quarta-feira, 26 de maio de 2021

O JUIZ, O FAZENDEIRO E O CRIADOR DE OVELHAS

 

(Andrea Kowch)


Isaias Edson Sidney


Meus amigos, eu venho de longe e estou aqui nesta terra sem lei, sem deus, sem nada. E vocês sabem: em lugar assim, sem lei, sem deus, sem nada, quem tem razão nem sempre é quem ganha uma disputa. Mas, mesmo disso sabedor, acabo de entrar nesta enrascada: numa briga de lobo e ovelhas, querem que eu seja o juiz . Imaginem os senhores: aqui, neste ponto, passa uma estrada – bem feita, asfaltada. Bem ao lado da estrada, uma pequena propriedade, cercada à esquerda por uma bela e intocável floresta povoada de pássaros e animais e à direita um belo rio encachoeirado, com peixes e praias paradisíacas. E imaginem os senhores que essa propriedade fica exatamente entre a bela estrada e a grande fazenda, onde reina um latifundiário de maus bofes e grande poder. O fazendeiro quer construir uma estrada que passe exatamente em cima da casa desse pequeno criador de ovelhas. Ele quer ligar sua grande fazenda à bela estrada asfaltada, para escoar sua produção para os portos do mundo. Quer vender muita carne, muita soja, muito de tudo o que ele produz em sua grande fazenda. Então, aqui está a besta a bancar o juiz, na esperança de que possa ganhar alguma coisa... Vivo por aí, pelas estradas, dando pequenos golpes... vivendo de pequenos furtos... Quem sabe me dou bem nessa disputa? Então,  falo primeiro com nosso amigo criador de ovelhas – hmmmm,  que fedor heim, cara? – não toma banho? – e ele me diz assim: “óia, sinhô  juiz, só por esses andrajo o sinhô já vê que sô pobre, miserave, memo... e só tenho de meu esse sítio, herdado de meu pai. Nele crio minhas oveia, oia como elas estão bonitas, ao contrário de mim, de minha muié e meus sete fio – todos aí na luta, como meu pai me ensinô, que deve ser a luta de todo trabaiadô. A gente trabaia de sor a sor, meritíssimo” – e eu ali, de bituca nalguma ovelha, quem sabe, não é?, a gente podia fazer algum negócio , mas o cara nem aí, continuando a se lamentar: “a gente num ganha nada, meritíssimo, todo o lucro vai pro atravessadô, mar e mar tiro das lã para o sustento meu, da minha muié e dos meus fio, num miserê danado da peste, meritíssimo!” Penso comigo: que merda, não vai dar pra tirar nada desse sujeito: é só lamentação! Mas, coitado: cordeiro metido em briga com lobo! Então, vou ao grande fazendeiro. E levo comigo o tal do criador de ovelhas, todo mulambento. Na casa do fazendeiro – eu disse casa? Casa que nada, um casarão! – o homem nos recebe meio cabreiro, olhando assim pro criador de ovelhas todo sujo, mal vestido... Mas, manda a gente entrar.  – Cafezinho? E vem um cafezão! Com leite, um monte de quitandas... pão de queijo... queijo... frutas. Então o grande fazendeiro me conta essa lereia – ah! tem mais uma coisa: o homem é metido a versejador e só fala rimando – e ele me diz assim: “Meritíssimo senhor juiz, /sempre fiz o que eu quis:/sou podre de rico,/não mijo em penico,/nem por aí eu fico/a mostrar esses... trajos,/na verdade, uns andrajos!/tenho terra a dar com pau,/mas não sou assim tão mau:/quero apenas o direito/de ter a minha estrada /a passar por esse... estreito/que esse aí, esse sujeito,/chama de terra!/Ora, vê se me erra!/Chamar de terra tão/feio chão, de ovelhas velhas/e velhas telhas, que é isso?/um pedaço de nada, /uma  linguiça, um chouriço,/impede uma estrada,/não pode, eu vos peço, /meritíssimo , não deixe/que essa ovelhada/ atravanque  o meu  progresso!” Ah, minha gente, o criador de ovelhas sobe nas tamancas e estrebucha assim:  “o grande fazendeiro  tem nojo de ovelhas? Tem raiva de pobre? Por que não pode o tão rico,  o todo poderoso, construir sua estrada contornando o meu sítio? E deixar em paz as minhas ovelhas?” Pensei: caramba! - o homem vai explodir! Vem cá, meu amigo, tenha calma, o outro lá é ignorante, vamos fazer um acerto... Já sabe o senhor que em terra sem lei, sem deus, sem...  Mas o fazendeiro berra: “Além de pobre e andrajoso, /está doido o meu amigo?/De ovelha não tenho nojo,/minha briga é só contigo:/siga, então, o meu traço/que lhe mostro com meu braço/que aqui, bem aqui /fica a mata preservada,/onde canta o bem-te-vi,/é por essa empreitada,/ - que não sou assim tão mau,/nem assim tão mesquinho -/que não derrubo o pau/onde canta o passarinho! “ Eu digo para vocês, meus amigos, tenho meus defeitos, mas o defeito que não tenho é ser injusto. Então grito pro criador de ovelhas, já ali no canto, com o olho arregalado assim, de raiva: fala aí, meu amigo! E agora? E aquele homem todo sujo e andrajoso encontra forças sei lá de onde para tentar ser digno, para cantar assim de galo: “sinhô juiz, com toda a minha inguinorança, com toda a minha humirdade, que só conheço da vida aquilo que a vida me dá: não pode esse grande sinhô, com todo o seu podê, fazer o disvio da estrada, não pelo braço da mata, o direito, mas pelo outro lado, pelo isquerdo?” Uma proposta, enfim, uma proposta, senhor fazendeiro! Mas ele, o fazendeirão,  irredutível. Solta seu vozeirão bem nas barbas do coitado do criador de ovelhas, nem se importando com o cheiro, com nada, e diz assim:  Ah, quer o senhor um desafio!/Pois lhe digo, meu caro amigo:/o que eu quero, eu consigo,/e podia até fazer um desvio/mas há nesse lado um rio/e no rio uma bela fonte/que eu, defensor da ecologia,/se ergo ali uma ponte,/arraso também um monte/e toda a minha poesia!” Grande fazendeiro!  Grande poeta e e grande macho! Macho e cercado de capangas mal encarados. Corro pra segurar o diabo do fedido do criador de ovelhas que quer ainda dar o troco – que o bicho é teimoso que nem mula – mas o fazendeiro assobia assim, ó, fiiiiuuuuu – e sai jagunço de tudo quanto é lado. E solta uma gargalhada! E daquele jeito dele lá, com todas as rimas em cima, olha bem no olho do coitado do criador de ovelhas que parece que vai até ficando cada vez menor e diz: “Ó, senhor, senhor juiz,/quem  assim o diz/é o sangue aqui na veia,/a palavra solta, sem peia,/sim, sou o mais rico, /e não mijo em penico,/e se sou o mais forte,/se tenho a força do leão,/é porque é a sorte/- e isso afirmo, neste escopo - /que é forte e é tradição:/pois  a lei, senhor juiz,  a lei /desde os tempos de Esopo/ tem de ser a do leão”. Está certo, pensei, e agora lhes digo: em terra sem lei, sem deus, sem nada... manda quem grita mais alto, obedece quem tem juízo. Vou me mandar, antes que sobre para mim. Fiquem os senhores com o diabo da dúvida e o inferno de ter de decidir, em terra de lobo,  a favor do cordeiro...  e façam justiça, se tiverem coragem!

 

(Oficina de Dramaturgia/monólogo, coordenada por CHICO DE ASSIS)

 

Abril de 2010.

terça-feira, 25 de maio de 2021

AZAEL, ANÃO PROFISSIONAL

 


Monólogo

 Isaias Edson Sidney

 

(Banco de praça. Um mendigo dorme sob uma folha de jornal. Acordado de repente, como se por um pontapé, levanta-se e olha assustado para baixo).

 

Um anão! Um anão! Não é possível. É um pesadelo. Odeio anões. Sai, sai pra lá, diabo. (Dá as costas para o anão). Vai embora. O quê? Você quer... você quer o quê? Aus... aus... auspícios? O que é isso? Está louco? Está bem, está bem, então coloque o cartão aqui, devagar, não me encoste. (Lê o cartão, com dificuldade). LOGRADOURO DE AUSPÍCIOS. Azael, anão profissional. .. (vira o cartão) Rua... eu conheço esse endereço, eu acho. Você quer que eu vá nesse endereço... para receber esse troço de auspícios... é isso? (Vira-se e não vê mais o anão, procura-o). Diacho! Onde foi parar esse bicho? Será que sonhei? Um pesadelo... com um anão horrível... que medo! Mas o cartão é real, tá aqui na minha mão... Deixa pra lá. (Faz menção de rasgar o cartão, mas guarda-o. Revira os bolsos e só encontra um pedaço de papel). Ixe... o que é isso? Um quilo de arroz... meio de de feijão... salsicha... óleo... Caralho! É a lista de compras de minha mulher, ela me pediu para comprar isso ontem... e eu dormi aqui, nesse banco duro de jardim... Meus filhos! Eles devem ter dormido com fome, me esperando. Mas nem adiantava voltar pra casa... não consegui nada, nem um tostão... e além disso perdi o bilhete de ônibus... Que merda de vida... Uma guimba! A minha sorte está melhorando, uma guimba quase inteira! Viva! Sou um homem de sorte... agora é só esperar alguém pra me dar fogo... e meu dia vai começar bem... tenho certeza... tudo vai melhorar... (Espera, alisando o cigarro. O dia fica mais claro. Barulho de carros.) Ô cidadão, cidadão, por favor, pode me dar fogo? Por favor... Idiota, nem me olhou! Cretino: um dia você vai ver o que é bom! (Espera mais um pouco). Ô cidadão... por favor... tem fogo? (Acende a guimba no cigarro do transeunte, arregala os olhos). Obrigado, meu, obrigado mesmo... O desgraçado abriu de propósito o paletó só pra eu ver que ele tinha um tresoitão... que filho da puta... será que achava que eu ia assaltar ele? (Grita) Tô desgraçado, fodido, mas sou honesto... seu porra! Tá certo: miserável, mendigo como eu, nunca é honesto, não dá pra ser honesto... até tentei bater umas carteiras, mas cadê jeito? Só sabia mesmo era subir e descer, subir e descer, subir e descer... não sei mais viver de cá pra lá e de lá pra cá... na horizontal, só pra dormir... e pra outras coisas também, é claro... minha mulher! Ela vai me matar, se eu não levar comida hoje pra casa... Auspícios... o que será isso? Será que vou aos auspícios do anão? Mas eu sempre tive medo de anão... Não, não vou... (Caminha um pouco, arrastando a perna, curvado, ombros caídos. A guimba quase queima seus dedos). Droga de vida! Uma fome desgraçada... e medo, medo de não conseguir levar comida pra casa... medo de anão... medo! Aqui, nesta rua, tem umas vagas pra carros, vou tomar conta... (Estaciona uns dois carros). Aqui, cidadão, pode deixar que eu tomo conta... cinco, só cinco reais... Depois? O senhor me paga depois? Pois, não... pois, não... Isso mesmo, cincão, só cincão... sim, fico o dia todo... Me paga na saída... sei... tá bom... tá bom... Ih! lá vêm aqueles moleques... acho que... ´Tá bom! tá bom... eu vou embora... não precisa bater... ai... ai... (Corre como se estivesse levando uma paulada. Para.) Ufa... uns molequinhos de merda... nem dez anos... e eu com medo, fugindo feito uma galinha... Que merda de vida! Nem pra tomar conta de carro eu presto... Eu subia e descia... subia e descia... é isso, mesmo: tinha um bom emprego... ô cidadão, cidadão... sabe o que significa auspícios? Não sabe... é uma besta, mesmo. Se fosse um dos executivos do meu prédio, tenho certeza que saberia o que é isso, auspícios! Pois, é: Eu era ascensorista! Com muito orgulho... (Imita um ascensorista) Sobe... Um passinho para trás por favor, senhores! Qual o seu andar, senhorita? Por favor, minha senhora... oitavo andar... cuidado com o degrau... Desce! (Pausa). Trabalhava num edifício comercial... de luxo! Aí, veio a tal da terceirização... e a firma que passou a administrar o prédio me contratou... serviço por hora, sem férias, sem décimo terceiro... sem porra nenhuma. Depois, veio a automatização! Aí, fodeu! Acho que aqueles engravatados do meu prédio nem notaram que eu e meus outros cinco colegas sumimos... de um dia para o outro... Nunca mais achei emprego. Faz dois anos já... desde 99... nem pude comemorar a chegada do tal do terceiro milênio... Agora, estou aqui... e este cartão... o cartão do anão... quem sabe, pode ser a esperança... a esperança de minha mulher e meus filhos terem, enfim, um pouco de comer... lá naquela porra de vila de fim de mundo, onde eu escondo a minha vergonha, a vergonha de não ter serviço, de não achar emprego... Um imprestável! Eu tenho que ir atrás desses auspícios... Vou, sim! Que tenho a perder? Um cão sem dono, sem pelo, sem rabo e sem esperança, é isso o que eu sou. E medroso... mas tenho de ter coragem. Logradouro... acho que logradouro é rua... e a rua é essa aqui, número 17... uma porta verde... Isso aqui está me parecendo um buraco... um buraco tão negro quanto a minha vida... quanto o buraco em que estou morando... Ei, que é isso, me larga... que filho da... (jogado por alguém escada abaixo, rola, levanta, olha para cima, para o segurança). Você é grande, mas é um só... seu... seu... Está bem, está bem... eu vou, não precisa empurrar... já entendi... você é amigo do anão que me deu o cartão... tá... tá... eu vou... (abre uma cortina). Caramba! Quanta gente... quanta mulher... que beleza isso aqui! (Entra, caminha entre as pessoas e, depois de se acostumar com as luzes, com o espaço, deixa de arrastar a perna, apruma-se e dança com várias mulheres e, enquanto troca de parceiras, também vai trocando de roupas, colocando um paletó novo, uma calça limpa e sapatos novos, penteia-se, dá nó na gravata). Obrigado, senhora...  perdão, senhorita... a senhorita também dança muito bem... Obrigado... Uma bebida? Sim, por que não? Uma bebida! Tem um bar... ali... vamos ao bar! (Pega duas taças, coloca bebida, oferece à mulher, e ambos bebem, riem, comem, acariciam-se, voltam a dançar um outro ritmo). Aqui é muito agradável, senhorita... sim, já frequentei muitos bailes, muitos clubes elegantes, mas nunca... nunca como este... como se chama este lugar? Ah, também não sabe, não é? Não tem importância, não tem a mínima importância... o que são os nomes senão palavras vazias que inventamos, não é? Dancemos. ( Enquanto dança, fala com o público). Vejam vocês, estou aqui, agora, neste ambiente estranho... feérico, mesmo... cheio de luzes, de pessoas alegres que dançam... que bebem... e penso em minha mulher, em meus filhos lá naquela desgraça de barraco... vocês podem pensar: esse cara é uma besta sem consciência, sem qualquer dignidade... E eu digo para vocês: sou mesmo uma besta sem qualquer dignidade, mas esse pode ser meu último ato, minha esperança derradeira... deposito minhas fichas num anão! Mesmo morrendo de medo. Mas, fazer o quê? Há outra saída? Então, pulo de cabeça nos auspícios do anão! Mais uma coisa, meus amigos: não sei se vocês perceberam, mas essa gente que está aqui... olhem, olhem bem... vocês distinguem os rostos? São vultos... elegantes... de homens, de mulheres... mas sem rostos... não sei se são bonitas, não sei se são velhas, não sei se são feias, não sei... são agradáveis, sim, muito agradáveis, falam comigo, eu as entendo, mas também não sei que língua falam, não sei... é tudo muito... muito... como direi?... ah, deixa pra lá... não importa, importa é que eu vou ter, sim, meus auspícios, os auspícios que o anão prometeu... Ah! vejam... é... é.. o anão! Vejam... ele veio... está ali, e nem parece mais um anão... mas é ele mesmo... sorri para mim... não tem mais os dentes tortos... não é mais tão... feio... Sorri para todos... e todos o aplaudem... todos o aplaudem... Muito bem! Viva! Auspícios! Vejam... vejam como ele é ágil, ao dançar... ele está feliz, meus senhores... o anão que vai me salvar está feliz... e ele olha para mim... e sorri... e faz um gesto me chamando... Eu, eu? sim, sim, senhor, eu vou... eu vou, sim... ele... ele está me chamando... Eu estou indo, sim, senhor Azael... Augúrios, augúrios! Finalmente, meus amigos, caem sobre mim as bênçãos e os aplausos... vocês estão ouvindo? Os aplausos! Os vivas! São os auspícios que ele prometeu! Nunca, nunca mais ficar zanzando pela cidade... como um zumbi... nunca mais a miséria... nunca mais a fome... nunca mais o medo... e meus filhos vão ter esperança, senhores, porque eu agora também tenho esperança...  porque vou estar sob os cuidados não de um anão qualquer, mas de um anão profissional... ouviram? Um anão profissional!

