domingo, 9 de maio de 2021

O INFERNO DE BEATRIZ

 

 (Alexandre Cabanel -  Ophelia)

 

Drama musical para jovens

 Isaias Edson Sidney

 

2001


O INFERNO DE BEATRIZ

 

RESUMO

 

Beatriz, ao contrário de sua homônima da COMÉDIA (de Dante Alighieri), busca nas drogas o paraíso, mas acaba visitando o purgatório do estremecimento de suas relações familiares e encontrando o inferno na contravenção e no crime, juntamente com seus amigos e colegas. Peça para jovens.

 

SBAT

1421

 

FBN

217.984

livro 381

folha 144

 

 

 

PERSONAGENS PRINCIPAIS

(Jovens, na idade entre 18 e 22 anos)

 

BEATRIZ (BIA)                               

DANTE                                           

LUCAS                                           

PATRÍCIA (PATY)                           

 

PERSONAGENS SECUNDÁRIAS

 

 

ü PAI DE BEATRIZ

ü MÃE DE BEATRIZ

 

OUTRAS PERSONAGENS

(Só aparecem nas “viagens” das personagens principais e devem ser feitas pelos mesmo atores)

 

 

PAI DE DANTE                  

MÃE DE DANTE                

PAI DE LUCAS                  

MÃE DE LUCAS                

PAI DE PATRÍCIA             

MÃE DE PATRÍCIA            

MÉDICO                            

HOMEM                            

 

 

AUTOR

 

ISAIAS EDSON SIDNEY

 

RUA DOS BURITIS, 251 – JABAQUARA, SÃO PAULO – SP

CEP – 04321 – 001

 

Telefone: (11) 5011-9628

  

Cena de abertura: um videogame. Os atores cantam “A canção do videogame 1” e dançam:

 

é jogo, é vida

eu jogo a vida,

vidas, vidas, vidas

muitas vidas eu tenho

para jogar

 

eu jogo, eu jogo

vida? é nada

vencer o fogo

vencer o vento

vencer a espada

vencer o fosso

a fossa, o monstro

vencer é só

um sonho bom

 

eu abro portas

eu pulo rios

eu corro mais

que o inimigo

eu atiro mais

que o inimigo

a arma que eu jogo

é minha vida

sou labirinto

sou só o que sinto

sou vida

não minto

 

 

Casa de Beatriz. A mãe arruma a mesa para o café da manhã. Entra Beatriz, ainda meio sonolenta.

 

 

MÃE:- Tão cedo? Caiu da cama?

 

BIA:- Preciso estudar... O pai já saiu?

 

MÃE:- Foi bom você ter levantado mais cedo... seu pai tem uma surpresa para você...

 

BIA:- Odeio surpresas.

 

MÃE:- Não seja malcriada, Beatriz!

 

BIA:- Por que isso, agora? Meu aniversário é só no mês que vem...

 

MÃE:- Uma coisa que você sempre quis...

 

BIA:- Ih! Aí tem coisa... Só espero que não seja uma bíblia...

 

MÃE:- ... até eu gostaria de receber esse presente...

 

BIA:- Por que você não conta logo e pára com esse suspense? Você não agüenta mesmo guardar segredo...

 

MÃE:- ... se a gente pudesse, eu iria com você...

 

BIA:- Se é o que estou pensando...

 

 

Entra o pai de Beatriz, todo animado, escondendo algo.

 

 

PAI:- Surpresa! Surpresa! Bom dia, querida... Bom dia, Beatriz...

 

 

Beija a ambas e procura fazer algum suspense com o presente. Depois entrega o envelope para Bia. Ela fica por uns instante olhando aquilo, meio atônita.

 

 

PAI:- Vamos, abra... tchan... tchan... tchan...

 

 

Beatriz abre o envelope e encontra uma passagem aérea. Fica sem entender.

 

 

BIA:- Uma passagem aérea...

 

MÃE:- ... para onde?

 

PAI:- ... para onde?

 

 

Bia tenta descobrir.

 

 

BIA:- Para os Estados Unidos?

 

PAI:- Olha, olha direito... Mais que Estados Unidos... muito mais... para ORLANDO!

 

BIA:- Orlando?

 

PAI:- SIM! ORLANDO! DISNEYLÂNDIA!!!

