Monólogo
(Banco de praça. Um mendigo dorme sob
uma folha de jornal. Acordado de repente, como se por um pontapé, levanta-se e olha
assustado para baixo).
Um anão! Um anão! Não é possível. É
um pesadelo. Odeio anões. Sai, sai pra lá, diabo. (Dá as costas para o anão). Vai embora. O quê? Você quer... você
quer o quê? Aus... aus... auspícios? O que é isso? Está louco? Está bem, está
bem, então coloque o cartão aqui, devagar, não me encoste. (Lê o cartão, com dificuldade). LOGRADOURO DE AUSPÍCIOS. Azael,
anão profissional. .. (vira o cartão)
Rua... eu conheço esse endereço, eu acho. Você quer que eu vá nesse endereço...
para receber esse troço de auspícios... é isso? (Vira-se e não vê mais o anão, procura-o). Diacho! Onde foi parar
esse bicho? Será que sonhei? Um pesadelo... com um anão horrível... que medo!
Mas o cartão é real, tá aqui na minha mão... Deixa pra lá. (Faz menção de rasgar o cartão, mas guarda-o.
Revira os bolsos e só encontra um pedaço de papel). Ixe... o que é isso? Um
quilo de arroz... meio de de feijão... salsicha... óleo... Caralho! É a lista
de compras de minha mulher, ela me pediu para comprar isso ontem... e eu dormi
aqui, nesse banco duro de jardim... Meus filhos! Eles devem ter dormido com
fome, me esperando. Mas nem adiantava voltar pra casa... não consegui nada, nem
um tostão... e além disso perdi o bilhete de ônibus... Que merda de vida... Uma
guimba! A minha sorte está melhorando, uma guimba quase inteira! Viva! Sou um
homem de sorte... agora é só esperar alguém pra me dar fogo... e meu dia vai
começar bem... tenho certeza... tudo vai melhorar... (Espera, alisando o cigarro. O dia fica mais claro. Barulho de carros.)
Ô cidadão, cidadão, por favor, pode me dar fogo? Por favor... Idiota, nem me
olhou! Cretino: um dia você vai ver o que é bom! (Espera mais um pouco). Ô cidadão... por favor... tem fogo? (Acende a guimba no cigarro do transeunte,
arregala os olhos). Obrigado, meu, obrigado mesmo... O desgraçado abriu de
propósito o paletó só pra eu ver que ele tinha um tresoitão... que filho da
puta... será que achava que eu ia assaltar ele? (Grita) Tô desgraçado, fodido, mas sou honesto... seu porra! Tá
certo: miserável, mendigo como eu, nunca é honesto, não dá pra ser honesto...
até tentei bater umas carteiras, mas cadê jeito? Só sabia mesmo era subir e
descer, subir e descer, subir e descer... não sei mais viver de cá pra lá e de
lá pra cá... na horizontal, só pra dormir... e pra outras coisas também, é
claro... minha mulher! Ela vai me matar, se eu não levar comida hoje pra
casa... Auspícios... o que será isso? Será que vou aos auspícios do anão? Mas
eu sempre tive medo de anão... Não, não vou... (Caminha um pouco, arrastando a perna, curvado, ombros caídos. A guimba
quase queima seus dedos). Droga de vida! Uma fome desgraçada... e medo,
medo de não conseguir levar comida pra casa... medo de anão... medo! Aqui,
nesta rua, tem umas vagas pra carros, vou tomar conta... (Estaciona uns dois carros). Aqui, cidadão, pode deixar que eu tomo
conta... cinco, só cinco reais... Depois? O senhor me paga depois? Pois, não...
pois, não... Isso mesmo, cincão, só cincão... sim, fico o dia todo... Me paga
na saída... sei... tá bom... tá bom... Ih! lá vêm aqueles moleques... acho
que... ´Tá bom! tá bom... eu vou embora... não precisa bater... ai... ai... (Corre como se estivesse levando uma
paulada. Para.) Ufa... uns molequinhos de merda... nem dez anos... e eu com
medo, fugindo feito uma galinha... Que merda de vida! Nem pra tomar conta de
carro eu presto... Eu subia e descia... subia e descia... é isso, mesmo: tinha
um bom emprego... ô cidadão, cidadão... sabe o que significa auspícios? Não
sabe... é uma besta, mesmo. Se fosse um dos executivos do meu prédio, tenho
certeza que saberia o que é isso, auspícios! Pois, é: Eu era ascensorista! Com
muito orgulho... (Imita um ascensorista)
Sobe... Um passinho para trás por favor, senhores! Qual o seu andar, senhorita?
