eles param de repente de rir. Limpam as lágrimas. Ela encara o Homem).

  

MULHER:-  Cadê... onde você guardou?

 HOMEM:-  Guardou o quê?

 MULHER:- O pó... o pó... nosso santo pó... Eu preciso... eu preciso... eu quero... uma cheirada... uma só... onde está?

  

(Vai como louca até onde devia estar o vaso. Não o encontra).

  

MULHER:- Onde... onde você guardou... desgraçado... eu te mato... eu preciso...

  

(Abre outro armário, encontra a corda, joga-a aos pés do homem).

  

MULHER:- Cadê a cocaína, maldito?

  

(O homem encara-a com firmeza, segurando a corda).

  

HOMEM:- Por que você não se enforca com essa corda? Vamos... tenha coragem uma vez na vida... Como eu não tenho perfil para ser ajudante de servente de pedreiro, será que você não tem o perfil pra ser suicida?

  

(Ela cai de bruços, soluçando. Tranqüilamente, ele enrola a corda, guarda-a no armário e tenta pôr um pouco de ordem na bagunça que ela fizera).

  

HOMEM:- Você mesma disse que o pó agora não, só depois... quando a gente for rico de novo... E eu... nós... nós vamos ser ricos de novo!

  

(A Mulher levanta-se, vai até o banheiro, lava o rosto, penteia os cabelos, arruma-se um pouco e volta para junto do Homem, tira do bolso um pequeno embrulho de presente e, com um pouco de relutância, entrega-lhe).

 

 MULHER:- Pelo nosso aniversário... de casamento...

  

(O Homem recebe o pequeno embrulho, olha-o durante alguns instantes, vai até a cama, guarda-o sob o travesseiro).

  

MULHER:- Não vai abrir?

 HOMEM:-  Não.

 MULHER:-  Você já sabe o que é?

 HOMEM:- Não importa o que ele é. Basta que seja.

 MULHER:- Não entendi...

 HOMEM:- Não precisa entender... Obrigado pelo... pela lembrança...  Senta aí... trouxe-lhe esse chocolate... coma...

  

(Ela dá de ombros, senta-se à mesa, come a pequena barra de chocolate. O barulho do motor vem e vai embora).

  

MULHER:- Estou suja... preciso tomar um banho...

 HOMEM:- Nunca estivemos tão sujos!...

  

(Ela pega uma toalha no velho guarda-roupa e dirige-se para o banheiro. Fecha a porta. Não pode ver o homem nem ser vista por ele, embora possa ser vista pelo público. Ela se despe lentamente e lentamente começa a tomar banho. O homem, que acompanhara seus movimentos, logo que a porta é fechada, corre até a cama e, de sob o colchão, retira um envelope com dinheiro, começa a contar e recontar).

  

HOMEM:- Um, dois, três... quatro, cinco, mil... eu quero que minha mulher vá pra puta que a pariu... Um, dois, três... quatro, cinco, mil... eu quero que o governo vá pra puta que o pariu... Um, dois, três... quatro, cinco, mil... eu quero que todo mundo vá pras putas o pariu... Putas que os pariu?! Que coisa feia!... Um, dois, três... quatro, cinco, mil... eu quero que meu sogro... não, meu sogro, não, coitado... que esse já foi... já foi pro diabo... Deve de estar lá agora, no inferno, com o rabo ardendo pela sacanagem que me fez... Prometeu mundos e fundos... e o trouxa aqui entrou... entrou de gaiato... Agüentei essa daí dezessete anos... dezessete anos... já pensou?... dezessete anos de encheção de saco... Ela pensa que eu não sabia de nada... seus amantes!... Alguns fui eu, eu mesmo que arrumei... sem ela perceber... pra fechar negócio com gringo, nada melhor que uma boa foda com uma mulherzinha gostosinha, limpinha, casadinha... O filho da puta do meu sogro! Bom, é claro que eu também, ó, dava as minhas escapadas... Ela até que tinha umas amigas gostosas... gostosas e ricas... ricas e putas... Um, dois, três... quatro, cinco, mil... eu quero que o meu sogro vá pra puta que o pariu! Quero... quero, sim... que o meu sogro vá pra puta que o pariu... Casei com a zinha aí, pensando: agüento uns tempos, o sogrão morre, tomo conta de tudo e dou um pé na bunda da diaba... Que nada... Dancei... o contrato de casamento... filho da puta!... o contrato de casamento dizia que se eu me separasse dela, eu perdia tudo... Porra! Fui enganado, caí como um pato... Fui dar o golpe do baú e me fodi... Filho da puta... todos... todos filhos da puta! Um, dois, três... quatro, cinco, mil... eu quero que todo mundo vá pras putas que os  pariu!