 

BIA:- Disneylândia, pai? Disneylândia?

 

PAI:- Claro... Desde os sete, oito anos você sempre sonhou em ir para Disneylândia...

 

BIA:- E agora, com dezenove anos nas costas, eu vou tirar foto com o Mickey na Disneylândia...

 

PAI:- Eu sabia... eu sabia que você ia ficar feliz... Deus me ajudou e preparou essa surpresa para você... Deus seja louvado... Bom dia, querida... Estou atrasado...

 

MÃE:- Mas... e o café?

 

PAI:- Estou sem fome e atrasado... Bom dia para as duas...

 

 

Sai. Beatriz canta “A canção de Beatriz”:

 

 

tenho em mim o sonho de ser feliz

e vou seguir sempre adiante:

amo um garoto chamado Dante

e por isso sou de Dante a Beatriz

 

minha personalidade é forte

e fui sempre a primeira de qualquer jogo

sempre fui aquela que põe fogo

e não teme da vida a sorte

 

faço o que quero do jeito

que quero, não importa

pai, mãe ou avó torta

sigo em frente e me ajeito

 

tenho em mim o sonho de ser feliz

e vou seguir sempre adiante

amo um garoto chamado Dante

e por isso sou de Dante a Beatriz

 

sou dona de minha vida

meu destino está traçado

sempre por mim estipulado

não serei nunca conduzida

 

faço o que quero do jeito

que quero, não importa

pai, mãe ou avó torta

sigo em frente e me ajeito

 

tenho em mim o sonho de ser feliz

e vou seguir sempre adiante

amo um garoto chamado Dante

e por isso sou de Dante a Beatriz

 

 

Tempo.  Uma festa de jovens. Luzes coloridas, rock em alto volume. Todos dançam e se divertem.

 

 

DANTE:- Toma... toma um pouco... é vodka!

 

BIA:- Não... eu não tomo álcool... me dá enjôo...

 

DANTE:- te achando baixo astral...

 

 

Beatriz faz um gesto desanimado e continua dançando. Depois de algum tempo, fica somente  um foco sobre Dante e Bia, enquanto todos os outros vão-se retirando, até que eles ficam sozinhos e a música cessa. Dante acende uma bagana e oferece a Bia.

 

 

DANTE:- Esse é do bom... Vai levantar o seu moral...

 

BIA:- Moral, Dante? Moral? Depois dessa do meu pai, você quer que ainda tenha moral?

 

DANTE:- Você traz uma foto sua com o Mickey para mim, traz?

 

BIA:- Não enche, tá... Me passa logo essa bagana... Olha, eu quero mais, ouviu! Eu quero mais... eu quero tudo...

 

DANTE:- Cuidado, Bia... isso ainda vai acabar mal...

 

BIA:- Que acabar mal, cara... me estranhando?

 

DANTE:- Você tem pouco tempo nessas... nessas viagens... pode acabar... ou melhor, pode não conseguir parar depois...

 

BIA:- Até parece que você não me conhece, Dante. Lembra que no colégio, sempre fui a melhor e serei a melhor quando eu quiser, em qualquer profissão...

 

DANTE:- Vai mesmo fazer medicina?

 

BIA:- Duvida?

 

DANTE:- Claro que não... se é o que você quer...

 

BIA:- É tudo o que eu quero... apesar de meu pai...

 

DANTE:- Seu pai... sempre seu pai...

 

BIA:- Você não vai falar de meu pai! Eu posso falar, porque sou filha dele e o amo...

 

DANTE:- Ama?

 

BIA:- Às vezes, odeio... quando ele quer que eu faça teologia, por exemplo...

 

DANTE:- Você é osso duro, Bia... Teimosa!

 

BIA:- Eu não sou teimosa... eu apenas sei o que quero e faço o que quero, por isso é que te digo: eu paro quando quiser, ouviu? Paro a hora que eu quiser...

 

DANTE:- Tá bom... tá bom... Pode fumar... esse fumo é dos bons...

 

BIA:-  Você sempre diz isso... e sempre me dá palha pra fumar.

 

DANTE:- Exagero, seu, gata! Exagero. Até a minha palha é de boa qualidade...

 

BIA:- Dante... me diz uma coisa...

 

DANTE:- Você não vai começar com aquela história de novo, não é, Bia!?...

