quarta-feira, 26 de maio de 2021

O JUIZ, O FAZENDEIRO E O CRIADOR DE OVELHAS

 

(Andrea Kowch)


Isaias Edson Sidney


Meus amigos, eu venho de longe e estou aqui nesta terra sem lei, sem deus, sem nada. E vocês sabem: em lugar assim, sem lei, sem deus, sem nada, quem tem razão nem sempre é quem ganha uma disputa. Mas, mesmo disso sabedor, acabo de entrar nesta enrascada: numa briga de lobo e ovelhas, querem que eu seja o juiz . Imaginem os senhores: aqui, neste ponto, passa uma estrada – bem feita, asfaltada. Bem ao lado da estrada, uma pequena propriedade, cercada à esquerda por uma bela e intocável floresta povoada de pássaros e animais e à direita um belo rio encachoeirado, com peixes e praias paradisíacas. E imaginem os senhores que essa propriedade fica exatamente entre a bela estrada e a grande fazenda, onde reina um latifundiário de maus bofes e grande poder. O fazendeiro quer construir uma estrada que passe exatamente em cima da casa desse pequeno criador de ovelhas. Ele quer ligar sua grande fazenda à bela estrada asfaltada, para escoar sua produção para os portos do mundo. Quer vender muita carne, muita soja, muito de tudo o que ele produz em sua grande fazenda. Então, aqui está a besta a bancar o juiz, na esperança de que possa ganhar alguma coisa... Vivo por aí, pelas estradas, dando pequenos golpes... vivendo de pequenos furtos... Quem sabe me dou bem nessa disputa? Então,  falo primeiro com nosso amigo criador de ovelhas – hmmmm,  que fedor heim, cara? – não toma banho? – e ele me diz assim: “óia, sinhô  juiz, só por esses andrajo o sinhô já vê que sô pobre, miserave, memo... e só tenho de meu esse sítio, herdado de meu pai. Nele crio minhas oveia, oia como elas estão bonitas, ao contrário de mim, de minha muié e meus sete fio – todos aí na luta, como meu pai me ensinô, que deve ser a luta de todo trabaiadô. A gente trabaia de sor a sor, meritíssimo” – e eu ali, de bituca nalguma ovelha, quem sabe, não é?, a gente podia fazer algum negócio , mas o cara nem aí, continuando a se lamentar: “a gente num ganha nada, meritíssimo, todo o lucro vai pro atravessadô, mar e mar tiro das lã para o sustento meu, da minha muié e dos meus fio, num miserê danado da peste, meritíssimo!” Penso comigo: que merda, não vai dar pra tirar nada desse sujeito: é só lamentação! Mas, coitado: cordeiro metido em briga com lobo! Então, vou ao grande fazendeiro. E levo comigo o tal do criador de ovelhas, todo mulambento. Na casa do fazendeiro – eu disse casa? Casa que nada, um casarão! – o homem nos recebe meio cabreiro, olhando assim pro criador de ovelhas todo sujo, mal vestido... Mas, manda a gente entrar.  – Cafezinho? E vem um cafezão! Com leite, um monte de quitandas... pão de queijo... queijo... frutas. Então o grande fazendeiro me conta essa lereia – ah! tem mais uma coisa: o homem é metido a versejador e só fala rimando – e ele me diz assim: “Meritíssimo senhor juiz, /sempre fiz o que eu quis:/sou podre de rico,/não mijo em penico,/nem por aí eu fico/a mostrar esses... trajos,/na verdade, uns andrajos!/tenho terra a dar com pau,/mas não sou assim tão mau:/quero apenas o direito/de ter a minha estrada /a passar por esse... estreito/que esse aí, esse sujeito,/chama de terra!/Ora, vê se me erra!/Chamar de terra tão/feio chão, de ovelhas velhas/e velhas telhas, que é isso?