Isaias Edson Sidney
Meus amigos, eu venho de longe e estou
aqui nesta terra sem lei, sem deus, sem nada. E vocês sabem: em lugar assim,
sem lei, sem deus, sem nada, quem tem razão nem sempre é quem ganha uma
disputa. Mas, mesmo disso sabedor, acabo de entrar nesta enrascada: numa briga
de lobo e ovelhas, querem que eu seja o juiz . Imaginem os senhores: aqui,
neste ponto, passa uma estrada – bem feita, asfaltada. Bem ao lado da estrada,
uma pequena propriedade, cercada à esquerda por uma bela e intocável floresta
povoada de pássaros e animais e à direita um belo rio encachoeirado, com peixes
e praias paradisíacas. E imaginem os senhores que essa propriedade fica
exatamente entre a bela estrada e a grande fazenda, onde reina um latifundiário
de maus bofes e grande poder. O fazendeiro quer construir uma estrada que passe
exatamente em cima da casa desse pequeno criador de ovelhas. Ele quer ligar sua
grande fazenda à bela estrada asfaltada, para escoar sua produção para os
portos do mundo. Quer vender muita carne, muita soja, muito de tudo o que ele
produz em sua grande fazenda. Então, aqui está a besta a bancar o juiz, na
esperança de que possa ganhar alguma coisa... Vivo por aí, pelas estradas,
dando pequenos golpes... vivendo de pequenos furtos... Quem sabe me dou bem
nessa disputa? Então, falo primeiro com
nosso amigo criador de ovelhas – hmmmm,
que fedor heim, cara? – não toma banho? – e ele me diz assim: “óia, sinhô juiz, só por esses andrajo o sinhô já vê que
sô pobre, miserave, memo... e só tenho de meu esse sítio, herdado de meu pai.
Nele crio minhas oveia, oia como elas estão bonitas, ao contrário de mim, de
minha muié e meus sete fio – todos aí na luta, como meu pai me ensinô, que deve
ser a luta de todo trabaiadô. A gente trabaia de sor a sor, meritíssimo” –
e eu ali, de bituca nalguma ovelha, quem sabe, não é?, a gente podia fazer
algum negócio , mas o cara nem aí, continuando a se lamentar: “a gente num ganha nada, meritíssimo, todo o
lucro vai pro atravessadô, mar e mar tiro das lã para o sustento meu, da minha
muié e dos meus fio, num miserê danado da peste, meritíssimo!” Penso
comigo: que merda, não vai dar pra tirar nada desse sujeito: é só lamentação!
Mas, coitado: cordeiro metido em briga com lobo! Então, vou ao grande
fazendeiro. E levo comigo o tal do criador de ovelhas, todo mulambento. Na casa
do fazendeiro – eu disse casa? Casa que nada, um casarão! – o homem nos recebe
meio cabreiro, olhando assim pro criador de ovelhas todo sujo, mal vestido... Mas,
manda a gente entrar. – Cafezinho? E vem um cafezão! Com
leite, um monte de quitandas... pão de queijo... queijo... frutas. Então o
grande fazendeiro me conta essa lereia – ah! tem mais uma coisa: o homem é metido
a versejador e só fala rimando – e ele me diz assim: “Meritíssimo senhor juiz, /sempre fiz o que eu quis:/sou podre de
rico,/não mijo em penico,/nem por aí eu fico/a mostrar esses... trajos,/na
verdade, uns andrajos!/tenho terra a dar com pau,/mas não sou assim tão
mau:/quero apenas o direito/de ter a minha estrada /a passar por esse...
estreito/que esse aí, esse sujeito,/chama de terra!/Ora, vê se me erra!/Chamar
de terra tão/feio chão, de ovelhas velhas/e velhas telhas, que é isso?/um
pedaço de nada, /uma linguiça, um
chouriço,/impede uma estrada,/não pode, eu vos peço, /meritíssimo , não
deixe/que essa ovelhada/ atravanque o
meu progresso!” Ah, minha gente, o criador
de ovelhas sobe nas tamancas e estrebucha assim: “o
grande fazendeiro tem nojo de ovelhas?