 

BIA:- , cara, baixa a guarda...

 

DANTE:- Seu pai já anda meio cabreiro comigo...

 

BIA:- Porque você é muito folgado... Se meu pai ao menos desconfiasse de... de uma lasquinha assim... do que fazemos...  eu não estava aqui com você.

 

DANTE:- Seu velho é foda, Bia... não dá uma folga... E depois dessa viagem pra Disneylândia, ele extrapolou...

 

BIA:- Esquece o pai. O que eu tenho a lhe pedir...

 

DANTE:- Senta... senta um pouco... o fumo e tudo o mais... já estou um pouco... bodeado... bateu o maior bode...

 

 

Ambos sentam-se no chão, com as pernas cruzadas, voltados um para o outro.

 

 

BIA:- Você prometeu...

 

DANTE:- Tá bom... gata, o que eu prometi... diz... o que eu prometi...

 

BIA:- Uma viagem... uma viagem das boas...

 

DANTE:- Eu não te entendo... pra que isso? Você tem tudo... não é como eu, que precisou batalhar desde cedo...

 

BIA:- Sermão, Dante? Qual é, cara!... Pai já chega o que eu tenho em casa...

 

DANTE:- bom... não está mais aqui quem falou... Mas dá um tempo...

 

BIA:- Tempo, Dante ? Tempo? Quanto? Eu tô fissurada, Dante... eu quero tanto... Não agüento mais esse fuminho vagabundo que você me traz...

 

DANTE:- Não vem tirando, não, Bia... eu nunca dei furo com você...

 

BIA:- Mas isso, Dante!? Isso aqui é xaxim... por isso que você fica aí meio que mareado... é só amoníaco o que tem aqui dentro... Isso faz mal! A gente precisa de coisa melhor, Dante...

 

DANTE:- Já te disse que é meio complicado... Não quero confusão com sua família, que já não gosta de mim... Tá bem, tá bem... Eu vou descolar umas festas da hora... lá tem de tudo...

 

 

Eles se beijam, levantam-se e dançam, enquanto Dante canta “A Canção de Dante”:

 

 

de família simples eu venho

de lutas e muito sofrimento

um grande orgulho eu tenho

sou honesto e nunca minto

vibra como a chuva e o vento

na minha guitarra o que eu sinto

 

sonho sempre acordado

e não choro jamais

se por Beatriz sou amado

basta isto e nada mais

sou honesto e nunca minto

vibra como a chuva e o vento

na minha guitarra o que eu sinto

 

como o poeta Dante me chamo

toco o meu rock-and-roll

e meu amor a todos proclamo

faça chuva ou faça sol

sou honesto e nunca minto

vibra como a chuva e o vento

na minha guitarra o que eu sinto

 

 

O dois se abraçam e se beijam. Tempo. Porta da casa dos pais de Bia. Ela procura na bolsa a chave e não a encontra.

 

 

BIA:- Não acho a chave, Dante... Caralho!

 

 

O pai de Bia sai da sombra, de onde estivera esperando o casal.

 

 

PAI:- Vai lavar essa boca suja...

 

BIA:- Pai! Eu..

 

DANTE:- Boa noite...

 

PAI:- É só isso o que você aprende andando com esse... esse...

 

BIA:- Desculpe!

 

PAI:- Senhor, meu Deus, o que eu fiz para ter uma filha assim? Já para dentro, filha de satanás... e você, seu moleque, vai embora... anda... vai embora e não volte... Se eu te pego novamente com minha filha, que Deus me proteja, mas sou capaz de...

 

BIA:- Não, meu, pai... Por favor, não... Me perdoa... eu não falo mais... perdoa...

 

PAI:- Já para dentro... depois conversamos...

 

 

Com a ameaça do pai de Bia, Dante se afasta. Bia entra com o pai.

 

 

PAI:- Beatriz, minha filha... Esse menino é muito boca suja... não é companhia para você, minha querida... O Senhor seja louvado, mas ainda faço uma besteira... se você não parar com isso... Tudo bem, um baile de vez em quando... uma festa de aniversário... mas esse namoro, Deus não preparou um rapaz sem rumo como esse para casar com minha filha...

 

BIA:- Casar, meu pai, casar?! Quem está pensando em casar?