  

(Termina de contar o dinheiro, coloca tudo de volta no mesmo lugar, chega até a porta do banheiro e escuta um instante o barulho da água correndo, vai até um esconderijo atrás de um armário qualquer, retira o vaso da cocaína, faz uma inspeção rigorosa em tudo).

  

HOMEM:- Está faltando um pouquinho... eu sei que a desgraçada andou cheirando... ainda bem que escondi a tempo... Tem um bom dinheiro aqui em pó... com mais a grana da venda dos mantimentos durante esse último ano, acho que vai dar para eu me mandar... sozinho... sair desse inferno... me livrar dessa filha da puta... Até que ela acabou sendo útil... por causa dela... da loucura dela em não sair de casa, consegui sempre um pouco mais da cesta básica e do seguro... fiz minha poupança... tá quase na hora da independência... Independência ou morte! Morte? Morte, nada, vida, vida, VIDA!

  

(Guarda tudo de volta, a tempo de a mulher sair do banheiro enrolada numa toalha surrada. Disfarça).

  

HOMEM:- Puxa... até que você não demorou nada, nadinha, mesmo, no banho... Vamos... vamos dormir?

  

(Ela veste uma camisola, também surrada, deita-se na cama e prepara-se para dormir. O homem se despe e se deita. Blackout. Está amanhecendo. Luz aos poucos sobre a cama do casal. O barulho forte do motor vem e passa. A única diferença no cenário é a presença de uma mala aos pés da cama ou em algum outro lugar, desde que fora do alcance da vista de quem está no palco, mas visível à platéia).

  

MULHER:- Você não vai, hoje?

 HOMEM:- Chegaram mais cedo...

 MULHER:- Você não vai, hoje?

 HOMEM:- Que dor de cabeça!...

 MULHER:- Você não vai, hoje, de novo?

 HOMEM:- Não consegui dormir direito... de novo...

 MULHER:- Já sei: você não vai hoje, de novo...

 

HOMEM:- Dá um tempo... dá um tempo... de novo.

  

(Acende a luz, recosta-se na cama, aperta as têmporas).

  

HOMEM:- Tem uma britadeira dentro da minha cabeça...

 MULHER:- Ontem era uma betoneira...

 HOMEM:- E amanhã pode ser um guindaste hidráulico... desses enormes... que levantam toneladas... uma casa inteira... com mulheres filhas da puta e irritantes dentro...

 MULHER:- Não queria te irritar...

 HOMEM:- Mas irritou... que saco! Todo dia... todo dia... até quando?

 MULHER:- Você não vai lá... não pressiona...

 HOMEM:- Olha: eu já tô cheio dessa merda toda... Vai lá você... Ah! Já sei: você vai dizer que eles não falam com mulheres... e... e que eu já estou falando como eles...

 MULHER:- Eu ia dizer que você precisa tomar um banho... está cheirando como um rato... E você vai dizer que vai conseguir, que vai conseguir...

  

(Espantado, ele levanta os braços e começa a cheirar-se).

  

HOMEM:- Eu vou conseguir... eu vou conseguir... eu vou conseguir...

 MULHER:- Eu já nem sei mais o que é que nós vamos conseguir... Cada dia que passa você fica mais estranho...

  

(Enquanto o homem permanece sentado à beira da cama, com o rosto entre as mãos, a mulher levanta-se, vai até o banheiro, lava-se, arruma-se um pouco, vai até o fogão).