 

(Vai ao encontro do anão, abraça-o e ambos saem de mãos dadas, como clowns).

 

 

 

 

 

FIM

 

 

 

Isaias Edson Sidney

 

Abril/maio de 2010

 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

MENOCCHIO, O MOLEIRO

 

  

 

DRAMA

  

 (Alberto Magri - Dentro il mulino di Menocchio)

 

 

ISAIAS EDSON SIDNEY

 

Telefone (11)5011-9628

 

SBAT-8092

9.3.2006

  

2005

 

 

RESUMO:

 

Drama épico. No século dezesseis, numa cidadezinha perdida no norte da Itália, Domenico Scandella, o Menocchio, baseado em leituras condenadas pela Igreja, cria uma cosmovisão contrária aos princípios cristãos, o que leva o Santo Ofício a julgá-lo duas vezes e, finalmente, a condená-lo à fogueira por heresia. Contemporâneo de outro ilustre italiano, Giordano Bruno, também queimado por heresia, Menocchio ficaria esquecido se não fosse o trabalho de micro história desenvolvido por Ginzburg, em seu livro O Queijo e os Vermes, no qual se inspira esse texto.

 

 

MONTAGEM:

 

Há um número grande de personagens e, por isso, exige-se um número mínimo de 7 atores (6 atores e uma atriz).

 

 

(sambenito)

 

  

Pois São Paulo diz que tudo o que fazemos

por palavras ou atos deve ser feito

em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Malleus Maleficarum


APRESENTAÇÃO

  

Século XVI: tempos de mudança. Momento em que a Europa começa a abandonar os princípios econômicos, sociais e filosóficos da Idade Média e inicia a construção do mundo em que vivemos hoje. E como em toda época de transição, o passado e o futuro se encontram, para fazer do presente um cadinho de contradições. É nesse ambiente que se insere a história de um moleiro, Domenico Scandella, que nasceu em 1532 e foi queimado pelo Santo Ofício provavelmente em 1600, no Friul, nordeste da Itália. Fiz dele o herói de minha peça, menos interessado nos aspectos históricos de sua vida e muito mais na personagem Menocchio, seu apelido, e em suas idéias, estranhas e avançadas para o lugar e o momento. Chamou-me a atenção, em especial, sua cosmogonia e a sua teimosia em enfrentar por duas vezes, até ser condenado como herege, o Tribunal do Santo Ofício. Nesta peça, não estão contempladas todas as teses, teorias e elucubrações de Menocchio, pois não era esta a sua finalidade, o que pode ser conhecido pela leitura das obras de referência e pesquisa citadas no final.

 Numa época em que, coincidentemente, também era condenado e queimado Giordano Bruno, o caso de Menocchio passaria despercebido e ficaria para sempre esquecido, não fosse o acaso colocá-lo diante do historiador Carlo Ginzburg. Sua obra serviu de inspiração para este texto que tem a pretensão de homenagear um herói anônimo e pôr em discussão, mais uma vez, num século de contradições, como o XXI, a questão da liberdade da palavra diante do fanatismo e das forças conservadoras.

 

 


INDICAÇÕES TÉCNICAS

 

 

 

ÉPOCA: século XVI.

 

LOCAL: Vila de Monte Real, pequena localidade situada no Friul, nordeste da Itália.

 

CENÁRIOS:

 

  • Praça de Monte Real.
  • Moinho de Menocchio.
  • Tribunal do Santo Ofício.
  • Igreja de Monte Real.
  • Prisão do Santo Ofício.

 

PERSONAGENS:

 

  • Domenico Scandella, o Menocchio (ou Domenego): tem mais ou menos 50 anos, quando começa a peça.
  • Francesco Fasseta, amigo de infância de Menocchio.
  • Padre Odorico Vorai, pároco de Monte Real.
  • Nicola, um pintor.
  • Ziannuto, filho de Menocchio.
  • Companhia de Teatro Mambembe, formada por vários artistas.
  • Benandanti, ou andarilhos do bem, grupo formado por várias pessoas.
  • Companheiros de taberna.
  • Camponeses e gente do povo; advogado.
  • Inquisidores.

 

 

( Francisco de Goya - Escena de Inquisición)


CENA 1:

 

 

Praça de Monte Real, cidade do norte da Itália.  Artistas de teatro mambembe armam o palco e apresentam o seu espetáculo.

 

 

 

APRESENTADOR:- Senhores e senhoras dessa magnífica vila de Monte Real... Neste ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1582, todos terão a honra de assistir a mais um espetáculo espetacular da Companhia Os Irreverentes... apresentando sua obra-prima “Quem ao diabo promete, com o diabo se compromete”, com os melhores atores do Friul, desde Veneza até Monte Real... (Palmas). Acomodai os velhos... que não tenham achaques durante o espetáculo... (risos). Que as mulheres ponham os peitos pra fora... (murmúrio de reprovação) para dar de mamar a seus filhos... que eles não chorem durante o espetáculo... (Risos e alguns aplausos) Que os homens sosseguem seus... Deixa pra lá... Vamos ao espetáculo... Aqui vemos, no início, o padre Odorico, já muito, muito velho, a chorar a morte de seu amigo, o moleiro Domenego que... bem, os senhores verão...

 

 

PADRE:- Ai, ai, ai... meu querido amigo... Deus o levou... para sempre. Não vou vê-lo nunca mais. Tantas trapalhadas passamos juntos. Eu até o ajudei a escapar da fogueira uma vez! Agora, está lá... nas chamas do inferno... Perdi... eu perdi sua alma para aquele diabo horroroso... Tinha prometido voltar do paraíso, pra me consolar...  Mas, do inferno... quem pode voltar?

 

MOLEIRO (no inferno):- Farfarelo, Farfarelo... você é mesmo um diabo. Está vendo lá em cima o meu amigo Padre se lamentando, todo choroso... Deixa que eu vá lá, consolá-lo... só um pouquinho... deixa!

 

FARFARELO:- Sou diabo, mas não sou bobo... Se você daqui me sai, aqui não me vorta...

 

MOLEIRO:- Eu prometo... eu prometo que volto...

 

FARFARELO:- Creio que me podemos entrar em entendimento... (Ao lado) Quem sabe mais uma alma não consigo pescar? (Para o Moleiro) Tu daqui não me sais, mas podemos fazer com que seu amigo aqui me venha.

 

MOLEIRO:- Como? E se ele aqui “me” vem... o diabo daqui não o deixará sair...

 

FARFARELO:- Não. Se você me prometer trazê-lo, eu prometo deixá-lo partir...

 

 

Cruza os dedos nas costas.

 

MOLEIRO:- E o que você ganha com isso?

 

FARFARELO:- Ora, nada... nada... só sua amizade, para sempre...

 

MOLEIRO:- Está bem... Eu prometo trazê-lo até aqui. Então o que eu faço?

 

FARFARELO:- Finge... você me finge que está em grande sofrimento... Ele te ouvirá e me virá correndo e, então...

 

MOLEIRO:- ... e então...

 

FARFARELO:- ... e então, nada, uai! Ocêis dois conversa e ocê consola ele...

 

MOLEIRO:- Ai, ai, ai... estou sofrendo... como doem esses ferimentos no meu corpo... O diabo me espeta de manhã... o diabo me espeta à tarde... o diabo me espeta à noite... o diabo me espeta... (leva um tranco de Farfarelo). Ai, ai, ai, eu queria tanto que meu amigo viesse aqui me ver... sofro tanto a sua falta...

 

 

O Padre ouve os lamentos do moleiro e vai em sua direção. Encontram-se no meio do caminho. O diabo Farfarelo fica ao longe, tentando ouvir a conversa dos dois.

 

 

 

PADRE:- Meu querido amigo Domenego! Prometeste voltar e eu é que tenho de ir ao teu encontro... Estás com uma aparência estranha! Não tens comido bem?

 

MOLEIRO (alto):- Ai, ai, ai... tenho sofrido muito, meu amigo. Um diabo me azucrina o tempo todo... (Olha para cara de bravo de Farfarelo e fala no ouvido do amigo). Fala baixo, aquele diabo ali é o... é o diabo. Ele está querendo te pegar. (Alto) Como vão as coisas lá em cima, meu querido amigo... já tomaste a extrema-unção?

 

PADRE (alto, entrando no jogo):- Que nada, meu caro amigo...  Não morro tão cedo. Tenho só uns achaquesinhos de tosse... Mas sinto tua falta. (Baixo) Vou te roubar desse diabo: tua alma é minha... isto é, de Deus. (Alto) Dize-me uma coisa, meu caro Domenego: como é a vida de uma alma pecadora nesse inferno de lágrimas?

 

MOLEIRO (alto):- Não é mole, não, meu caro. Não é mole, não. Tem diabo de mais e pecadores de menos, então sobra muita porrada no nosso lombo... (Baixo) Ele quer a tua alma também: prometi levá-la para ele, mas eu só queria te ver... para a gente combinar um estratagema para enganá-lo... finge que  vai comigo e, assim que eu te fizer um sinal, nós saímos correndo o mais rápido que nossas pernas bambas conseguirem... (Alto) Mas não posso me queixar, não... Tenho um amigão aqui embaixo, um tal de Farfarelo... Ele quer te conhecer... de tanto que eu falei de ti... Vem, vamos lá, que eu vou te apresentar para ele...

 

 

O Moleiro finge que vai em direção ao diabo, pega o Padre pelo braço e ambos tentam sair correndo. Mas o diabo é mais esperto, pula na frente dos dois e agarra o braço do Moleiro. O Padre e o diabo ficam puxando o Moleiro cada um para seu lado, até que o Padre, por ser muito velho, cai estatelado no chão, deixando ver um rabo bifurcado por baixo da batina.

 

 

FARFARELO:- Seu moleiro maldito e mentiroso... Vou te jogar na mais profunda escuridão de meu inferno, seu desgraçado. Você me prometeu...

 

MOLEIRO:- Prometi... prometi e não cumpri...

 

FARFARELO:- Desgraçado! Quem promete tem que cumprir... tem que cumprir, mesmo que seja no inferno!

 

 

 

Aplausos moderados da platéia e entusiasmados de Menocchio, o Moleiro.

 

 

 

MENOCCHIO:- Bravo! É isso aí... (Assobia). Promessa tem de ser cumprida... mesmo no inferno. (Ri).

 

 

A seu lado, o amigo Fasseta cutuca-o.

 

 

FASSETA:- Sossega, Domenego, sossega. Que diacho: tudo agora é motivo de provocação?

 

MENOCCHIO:- Que provocação que nada... Não gosto de hipocrisia, você sabe...

 

FASSETA:- Olha lá o padre: não tira o olho de você.

 

MENOCCHIO (faz um gesto de provocação para o padre):- Tudo mentiroso, Fasseta, tudo mentiroso, uns hipócritas. Prometem o que não podem cumprir... nem no inferno!

 

 

 

Enquanto um dos artistas passa o chapéu para arrecadar umas moedas e os outros vão desmontando o palco, alguém se aproxima de Menocchio.

 

 

 

MENOCCHIO:- Meu amigo, Nicola!... Dê cá um grande abraço. Por onde anda, homem de Deus?

 

NICOLA:- Por aí, pintando umas igrejas...

 

MENOCCHIO:- Tirando dos padres o que os padres tiram da gente, não é?...

 

NICOLA:- Tenho... tenho algo para você... Comprei numa feira em Pórcia, acho que vai gostar...

 

MENOCCHIO:- Vamos nos afastar um pouco, que o padre Odorico não tira o olho da gente... Vem, também, Fasseta... Em você eu confio...

 

FASSETA:- Nada disso, senhores... Vou cuidar de meus sapatos, que ganho mais do que cuidar do que eu sei que vocês vão conversar... Tenha cuidado, Menocchio... tenha cuidado...

 

 

Fasseta sai, enquanto Nicola e Menocchio se afastam para um canto. Padre Odorico faz um gesto de desânimo e também sai. Nicola abre uma bolsa e entrega a Menocchio um livro, que este examina rapidamente e esconde sob as roupas.

 

 

NICOLA:- Em língua vulgar, Menocchio... nada de latim.

 

MENOCCHIO:- Muito bom, meu amigo, muito bom... Quanto lhe devo?

 

NICOLA:-  Dois soldos, Domenego, mas depois a gente acerta... passe adiante... como sempre... passe adiante... depois que você ler... Existem mais livros, muitos mais... Mas, cuidado, sempre, hem! E até a quinta-feira, não esqueça... equinócio, você sabe...

 

 

Os dois se abraçam e se afastam.

 

 

 

CENA 2:-

 

 

 

Menocchio está sentado à frente de seu moinho, lê um livro por alguns instantes, fecha-o e começa a carregar uns sacos de grãos para dentro. Passa o sapateiro Francesco Fasseta.

 

 

FASSETA:- Que ganância é essa, Menocchio?! Hoje é domingo! Os padres vão te excomungar...

 

MENOCCHIO:- Que se danem os padres, amigo Fasseta. Que se danem! Eu tenho mulher e sete filhos, se não trabalhar duro, quem vai pagar minhas contas? Os padres?

 

FASSETA:- Mas hoje é dia de missa, Menocchio... hoje é dia de missa!... Respeite os sacramentos de Deus, homem!

 

MENOCCHIO:- Bah! Que sacramentos que nada... tudo mercadoria... tudo invenção dos homens, dos padres, para tirar dinheiro da gente.

 

 

Fasseta tenta impedir que Menocchio continue carregando os sacos.

 

 

 

FASSETA:- Você precisa se confessar, se comungar, abrandar esses maus modos, Menocchio, respeitar as leis de Deus... E parar de ler esses livros...  eles estão fazendo a sua cabeça... para o mal! Você é só um moleiro, Domenego, não um... um professor... um padre...

 

MENOCCHIO:- Olha aqui, meu caro amigo, você com seus sapatos e eu com minhas idéias... e meus livros. Eu respeito, e muito, as leis de Deus...

 

 

São interrompidos pela presença dos artistas do teatro.

 

 

ARTISTA:- Bons dias, senhores... Acho que os senhores estiveram ontem em nossa apresentação...