 

PAI:- Você já tem dezenove anos, minha filha... Na sua idade, eu e sua mãe já tínhamos você...

 

BIA:- Tá bom, pai... tá bom... Depois a gente conversa... Me deixa dormir... Boa noite...

 

 

Bia retira-se. O pai abre uma Bíblia e lê o versículo 15, capítulo 2 do Gênesis:

 

 

PAI:- “E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar. E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”.

 

 

Entra a mãe e ambos cantam “A Canção dos pais”:

 

 

proteção, proteção, proteção

sempre a Deus estamos pedindo

proteção para nós e nossa família

proteção para a filha Beatriz

 

nós te amamos, ó Deus, senhor,

nós te amamos, também,

ó Beatriz, anjo e pecado,

nós te perdoamos, ó filha amada,

nós a Deus pedimos sempre

proteção, proteção, proteção

é sempre a fé que nos move

Deus, do coração de Bia remove

a tentação, a tentação, a tentação

a ti pedimos sempre, ó senhor,

proteção, proteção, proteção

 

 

Tempo. Bia, em seu quarto, fala ao telefone.

 

 

BIA:- Numa boa, cara... Meu pai viajou... foi pregar numa nova igreja não sei aonde... só volta na segunda... Minha mãe? Que nada... fica frio... Pode vir... Já te disse... numa boa... tá legal!

 

 

Coloca um som, a “Canção de Beatriz” em ritmo techno e começa a dançar. Logo chegam seus amigos, Patrícia, Lucas e Dante. Trazem comida (pizza ou qualquer outro prato de fast-food). Cumprimentam-se com beijinhos e todos entram no ritmo, dançando por alguns momentos. O som diminui.

 

 

BIA:- E então, cara... quando vai ser?

 

DANTE:- Eu te pedi um tempo, gata...

 

BIA:- Já faz uma semana... Tu tá me enrolando...

 

PATY:- Que é isso, Bia... o Dante é gente boa...

 

BIA:- Fica na sua, Paty... é assunto meu...

 

PATY:- Tá bom... não está aqui quem falou... que coisa... parece porco espinho...

 

LUCAS:- Você não pode ficar calada, não é Paty?

 

PATY:- Não enche... E sai pra lá, que teu bafo tá bodeado... só falta cuspir fogo...

 

DANTE:- A Bia tá me cobrando um...

 

BIA:- Não, não fale... é só... entre nós...

 

DANTE:- Não, Bia... não pode ser só entre nós... Um lance desse tem que ter mais gente... Pode ser perigoso...

 

LUCAS:- Que é isso, Bia, querendo nos tirar de alguma jogada... Que amiga, hem?...

 

BIA:- É... que... eu... que merda!... Tá bom.... desculpem... Eu o Dante... nós...

 

PATY:- Desembucha logo, cara... Qual é o lance?

 

DANTE:- É coisa da pesada... não sei se vocês topam...

 

LUCAS:- Uma suruba! Todo mundo nu... oba! Todo mundo nu... oba!

 

PATY:- Não seja imbecil, Lucas... parece que bebe... só pensa nisso... Vai acabar botando fogo pela boca...

 

DANTE:- É coisa séria: uma viagem... uma viagem da pesada... A Bia quer experimentar coisas...

 

PATY:- Você não acha que está indo depressa demais, Bia? Tem coisa que a gente não consegue largar depois...

 

BIA:- Pára com isso, meu... eu entro no que eu quero e largo quando quiser, tá bom? Você nunca vai me ver chapada por aí... Eu sou forte...

 

PATY:- Então, fala logo, cara...

 

DANTE:- Ácido... gente! Ácido...

 

 

Os quatro se abraçam, dançam e festejam, com a música “A Canção da turma”:

 

eis nosso lema:

viver e brincar

brincar e cantar

pai, não tema,

não tema o nosso grito

se pode ser aflito

nunca será de medo

viver e brincar,

sonhar e amar,

se a vida é droga,

droga de vida

sonhamos e amamos

sorrimos e brincamos

qual é a sua, cara,

qual é a sua, amigo,

a vida é pedra – rara

vem brincar comigo

na veia, cara, na veia,

sonhe e brinque e não tema

para aquele mar, sereia,

para aquela dor, o lema

viver e brincar

brincar e cantar

pai, não tema,

não tema o nosso grito

se pode ser aflito

nunca será de medo

 

 

Enquanto dançam e cantam, Lucas prepara, às escondidas, uma cena de pirofagia para assustar Paty. Quando ele “vomita” o fogo,isso encerra a cena, com todo mundo saindo correndo e xingando Lucas. Tempo. Bia, em seu quarto, lê um livro. Entra a mãe.