  

MULHER:- É o último café... de novo... Você tem que buscar a cesta... O arroz também já acabou...de novo... Tudo já acabou... Até eu... Você sabe que dia é hoje?

 HOMEM:- São todos iguais... como saber?

 MULHER:- Parece que foi ontem... Ele estava tão bonito... a igreja... as flores... o cortejo... depois, o silêncio... Você se lembra de como estava azul o céu, naquele dia?

 HOMEM:- Não lembre, não lembre...

 

 (Vai até a mulher, faz um gesto de abraçá-la por trás, desiste).

  

HOMEM:- Dói muito... lembrar... Não tenho nada para te oferecer, hoje...

  

(Vai até o banheiro, lava-se e apronta-se para sair).

  

HOMEM:- De que mesmo você estava lembrando... daquele céu tão azul...

 MULHER:- Do dia do enterro de papai...

 

HOMEM:- Eu vou buscar a cesta... eu vou buscar...

 

MULHER:- Os túmulos... eu lembro aqueles túmulos... sempre tão... tão brancos... quietos... enfileirados... como... como um pombal... Uma paz! Um silêncio... a levar para o mundo inteiro a nossa tristeza... porque papai havia partido e eu ainda te amava... você também... ainda... me amava... eu acho... Ah! os cemitérios... tão belos os cemitérios... e tão tristes...

 HOMEM (sentando-se à mesa):- Eu só lembro o estrondo... o fogo...

 MULHER:- Hoje, não... hoje, não! (Serve-lhe um pouco de café). Não tem pão... de novo...

 HOMEM:- Também não tenho fome... de novo...

  

(Toma o café, fica um instante pensativo).

  

HOMEM:- Eu não vou agüentar muito tempo... Você, você, sim... você é que é forte...  Me amparou quando tudo aconteceu... Segurou as pontas... Me animou... criou expectativa de dias melhores...

 MULHER:- Já disse: hoje, não! Chega! Vai buscar a cesta... se não, não vai ter almoço hoje...

 HOMEM:- Não é de uma bosta de cesta que precisamos!... Nós temos de conseguir...

 MULHER:- Sim, conseguir... o quê? Dinheiro? Carro? Casa? Filhos que não tivemos?

 HOMEM:- Expectativa! É isso: EXPECTATIVA!

 MULHER:- Expectativa! Nossa expectativa afundou junto com tudo aquilo que juntamos a vida inteira. Agora só resta isso... Temos tanta expectativa quanto esse fogão velho, essa geladeira enferrujada, esse banheiro malcheiroso... Nós morremos! Faz mais de dois anos que nós morremos... Morremos para o governo... morremos para nossos amigos que morreram também... morremos para nós mesmos... Aqui é o nosso túmulo... Mortos não têm expectativa, meu velho... mortos são apenas mortos... roídos por ratos...

 HOMEM:- Não! Você não pode estar dizendo isso... eu me recuso a ouvir! Você não pode estar dizendo isso... de novo! Você, não... Você era o contrário de tudo o que está dizendo... Eu preciso de você... Diga... diga que é mentira! Eu não ouvi o que você falou... Foi um pesadelo... Vamos! Me belisque... Eu preciso acordar! É tudo um pesadelo!... Um pesadelo que se repete, que se repete, que se repete!... Eu já ouvi tudo isso... eu já disse tudo isso... que merda! Sei até que você vai me dizer: “Sai!... Vai embora... Vai buscar o almoço!... É a única coisa sensata a fazer!”

 MULHER:- Sai!... Vai embora!... Vai buscar o almoço!... É a única coisa sensata a fazer!

 HOMEM:- A única coisa sensata a fazer eu sei qual é!

  

(A mulher está sentada numa cadeira de frente para a platéia, com uma xícara nas mãos. O Homem está atrás dela, em pé).

  

MULHER:- Coisa sensata a fazer... não há mais nada de sensato a fazer... eu me mato todos os dias para pôr ordem nesse... nesse... pardieiro... e tudo fica cada dia mais velho, mais feio, mais horrível...

  

(O homem esboça um gesto de carinho, mas contém-se).