 

FASSETA:- Estivemos, sim... Aquela porcaria de peça... que só confundiu ainda mais a cabeça do meu amigo aqui...

 

MENOCCHIO:- Calma, Fasseta, calma... São boa gente, não estão querendo confusão...

 

ARTISTA:- Desculpe... é que, sabe, ontem... acho que o povo não gostou... A grana foi curta... Estamos sem dinheiro até para comer...

 

MENOCCHIO:- A vida está difícil pra todo mundo, meu amigo... Mas nós, os pobres, somos honrados e nos ajudamos (dá uma olhada feia para Fasseta)... com a graça de Deus... Olha aqui, pega um saco de farinha desses aí... Já servirá para alguma coisa... um mingau... uma sopa... Ou então podem vender... Enfim, é o que posso contribuir com gente que alegra a vida das pessoas...

 

 

Os artistas pegam um saco de farinha, agradecem muito, com gestos e abraços, ao Menocchio. Alguém tenta abraçar o Fasseta também, mas é repelido. Retiram-se.

 

 

FASSETA:- Idiota... é o que você é, Menocchio...

 

MENOCCHIO:- Eu sou o idiota, não é? Só porque sigo a lei de Deus... Sabe o que eu acho? Eu acho que em vez de ficarem lambendo as botas dos padres, que nos querem debaixo de seus pés, as pessoas deviam seguir a lei de Jesus... Eu conheço Deus melhor do que eles...  E sabe o que mais, meu amigo? Gostaria que se acreditasse na majestade de Deus, que fôssemos homens de bem e que se fizesse como Jesus Cristo recomendou, quando respondeu àqueles judeus que lhe perguntaram que lei se deveria seguir. Ele respondeu: “Amar a Deus e ao próximo”. Só isso, só isso já é ser um homem de bem, Fasseta...

 

FASSETA:- Diacho, homem, fica falando essas coisas por aí... E discutindo com todo mundo sobre a fé... Até com o pároco! Tá certo, eu sou sapateiro; mas você é moleiro, e você não é culto. Sobre o que é que nós vamos discutir? Hem, sobre o quê, Menocchio? Pelo amor de Deus, não vai falando essas coisas por aí!Você ainda vai se dar mal, Menocchio, eu te digo, você ainda vai se dar mal...

 

MENOCCHIO:- Você me conhece desde menino, Fasseta... Se me chamarem, por causa de minhas idéias, eu irei, sim... sem problema... Mas se me baterem! Ah! Aí eu boto a boca no mundo... tenho muito o que falar com os superiores sobre as más obras desses padres... Se me matarem depois que eu tiver dito tudo o que penso, eu nem vou ligar...

 

FASSETA:- Tá bom, tá bom... Eu só me preocupo... mas não adianta, você é mais teimoso que um burro de moleiro... Cuidado com a língua, o padre Odorico não é flor que se cheire...

 

MENOCCHIO:- Está bem, está bem... Você fez direitinho o trabalho dos padres no domingo: me convenceu a parar de trabalhar. Já terminei mesmo... vamos lá em casa tomar um vinho e cantar umas musiquinhas...

 

 

Menocchio pega no interior do moinho um violão e sai cantando, ao lado de Fasseta, enquanto a Lua cheia surge no céu, ao fundo.

 

 

MENOCCHIO :- “Sina minha, minha sina,

Digo sempre o que me vem

Nesta aldeia pequenina

Prego o mal e faço o bem

Sina minha, minha sina

Tudo vai e tudo vem

Minha crença me anima

Vou cantando, vou levando

Minha vida, minha sina

Só a Deus eu vou louvando...

Sina minha, minha sina...”

 

 

CENA 3

 

 

Num banco da praça, Nicola lê, com atenção, um livro. Padre Odorico senta-se a seu lado, assustando-o. Nicola esconde o livro entre as roupas.

 

 

ODORICO:- Sempre um livro nas mãos, hem, senhor Nicola?... Não entendo como um simples pintor como o senhor gosta tanto de livros...

 

NICOLA:- Com... com... licença... eu já estava me retirando...

 

ODORICO:- Nada disso. Fique bem aí, que eu quero lhe fazer umas perguntinhas...

 

NICOLA:- Mas, seu padre... eu... eu tenho confessado e comungado todo ano na sua paróquia...

 

ODORICO:- Você não conhece, por acaso, alguém que viva em pecado aqui em Monte Real, conhece, senhor Nicola?

 

NICOLA:- Em... em pecado? Como assim, seu padre?

 

ODORICO:- Você deve conhecer algum feiticeiro, não é mesmo? Um benandante?

 

NICOLA:- Não, não conheço nenhum feiticeiro nem nenhum benandante... (Começa a rir) Ora, padre... não que eu tenha conhecimento... também não sou um benandante... não é essa a minha profissão!

 

ODORICO:- Mas, o senhor, há cinco anos me contou umas histórias... não levei em consideração, na época, mas agora...

 

NICOLA:- Ora, ora, padre Odorico... eram histórias, apenas histórias...

 

ODORICO:- Então, porque está rindo tanto?

 

NICOLA:- Porque não se deve perguntar sobre essas coisas, isso é ir contra a vontade de Deus, padre Odorico...

 

ODORICO:- Não entendi: por que falar dessas coisas é ir contra a vontade de Deus, hem, seu Nicola?

 

NICOLA:- Eu nunca falei com o senhor sobre nenhum feiticeiro, nem a respeito de combates noturnos, nunca, ouviu, nunca! Eu não sei o que é ser um benandante...

 

ODORICO:- Mas o senhor uma vez falou, sim, que os benadanti voltavam cansados de seus jogos e, se não achavam água nas casas, urinavam no vinho e o vinho ficava azedo... Eu me lembro muito bem, agora...

 

NICOLA (ainda rindo, nervosamente):- Oh! mundo cruel... oh! mundo cruel!...

 

ODORICO:- O senhor sabe que, se disser a verdade, isso será levado em conta e o senhor será tratado com misericórdia?

 

 

Nicola permanece em silencio. O padre espera alguns instantes. Faz sinal a dois guardas que se aproximam, amarram Nicola e levam-no.

 

 

 

CENA 4:

 

 

 

Noite de lua cheia. Na floresta, várias pessoas, homens e mulheres, vão-se reunindo, trazendo galhos de erva-doce. O líder bate um tambor e alguém a seu lado traz uma bandeira de tafetá branco, bordado a ouro, com um leão. Parecem estar num sono ou transe profundo e só acordam quando o líder começa a falar. Entre eles, Menocchio. Fazem um círculo, iluminado por archotes.

 

 

LÍDER:- Nós somos os benandanti... os andarilhos do bem... Aqui estamos reunidos, neste Quarto Tempo do ano, início da primavera, para combater o bom combate de todas as lavouras...

 

MENOCCHIO (baixo, para a mulher a seu lado):- Você viu o Nicola, o pintor?

 

MULHER:- Não, não vi... deve ter viajado, para pintar outra igreja...

 

MENOCCHIO:- Estranho... ele nunca falta às nossas reuniões...

 

 

O círculo começa a se movimentar e a dançar. Cantam.

 

 

TODOS:- Proteger a terra,

Proteger o vinho,

Combater quem erra

Não estou sozinho!

 

Deus de todos nós,

Dono desse mundo,

Dá a tua graça

Expulsa o imundo!

Dá a tua graça

Expulsa o imundo!

Dono desse mundo

Expulsa, expulsa sim

Sem dó nem piedade,

Expulsa o imundo!

 

 

LÍDER:- Deus, senhor das colheitas, protegei nossas vindimas!

 

TODOS:- Que o vinho seja bom!

 

LÍDER:- Deus, senhor das colheitas, protegei nossos campos!

 

TODOS:- Que os frutos da terra sejam bons!

 

LÍDER:- Deus, senhor de tudo o que se move na terra, protegei nossos animais!

 

TODOS:- Assim seja! Amém! Amém!

 

LÍDER:- Os diabos são nossos inimigos... as feiticeiras são nossas inimigas... Vamos lutar contra o mal e, com a graça de Deus, vamos vencer mais uma vez esse combate. Nossos campos devem ficar protegidos de todo o mal. Lutemos, irmãos, lutemos!

 

 

Os participantes se organizam, como um exército e, cantando, simulam um combate contra um inimigo invisível, com os galhos de erva-doce. Quando o “inimigo bate em retirada”, eles pulam de alegria, dançam, se abraçam e se beijam. Depois, sentam-se em círculo, para comemorar, com pães e vinhos e doces.

 

 

LÍDER:- Meus irmãos, vocês conhecem nossos regulamentos: quem contar alguma coisa de nossas reuniões será severamente punido... com a morte, se for preciso. Portanto, renovemos o juramento de silêncio.

 

 

Todos se dão as mãos e repetem as palavras de juramento do líder.

 

 

LÍDER:- Nós, os benandanti... os caminhantes do bem... aqui reunidos... sob a graça de Deus... vencemos mais uma vez nossos inimigos... e prometemos manter... dentro da boca nossas línguas... sob pena... de encontrar o castigo de Deus...  Amém!

 

 

Todos se abraçam, comem e bebem e se divertem.

 

 

 

CENA 5:

 

 

Cela de uma prisão. Nicola está pendurado numa roda medieval de tortura e o Inquisidor interroga-o.

 

 

INQUISIDOR:- Que coisa vos prometeu: mulheres, comida, danças, que outras coisas? Fale, Nicola, vamos, fale em nome de Deus!

 

NICOLA:- Não me prometeu nada, eu juro por Deus! Os outros dançam, pulam, fazem sexo, eu vi! Mas nós os combatemos... eles é que são o mal...

 

INQUISIDOR:- Quantas vezes você viu aquele anjo?

 

NICOLA:- Toda vez que eu saía... quatro... quatro vezes por ano... ele vinha comigo... é ele que guia a nossa bandeira...

 

INQUISIDOR:- Como se dava isso? Vamos, explique bem... bem direitinho essa história, Nicola...

 

 

O Inquisidor aumenta a tortura.

 

 

NICOLA:- Eu... eu conto... eu conto... Quando dormimos, o anjo vem e nos leva... em espírito... o corpo continua dormindo... Então nós nos encontramos... em espírito... na mata... e combatemos o mal... Somos muitos... dois mil... cinco mil... Cantamos e dançamos... e vencemos aqueles que querem destruir nossas colheitas, azedar nosso leite... Quatro vezes ao ano... quatro vezes...

 

 

 

 

CENA 6:

 

 

 

Na frente de seu moinho, Menocchio organiza uma pequena fila de camponeses que lhe trazem, em sacos e cestos, grãos para moer.

 

 

MENOCCHIO:- É como lhes digo: quem é que vocês pensam que seja Deus?  Deus não é nada além de um pequeno sopro e tudo mais que o homem imagina.

 

UM CAMPONÊS:- Ei, Menocchio, você está dizendo que Deus não existe?

 

MENOCCHIO:- Não foi isso o que eu disse: Deus existe, sim. Tudo o que se vê é Deus e nós somos deuses.

 

OUTRO CAMPONÊS:- Nós somos deuses?? Como assim?...

 

MENOCCHIO:- O céu, a terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno, tudo é Deus. É no que eu acredito.

 

UM CAMPONÊS:- E Jesus, Menocchio, o filho de Deus... o que você diz de Jesus?

 

MENOCCHIO:- O que é que vocês pensam? Que Jesus Cristo nasceu da Virgem Maria? Não, não é possível que ela tenha dado à luz e tenha continuado virgem. Pode muito bem ser que ele tenha sido um homem qualquer de bem, ou filho de algum homem de bem...

 

 

Fasseta se aproxima.

 

 

FASSETA:- Você está indo longe demais nisso, Menocchio... Não vê que só faz mal a si mesmo? Pára com isso, homem...

 

MENOCCHIO:- Chegue aqui, amigo Fasseta... Queria mesmo falar com você...

 

FASSETA:- Não me venha com essa sua ladainha de falar de Deus... das escrituras... que eu vou embora!

 

MENOCCHIO:- Não, não... Espere só um minuto... Você aí, pode levar o seu cesto lá para dentro... (Grita para dentro do moinho). Já vai mais um... não deixem a mó parar, seus palermas... E andem com isso que tem gente esperando!... Então, amigo Fasseta, senta aí e me conta uma coisa: estou preocupado com o pintor Nicola. Faz mais de um ano que ele não aparece...

 

FASSETA:- Aquele pilantra, vendedor de livros que não prestam pra nada? Esquece... esquece aquele... aquele... feiticeiro, Menocchio.

 

MENOCCHIO:- Feiticeiro? O que é isso, Fasseta? Estou estranhando suas palavras. Nicola nunca foi feiticeiro... Um pintor de igrejas, isso é o que ele é...

 

FASSETA:- Desculpe, Domenego, não quis dizer isso... Desculpe... Estou preocupado é com você... Você sabe: Nicola anda muito por essas estradas... vê tudo... observa... Enfim, ninguém sabe dele. Pode estar pintando alguma igreja num lugarejo perdido aí do Friul, como pode estar morto numa vala qualquer desses caminhos... Vá Deus saber, Menocchio...

 

 

 

Menocchio puxa Fasseta para longe das pessoas e procura falar baixo.

 

 

 

MENOCCHIO:- Eu queria saber outra coisa: o padre Odorico...

 

FASSETA:- Não disse mais nada... está na encolha... Mas, se eu fosse você, não ficava muito sossegado, não...

 

MENOCCHIO:- Você acha que ele ainda...

 

FASSETA:- Bem... os tempos são difíceis... Ouvi dizer que queimaram uma bruxa no mês passado em Pordenone... E andaram perseguindo uns hereges em Aviano... O Santo Ofício tem olhos e ouvidos em tudo quanto é lugar... Temo por você, meu amigo, pára com essas pregações em público...

 

MENOCCHIO:- Sossega, Fasseta. . Sou dono de meu nariz! Sei ler e somar...  já fui até administrador da paróquia, você se lembra? E então, meu amigo, nada vai acontecer comigo... Esse povo aí da vila precisa ser esclarecido...

 

FASSETA:- E é você quem vai esclarecer, Menocchio? Tenha tino, amigo, tenha tino!

 

MENOCCHIO:- Além do mais, eu gostaria mesmo que me levassem... Tenho muita coisa para falar... Ah! E como eu ia falar!

 

 

 

CENA 7:

 

 

 

Está amanhecendo. A Lua, pouco a pouco, vai sumindo no céu.  Zannuto, filho mais velho de Menocchio, chega ao moinho, abre suas portas e espera. Pega um violão, senta numa pedra e cantarola, enquanto vão chegando algumas pessoas, com cestos de grãos para moer.

 

 

ZANNUTO:- O pão vem do trigo,

O trigo que mói a mó

A mó não tem dó

Não tem dó, não tem dó

Do trigo

Da pedra se faz a mó

Da terra vem a pedra

Na terra o trigo medra

Mas a mó não tem dó

Não tem dó, não tem dó

Do trigo...

 

UM CAMPONÊS:- Então, Zannuto, cadê o seu pai?

 

OUTRO:- Já é tarde! Cadê o Menocchio, Zannuto?

 

ZANNUTO:- Calma, gente, meu pai já vem... Deve ter dormido demais...

 

 

Chega correndo um mensageiro.

 

 

MENSAGEIRO:- Zannuto! Zannuto! Corre que prenderam seu pai... Levaram para Pordenone... O Santo Ofício... O Santo Ofício...

 

 

 

CENA 8:

 

 

 

Advogado entrega a Zannuto uma petição.