Por favor, minha senhora... oitavo andar... cuidado com o degrau... Desce! (Pausa). Trabalhava num edifício
comercial... de luxo! Aí, veio a tal da terceirização... e a firma que passou a
administrar o prédio me contratou... serviço por hora, sem férias, sem décimo
terceiro... sem porra nenhuma. Depois, veio a automatização! Aí, fodeu! Acho
que aqueles engravatados do meu prédio nem notaram que eu e meus outros cinco
colegas sumimos... de um dia para o outro... Nunca mais achei emprego. Faz dois
anos já... desde 99... nem pude comemorar a chegada do tal do terceiro
milênio... Agora, estou aqui... e este cartão... o cartão do anão... quem sabe,
pode ser a esperança... a esperança de minha mulher e meus filhos terem, enfim,
um pouco de comer... lá naquela porra de vila de fim de mundo, onde eu escondo
a minha vergonha, a vergonha de não ter serviço, de não achar emprego... Um
imprestável! Eu tenho que ir atrás desses auspícios... Vou, sim! Que tenho a perder?
Um cão sem dono, sem pelo, sem rabo e sem esperança, é isso o que eu sou. E
medroso... mas tenho de ter coragem. Logradouro... acho que logradouro é rua...
e a rua é essa aqui, número 17... uma porta verde... Isso aqui está me
parecendo um buraco... um buraco tão negro quanto a minha vida... quanto o
buraco em que estou morando... Ei, que é isso, me larga... que filho da... (jogado por alguém escada abaixo, rola,
levanta, olha para cima, para o segurança). Você é grande, mas é um só...
seu... seu... Está bem, está bem... eu vou, não precisa empurrar... já
entendi... você é amigo do anão que me deu o cartão... tá... tá... eu vou... (abre uma cortina). Caramba! Quanta
gente... quanta mulher... que beleza isso aqui! (Entra, caminha entre as pessoas e, depois de se acostumar com as luzes,
com o espaço, deixa de arrastar a
perna, apruma-se e dança com várias
mulheres e, enquanto troca de parceiras, também vai trocando de roupas,
colocando um paletó novo, uma calça limpa e sapatos novos, penteia-se, dá nó na
gravata). Obrigado, senhora...
perdão, senhorita... a senhorita também dança muito bem... Obrigado...
Uma bebida? Sim, por que não? Uma bebida! Tem um bar... ali... vamos ao bar! (Pega duas taças, coloca bebida, oferece à
mulher, e ambos bebem, riem, comem, acariciam-se, voltam a dançar um outro
ritmo). Aqui é muito agradável, senhorita... sim, já frequentei muitos
bailes, muitos clubes elegantes, mas nunca... nunca como este... como se chama
este lugar? Ah, também não sabe, não é? Não tem importância, não tem a mínima
importância... o que são os nomes senão palavras vazias que inventamos, não é?
Dancemos. ( Enquanto dança, fala com o
público). Vejam vocês, estou aqui, agora, neste ambiente estranho...
feérico, mesmo... cheio de luzes, de pessoas alegres que dançam... que bebem...
e penso em minha mulher, em meus filhos lá naquela desgraça de barraco... vocês
podem pensar: esse cara é uma besta sem consciência, sem qualquer dignidade...
E eu digo para vocês: sou mesmo uma besta sem qualquer dignidade, mas esse pode
ser meu último ato, minha esperança derradeira... deposito minhas fichas num
anão! Mesmo morrendo de medo. Mas, fazer o quê? Há outra saída? Então, pulo de
cabeça nos auspícios do anão! Mais uma coisa, meus amigos: não sei se vocês
perceberam, mas essa gente que está aqui... olhem, olhem bem... vocês
distinguem os rostos? São vultos... elegantes... de homens, de mulheres... mas
sem rostos... não sei se são bonitas, não sei se são velhas, não sei se são
feias, não sei... são agradáveis, sim, muito agradáveis, falam comigo, eu as
entendo, mas também não sei que língua falam, não sei... é tudo muito...
muito... como direi?... ah, deixa pra lá... não importa, importa é que eu vou
ter, sim, meus auspícios, os auspícios que o anão prometeu... Ah! vejam... é...
é.. o anão! Vejam... ele veio... está ali, e nem parece mais um anão... mas é
ele mesmo... sorri para mim... não tem mais os dentes tortos... não é mais
tão... feio... Sorri para todos... e todos o aplaudem... todos o aplaudem...
Muito bem! Viva! Auspícios! Vejam... vejam como ele é ágil, ao dançar... ele
está feliz, meus senhores... o anão que vai me salvar está feliz... e ele olha
para mim... e sorri... e faz um gesto me chamando... Eu, eu? sim, sim, senhor,
eu vou... eu vou, sim... ele... ele está me chamando... Eu estou indo, sim,
senhor Azael... Augúrios, augúrios! Finalmente, meus amigos, caem sobre mim as
bênçãos e os aplausos... vocês estão ouvindo? Os aplausos! Os vivas! São os
auspícios que ele prometeu! Nunca, nunca mais ficar zanzando pela cidade...
como um zumbi... nunca mais a miséria... nunca mais a fome... nunca mais o
medo... e meus filhos vão ter esperança, senhores, porque eu agora também tenho
esperança... porque vou estar sob os
cuidados não de um anão qualquer, mas de um anão profissional... ouviram? Um
anão profissional!
(Vai ao encontro do anão, abraça-o e
ambos saem de mãos dadas, como clowns).
FIM
Isaias Edson Sidney
Abril/maio de 2010
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