 

 

MÃE:- Toma, filha... trouxe um leite com chocolate e bolachas pra você... Estou te achando cansada esses dias... Você está estudando demais...

 

BIA:- Uma viagem, mãe... estou precisando de uma viagem...

 

MÃE:- Não estou te entendendo... seu pai já não lhe deu a passagem para Disneylândia?

 

BIA:- Disneylândia, mãe! Disneylândia!

 

MÃE:- Teu pai é tão bom, minha filha... você não vai contrariar o sonho dele...

 

BIA:- Ah! Mãe... eu sei, o pai é correto... temente a Deus, até demais... mas... e eu? E eu, minha mãe? E meus sonhos? Isso não conta?

 

MÃE:- Deus quis que tivéssemos uma filha...

 

BIA:- Vocês queriam um homem, não é?

 

MÃE:- ... para prosseguir a obra de seu pai...

 

BIA:- Mãe, escuta: tô fora... não é isso o que eu quero para mim...

 

MÃE:- ... é  tudo o que o seu pai mais deseja... a obra  de sua vida... a obra de Deus...

 

BIA:- Deus não tem nada com isso, mãe... eu não posso, ouviu? Eu não posso...

 

MÃE:- Teu pai, filha, teu pai é um homem bom... ele prometeu a Deus que você...

 

BIA:- Mãe, eu não vou casar com a idade que você casou, pra ser... ser... rainha do lar! Aliás, nem sei se quero casar um dia...

 

MÃE:- Não diga isso, filha... eu e seu pai somos muito felizes...

 

BIA:- Essa felicidade de vocês eu estou fora... quero outra coisa pra minha vida...

 

MÃE:- Que outra coisa, Bia? A mulher tem de seguir o homem... está na Bíblia..

 

BIA:- É isso que não quero... os tempos são outros, minha mãe... não tem essa de mulher ser aquilo que o homem quer... não tem essa de “seguir o marido”... Eu quero ser livre, minha mãe... livre, entendeu?

 

MÃE:- Não entendo você... não entendo a juventude de hoje... Nós te demos tudo: conforto, carinho, ensinamentos... Deus é testemunha disso... tudo o que fizemos até hoje foi pensar na sua felicidade... dar condições para que você estudasse, para você encontrar um homem bom, casar, nos dar netos e seguir a palavra de Deus... Seu pai quer tanto que você estude teologia... que você continue a obra dele...

 

BIA:- Me escuta, mãe... eu queria te dizer uma coisa...

 

MÃE:- Quero ser sua amiga, minha filha...

 

BIA:- Amiga, minha mãe, amiga! Estou precisando de uma mãe, não de amiga...

 

MÃE:- A cada um conforme a sua hora, minha filha... se você quer assim...

 

BIA:- É uma roubada... eu não sei o que fazer... preciso de sua ajuda... Mas só entre nós duas, mãe... só entre nós duas...

 

MÃE:- Eu e seu pai não temos segredos...

 

BIA:- Você nunca soube guardar segredo... Não vai ser agora... E eu precisava tanto! Mas pelo menos, por amor de seu Deus, me escuta: eu não posso cumprir o que meu pai prometeu...

 

MÃE:- É tudo o que ele mais espera na vida: que você siga os passos de Jesus...

 

BIA:- Não adianta! Não adianta eu falar... vocês são surdos... para mim. Só têm ouvidos para o Deus de vocês...

 

 

Bia aumenta o volume do som e canta um trecho da “Canção de Beatriz”, enquanto a mãe se retira com a bandeja de leite e biscoitos, como uma autômata, murmurando para si mesma palavras ininteligíveis, como se rezasse.  Tempo. Bia reencontra seus amigos, agora numa rave, com música techno, luzes etc.

 

 

LUCAS:- E aí, meu, cadê o bagulho?

 

DANTE:- Cala a boca, idiota! Quer todo mundo manjando nossa jogada?