 

 

ADVOGADO:- Aqui está: é tudo o que posso fazer por seu pai... O caso não é complicado, mas com o Santo Ofício nunca se sabe...

 

 

Zannuto passa os olhos pela petição.

 

 

ZANNUTO:- Mas, senhor advogado, nesta petição está escrito que meu pai abjura de todas as crenças absurdas e se mostra absolutamente arrependido de tudo quanto disse, de tudo quanto pregou esses anos todos e volta para o seio da Santa Madre Igreja...

 

ADVOGADO:- É pegar ou largar: o Santo Ofício pode não ter muito interesse em queimar um membro atuante da comunidade, se esse membro não for acusado de bruxaria... O que não é o caso.

 

ZANNUTO:- O próprio Inquisidor mandou-me procurá-lo... Quanto lhe devo, afinal?

 

ADVOGADO:- Sei que Domenico Scandella tem posses...

 

ZANNUTO:- Meu pai nada tem além de dois moinhos de aluguel e dois campos arrendados... São o sustento de nossa pobre família...

 

ADVOGADO:- Pobre e de nariz empinado, língua solta... Vai custar caro, meu jovem, vai custar caro!

 

 

CENA 9:

 

 

 

Tribunal do Santo Ofício.

 

 

INQUISIDOR:- Que entre a testemunha, padre Odorico Vorai, da paróquia de Monte Real...

 

 

O padre Odorico faz o juramento sobre a Bíblia e beija o anel do Inquisidor.

 

 

INQUISIDOR:- Fale, senhor cura...

 

ODORICO:- Desculpe, senhor... mas não posso me lembrar bem do que ele disse. Tenho memória fraca e estava com outras coisas na cabeça.

 

 

O Inquisidor dispensa, com um gesto, a testemunha.

 

 

INQUISIDOR:- Agora entre nós, senhor Domenico Scandella... Estamos todos interessados em ouvir suas teorias sobre os sacramentos... Mas, antes, o senhor confirma o que aqui disseram várias testemunhas: que, se encontrasse quem o ouvisse, contaria tudo?

 

MENOCCHIO:- Sim, excelência, é verdade, eu disse que, se me fosse permitida a graça de falar diante do papa, de um rei ou de um príncipe que me ouvisse, diria muitas coisas... depois, se me matassem, não me incomodaria nem um pouco.

 

INQUISIDOR:- Mas, pelo que eu sei, o senhor não sabe latim, para falar com tal ilustre platéia...

 

MENOCCHIO:- Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões, as pessoas mais pobres não sabem o que está sendo dito e são enganadas. Pra falar qualquer coisa, quatro palavras, só com a ajuda de um advogado.

 

INQUISIDOR:- O senhor condena os bens da Igreja...

 

MENOCCHIO:- O papa, os cardeais, os padres, todos são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam a vida dos pobres. Se os pobres têm dois campos arrendados, esses são ou da Igreja ou de tal bispo ou de tal cardeal.

 

INQUISIDOR:- Fale-nos sobre o santo sacramento do Batizado...

 

MENOCCHIO:- Acho que, quando nascemos, nós já nascemos batizados, porque Deus, que abençoa todas as coisas, já nos batizou. O batismo é uma invenção dos padres... Os padres começam a nos comer a alma antes do nascimento e vão continuar comendo-a até depois da morte.

 

INQUISIDOR:- O senhor se confessa, senhor Domenico?

 

MENOCCHIO:- Nas festas, na Sexta Feira Santa, até que sim, eu me confesso, porque a isso me obrigam os amigos, a família, o padre. Mas na verdade eu acho que ir se confessar com padres ou frades é a mesma coisa que falar com uma árvore. Se esta árvore conhecesse a penitência, daria no mesmo; alguns homens procuram os padres porque não sabem quais penitências devem ser feitas para seus pecados e esperam que os padres as ensinem...  se eles soubessem, não teriam necessidade de procurar padre nenhum... eles iriam se confessar à majestade de Deus em seus corações e pedir ao próprio Deus perdão por seus pecados.

 

INQUISIDOR:- Consta dos autos que o senhor disse ao padre que a hóstia é apenas massa...

 

MENOCCHIO:- Eu disse, sim, que aquela hóstia é somente um pedaço de massa, mas que o Espírito Santo vem do céu e está nela. E eu realmente acredito nisso.

 

INQUISIDOR:- E quem o senhor acha que seja o Espírito Santo?

 

MENOCCHIO:- Acho que é Deus.

 

INQUISIDOR:- O senhor sabe quantas são as pessoas da Santíssima Trindade?

 

MENOCCHIO:- Sim, senhor: Pai, Filho e Espírito Santo.

 

INQUISIDOR:- Em qual dessas três pessoas o senhor acha que a hóstia se converte?

 

MENOCCHIO:- Acho que no Espírito Santo.

 

INQUISIDOR:- Quando o pároco fez os sermões sobre o santíssimo sacramento, quem ele disse que estava naquela hóstia?

 

MENOCCHIO:- O padre disse que era o corpo de Cristo... Mas eu achava que era o Espírito Santo... Isso porque eu acho que o Espírito Santo é maior que Cristo. Cristo era só um homem, mas o Espírito Santo veio pelas mãos de Deus...

 

INQUISIDOR:- Senhor Domenico, o Santo Ofício deseja saber com quantas outras pessoas o senhor discutiu essas idéias, ou melhor, qual foi o herege que as colocou em sua cabeça...

 

MENOCCHIO:- Nunca em minha vida eu discuti com alguém que fosse herege, eminência... Eu acho que tenho cabeça sutil... Sempre quis procurar as coisas maiores, as coisas que não conhecia. Não sei se o que eu disse é a verdade, nem acredito muito nisso, mas quero ser obediente à Santa Igreja. Tive opiniões enganosas, mas o Espírito Santo me iluminou e peço a misericórdia do magno Deus, do Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo...  E que ele me faça morrer se não estou dizendo a verdade.

 

 

Entram o advogado e Zannuto. O advogado entrega a petição ao Inquisidor.

 

 

INQUISIDOR:- Temos aqui uma petição do senhor advogado em favor do réu... Para apreciá-la, suspendemos até amanhã a sessão. Que seja o prisioneiro conduzido de volta à cela.

 

MENOCCHIO:- Senhores, eu vos peço em nome da paixão do Senhor Jesus Cristo que resolvam sobre o meu caso... Se mereço a morte, que me seja dada, mas, se mereço misericórdia, que concedam, porque quero viver como bom cristão!

 

 

 

CENA 10

 

 

Na praça de Vila Real, o teatro mambembe apresenta-se ao público.

 

 

APRESENTADOR:- Ele quer viver como bom cristão! Bom cristão! Pois, sim. Um moleiro que pretendia dar lições da Bíblia aos padres! Um moleiro que lia um monte de livros que não entendia! Então, vamos assistir à história de um moleiro que enfrentou o Santo Ofício com um monte de idéias loucas, mas que quer viver como bom cristão...

 

 

Atores caracterizados como moleiros e diabos cantam e dançam.

 

 

ATORES:-  Lá vem o moleiro

Está tão bonito

Está tão faceiro

Em seu sanbenito!

 

Contou tanta lorota

No santo tribunal

Meteu a mão pela bota

Misturou bem e mal

Levou bordoada

Ficou bem quietinho

No santo tribunal

Pulou miudinho

Gemendo de dor

Chorou bem baixinho

Na mão do inquisidor

 

Lá vem o moleiro

Não está mais tão bravo

Vestiu um sanbenito

É mula do diabo

Lá vem o moleiro

Um tipo faceiro!

 

 

Entra ator vestido como moleiro e com um sanbenito*, caminhando de quatro e conduzindo em suas costas outro ator vestido de diabo, com chifre, rabo e tridente.

 

 

DIABO:- Vamos, bom cristão, vamos... Adoro cavalgar bons cristãos, mas esse aqui é teimoso e empacado como burro de moleiro!

 

MOLEIRO:- Piedade, senhor diabo! Piedade! Eu sou um bom cristão!

 

DIABO:- Se você é um bom cristão, porque está vestido com a roupa dos hereges, hem! hem! Me diga, seu burro de moleiro...

 

 

Diabo desmonta e fica cutucando o moleiro com o tridente, pulando e dançando a sua volta.

 

 

MOLEIRO:- Foi a Santa Inquisição que me mandou fazer umas penitências, para salvar a minha alma...

 

DIABO:- A sua alma é minha, seu burro...

 

MOLEIRO:- Mas eu fui perdoado, seu diabo, eu fui perdoado...

 

DIABO:- Eu fui perdoado, seu diabo, eu fui perdoado... mas ando escorraçado, vestido de herege, com meu sanbenito, com meu sanbenito... Não é bonito? Todo amarelinho: parece um pintinho na casca no ovo... Moleiro bobo de cabeça sutil! Moleiro bobo de cabeça sutil!

 

 

Entra o Padre, com um porrete na mão, dá na cabeça do Diabo, que cai, estrebuchando. Pega o moleiro e tenta sair correndo com ele. Mas o Diabo se recupera e puxa o Moleiro por um braço, enquanto o Padre puxa pelo outro. Ficam nessa turra por alguns segundos, até que o Moleiro dá uma rasteira no Diabo e outra no Padre e ambos caem abraçados. Pode-se ver um rabo em forma de forquilha sob a batina do Padre. O moleiro sai correndo. Mas os dois se ajudam a levantar, se abraçam e saem correndo atrás do moleiro, numa grande folia que transcorre muda, para que se ouça, enquanto isso, a intervenção de Menocchio, falando com seu amigo Fasseta.

 

 

MENOCCHIO:- Toda a cidade está rindo de mim, amigo Fasseta... Com essas vestes ridículas, sou o palhaço da vila... Ninguém mais me respeita... Ninguém compreende que eu só queria ajudar as pessoas, que elas não fossem enganadas pelas promessas desses padres... Passei dois anos na prisão, Fasseta, para nada... Eu sempre fui e ainda sou um bom cristão, não é mesmo, amigo Fasseta?... Eu sou um bom cristão!...

 

 

Enquanto Fasseta tenta consolar Menocchio, retirando-o de cena, a pantomima do teatro também se dissolve, sob aplausos, gritos e assobios do povo, com o moleiro correndo do diabo e do padre, gritando “eu sou um bom cristão!’

 

 

 

CENA 11:

 

 

 

Na igreja, uma pequena fila de homens e mulheres, para receber do padre Odorico a comunhão. Entre eles, Menocchio. Quando chega sua vez, o padre lhe nega a hóstia e coloca-o à parte, pedindo-lhe que espere. Termina o ofício, todos se retiram.

 

 

MENOCCHIO:- Por quê, padre Odorico? Por quê?

 

ODORICO:- Você negou os sacramentos da Santa Madre Igreja, Menocchio...

 

MENOCCHIO:- Mas o Santo Ofício já me perdoou... Eu abjurei... Eu pedi perdão a Deus!

 

ODORICO:- Enquanto estiver usando esse... esse... essa vestimenta de herege, não pode receber o corpo de Cristo...

 

MENOCCHIO:- Nunca mais poderei comungar, Padre Odorico? Nunca mais?

 

ODORICO:- Paciência, Menocchio, paciência! Espere baixar a poeira de seu julgamento... Então, quem sabe? Uma petição... um novo pedido de perdão...

 

 

Menocchio sai, cabisbaixo, depois de fazer o sinal da cruz e rezar por alguns segundos.

 

 

CENA 12:

 

 

 

Na taverna, vários homens e mulheres se divertem: cantam, dançam, tomam vinho, jogam punho de ferro.

 

 

HOMEM:- Aqui, somos todos irmãos...

 

MULHER:- Apesar de quase bêbado, você disse uma verdade: na taverna, o espírito prevalece... o espírito do vinho... Bebamos, dancemos... A vida é curta...

 

OUTRO HOMEM:- Mais curta é a solidariedade do homem...

 

MULHER:- O que você está querendo dizer? Já não basta sermos irmãos, pelo menos aqui?

 

HOMEM:- Vejam o caso do Menocchio...

 

MULHER:- O que tem o moleiro bundão com o fato de estarmos aqui a nos tratar de irmãos?

 

OUTRO HOMEM:- Menocchio é um espírito livre... fala o que quer...

 

MULHER:- Menocchio é um lambe-botas dos padres... Na hora h, fez foi muita merda nas calças...

 

HOMEM:- Sh.... quietos, ali está o filho dele... com o violão...

 

MULHER:- Vamos pedir que ele cante para nós... e não se fala mais nisso...

 

 

Vão até Zannuto e lhe pedem que cante.

 

 

ZANNUTO:- Vocês querem uma canção alegre, para dançar... mas eu só sei cantar coisas tristes...

 

HOMEM-: Não faz mal... canta assim mesmo... nós queremos música...

 

MULHER:- E depois, se for triste a sua música, a gente fica alegre assim mesmo...

 

ZANNUTO:- Está bem. Essa canção, eu fiz para o meu pai... Um espírito livre, como alguém disse...

 

 

Zannuto afina o violão e canta.

 

 

ZANNUTO-: Ouvi no campo um passarim

Ouvi seu canto em meu ouvido

E com ele eu canto sempre assim

 

Sou feliz e tenho vivido

Com a minha alma em paz

Porque meu canto é belo

Não sou escravo nem capataz

Respiro brisa e como farelo

Nos campos sou um passarim

Vivo livre e sou feliz assim...

Vivo livre e sou feliz assim...

 

 

Todos aplaudem muito, cantando o refrão com o Zannuto. Chega Menocchio. Faz-se um silêncio constrangedor. O moleiro fica sem graça e começa a retirar-se.

 

 

FASSETA:- Que é isso, meus amigos? Só porque está com esse avental amarelo, vocês não reconhecem mais o velho Menocchio? Venha, sente-se conosco, beba um vinho, venha...

 

 

Fasseta toma Menocchio pelo braço e o conduz até o grupo que, aos poucos, retoma suas atividades. Logo estão de novo dançando, jogando punho de ferro e bebendo.

 

 

MULHER:- Ei, taverneiro, traga um pedaço de queijo aqui para nós...

 

HOMEM:- Não, queijo, não! Só mais vinho!

 

MULHER:- Como, não?! Quero mais queijo, sim... Pode trazer!

 

HOMEM:- Não podemos comer queijo na frente do Menocchio!

 

MULHER:- Que negócio é esse?...

 

HOMEM:- Menocchio acha que o queijo é Deus, então estaremos comungando sem ter confessado!

 

OUTRO HOMEM:- E, nesse caso, estaremos em pecado...

 

MULHER:- Ainda mais dentro de uma taverna!

 

 

Todos riem muito. Só Menocchio fica sério.

 

 

MENOCCHIO:- Eu perdôo a todos vocês... Estão já meio passados... Não vão nunca compreender...

 

HOMEM:- Compreender o quê, Menocchio? Você fica lendo uma porção de livros e depois inventa umas coisas que as pessoas não entendem...

 

MULHER:- Isso, mesmo... Conta pra gente essa história de Deus ser um queijo... Nós queremos saber...

 

 

O taverneiro coloca sobre a mesa um queijo e algumas garrafas de vinho.

 

 

MENOCCHIO:- Está bem... eu explico a vocês o que eu penso... Vejam, aqui está o queijo... Como é se faz o queijo?

 

MULHER:- Ora, Menocchio, todos sabem que é de leite... leite azedo...

 

MENOCCHIO:- Isso, leite azedo. Mas o que azeda o leite?

 

HOMEM:- O coalho.

 

MULHER:- Que tem uma porção de bichinhos dentro...

 

MENOCCHIO:- Os vermes, uma porção de vermes, não é mesmo?