  

MULHER:- E eu fico aqui o dia inteiro... corro pra lá, corro pra cá, atrás de rato, atrás de barata... eu tenho horror a barata... eu tenho horror a rato... eu odeio essa vida... E pensar que já tivemos tudo... tudo do bom e do melhor...

  

(O homem faz caretas atrás dela, imitando-a).

  

MULHER:- E pensar que tivemos prataria... copos de cristal... e minha coleção Ming... empregadas pra limpar tudo... o dia inteiro... e motorista para levar a gente a todos os lugares... dinheiro, dinheiro para fazer comprinhas em Paris... e tudo isso... virou pó... eu não acredito... A gente era tão feliz... tão feliz... e se amava tanto... sem saber, mesmo, que era feliz e se amava...

  

(O homem faz gestos feios atrás dela).

 

 MULHER:- Você não acha que a gente se amava? Amava, sim... Ah!

  

(Ela se volta e os dois se encaram por alguns instantes, o homem  com um ar falso de ternura. Ela se vira de novo para a platéia e fica com cara de sonhadora, o tempo suficiente para que o homem se dirija até a mala  e, lenta e silenciosamente, para fora. Volta-se e coloca a cabeça para dentro).

  

HOMEM:- Parabéns pelo aniversário da morte do sogrão!

  

(Sai rapidamente. A xícara lançada pela mulher explode contra a porta. SOZINHA, tenta dar um pouco de ordem na casa, arrumando uma coisa aqui, outra ali, varrendo etc).

 

 MULHER:- Mais de dois anos... aqui neste buraco... agüentando esse filho da puta! Eu mereço... eu mereço uma estátua... Uma estátua em praça pública... Não, em praça pública, não... que nem como estátua eu quero ficar de novo em público... ser mulher pública... Deus me livre... ainda mais estátua... Acho que já tivemos merda demais na vida pra ter ainda cocô de pomba na cabeça... Desgraçado! Mais de dois anos lavando cueca suja desse filho da puta... agüentando os peidos dele de noite... agüentando sabe o quê, sabe? agüentando... eu tenho até arrepio de pensar... de falar... olha só como eu fico... agüentando o ranho dele na pia do banheiro... eu tenho horror de ranho... aquele ranho duro de nariz dormido... Arre! E todo dia aquele ranho lá... na pia... olhando pra mim... e eu olhando pra ele... de longe... até dar coragem de chegar perto, pra limpar... e o filho da puta, todo dia, tinha que assoar o nariz na pia e deixar lá aquela... aquela... aquela coisa horrorosa... Paguei, paguei todos os meus pecados, durante esses dois anos... E olha que era pecado pra burro... Deus me perdoe, mas era cada pecadão...

  

(Vai até o rádio, liga-o. Está tocando de novo A MÚSICA-TEMA. Ouve por alguns instantes).

 

 MULHER:- Mais de dois anos nesse buraco... sem nem uma televisão, nem nada... só esse porra de rádio que só toca Brahms... Que merda!

  

(Desliga o rádio com raiva).

  

MULHER:- Aquelas malditas festas que eu tinha de preparar... para aqueles gringos todos... Pensando bem, até que eu aproveitei bastante... cada gato, cada homem... Hum... Se ele soubesse o quanto eu aproveitei... Por esses gatos o rato aqui deixava-se apanhar... deixava-se comer... E aprontei, também... pra ele... O idiota, nem mulher conseguia arranjar... Pra me ver livre dele e poder aproveitar os meus amantes, vivia dando um jeito de jogar alguma amiga minha pra cima dele... Depois elas me contavam com tinha sido... (Ri) Algumas até que gostavam... Que horas são?... (Consulta um velho despertador). Puta merda, já passou da hora do almoço e o desgraçado não aparece com a comida... Já estou com fome... Eu podia dar uma cheiradinha... onde será que ele guardou?

  

(Começa a procurar, desesperadamente).

  

MULHER:- Desgraçado... desgraçado... eu tenho de encontrar... se estiver aqui, eu encontro... esse buraco não pode ter esconderijo que eu não consiga achar... Até rato eu encontro... Ratos... malditos ratos...