Tem raiva de pobre? Por que não pode o tão rico, o todo poderoso, construir sua estrada
contornando o meu sítio? E deixar em paz as minhas ovelhas?” Pensei: caramba!
- o homem vai explodir! Vem cá, meu amigo, tenha calma, o outro lá é ignorante,
vamos fazer um acerto... Já sabe o senhor que em terra sem lei, sem deus,
sem... Mas o fazendeiro berra: “Além de pobre e andrajoso, /está doido o
meu amigo?/De ovelha não tenho nojo,/minha briga é só contigo:/siga, então, o
meu traço/que lhe mostro com meu braço/que aqui, bem aqui /fica a mata
preservada,/onde canta o bem-te-vi,/é por essa empreitada,/ - que não sou assim
tão mau,/nem assim tão mesquinho -/que não derrubo o pau/onde canta o
passarinho! “ Eu digo para vocês, meus amigos, tenho meus defeitos, mas o defeito que não tenho é ser injusto.
Então grito pro criador de ovelhas, já ali no canto, com o olho arregalado
assim, de raiva: fala aí, meu amigo! E agora? E aquele homem todo sujo e
andrajoso encontra forças sei lá de onde para tentar ser digno, para cantar
assim de galo: “sinhô juiz, com toda a
minha inguinorança, com toda a minha humirdade, que só conheço da vida aquilo
que a vida me dá: não pode esse grande sinhô, com todo o seu podê, fazer o
disvio da estrada, não pelo braço da mata, o direito, mas pelo outro lado, pelo
isquerdo?” Uma proposta, enfim, uma proposta, senhor fazendeiro! Mas ele, o
fazendeirão, irredutível. Solta seu
vozeirão bem nas barbas do coitado do criador de ovelhas, nem se importando com
o cheiro, com nada, e diz assim: “Ah, quer o senhor um desafio!/Pois lhe
digo, meu caro amigo:/o que eu quero, eu consigo,/e podia até fazer um
desvio/mas há nesse lado um rio/e no rio uma bela fonte/que eu, defensor da
ecologia,/se ergo ali uma ponte,/arraso também um monte/e toda a minha poesia!”
Grande fazendeiro! Grande poeta e e
grande macho! Macho e cercado de capangas mal encarados. Corro pra segurar o
diabo do fedido do criador de ovelhas que quer ainda dar o troco – que o bicho
é teimoso que nem mula – mas o fazendeiro assobia assim, ó, fiiiiuuuuu – e sai
jagunço de tudo quanto é lado. E solta uma gargalhada! E daquele jeito dele lá,
com todas as rimas em cima, olha bem no olho do coitado do criador de ovelhas
que parece que vai até ficando cada vez menor e diz: “Ó, senhor, senhor juiz,/quem
assim o diz/é o sangue aqui na veia,/a palavra solta, sem peia,/sim, sou
o mais rico, /e não mijo em penico,/e se sou o mais forte,/se tenho a força do
leão,/é porque é a sorte/- e isso afirmo, neste escopo - /que é forte e é
tradição:/pois a lei, senhor juiz, a lei /desde os tempos de Esopo/ tem de ser a
do leão”. Está certo, pensei, e agora lhes digo: em terra sem lei, sem
deus, sem nada... manda quem grita mais alto, obedece quem tem juízo. Vou me
mandar, antes que sobre para mim. Fiquem os senhores com o diabo da dúvida e o
inferno de ter de decidir, em terra de lobo, a favor do cordeiro... e façam justiça, se tiverem coragem!
(Oficina de Dramaturgia/monólogo,
coordenada por CHICO DE ASSIS)
Abril de 2010.
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