 

MULHER:- É, acho que é... Mas o que tem isso a ver com Deus?

 

 

Menocchio se inflama à medida que fala, circulando pelo grupo, dando a um ou a outro um pedaço de queijo, subindo numa cadeira e depois na mesa.

 

 

MENOCCHIO:- Pois então, senhores e senhoras... eu vou lhes contar como o mundo foi feito... a verdadeira história, não a que os padres usam para enganar a gente.. Segundo meu pensamento e crença, no começo dos tempos, tudo era um caos...  isto é, terra, ar, água e fogo... juntos, tudo junto...  E de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, assim, do mesmo modo como o queijo é feito do leite...  quando se coloca o coalho e então surgem os vermes... Esses vermes foram os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus... Deus também foi criado daquela massa, naquele mesmo momento! E Deus foi feito senhor e com ele quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. O tal Lúcifer quis se fazer de senhor, ficou se comparando ao rei, que era a majestade de Deus... Por causa dessa soberba, Deus ordenou que fosse mandado embora do céu com todos os seus seguidores e companhia. Esse Deus, esse mesmo Deus, depois, fez Adão e Eva e o povo...  o povo em enorme quantidade para encher os lugares dos anjos expulsos! Mas aí, o povo deixou de

cumprir os mandamentos de Deus... O que ele fez? Mandou seu filho, que foi preso e crucificado pelos judeus. Ele se deixou crucificar... e esse que foi crucificado era um dos filhos de Deus... porque todos somos filhos de Deus, da mesma natureza daquele que foi crucificado. Era homem como nós, mas com uma dignidade maior, como o papa hoje, que é homem como nós, mas com maior dignidade do que nós porque pode fazer... Aquele que foi crucificado nasceu de são José e da Virgem Maria...

 

 

Alguém joga um pedaço de queijo em Menocchio e todos o imitam, às gargalhadas.

 

 

HOMEM:- Toma lá um pedaço de Deus, Menocchio...

 

MULHER:- Com uma porção de gente... ou de vermes...

 

HOMEM:- Somos vermes ou somos deuses, Menocchio?

 

MULHER:- Cheira aqui o cheiro de Deus, Menocchio! (Levanta a saia) Vamos, cheira! Tem ou não tem o cheiro de Deus?

 

 

No meio das gargalhadas e da folia, Fasseta abana a cabeça, consternado, passa os braços sobre os ombros de Menocchio e retira-se com ele.

 

 

 

CENA 13:

 

 

 

Menocchio e Fasseta sentam-se na calçada. Menocchio tira uma garrafa de vinho e dois copos de dentro do sanbenito. Bebem.

 

 

FASSETA:- A vida é mais complicada do que ensinam os seus livros, Menocchio.

 

MENOCCHIO:- Eu sei, Fasseta, eu sei bem como é isso: todo mundo vê o quanto de vinho eu tomo, mas ninguém leva em conta os tombos que eu levo...

 

 

Menocchio tira um livro de dentro do sanbenito. Fasseta pega-o e fica curioso.

 

 

FASSETA:- Sou quase um analfabeto, Menocchio, mas isso está parecendo uma Bíblia...

 

MENOCCHIO:- Sou apenas um moleiro, meu amigo, não sei latim, como de resto todo o povo desse lugar... Você está certo: é uma Bíblia (**)...

 

FASSETA:- Se você não sabe latim, para que essa Bíblia?

 

MENOCCHIO:- Veja... Tente ler essa linha aqui... Deixe achegar a lanterna... Isso... Vê se é capaz de ler...

 

 

 

 

Fasseta tenta ler, devagar, gaguejando, o texto apontado por Menocchio.

 

 

 

FASSETA:- No... prin... prin... cí... pio... No princípio... e... era... o... o... V... é...r... ver... b... o... o Verbo... No princípio era o Verbo... Diacho, Menocchio... o que é o Verbo?

 

MENOCCHIO:- Era uma espécie de queijo...

 

FASSETA:- Queijo!?

 

MENOCCHIO:- É! Queijo: como a Lua lá em cima... Queijo...

 

FASSETA:- Sei... e é desse queijo que... Eu não quero mais ler isso... está muito estranho. Isso devia estar em latim e, no entanto, até eu consigo ler...

 

MENOCCHIO:- A Bíblia, Fasseta, já está em língua que todos entendem... Desde que um padre alemão, um tal de Lutero, fez uma tradução dela...

 

FASSETA:- Para o alemão! Se eu não consigo ler na nossa língua, você quer que eu leia em alemão...

 

MENOCCHIO:- Deixa pra lá... O importante é que os padres inventaram muita coisa que não está na Bíblia... e mesmo nesse livro há coisas que confundem a cabeça de um homem... principalmente uma cabeça sutil como a minha...

 

FASSETA:- Ei, Menocchio... você já não está falando coisa com coisa... Daqui a pouco, vai começar a falar dos germes e eu não estou a fim de misturar isso com o vinho... que, aliás, está muito bom... Bebamos!

 

MENOCCHIO:- Bebamos! Mas, veja aqui, por exemplo... Aqui diz que Deus descansou depois... no sétimo dia da criação...

 

 

Fasseta conta os dias nos dedos.

 

 

FASSETA:- Começa com o domingo... Domingo é domenico, não é?, Domenico é você...(Ri)... Então começa com você... que engraçado... é você o primeiro dia... Domingo... segunda... terça... quarta... quinta... sexta... sábado... Então, foi no sábado?

 

MENOCCHIO:- Mas os padres contam a partir da segunda... então, cai no domingo!

 

FASSETA:- É... pode ser, mas então Deus descansou dois dias: sábado e domingo!

 

MENOCCHIO:- Também isso não importa muito, porque eu não acho que Deus tenha descansado coisa nenhuma... Por isso, eu trabalho de segunda a segunda... Não tem dia de descanso, não... O trigo não deixa de crescer só porque é domingo... ou sábado... A natureza não descansa, Fasseta...

 

FASSETA:- Mas os padres... os padres dizem que trabalhar no domingo...

 

MENOCCHIO:- Esquece os padres... esquece a Bíblia, Fasseta... Tem muita coisa errada aí...

 

FASSETA:- Lá vem você de novo com suas arengas... Fala, fala e também não explica muita coisa... Por exemplo: como você explica Deus? Eu, por exemplo... mesmo depois desse vinho todo... nunca vi Deus... Você já viu Deus, Menocchio?

 

MENOCCHIO:- Olha... olha bem para mim... O que você vê?

 

FASSETA:- Que bobagem é essa agora, Menochio?... O que eu vejo? Ora, o que eu vejo é você... um moleiro já meio muxibento...  de olho caído... cara enrugada...

 

MENOCCHIO:- Estou falando sério... Olha bem nos meus olhos... o que você vê, Fasseta, o que você vê?

 

FASSETA:- Um olho... um olho torto... vermelho de tanto vinho...

 

MENOCCHIO:- Você está vendo Deus, Fasseta... Você está vendo Deus!

 

FASSETA:- Você está é besta, homem! Acho que prefiro o capeta...

 

MENOCCHIO:- É isso mesmo, meu amigo, eu sou Deus... você é Deus... está me entendendo?... Deus está em toda parte... em mim, em você... na terra... nesse vinho... no trigo que cresce... em toda parte... Tudo é Deus, Fasseta, tudo é Deus... por isso ele não podia descansar no sétimo dia... a natureza não descansa, Fasseta...

 

FASSETA:- Bebamos...

 

MENOCCHIO:- Bebamos...

 

FASSETA:- À Lua...

 

MENOCCHIO:- À Lua!...

 

 

Menocchio, já meio bêbado, puxa o balão-lua para si, abraça-o um pouco e começa a brincar com ele, jogando-o de um lado para o outro, como uma criança.

 

 

MENOCCHIO:- Aqui está a Lua, Fasseta... a Lua que ilumina os meus caminhos... Lua que eu persigo... Lua de meus sonhos, inconstante como a vida... Às vezes, bela e cheia; outras vezes, envergonhada e sumida no céu... Sempre procuro a Lua, Fasseta, na sua caminhada incerta pelo céu, a nascer ora muito tarde, ora muito cedo... Já vi a Lua, Fasseta, até mesmo durante o dia... Senhora da noite a desafiar o Sol, como a dizer ao Sol: veja, sou bela, sou livre, não preciso de ti... Essa a Lua que eu amo: a Lua livre, bela... um queijo... um queijo enorme... acho que até vejo os vermes... um queijo que pode fazer o que quer no céu... O sol é como um papa: grande, luminoso, poderoso... A Lua, não... a Lua ilumina com suavidade os caminhos... A Lua é toda doçura... é a verdade simples da sombra e da luz... traz somente paz, Fasseta... traz somente paz...

 

FASSETA:- A paz dos loucos e dos rebeldes, Menocchio... dos loucos e dos rebeldes!

 

 

Menocchio solta o balão-lua e senta-se ao lado de Fasseta. Parecem adormecer. O diabo/ator do teatro mambembe aparece na frente de Menocchio, que leva um susto e pula

 

 

MENOCCHIO:- Quem... quem... quem é você?!

 

DIABO:- Sou o seu inimigo... não me reconhece? Afinal, estávamos lá... no dia da criação... eu era um dos vermes... o mais belo...

 

MENOCCHIO:- Miguel? Miguel Arcanjo?

 

DIABO:- Em pessoa!

 

MENOCCHIO:- Não seja bobo: Miguel Arcanjo não era tão feio...

 

DIABO:- Não me provoque... Cada um me vê como quer...

 

MENOCCHIO:- Que besta eu sou...

 

DIABO:- Besta você vai virar daqui a pouco...

 

MENOCCHIO:- Já sei quem você é... Você é Lúcifer!

 

DIABO:- Eta moleiro burro! Demorou a desconfiar!...

 

MENOCCHO:- O que está fazendo aqui? Seu lugar é no inferno...

 

DIABO:- Vim me bater com você... Em guarda!

 

MENOCCHIO:- Ai! Afasta esse tridente da minha bunda... Por que você quer lutar comigo, seu diabo feio?

 

DIABO:- Ora, você não é Deus? Então: vim lutar com Deus... e estou pronto a vencê-lo, numa luta leal, como dois grandes competidores que somos...

 

 

O diabo espeta mais uma vez o traseiro de Menocchio e, enquanto este se contorce de dor, passa-lhe uma corda no pescoço, dá-lhe uma rasteira e monta-o como um burro.

 

 

DIABO:- Eia, Deus... Eia... que burro mais sem jeito esse... Vamos... cavalga direito... Sem relinchar... sem relinchar... Burro bom não relincha!...

 

 

Dá várias voltas cavalgando Menocchio. Ouvem-se vozes cantando e o Diabo sai correndo. Passam os benandanti, em sua coreografia de guerra, cantando uma canção. Menocchio se livra dos arreios e junta-se a eles, mas volta, em seguida, a sentar-se ao lado de Fasseta.

 

 

BENANDANTI:- Proteger a terra,

Proteger o vinho,

Combater quem erra

Não estou sozinho!

 

 

Chega Zannuto, com o violão às costas, dá com os dois ali, dormindo de roncar, sacode-os e faz que eles o acompanhem para casa. Menocchio abraça o filho e beija-o.

 

 

MENOCCHIO:- Zannuto... meu filho... o único filho que me entende... o único! Dos sete que eu tenho... esse é o Zannuto... o que me apoiou quando... quando fui preso... o único que cata os meus restos... os restos desse moleiro... de quase sessenta anos... nas carraspanas de um fim de semana... Meu filho! Que gosta de serenatas... de vinho... e da Lua... Meu único filho...

 

 

CENA 14:

 

 

Na porta do moinho, Menocchio organiza a fila dos camponeses, com seus sacos de grãos. Um camponês, de nome Giovanni, sai de dentro do moinho com meio saco de farelo.

 

 

GIOVANNI:- Ei, Menocchio, olha só isto: entreguei ao seu filho um saco bem cheio de grãos e olha o que recebi de volta... Isto não está certo...

 

MENOCCHIO:- Qual é o problema? Você acha o quê?

 

GIOVANNI:- Não acho nada... Mas é muito pouco farelo para o tanto de grão...

 

MENOCCHIO:- Você e todos os demais já estão cansados de saber que há uma diferença de peso entre o grão que entra com casca e o que sai já limpo e em forma de farelo...

 

GIOVANNI:- Mas essa diferença está muito grande, Menocchio...

 

MENOCCHIO:- Você acha que o moinho está te roubando, Giovanni, você acha? Não seja estúpido, homem... A roda do moinho não conhece fulano ou beltrano: ela gira igual para todos...

 

GIOVANNI:- Não é o que parece...

 

MENOCCHIO:- Olha aqui, Giovanni... Se você está duvidando de minha honestidade...

 

GIOVANNI:- Eu sei que você é homem honesto, Giovanni... Mas quem está operando o moinho não é você... é seu filho Zannuto...

 

MENOCCHIO:- Olha aqui, Giovanni: quem sai aos seus não degenera, ouviu? Deus me fez um homem bom, que não gosta de fazer mal aos outros... Mas se você continua com essa arenga, eu juro por Deus que arrebento a sua cara... Em nome de Deus e de todos os santos...

 

 

Os camponeses fazem o sinal da cruz.

 

 

UM CAMPONÊS:- Você está blasfemando, Menocchio!...

 

MENOCCHIO:- Zannuto! Zannuto! Traga aqui os restos dos grãos do Giovanni, antes que eu perca a cabeça...

 

 

Zannuto sai do moinho com um saco nas mãos.

 

 

ZANNUTO:- Aqui está, meu pai. Tinha muita sujeira nos grãos que o Giovanni trouxe... Não pude aproveitar muita coisa... Até acrescentei um pouco das sobras de outros, que estavam sem nenhum proveito...

 

 

Zannuto abre a boca do saco e mostra a todos.

 

 

MENOCCHIO:- Vocês estão vendo... pelas barbas de Cristo... vocês estão vendo.

 

 

Os camponeses se persignam de novo.

 

 

UM CAMPONÊS:- Cuidado com as blasfêmias, Menocchio...

 

GIOVANNI:- Está certo... eu exagerei... peço desculpas. Mas é que eu acho... e todos também... que você está cobrando muito caro, Menocchio! Nós... nós, os camponeses... temos passado por dificuldade...

 

MENOCCHIO:- Estão é reclamando de barriga cheia: as batalhas contra as bruxas do mal tiveram sucesso esse ano, eu sei muito bem disso, e vocês sabem também... Colheita farta, muitos casamentos e muitos batizados para engordar a conta do senhor vigário... Eu sei o que vocês estão tramando, seus folgados! Aqui, ó... vocês só querem saber é disso...(faz um gesto de conotação sexual, o que provoca risadas nos camponeses). Agora vêm reclamar de meus preços!... Quem explora vocês sãos os padres... cobrando caro o arrendamento das terras... E mais: vocês deviam reclamar é dos preços das mercadorias que os padres vendem pra vocês como se fossem sacramentos! Aquilo, sim, é que é caro além de inútil... tudo mercadoria...

 

OUTRO CAMPONÊS:- Você está blasfemando de novo, Menocchio...

 

MENOCCHIO:- Você não sabe de nada, meu amigo... Blasfemar não é pecado, porque só faz mal a si próprio e não ao próximo... Vou mostrar para vocês... Vejam aqui... estão vendo este saco de farinha?

 

 

Pega um saco vazio.

 

 

CAMPONÊS:- De quem é este saco? É seu?

 

MENOCCHIO:- É, sim, é meu: então, se eu resolvo rasgá-lo assim... picá-lo em pedaços... a quem eu prejudico?

