terça-feira, 25 de maio de 2021

AZAEL, ANÃO PROFISSIONAL

 


Monólogo

 Isaias Edson Sidney

 

(Banco de praça. Um mendigo dorme sob uma folha de jornal. Acordado de repente, como se por um pontapé, levanta-se e olha assustado para baixo).

 

Um anão! Um anão! Não é possível. É um pesadelo. Odeio anões. Sai, sai pra lá, diabo. (Dá as costas para o anão). Vai embora. O quê? Você quer... você quer o quê? Aus... aus... auspícios? O que é isso? Está louco? Está bem, está bem, então coloque o cartão aqui, devagar, não me encoste. (Lê o cartão, com dificuldade). LOGRADOURO DE AUSPÍCIOS. Azael, anão profissional. .. (vira o cartão) Rua... eu conheço esse endereço, eu acho. Você quer que eu vá nesse endereço... para receber esse troço de auspícios... é isso? (Vira-se e não vê mais o anão, procura-o). Diacho! Onde foi parar esse bicho? Será que sonhei? Um pesadelo... com um anão horrível... que medo! Mas o cartão é real, tá aqui na minha mão... Deixa pra lá. (Faz menção de rasgar o cartão, mas guarda-o. Revira os bolsos e só encontra um pedaço de papel). Ixe... o que é isso? Um quilo de arroz... meio de de feijão... salsicha... óleo... Caralho! É a lista de compras de minha mulher, ela me pediu para comprar isso ontem... e eu dormi aqui, nesse banco duro de jardim... Meus filhos! Eles devem ter dormido com fome, me esperando. Mas nem adiantava voltar pra casa... não consegui nada, nem um tostão... e além disso perdi o bilhete de ônibus... Que merda de vida... Uma guimba! A minha sorte está melhorando, uma guimba quase inteira! Viva! Sou um homem de sorte... agora é só esperar alguém pra me dar fogo... e meu dia vai começar bem... tenho certeza... tudo vai melhorar... (Espera, alisando o cigarro. O dia fica mais claro. Barulho de carros.) Ô cidadão, cidadão, por favor, pode me dar fogo? Por favor... Idiota, nem me olhou! Cretino: um dia você vai ver o que é bom! (Espera mais um pouco). Ô cidadão... por favor... tem fogo? (Acende a guimba no cigarro do transeunte, arregala os olhos). Obrigado, meu, obrigado mesmo... O desgraçado abriu de propósito o paletó só pra eu ver que ele tinha um tresoitão... que filho da puta... será que achava que eu ia assaltar ele? (Grita) Tô desgraçado, fodido, mas sou honesto... seu porra! Tá certo: miserável, mendigo como eu, nunca é honesto, não dá pra ser honesto... até tentei bater umas carteiras, mas cadê jeito? Só sabia mesmo era subir e descer, subir e descer, subir e descer... não sei mais viver de cá pra lá e de lá pra cá... na horizontal, só pra dormir... e pra outras coisas também, é claro... minha mulher! Ela vai me matar, se eu não levar comida hoje pra casa... Auspícios... o que será isso? Será que vou aos auspícios do anão? Mas eu sempre tive medo de anão... Não, não vou... (Caminha um pouco, arrastando a perna, curvado, ombros caídos. A guimba quase queima seus dedos). Droga de vida! Uma fome desgraçada... e medo, medo de não conseguir levar comida pra casa... medo de anão... medo! Aqui, nesta rua, tem umas vagas pra carros, vou tomar conta... (Estaciona uns dois carros). Aqui, cidadão, pode deixar que eu tomo conta... cinco, só cinco reais... Depois? O senhor me paga depois? Pois, não... pois, não... Isso mesmo, cincão, só cincão... sim, fico o dia todo... Me paga na saída... sei... tá bom... tá bom... Ih! lá vêm aqueles moleques... acho que... ´Tá bom! tá bom... eu vou embora... não precisa bater... ai... ai... (Corre como se estivesse levando uma paulada. Para.) Ufa... uns molequinhos de merda... nem dez anos... e eu com medo, fugindo feito uma galinha... Que merda de vida! Nem pra tomar conta de carro eu presto... Eu subia e descia... subia e descia... é isso, mesmo: tinha um bom emprego... ô cidadão, cidadão... sabe o que significa auspícios? Não sabe... é uma besta, mesmo. Se fosse um dos executivos do meu prédio, tenho certeza que saberia o que é isso, auspícios! Pois, é: Eu era ascensorista! Com muito orgulho... (Imita um ascensorista) Sobe... Um passinho para trás por favor, senhores! Qual o seu andar, senhorita? Por favor, minha senhora... oitavo andar... cuidado com o degrau... Desce! (Pausa). Trabalhava num edifício comercial... de luxo! Aí, veio a tal da terceirização... e a firma que passou a administrar o prédio me contratou... serviço por hora, sem férias, sem décimo terceiro... sem porra nenhuma. Depois, veio a automatização! Aí, fodeu! Acho que aqueles engravatados do meu prédio nem notaram que eu e meus outros cinco colegas sumimos... de um dia para o outro... Nunca mais achei emprego. Faz dois anos