 

 (Sai à caça de ratos imaginários).

  

MULHER:- Eu preciso... eu preciso encontrar...

  

(Volta a procurar nos armários, encontra a corda e coloca-a sobre a mesa, bem visível. Depois de algum tempo, desiste. Senta-se numa cadeira, tenta acalmar-se, pega uma costura e, com mão trêmula, tenta dar alguns pontos. Desiste. Senta-se com os joelhos dobrados e rosto entre as pernas. Breve blackout. Foco sobre ela, cansada, desanimada. É noite. Ela percebe que foi abandonada).

 

 MULHER:- Preciso de uma frase, uma frase de efeito, bem bonita, pra dizer que estou sozinha, que o filho da puta do meu marido se mandou... me deixou na merda... É isso, a frase de efeito só pode ser esta: estou na merda, estou fodida... fo-di-da... FO-DI-DA...

  

(Levanta-se, pega a corda e começa a fazer uma forca).

 

 MULHER:- Perdi o pai, perdi a boa vida, perdi a vida ruim, o desgraçado levou até o pó... Pode haver maior sofrimento que ficar lembrando os dias felizes nessa miséria, nessa merda?... Mais cedo ou mais tarde vou perder até mesmo este pardieiro... perdi os ratos... cadê os ratos?... nem barulho de rato... nem uma baratinha... pra me fazer companhia... nem ranho na pia do banheiro para me provocar vômito... nada! Estou só... acho que até eu vou embora de mim...

  

(Termina a forca).

 

 MULHER:- É isso! Enforco-me... não me enforco... E essa maldita corda era o meu passaporte para a liberdade... será da minha morte? Eu ia amarrar o rato e o rato foge... Eu queria ser livre e não tenho coragem de sair para o ar livre... para a vida... Eu era rica e perdi tudo... Eu era amada... estou sozinha... só eu e meus ratos... Eu era uma mulher fina, de freqüentar a sociedade, receber empresários, políticos, até políticos!... O maior palavrão que ousava dizer era “merde”, assim, com biquinho, “merde”, isso num tom de elegância e comedimento... Assim, “merde”... Puta-que-o-pariu-caralho-foda-se-cazzo-in-cullo-fock-you! Nada deu certo, nada dá certo! Que bosta!

  

(Enfia e tira a cabeça da forca).

  

MULHER:- Enforco-me... não me enforco... Vejamos: tenho tudo para me enforcar... ou melhor, não tenho nada... não sou nada... fiquei sem nada... É! Fiquei sem nada... ficar sem nada é pior do que não ser nada... Então, enforco-me... Por outro lado, se eu me enforcar, o que eu vou ganhar com isso?... Bem, vou encontrar papai... vou encontrar papai lá no céu... E se ele não estiver no céu? Será que papai tinha pecados suficientes para ir para o inferno... ou para o purgatório?... E se eu for para o inferno e papai estiver no céu? Não! Não é garantia... Então, não me enforco... Se eu não me enforcar, vou viver para sempre essa vida miserável, nesse buraco maldito em que o grande estrondo me jogou?... O grande estrondo... Ele é que deve decidir... já decidiu antes... naquele dia em que fomos assistir a um concerto de Brahms... bem que o vizinho disse que concerto no Municipal era coisa de terceiro mundo... Concerto? Só em Londres, Nova Iorque... mas era Brahms... e eu amava Brahms... Bem feito, pro vizinho, é claro...  quando voltamos, tudo tinha ido pelos ares... casa, carros, amigos, o bairro... a cidade inteira... o país inteiro... o mundo inteiro... nosso mundo... tudo... tudo cinzas... menos eu e o desgraçado do fujão do meu marido... ele me paga... Eu vou esperar! Vou esperar que o grande estrondo venha de novo... Ele sempre vem... ELE SEMPRE VEM! E OS RATOS TAMBÉM... E OS RATOS TAMBÉM SEMPRE VOLTAM!... OS FILHOS DA PUTA!

  

(Senta-se numa posição fetal. O barulho do motor vem e toma conta de todo o espaço. Blackout. Música-tema de Brahms).

  

 

fim