 

OUTRO CAMPONÊS:- A mim pouco me importa se você destrói o que é seu...

 

MENOCCHIO:- Então... entenderam aonde eu quero chegar, entenderam?...

 

CAMPONÊS:- Mais ou menos... isto é... o que tem a ver esse saco rasgado com as blasfêmias que você proferiu há pouco?

 

MENOCCHIO:- Preste atenção: eu acredito que quem não faz mal ao próximo não comete pecado... Somos todos filhos de Deus... Se um não fizer mal ao outro... Por exemplo: eu tenho sete filhos... Vocês também têm filhos, não é? Pois então: se um dos filhos, o Zannuto, que está aqui... (Pega o braço de Zannuto) Se ele diz para mim, aqui na minha cara:  “maldito seja,  meu pai”, o que vocês acham que eu vou fazer? O quê? Vou perdoar... ele é meu filho... eu tenho que perdoar... (Pega uma pedra no chão e se aproxima de Giovanni). Está vendo essa pedra, não está?  (Põe a pedra na mão de Zannuto). Se esse meu filho resolve abrir a cabeça de outro irmão... aqui, o Giovanni, por exemplo...  que acusou o meu filho de ladrão... mas eu não sei se ele  fez isto... eu não sei... são irmãos... (faz um sinal a Zannuto que ameaça bater em Giovanni, que sai correndo, com seu saco de farinha, provocando riso em todos)... O que vocês acham que eu devo fazer com esse filho, me digam, o que eu devo fazer?

 

CAMPONÊS:- Bem... eu... eu acho que você deve castigá-lo... não é?

 

MENOCCHIO:- Isso mesmo, ele tem que pagar por esse crime, não é?... É por isso que eu disse que blasfemar não é pecado... Afinal, blasfemar não faz mal a ninguém...

 

 

Chega correndo o Fasseta.

 

 

FASSETA:- Menocchio, Menocchio... vim... correndo... puxa vida! Deixa eu respirar um pouco...

 

MENOCCHIO:- Deve trazer notícias o meu amigo Fasseta... Espero que sejam boas!

 

FASSETA:- Uma boa e outra ruim... O que você quer ouvir primeiro?

 

MENOCCHIO:- Conta lá a boa primeiro... Boas notícias preparam melhor o coração para o que de pior vier depois... Vamos, diga logo a boa nova, assim comemoramos e nos alegramos...

 

FASSETA:- Seu cargo... o cargo de administrador da igreja... Você foi o escolhido, Menocchio... Você foi o escolhido! Você é o novo administrador da igreja de Santa Maria!

 

 

Todos festejam e cumprimentam Menocchio, que grita para o interior do moinho para seu filho Zannuto lhe trazer vinho. Ele traz algumas garrafas e distribui entre os camponeses, que bebem e circulam as garrafas entre si.

 

 

MENOCCHIO:- Muito bem, meus amigos... é o que eu sempre digo: Deus é pai... Deus é pai... e perdoa todos os pecados de seus filhos... quando os filhos não fazem mal uns aos outros... Agora, a má notícia, Fasseta... Vamos lá... Acho que nada perturbará a nossa alegria...

 

FASSETA:- Vendo assim, até que a má notícia não é assim tão desgraçada...

 

MONOCCHIO:- Fale, homem, não nos deixe esperando o dia todo...

 

FASSETA:- O sanbenito, Menocchio...

 

MENOCCHIO:- Esta porcaria aqui? O que tem esta merda de sanbenito, Fasseta?

 

FASSETA:- Seu pedido... seu pedido de dispensa do sanbenito... Eles negaram, Menocchio...

 

MENOCCHIO:- Paciência. Se querem que eu use isso, eu uso... Afinal, é só uma mercadoria como qualquer outra bobagem inventada pelos padres... só mais uma mercadoria... Não serei melhor nem pior com ele ou sem ele...

 

UM CAMPONÊS:- E vai continuar com a língua solta, não é, Menocchio?

 

 

Todos riem e bebem e abraçam Menocchio.

 

 

MENOCCHIO:- Vamos comemorar, minha gente... E que Deus nos ajude a ser bons uns com os outros... Mesmo com aqueles que nos acusam... E depois da festa, o trabalho! Não podemos deixar a roda do moinho parar!

 

 

CENA 15:

 

 

O povo aplaude o cortejo da rainha, que passa por Monte Real.

 

 

MENOCCHIO:- Bela, muito bela a imperatriz... e importante, também... muito importante...

 

FASSETA:- Viva a imperatriz!

 

POVO:- Viva!

 

MENOCCHIO:- Sabe o que eu penso, quando vejo a imperatriz assim... nesse cortejo?

 

FASSETA:- Cuidado com as palavras, Menocchio... Quando você começa a pensar, com esse olho perdido no espaço, porca miséria! eu até fico arrepiado...

 

MENOCCHIO:- Penso na Virgem...

 

FASSETA:- Virgem?! Que virgem? Não me diga que você...

 

MENOCCHIO:- Me respeite, Fasseta, me respeite... Estou falando da mãe de Jesus, a Virgem Maria...

 

FASSETA:- Ah! Bom... Bom que nada: você já vai começar a falar bobagens... Olha o povo ao redor... Toma tento com as palavras, Menocchio...

 

MENOCCHIO:- Eu só estava pensando aqui comigo que a imperatriz é muito mais importante para o povo do que a Virgem...

 

FASSETA:- Você está negando a importância de Nossa Senhora, Menocchio?

 

 

As pessoas ao redor começam a prestar atenção em Menocchio.

 

 

MENOCCHIO:- O povo acabou de ver a imperatriz... Sabe que ela está ali, naquele coche dourado... acenou para todos... Mas, e a Virgem Nossa Senhora? Alguém aqui já viu a Virgem, a mãe de Jesus? Já acenou para ela?

 

UM POPULAR:- Vejo todo dia, Menocchio... lá na igreja...

 

MENOCCHIO:- O que você vê, meu amigo, é apenas uma imagem da Virgem... feita, com certeza, por alguém como o Nicola, que vive de pintar imagens de santos nas igrejas... Esse mesmo Nicola me contou que andou quebrando umas imagens por aí... que eram tudo mercadoria... que não é preciso colocar imagens nas igrejas... que tudo isso é mentira... tudo mentira...  invenção dos padres...

 

OUTRO POPULAR:- Mas você estava dizendo que a imperatriz é mais importante que a Virgem...

 

MENOCCHIO:- Aqui... aqui, neste mundo... a imperatriz é mais importante! No mundo de lá, invisível, sim, Nossa Senhora é que é mais importante...

 

POPULAR:- Rezo todo dia para Nossa Senhora... Sou devoto da Virgem, Menocchio... e ela sempre atende os meus pedidos... me abençoa... e abençoa minha plantação, meu gado... Dou muita importância, sim, a Nossa Senhora, mãe de Deus...

 

MENOCCHIO:- Meus amigos, meus amigos... Nossa Senhora é importante, sim, eu torno a dizer... lá no mundo onde todos somos invisíveis... Eu estava me referindo a este mundo... Sabem, vou lhes contar uma historinha que li no livro de Nossa Senhora... Quando Nossa Senhora morreu, foram prestadas muitas honras a ela... e os apóstolos, o povo, todo mundo estava levando o seu corpo para sepultar... Alguém... alguém quis desonrá-la... tentou tirá-la dos ombros dos apóstolos... Sabem o que aconteceu? Essa pessoa ficou com as mãos grudadas nela... Tudo isso está lá, nesse livro...

 

UM POPULAR:- Você lê as coisas nos livros, Menocchio... Mas nós temos a nossa fé...

 

OUTRO POPULAR:- É verdade... nós só acreditamos naquilo que o padre fala, na missa... Ele é que sabe dizer o certo que está escrito nesses livros... Não você...

 

MENOCCHIO:- Eu sei mais de Deus do que esses padres aí, que você está falando... A Sagrada Escritura foi dada por Deus, mas os homens adaptaram tudo... modificaram a palavra de Deus... Sabem, é como essas histórias de batalhas... Vem um, conta de um jeito... vem outro, conta de outro... e aquele outro inventa mais uma outra coisa... no fim, já ninguém sabe o que é verdade e o que é invenção...

 

 

Enquanto Menocchio falava, o povo foi-se afastando, deixando-o sozinho com Fasseta, que bate em seu ombro, balança a cabeça e também se vai.

 

 

MENOCCHIO:- Eu falo, falo... e esse povo não me escuta... eu só digo o que sei, o que li, o que aprendi... Ai, meu Deus, essa minha boca... Eu preciso falar...   abrir a cabeça dessa gente que só ouve os padres e é explorada por eles... Não sei se é o Espírito Santo... não sei se é o demônio... mas eu tenho que falar... Deus meu, me tira essa bendita sina, meu Deus... me tira maldita sina!

 

 

Zannuto se aproxima do pai, abraça-o e retira-se com ele. No céu, uma Lua em quarto minguante.

 

 

ZANNUTO:- Vamos, meu pai, vamos... a rainha já passou... o povo foi embora... há muito trabalho a ser feito no moinho... E o padre parece que quer falar com o senhor...

 

 

CENA 16:

 

 

 

Igreja de Monte Real. Padre Odorico mostra a Menocchio o livro de contabilidade da igreja.

 

 

MENOCCHIO:- Sim, padre, tenho feito as contas da paróquia, para isso fui escolhido... com muita honra...

 

ODORICO:- Essas contas, Menocchio... essas contas...

 

MENOCCHIO:- O que há com elas, padre? Até ao Espírito Santo eu presto contas...

 

ODORICO:- Ao Espírito Santo! Sim, ao Espírito Santo... Mas aqui há um espírito de porco me dizendo que essas contas não batem, Menocchio!

 

MENOCCHIO:- Sempre fiz e refiz todas as contas, padre Odorico... O senhor mesmo tem acompanhado que os fiéis não têm mais contribuído tanto... Talvez uma campanha para arrecadar donativos... uma festa... uma procissão... ou até mesmo vender umas indulgências...

 

ODORICO:- Não se trata disso, Menocchio... a arrecadação vai bem, com a graça de Deus... O que eu não entendo são as suas contas, Menocchio... as suas contas... Deus me livre e guarde de fazer acusações, mas eu não as entendo... Eu não as entendo!

 

 

Menocchio pega o livro, fecha-o e prepara-se para sair.

 

 

MENOCCHIO:- Padre Odorico, as contas aqui da terra, posso corrigir perfeitamente... o que não dá para mudar são as contas que a gente tem de prestar a Deus... Pode deixar, que vou trabalhar de novo nesses números... Pode deixar...

 

 

Persigna-se e sai.

 

 

CENA 17:

 

Noite. No céu, a Lua cheia. Porta do moinho de Menocchio, que está sentado ao lado de uma pequena fogueira, tendo ao lado um livro enorme. Tem os braços cruzados sobre o corpo e geme alto.

 

MENOCCHIO:- Ai... ai... ai... Não consigo dormir... dói... dói muito... Porca miséria... Deus, seu verme imundo, porque me reservou tanta dor?... Sai do seu queijo e me dá uma graça! Pelo rabo de satanás! Ai... ai... Pelas penas do Espírito Santo!...

 

Chega Fasseta.

 

FASSETA:- Blasfemando de novo, Menocchio?

MENOCCHIO:- Amigo Fasseta, que susto! O faz aqui a essa hora?

FASSETA:- Não conseguia dormir... Vi o lume da fogueira... e cá estou. Por que toda essa agonia, meu amigo?

MENOCCHIO:- Ah! Fasseta, meu amigo, a roda do moinho do tempo tem moído meus ossos... Tudo me dói, neste corpo já maltratado pelo tempo... Mas o que dói mais, Fasseta, o que dói muito é o que está aqui dentro de meu peito... Tenho passado por dores muito fortes, no corpo e na alma, desde que meu filho e minha mulher morreram... Sinto mais falta de Zannuto do que até mesmo de minha mulher, que já estava velha, como eu... Era meu braço direito, meu faz tudo... Os outros filhos estão por aí, no mundo, cuidando de suas vidas... Zannuto era o único que se importava comigo... Ai, ai...

FASSETA:- Paga-se o preço, meu amigo, paga-se o preço... Somos velhos, já caminhamos para o fim da vida... Você tem lá seus sessenta e cinco e eu, eu estou quase lá, também... Logo, logo, nós estaremos matando a saudade dos entes queridos que se foram... Eles, com certeza, estão esperando por nós... Deus sabe o que faz, Menocchio, Deus sabe o que faz...

MENOCCHIO:- Ouça! Você está ouvindo?...

FASSETA-: Espere... o quê... ouvindo o quê...

MENOCCHIO:- Quieto... ouça...

FASSETA:- Sim, sim, estou ouvindo... são vozes... cantos...

MENOCCHIO:- São os benandanti, com certeza... estamos na virada do tempo... lua negra... logo vem o tempo de semear e, então, é preciso combater o bom combate... Combater as bruxas do mal, para que a colheita seja boa...

 

O canto dos benandanti faz-se ouvir ao longe e aumenta em progressão. Passa diante dos dois amigos a procissão coreografada, como um combate, cantando.

 

BENANDANTI:- Proteger a terra,

Proteger o vinho,

Combater quem erra

Não estou sozinho!

 

Deus de todos nós,

Dono desse mundo,

Dá a tua graça

Expulsa o imundo!

Dá a tua graça

Expulsa o imundo!

Dono desse mundo

Expulsa, expulsa sim

Sem dó nem piedade,

Expulsa o imundo!

 

Silêncio. Os dois amigos estão como que petrificados sob seus capuzes.

 

FASSETA:- Você... você foi um deles, não é, Menocchio?... Por que não vai agora atrás deles? O que te impede de segui-los, Menocchio?

MENOCCHIO:- Isso é coisa para os jovens, que dormem muito e profundamente... Eu acordo a cada instante, com dor aqui, dor ali... não posso mais deixar meu corpo e cavalgar um galo, por exemplo, para combater as bruxas do mal... Se deixar meu corpo, posso acordar... Se acordar, pode não achar o caminho de volta a minha alma... que ficará vagando por aí... nas trevas... São os males da idade, Fasseta...

FASSETA:- Todo mundo que não morre antes fica velho, Menocchio... Mas, veja: trouxe aqui um vinho para aquecer a noite... e esquentar a alma...

 

Fasseta abre o vinho, serve-se e serve a Menocchio.

 

FASSETA:- Bebamos àqueles que esperam por nós...

MENOCCHIO:- Bebamos aos que nos deixaram...

 

Bebem.

 

MENOCCHIO:- Obrigado, velho amigo... Já me sinto melhor... Queria um abraço, um abraço seu...

FASSETA:- Ficamos sentimentais com o tempo... com o vinho... Um abraço? Claro, um abraço... Pode não diminuir a dor um abraço... mas melhora nosso ânimo...

MENOCCHIO:- Sim, mas espera... Antes preciso fazer uma coisa...

 

Tira o sanbenito e joga-o na fogueira.

 

MENOCCHIO:- Não me vale mais para nada esta porcaria... Usei isso por muitos anos... Um bom amigo não merece abraçar um renegado da fé que use tal pano sujo... e vergonhoso... Vai servir, agora, para alguma coisa: aquecer a nossa noite...

 

Os dois amigos se abraçam. Menocchio limpa as lágrimas. Pega o livro.

 

MENOCCHIO:- Obrigado, velho amigo, muito obrigado... Sabe, estava lendo aqui este livro... Vou ler um trecho para você entender o que eu quero dizer...

 

Abre o livro e lê um pequeno trecho para Fasseta, com alguma dificuldade, por causa da pouca iluminação.