/um pedaço de nada, /uma  linguiça, um chouriço,/impede uma estrada,/não pode, eu vos peço, /meritíssimo , não deixe/que essa ovelhada/ atravanque  o meu  progresso!” Ah, minha gente, o criador de ovelhas sobe nas tamancas e estrebucha assim:  “o grande fazendeiro  tem nojo de ovelhas? Tem raiva de pobre? Por que não pode o tão rico,  o todo poderoso, construir sua estrada contornando o meu sítio? E deixar em paz as minhas ovelhas?” Pensei: caramba! - o homem vai explodir! Vem cá, meu amigo, tenha calma, o outro lá é ignorante, vamos fazer um acerto... Já sabe o senhor que em terra sem lei, sem deus, sem...  Mas o fazendeiro berra: “Além de pobre e andrajoso, /está doido o meu amigo?/De ovelha não tenho nojo,/minha briga é só contigo:/siga, então, o meu traço/que lhe mostro com meu braço/que aqui, bem aqui /fica a mata preservada,/onde canta o bem-te-vi,/é por essa empreitada,/ - que não sou assim tão mau,/nem assim tão mesquinho -/que não derrubo o pau/onde canta o passarinho! “ Eu digo para vocês, meus amigos, tenho meus defeitos, mas o defeito que não tenho é ser injusto. Então grito pro criador de ovelhas, já ali no canto, com o olho arregalado assim, de raiva: fala aí, meu amigo! E agora? E aquele homem todo sujo e andrajoso encontra forças sei lá de onde para tentar ser digno, para cantar assim de galo: “sinhô juiz, com toda a minha inguinorança, com toda a minha humirdade, que só conheço da vida aquilo que a vida me dá: não pode esse grande sinhô, com todo o seu podê, fazer o disvio da estrada, não pelo braço da mata, o direito, mas pelo outro lado, pelo isquerdo?” Uma proposta, enfim, uma proposta, senhor fazendeiro! Mas ele, o fazendeirão,  irredutível. Solta seu vozeirão bem nas barbas do coitado do criador de ovelhas, nem se importando com o cheiro, com nada, e diz assim:  Ah, quer o senhor um desafio!/Pois lhe digo, meu caro amigo:/o que eu quero, eu consigo,/e podia até fazer um desvio/mas há nesse lado um rio/e no rio uma bela fonte/que eu, defensor da ecologia,/se ergo ali uma ponte,/arraso também um monte/e toda a minha poesia!” Grande fazendeiro!  Grande poeta e e grande macho! Macho e cercado de capangas mal encarados. Corro pra segurar o diabo do fedido do criador de ovelhas que quer ainda dar o troco – que o bicho é teimoso que nem mula – mas o fazendeiro assobia assim, ó, fiiiiuuuuu – e sai jagunço de tudo quanto é lado. E solta uma gargalhada! E daquele jeito dele lá, com todas as rimas em cima, olha bem no olho do coitado do criador de ovelhas que parece que vai até ficando cada vez menor e diz: “Ó, senhor, senhor juiz,/quem  assim o diz/é o sangue aqui na veia,/a palavra solta, sem peia,/sim, sou o mais rico, /e não mijo em penico,/e se sou o mais forte,/se tenho a força do leão,/é porque é a sorte/- e isso afirmo, neste escopo - /que é forte e é tradição:/pois  a lei, senhor juiz,  a lei /desde os tempos de Esopo/ tem de ser a do leão”. Está certo, pensei, e agora lhes digo: em terra sem lei, sem deus, sem nada... manda quem grita mais alto, obedece quem tem juízo. Vou me mandar, antes que sobre para mim. Fiquem os senhores com o diabo da dúvida e o inferno de ter de decidir, em terra de lobo,  a favor do cordeiro...  e façam justiça, se tiverem coragem!

 

(Oficina de Dramaturgia/monólogo, coordenada por CHICO DE ASSIS)

 

Abril de 2010.

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