já... desde 99... nem pude comemorar a chegada do tal do terceiro milênio... Agora, estou aqui... e este cartão... o cartão do anão... quem sabe, pode ser a esperança... a esperança de minha mulher e meus filhos terem, enfim, um pouco de comer... lá naquela porra de vila de fim de mundo, onde eu escondo a minha vergonha, a vergonha de não ter serviço, de não achar emprego... Um imprestável! Eu tenho que ir atrás desses auspícios... Vou, sim! Que tenho a perder? Um cão sem dono, sem pelo, sem rabo e sem esperança, é isso o que eu sou. E medroso... mas tenho de ter coragem. Logradouro... acho que logradouro é rua... e a rua é essa aqui, número 17... uma porta verde... Isso aqui está me parecendo um buraco... um buraco tão negro quanto a minha vida... quanto o buraco em que estou morando... Ei, que é isso, me larga... que filho da... (jogado por alguém escada abaixo, rola, levanta, olha para cima, para o segurança). Você é grande, mas é um só... seu... seu... Está bem, está bem... eu vou, não precisa empurrar... já entendi... você é amigo do anão que me deu o cartão... tá... tá... eu vou... (abre uma cortina). Caramba! Quanta gente... quanta mulher... que beleza isso aqui! (Entra, caminha entre as pessoas e, depois de se acostumar com as luzes, com o espaço, deixa de arrastar a perna, apruma-se e dança com várias mulheres e, enquanto troca de parceiras, também vai trocando de roupas, colocando um paletó novo, uma calça limpa e sapatos novos, penteia-se, dá nó na gravata). Obrigado, senhora...  perdão, senhorita... a senhorita também dança muito bem... Obrigado... Uma bebida? Sim, por que não? Uma bebida! Tem um bar... ali... vamos ao bar! (Pega duas taças, coloca bebida, oferece à mulher, e ambos bebem, riem, comem, acariciam-se, voltam a dançar um outro ritmo). Aqui é muito agradável, senhorita... sim, já frequentei muitos bailes, muitos clubes elegantes, mas nunca... nunca como este... como se chama este lugar? Ah, também não sabe, não é? Não tem importância, não tem a mínima importância... o que são os nomes senão palavras vazias que inventamos, não é? Dancemos. ( Enquanto dança, fala com o público). Vejam vocês, estou aqui, agora, neste ambiente estranho... feérico, mesmo... cheio de luzes, de pessoas alegres que dançam... que bebem... e penso em minha mulher, em meus filhos lá naquela desgraça de barraco... vocês podem pensar: esse cara é uma besta sem consciência, sem qualquer dignidade... E eu digo para vocês: sou mesmo uma besta sem qualquer dignidade, mas esse pode ser meu último ato, minha esperança derradeira... deposito minhas fichas num anão! Mesmo morrendo de medo. Mas, fazer o quê? Há outra saída? Então, pulo de cabeça nos auspícios do anão! Mais uma coisa, meus amigos: não sei se vocês perceberam, mas essa gente que está aqui... olhem, olhem bem... vocês distinguem os rostos? São vultos... elegantes... de homens, de mulheres... mas sem rostos... não sei se são bonitas, não sei se são velhas, não sei se são feias, não sei... são agradáveis, sim, muito agradáveis, falam comigo, eu as entendo, mas também não sei que língua falam, não sei... é tudo muito... muito... como direi?... ah, deixa pra lá... não importa, importa é que eu vou ter, sim, meus auspícios, os auspícios que o anão prometeu... Ah! vejam... é... é.. o anão! Vejam... ele veio... está ali, e nem parece mais um anão... mas é ele mesmo... sorri para mim... não tem mais os dentes tortos... não é mais tão... feio... Sorri para todos... e todos o aplaudem... todos o aplaudem... Muito bem! Viva! Auspícios! Vejam... vejam como ele é ágil, ao dançar... ele está feliz, meus senhores... o anão que vai me salvar está feliz... e ele olha para mim... e sorri... e faz um gesto me chamando... Eu, eu? sim, sim, senhor, eu vou... eu vou, sim... ele... ele está me chamando... Eu estou indo, sim, senhor Azael... Augúrios, augúrios! Finalmente, meus amigos, caem sobre mim as bênçãos e os aplausos... vocês estão ouvindo? Os aplausos! Os vivas! São os auspícios que ele prometeu! Nunca, nunca mais ficar zanzando pela cidade... como um zumbi... nunca mais a miséria... nunca mais a fome... nunca mais o medo... e meus filhos vão ter esperança, senhores, porque eu agora também tenho esperança...  porque vou estar sob os cuidados não de um anão qualquer, mas de um anão profissional... ouviram? Um anão profissional!

 

(Vai ao encontro do anão, abraça-o e ambos saem de mãos dadas, como clowns).

 

 

 

 

 

FIM

 

 

 

Isaias Edson Sidney

 

Abril/maio de 2010

 

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