 

MENOCHIO:- Aqui, ouça: “Este Imperador, Padre João, é cristão, e grande parte do seu reino também é cristã. No entanto, eles não têm toda nossa fé conforme nós temos. Eles acreditam bastante no Pai, no Filho, e no Espírito Santo. E eles são inteiramente devotados e corretos uns com o outros....” (***)  Chega... já me falta a vista... O que eu quero dizer é que este livro conta muitas aventuras do oriente... de cavaleiros que conquistaram terras distantes... que viajaram muito por esse mundão de Deus... De gente que tem uma fé cristã, uma fé cristão, Fasseta, mas diferente... diferente de nós... E são gente boa, Fasseta, gente que respeita o próximo... gente correta... E eu fiquei pensando em mim... no que eu tenho falado a vida inteira... E então veio a saudade do meu filho e da minha velha... Vieram as dores... Vivi a vida inteira aqui, em Monte Real, Fasseta, nessa vila perdida... A minha alma está presa nesse corpo já corroído e fraco... e este corpo está preso nessa vila... Queria ser livre, Fasseta! Viajar, conhecer pessoas importantes que se importassem comigo... que pudessem me ouvir e discutir comigo... Você sabe... minha cabeça... minha cabeça é sutil e pensa coisas que não sei de são de Deus ou do demônio... mas ela pensa...

FASSETA:- E sua língua fala... fala...

MENOCCHIO:- Bebamos... bebamos à minha língua... e à Lua lá em cima, tão bela e tão livre...

FASSETA:- Bebamos...

MENOCCHIO:- Mas ninguém me escuta, Fasseta... devem debochar de mim pelos becos... nem o padre Odorico me leva muito a sério...

FASSETA:- Você confia muito nesse padre, Menocchio... sei não se não foi ele que te encrencou daquela vez...

MENOCCHIO:- Se foi, já perdoei... Até foi bom ter ido lá... Os padres me ouviram, até anotaram o que eu falei...

FASSETA:- Anotaram e te prenderam... e quase te queimaram...

MENOCCHIO:- Ia de novo, Fasseta... ia de novo... Só para que me ouvissem... Embora o que eu queria mesmo era poder falar para o Papa... discutir com ele... mostrar que a Igreja devia seguir outro caminho, mais pelos pobres... sem tanta riqueza... sem tanta pompa... E falar com príncipes... e doutores... e discutir com eles...

FASSETA:- E o que te prende aqui, Menocchio?...

MENOCCHIO:- Você tem razão... acho que nada...

 

Começa a rasgar algumas páginas do livro. É impedido por Fasseta.

 

FASSETA:- O que você está fazendo, homem?...

MENOCCHIO:- Jogando no fogo os meus últimos sonhos... Podem nos aquecer tanto quanto o sanbenito... Agora, vamos...

FASSETA:- Vamos?! Para onde?

MENOCCHIO:- Para Pordenone, Fasseta... Lá me espera o meu destino...

FASSETA:- Enlouqueceu? O que vamos fazer em Pordenone... aquela terra de inquisidores?

MENOCCHIO:- Então... inquisidores... Veja: aqui está a convocação...

 

Estende-lhe um papel. Fasseta vira-o e revira-o.

 

FASSETA:- Que merda é essa, Menocchio... com o timbre do Santo Ofício?...

MENOCCHIO:- Estão me chamando, Fasseta... Estão me chamando de novo: quem não pode conquistar mundos no Oriente, pode, pelo menos, ir a Pordenone para falar, e falar muito, com os inquisidores... Vamos!

 

CENA 18:

 

Menocchio apresenta-se ao Tribunal do Santo Ofício.

 

INQUISIDOR 1:- Aqui vieste de livre e espontânea vontade?

MENOCCHIO:- Sim, eminência. Padre Odorico aconselhou-me a vir, de livre e espontânea vontade, ante a convocação que suas eminências...

INQUISIDOR 1:- Nome e profissão.

MENOCCHIO:- Domenico Scandella, moleiro e...

INQUISIDOR 1:- Não temos registro de convocação a este egrégio tribunal de nenhum Domenico Scandella. (Para o outro inquisidor). Já ouviu falar de Domenico Scandella?

INQUISIDOR 2:- Há uma denúncia de heresia contra um tal Menocchio... da vila de Monte Real, no Friul... mas nada consta neste momento contra Domenico Scandella...

MENOCCHIO:- Perdão, eminências...

INQUISIDOR 1:- Cala-te. Aqui o réu só fala quando interrogado.

MENOCCHIO:- Mas, eminência...

INQUISIDOR 2:- É mister que dispensemos algumas diligências sobre este caso. Se não há nenhum Menocchio, pode não haver nenhum processo.

INQUISIDOR 1:- Então, precisamos responder com urgência: quem é Menocchio?

MENOCCHIO:- Sou eu, eminência...

INQUISIDOR 1:- Então, deste declaração falsa a esta corte?! Isto pode ser um crime inominável!

MENOCCHIO:- Sou Domenico Scandella...

INQUISIDOR 2:- Insistes nesta tolice? Afinal, quem és tu, homem? Domenico Scandella ou Menocchio, o moleiro...

MENOCCHIO:- De fato, sou Domenico Scandella, já que assim me batizaram, com a graça de Deus, os meus pais... Mas todos me conhecem por Menocchio, e alguns até mesmo me chamam Domenego...

 

Inquisidor 1 vai até uma estante e retira um enorme dossiê.

 

INQUISIDOR 1:- Domenico Scandella! Ei-lo, então, de volta ao seio do Santo Ofício... Uma vez herege, sempre herege, não é Domenico? Ou devo chamar-te Menocchio?

MENOCCHIO:- Como vossa eminência desejar, que atenderei com prazer o vosso chamado...

INQUISIDOR 2:- Lembro-me dele, agora... Há quinze anos... nariz empinado, como sempre... Palrador... tem a língua nos cotovelos... Não terás, agora, nenhum prazer, senhor Scandella, não terás, com certeza, nenhum prazer... Tuas heresias chegaram ao príncipe do condado, e de lá até nós...

MENOCCHIO:- Ao príncipe?! Afinal, o príncipe se preocupa com tão humilde servo... quanta honra, eminência, quanta honra!

INQUISIDOR 1:- Iniciemos os procedimentos.

 

Organiza-se o tribunal: bancada para os inquisidores, tribuna, cadeiras para testemunhas e público, livros, uma máquina de tortura etc.

 

CENA 19:

 

Os atores do teatro se apresentam, não mais como atores, mas cantores.

 

APRESENTADOR:- Senhores e senhoras dessa inesquecível Vila de Monte Real! Os Irreverentes, companhia de trovadores...

HOMEM:- Ei! Mas não eram atores? Nós viemos ver uma peça de teatro!

APRESENTADOR:- O teatro está em crise... não há mais público... Viramos cantores...

POVO:- Queremos teatro! Queremos teatro!

APRESENTADOR:- Está certo: não é teatro, mas é quase. Vamos apresentar a luta entre o diabo e o padre pela alma do moleiro em forma de desafio cantado... Vejam!

Apresentam-se as figuras do diabo, do padre e do moleiro, com seus instrumentos.

 

HOMEM:- De música estamos por aqui... Todos aqui na vila sabem cantar, tocar uma corda, soltar um grasnido qualquer...

POVO:- Queremos teatro!

APRESENTADOR:- Para quê? Não lhes basta o teatro da vida? Por que vocês não vão ver o teatro que os padres armam para julgar os hereges? Esse o teatro que todos gostam de ver!

HOMEM:- Isso fica lá em Pordenone... muito longe... Somos pessoas de bem, não queremos ver bruxas arder no fogo!

APRESENTADOR:- Nem um herege? Que tal um herege como Menocchio...

HOMEM:- Menocchio é só um tolo que fala demais...

MULHER:- Nós nem mesmo conhecemos o Menocchio...

OUTRA MULHER:- Não queremos saber de hereges... Nem de Menocchio... que fala de um deus que nasceu do queijo, como vermes...

 

Risos, vaias e aplausos.

 

HOMEM:- E Menocchio nem era um bom moleiro... o pobre homem!

MULHER:- Era só mais um desgraçado, como todos que nascem nessa vila miserável... Desgraçado e boquirroto!

POVO:- Fora Menocchio! Fora Menocchio! Queremos teatro! Queremos teatro!

APRESENTADOR:- Se não querem música, não terão música... Mas também não terão teatro! Vamos embora, pessoal, que esse povo é sovina e ignorante! Se desprezam quem aqui nasceu, imaginem o que farão com pobres cantores como nós...

 

Os artistas se retiram, com suas tralhas e instrumentos, sob protestos, vaias e pedradas do povo.

 

CENA 20:

 

No tribunal do Santo Ofício.

 

INQUISIDOR 1:- Olha bem para isto, senhor Domenico Scandella: sabes o que é?

MENOCCHIO:- Claro que sei: é um livro... o meu livro...

INQUISIDOR 1:- Como sabes que é teu?

MENOCCHIO:- Eminência, posso ser tolo, ter a cabeça sutil, falar coisas que nem sempre eu mesmo concordo, mas sei que o que está diante de mim é o livro que tenho lido por essa minha vida desgraçada...

INQUISIDOR 1:- Senhoras e senhores, este livro... este livro ímpio, em linguagem vulgar, foi encontrado na casa de Domenico Scandella e devidamente apreendido e agora reconhecido por seu dono. Tu sabes com certeza o seu nome, não é senhor Scandella?

MENOCCHIO:- Se o tenho lido e quase sei de cor o seu conteúdo, é evidente que sei o seu nome. Trata-se de Il fioretto della bibbia... um livro santo, que traz os evangelhos e outras histórias de fé e santidade...

INQUISIDOR 1:-  Um moleiro que sabe ler... um moleiro, meus senhores!... Não apenas sabe ler, como lê os livros proibidos pela Santa Madre Igreja... Onde estamos? Onde estamos? Fica como prova e testemunho de mais uma heresia, dentre tantas que tem cometido seguidamente este... este... insolente... Sabes, senhor Menocchio, que a Santa Madre Igreja condena esse tipo de leitura?

MENOCCHIO:-  Vocês, padres e frades, não querem permitir que se conheça a verdade... são como demônios... querem ser deuses aqui na terra... saber tanto quanto Deus da mesma maneira que o demônio... Quem pensa que sabe muito é quem, na verdade, nada sabe.

 

O inquisidor, cheio de fúria, esbofeteia Menocchio. É afastado por outro membro do Santo Ofício.

 

INQUISIDOR 2:- Observamos, senhor Menocchio, que seu espírito está cheio de certos humores e má doutrina, mas o Santo Tribunal deseja que o senhor revele seu pensamento. Então, espera-se que o senhor possa continuar...

MENOCCHIO:- Meu espírito é elevado e só deseja uma única coisa: que exista um mundo novo e um novo modo de viver, pois a Igreja não vai bem e não deveria ter tanta pompa. Tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres. Se os pobres têm dois campos arrendados, esses são da Igreja, de tal bispo ou de tal cardeal.

 

INQUISIDOR 2:- A heresia espalha-se como o vento... Livros! Livros proibidos que semeiam a discórdia no seio da Santa Madre Igreja, trazendo as idéias heréticas daquele maldito padre alemão. Luterano! O senhor se confessa seguidor de Lutero? É isso? O senhor é luterano?!

 

MENOCCHIO:- Eu acredito que seja luterano quem siga ensinando o mal e coma carne às sextas e sábados.

 

 

O inquisidor faz um gesto de desânimo.

 

INQUISIDOR 2:- O senhor está falando sério ou está brincando com este tribunal, senhor Domenico Scandella? Ou o senhor está imitando alguém?

DOMENICO:- Eminência, nunca encontrei alguém que tivesse essas opiniões. As minhas opiniões saíram da minha própria cabeça.

INQUISIDOR 2:- É preciso que o senhor revele o nome de seus companheiros.

 

Faz um gesto para o carrasco, que amarra Menocchio à máquina de tortura. Ele grita e geme de dor.

 

MENOCCHIO:- Tenho a cabeça sutil! Só eu... Não tenho ninguém... não tenho ninguém... Não obrigo ninguém a ter minhas idéias...

INQUISIDOR 1:- Olha bem dentro de meus olhos, Domenico Scandella... O que vês, hem? O que vês? Por acaso, estás vendo Deus em meus olhos, Menocchio? Estás?

MENOCCHIO:- Não! Por favor, não! Eu falo tudo quanto vossas eminências quiserem saber... eu falo... mas isso, não!... Isso, não... eu não estou vendo Deus... eu não estou vendo Deus...

INQUISIDOR 1:- É verdade que tu acreditas que pode haver mais de uma fé? Que uma pessoa pode fazer as suas próprias leis? Que um turco faz muito bem continuando a ser turco?

MENOCCHIO:- Há mais ou menos... quinze... dezesseis anos... eu tenho... essa opinião... foi quando a comecei a pensar nisso...  foi o diabo... o diabo meteu essa idéia na minha cabeça. Não sei... não sei, eu juro...  não sei com quem foi que comecei a pensar nessas coisas...

INQUISIDOR 1:- Sapientíssima Igreja! Na sua imensa sabedoria, tem a Santa Madre Igreja combatido satanás... que se esconde nesses livros sujos... nesses malditos livros que espalham heresias... heresias que chegam até mesmo a um moleiro!... Um moleiro de uma vila perdida... Sabes, Menocchio, o fim dos hereges? Tu sabes o que te espera?

MENOCCHIO:- A única coisa que eu sei... a única... é que Cristo ajudou a nós, os cristãos... Ele sofreu... ele sofreu por nos amar... e quer que nós morramos... que nós soframos por amor a ele. Não é nenhuma maravilha morrer... não é, não... Deus também quis que seu filho morresse...

INQUISIDOR 2:- Tu negas que Cristo morreu para redimir a humanidade, Menocchio! Tu negas a redenção da carne! És herético e blasfemador! Em que acreditas, afinal: em Cristo e na salvação eterna ou nas tuas heresias?

MENOCCHIO:- Eu... eu... acredito... acredito que se alguém... se alguém tem pecados... é preciso que faça penitência... Vossas eminências... querem... que eu ensine a estrada verdadeira? Querem? Então... então, ouçam: tentem... tentem só fazer o bem... é preciso... trilhar o caminho de meus antecessores... e seguir o que Santa Madre Igreja ordena...

INQUISIDOR 1:- A grandeza do Espírito Santo! Na tortura, o Espírito Santo se manifesta até mesmo através da boca dos ímpios! Tu renegas, Menocchio, tu renegas o que disseste?

MENOCCHIO:- Aquelas palavras... aquelas palavras... que eu disse antes... eu dizia, eu dizia... por tentação... era... era o espírito maligno... o maligno... que me fazia acreditar naquelas coisas...

INQUISIDOR 1:- E quem foi que colocou na tua cabeça, na tua boca, aquelas palavras? Vamos! Não foi só o maligno – que Deus me livre e guarde de suas chamas – não foi só o maligno quem te soprou no ouvido as tuas heresias...

MENOCCHIO:- Eu... eu acho... que amar... que amar o próximo... é mais importante que amar a Deus... eu li... eu li isso... nos livros... quando chegar o dia... o dia do Juízo... Deus dirá... Deus dirá a um anjo: você é mau... nunca fez o bem... nunca... nunca fez o bem para mim... E o anjo... o anjo responde: Senhor... Senhor... eu nunca... nunca o vi... para lhe fazer o bem... E o Senhor... o Senhor dirá... eu tinha fome... e não me deu o que comer... eu tinha sede e não deu... não me deu o que beber... Estava nu... e não me vestiu... Quando estava na prisão... quando estava na prisão... não me vinha visitar... E por isso... eu... achava... que Deus fosse... que Deus fosse o próximo... porque ele disse... Eu era... eu era aquele pobre...

INQUISIDOR:- Menocchio, Menocchio! Brincas com as palavras de Deus... brincas com a Santa Doutrina da Igreja... Tu e teus livros... tu e tuas idéias... Pela última vez, Menocchio: as tuas opiniões, as tuas palavras, quem as colocou em tua boca?

MENOCCHIO:- As minhas opiniões... as... minhas... opiniões... elas saíram... elas saíram... de... minha própria... cabeça... ELAS SAÍRAM DE MINHA PRÓPRIA CABEÇA!

 

Menocchio desmaia.

 

CENA 21:

Num calabouço da Santa Inquisição, Menocchio está dormindo, gemendo e sonhando. Através das grades, vislumbra-se a Lua cheia. Aparece-lhe um padre encapuzado, envolto em longo manto negro, com o sacramento da eucaristia.

 

MENOCCHIO:-  Demônio! Quem... quem... é você, demônio!

PADRE:- Não blasfeme, meu filho... Deus, e não o demônio, deve povoar os seus sonhos.

MENOCCHIO:- Eu morri e estou no inferno... Por que, meu Deus, por quê? Rezei sempre para Deus, sempre fiz penitência, fui sempre um homem de bem, procurei sempre ajudar o próximo...

PADRE:- Você renegou os sacramentos da Santa Madre Igreja, Menocchio... É preciso comungar... Aqui está a hóstia sacrossanta... Ajoelhe-se e tome-a...

MENOCCHIO:- Pela Virgem Maria, são muito grandes essas bestas, Padre... São muito grandes... não cabem na minha boca...

PADRE:- É o corpo de Deus... é corpo de Deus, Menocchio!

MENOCCHIO:- Não! Afasta isso! Isso aí é só um pedaço de massa! Como é que pode ser Deus? E o que é esse tal Deus a não ser terra, água e ar?

 

O padre joga longe as vestes sacerdotais: é o mesmo demônio do sonho anterior de Menocchio. Derruba Menocchio e cavalga-o, gritando.

 

DIABO:- Você não é Deus, Menocchio? Vamos, vamos, cavalinho... Pula direito, seu deus de bosta! Vamos, pule! Eu sou o seu diabo, Menocchio... eu sou o seu diabo! Você me chamou e estou aqui, Menocchio... Você não é Deus? Vamos, vamos, lute... ou pule como um jumento...

 

O canto dos benandanti faz-se ouvir ao longe e aumenta em progressão. Os andarilhos chegam até Menocchio, expulsam o diabo, numa luta coreografada, e vão embora, cantando.

 

BENANDANTI:- Proteger a terra,

Proteger o vinho,

Combater quem erra

Não estou sozinho!

 

Deus de todos nós,

Dono desse mundo,

Dá a tua graça

Expulsa o imundo!

Dá a tua graça

Expulsa o imundo!

Dono desse mundo

Expulsa, expulsa sim

Sem dó nem piedade,

Expulsa o imundo!

 

Menocchio volta a dormir e a gemer, em seu catre de prisioneiro. A Lua, por trás da janela, vai esmaecendo e o dia nasce. Entram, em procissão, os padres do Santo Ofício, acordam Menocchio, vestem-no com um sanbenito e levam-no de volta ao tribunal.

 

CENA 22:

 

No tribunal do Santo Ofício.

 

INQUISIDOR:- Aqui está, Domenico Scandella, a resposta do Santo Padre ao teu pedido de clemência. (Mostra-lhe um rolo manuscrito). Antes, porém, de saber o que decidiu o Vaticano, deseja o Santo Ofício ouvi-lo pela última vez... O que tens a declarar em tua defesa?

MENOCCHIO:- Vossas eminências estão me concedendo a graça de me ouvir? Estão? A um moleiro que nasceu e viveu preso em seu corpo e seu corpo preso em Monte Real? Posso falar o que eu penso?

INQUISIDOR 1:- O Santo Ofício permite que fales, senhor Menocchio.

MENOCCHIO:- Tudo o que um homem leva desta vida são as palavras que ele profere. Eu, Domenico Scandella, o Menocchio, nasci cristão e quero continuar cristão. Se tivesse nascido turco, ia querer continuar turco. Permitam-me vossas eminências que eu beije o vosso anel? (Os inquisidores aquiescem com a cabeça, Menocchio aproxima-se de cada um e beija o anel). Permitem vossas eminências que eu tome de vossas santas mãos, por um instante, esses tão preciosos anéis? (Os inquisidores titubeiam um pouco, entreolham-se e entregam, ao fim, três anéis a Menocchio). Ouçam-me todos: um grande senhor declarou seu herdeiro aquele que tivesse um certo anel precioso; aproximando-se da morte, mandou fazer outros dois anéis parecidos com o primeiro e, como tinha três filhos, deu a cada um deles um anel. (Entrega cada anel a seu dono). Cada um deles julgava ser o herdeiro e ter o verdadeiro anel, mas dada a semelhança, não se podia saber ao certo. Do mesmo modo, Deus possuiu vários filhos que ama, isto é, os cristãos, os turcos e os judeus, e a todos deu a vontade de viver dentro da própria lei e não se sabe qual seja a melhor. Por isso eu disse que, tendo nascido cristão, quero continuar cristão e, se tivesse nascido turco, ia querer viver como turco. Eu penso que cada um acha que a sua fé seja a melhor, mas não se sabe qual é a melhor; mas, porque meu avô, meu pai e os meus são cristãos, eu quero continuar cristão e acredito que essa seja a melhor fé.  A majestade de Deus distribuiu o Espírito Santo para todos - cristãos, heréticos, turcos, judeus – e tem a mesma consideração por todos, e de algum modo todos se salvarão.

INQUISIDOR 2:- O que pregas, herege? O que tens a coragem de pregar diante do Santo Ofício? Que a Igreja não detém a única verdade? Que o Cristo não morreu para nos salvar? Que não haverá o dia do Juízo Final? O teu julgamento chega ao fim, Menocchio. Vê com teus próprios olhos a resposta do Santo Papa ao teu pedido de clemência.

 

Desdobra o pergaminho diante de Menocchio que, após alguns segundos que lhe permitam dar-se conta do que está escrito, abaixa a cabeça.

 

MENOCCHIO:- Reafirmo minha fé: nasci cristão, quero morrer cristão.

 

O inquisidor guarda com cuidado o pergaminho contendo a resposta do Vaticano. Faz sinal a todos que se levantem. E, ao som de um tambor, que marca as suas palavras, lê a sentença de Menocchio.

 

INQUISIDOR 1:- Neste ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1599, a 13 de novembro, em nome do Santo Padre Papa Clemente VIII, o Tribunal do Santo Ofício de Pordenone, reinado de Friul, aqui reunido,  profere contra Domenico Scandella, dito Menocchio, moleiro de profissão, residente na vila de Monte Real, a seguinte sentença. Porque não quiseste e não queres abandonar os teus erros, preferindo a condenação e a morte eternas à abjuração e ao retorno ao seio da Igreja e à salvação da alma, nós te excomungamos e te afastamos do rebanho do Senhor e te proibimos de qualquer participação na Igreja, nesta Igreja que tudo fez para te converter, e que não dispõe de nenhum outro meio para fazê-lo. Nós, bispo e inquisidor, na qualidade de juízes no que compete à fé, com assento neste Tribunal, condenamos-te e decretamos-te, judicialmente, que és realmente herege e impenitente e, como tal, te entregamos e abandonamos ao braço secular. E, da mesma maneira que, através desta sentença, te excluímos da esfera eclesiástica, e te entregamos ao braço secular e aos seus poderes, da mesma forma pedimos a esta Cúria Secular para não chegar, na sua própria sentença, ao derramamento de teu sangue e à pena de morte. Com isso, damos por encerrada a nossa participação etc. etc. etc....

 

CENA 23:

 

Enquanto Menocchio é amarrado e conduzido de volta à prisão, os artistas mambembes encenam, de forma caricata, a vida e a morte do moleiro.

 

APRESENTADOR:- Senhores e senhoras, os Irreverentes que, cansados de levar pedradas por cantarem tão mal, retornam àquilo que pior sabem fazer: ao teatro! E apresentamos a empolgante história do moleiro falastrão de Monte Real, que falou tanto e tanto e tanto, que acabou fodido no fogo fátuo do inferno...

 

Apresenta-se um palhaço vestido de moleiro.

 

PALHAÇO/MOLEIRO:- Eu sou Menocchio, o moleiro, moedor de farinha, mas o que sei mesmo fazer é falar... Por isso, a minha língua é tão comprida... (Puxa uma enorme língua vermelha). E eu sei como o mundo foi criado... (Pega uma espécie de gamela com uma massa). Isso aqui, que estão vendo, é uma massa de queijo... o mundo era um queijo assim... e então apareceram os vermes... (Tira de dentro da massa uma porção de “minhocas” e joga sobre o “público”)... Esse verme aqui, ó, esse.. era Deus... e esse outro, o anjo Gabriel...

 

Entra o diabo e derruba tudo, sai correndo atrás do palhaço, pega-o e cavalga-o.

 

DIABO:- Esta alma é minha... eu sempre lutei para tê-la... Vejam como eu subo em suas costas... e faço esse jumento de moleiro... ou melhor, faço o moleiro de jumento... Upa, cavalinho... Pula, cavalinho...

 

Pula até que topa com um padre encapuzado. Leva um susto e desmonta do moleiro, que tenta sair correndo, mas é seguro pelo padre, sob cuja batina pode-se ver um rabo bifurcado.

 

PADRE:- Vem cá, moleiro, que tua alma é minha... Toma o sacramento da comunhão, em nome de Deus...

 

O padre joga água benta no diabo, que sai correndo, gritando. O moleiro se ajoelha diante do padre, que tira uma enorme hóstia de dentro do hábito e bate com ela na cabeça do moleiro, que cai.

 

PALHAÇO/MOLEIRO:- Perdão, santo padre, perdão...

PADRE:- Que perdão que nada... Você é um herege. Vai para a fogueira...

 

Prende o moleiro e amarra-o em cima de uma fogueira.

 

PADRE:- Deixa pôr essa mordaça na boca dele... Senão ele vai ficar gritando impropérios... palavrões... e ninguém merece ouvir isso, não é, mesmo? Queremos que o condenado se comporte quando as chamas da fogueira atingirem os seus pés... torrando dedinho por dedinho... e depois subirem até suas canelas... queimando e torrando essas pernas finas... depois, pouco a pouco, subindo e subindo e queimando suas coxas... fazendo escorrer a gordura dessas coxas... e atingindo o ventre... ai, ai, ai... e então... devagarinho... ui, ui, ui... durante horas, ali, naquele fogo... ui... ui.. ui.. Mas chega de conversa! Vamos ver ao vivo como ele se comporta...

 

Acende o fogo. Aparece o diabo.

DIABO:- Que merda é essa! Eu é que tenho o direito de queimar as almas... Fogueira é o meu negócio... e detesto concorrência!

 

O diabo chuta a fogueira, dá com o tridente na cabeça do padre, desamarra o moleiro e sai correndo com ele.

 

CENA 24:

 

Na prisão, Menocchio recebe a visita de Fasseta. Por entre as grades da prisão, a visão da lua cheia.

 

FASSETA:- Veja, Menocchio, permitiram que eu trouxesse um pouco de pão e uma garrafa de vinho... Como você está, meu amigo?

MENOCCHIO:- Como Deus manda, caro Fasseta, aqui, esperando o que eu sei que nem devia mais esperar, mas ainda assim um cristão...

FASSETA:- Bebamos...

MENOCCHIO:- Bebamos... à vida...

FASSETA:- Arrependido?

MENOCCHIO:- Uma vez eu lhe disse, amigo, que, se me ouvissem, eu morria satisfeito...

FASSETA:- Palavras, Menocchio, palavras...

MENOCCHIO:- As palavras conduziram minha vida, as palavras me levam à morte...

FASSETA:- Ia-me esquecendo... Trouxe-lhe um outro presente, aqui, escondido... Você sabe, os inquisidores entraram em sua casa... levaram tudo... acho que queimaram, depois...

 

Tira de dentro da roupa um livro.

 

FASSETA:- Eu sei que você gostava dele... tanto que uma vez quase o rasgou inteiro, lembra?

MENOCCHIO:- Você salvou meu Mandevile... o livro de viagens do Mandevile... você o salvou, Fasseta! Ainda há esperança... ainda há esperança... AINDA HÁ ESPERANÇA!

 

Menocchio abraça e beija o livro.

 

FASSETA:- Que mais queres que faça por ti, amigo?

MENOCCHIO:- Reze, reze muito por minha alma, para que ela não fique vagando por aí, assombrada, até o juízo final. Eu te prometo uma coisa, amigo, que promessa tem que ser cumprida, mesmo que no inferno: que, eu, por minha vez, quando encarar o Criador, terei muito o que lhe contar e terei muito o que lhe cobrar...

FASSETA:- Bebamos...

MENOCCHIO:- Bebamos...  à lua livre no céu... e aos livros!...

 

FIM

Xfig fogueira da inquisição

NOTAS

 (*)SANBENITO:  :
Uma casula amarela usada pelos condenados pela Inquisição. Ver capa.

(**) Na verdade, trata-se do Fioretto della Bibbia, obra em língua vulgar, com passagens selecionadas da Bíblia e outras narrativas.

(***)This text, attributed to "Sir John Mandeville" was written circa 1366, and presents a series of picturesque fables about the east. These stories fascinated Western Europeans, as did the more reliable [slightly!] stories of Marco Polo. One way of understanding Western interest in the rest of the world is to see the process by which interest became research, research became knowledge, and knowledge became power. By the time Europe was able to expand in the 16th century and later, it was far better equipped to understand, and if necessary undermine, other cultures than other cultures were to understand Europe. (http://www.fordham.edu/halsall/source/mandeville.html).

 

 

 

FONTES  

 

 

  • Ginzburg, Carlo, 1939. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de moleiro perseguido pela Inquisição; trad.: Maria Betania Amoroso, - São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Título original: Il formagio e i vermi: il cosmo de um mugnaio del’500.

·       Historia de la Inquisicion, I.Grigulevich, Ed.Progresso, 1976.

·       A História da Civilização, Will Durant, vol. VI, Ed. Record, 2ªed., 1957.

·       Mirador Intarnacional, Ed. Milano, 1970.

·       Carlo, Ginzburg, 1939. Os andarilhos do bem. Feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. Trad. Jônatas Batista Neto. – São Paulo: Companhia das Letras, 1968. Título original: I benandanti: stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento.

·       Le Manuel des Inquisiteurs, Manaual dos Inquisidores (Directorium Inquisitorum), Nicolau Eymerich, 1376 revisto por Fco. de La Peña, 1578. Traduzido para o francês em 1973 por Louis Sala-Moulins.

·       Kramer, Heinrik; Sprenger, Jacobus. Malleus Maleficarum, Manual de Caça às Bruxas, Planeta Especial, Ed. Três, São Paulo, dezembro 1976.

·       Kramer, Heirich, Spengler, James; O Martelo das Feiticeiras; introdução histórica: Rose Marie Muraro; prefácio: Carlos Beynton; tradução: Paulo Froes, 11ª ed., Rio de Janeiro: Record : Rosa dos Tempos. 1995. Tradução de: Malleus Maleficarum, publicado em 1489.