 

LUCAS:- Pô, cara! Aqui todo mundo tá nessa... não é segredo pra ninguém...

 

DANTE:- Não é isso, cara... É que eu arrumei um lance especial... só para nós...

 

LUCAS:- Tá legal... afinal é uma grande estréia... legal...

 

BIA:- Depois da festa... depois da festa a gente se fala... tá ligado?

 

 

Lucas se afasta um pouco, dançando.

 

 

DANTE:- Sei não, sei não... isso já tá virando clube...

 

BIA:- Você mesmo é que colocou o Lucas e a Paty na jogada.

 

DANTE:- Já começo a me arrepender desse troço...

 

BIA:- Relaxa, cara... sem stress... sem stress...

 

 

Lucas e Patrícia se aproximam.

 

 

PATY:- Uma boa pra quem? Eu acho que vou cair fora...

 

LUCAS:- Que porra, Paty... qual é? Vai dar uma de fresca, agora? Entrou tá entrado... não tem dessa, não... é um por todos...

 

BIA:- ... e todos por um... Uau! Vamos nessa, turma!

 

 

Eles saem pulando, dançando, cantando a “Canção da turma”. Reúnem-se num local “descolado”: almofadas, luzes coloridas e música, talvez um telão com imagens psicodélicas e/ou relaxantes.

 

 

BIA:- Que da hora, Dante! Que da hora!

 

DANTE:- O paraíso, Bia... o paraíso! A primeira vez tem que ser assim... Pra curtir uma viagem sem rebordosa!...

 

LUCAS:- Profissional, cara, profissional!

 

PATY:- Tudo da hora, mas só quero saber de uma coisa...

 

TODOS:- Fala, dona crica!

 

PATY:- Pô, cara... tá bom... não vou falar mais...

 

LUCAS:- Se começou, termina... O que é, agora... Tá com medo? Se tiver com medo, passa a mão aqui no bilau que o medo passa...

 

PATY:- Você é um escroto, Lucas... Sai pra lá, sai... O que eu quero saber é de quem é esse apê assim... todo decorado...

 

DANTE:- De uns caras aí... não importa...

 

PATY:- ... e outra coisa...

 

LUCAS:- enrolando... que mina mais cheia de querer saber!

 

PATY:- Dá um tempo, Lucas... que cara chato! Quero saber ainda se o que você trouxe, Dante, é realmente ácido...

 

TODOS:- OH! AH! UH! (Riem muito).

 

DANTE:- Você acha o quê, garota? Que eu ia descolar todo esse cenário pra curtir porcaria? Fique sabendo que o papai aqui é foda, ouviu? Não tem essa de “realmente ácido”. É ácido, sim, e de primeira... Meus manos não iam furar comigo, ouviu?

 

LUCAS:- É isso, mesmo... Para uma viagem da hora, é preciso um sitting da hora...

 

DANTE:- Virou entendido o nosso Lucas...

 

LUCAS:- Eu... eu... eu li... na internet... Os caras contam uns lances que me deixaram pirado...

 

DANTE:- Não me venha com literatura, cara... Não vai nessa. Tem muita truta nisso... Cada um viaja o que pode. Mas vejam bem, nada de fissura... é preciso relaxar, ficar calmo, mesmo... Esvaziar a cabeça, deixar a droga te levar... Por isso esse lugar, assim... Vamos lá... Sentem-se... relaxem... música suave... Primeiro um fuminho, para relaxar.

 

 

Todos se acomodam. Dante coloca uma música new age ou algum som com guitarras distorcidas, lembrando música indiana, diminui as luzes, enrola um cigarro de maconha, acende, traga e passa para cada um. Todos vão ficando relaxados. Dançam um pouco, fecham os olhos e entregam-se aos seus sonhos.

 

 

DANTE:- Tudo bem, galera? Vamos ao paraíso, agora... Olhem: eu trouxe 4 hits para cada um... mas não é bom tomarem todos na primeira viagem... Demora um pouco o efeito... Cada um toma um... depois outro... Só tomem o terceiro... e o quarto... se realmente estiverem numa boa... Sem fissura, hem... Combinado?

 

 

Dante distribui os papéis com a droga para cada um. Eles tiram o primeiro hit e colocam debaixo da língua, imitando os gestos de Dante. Fecham os olhos, sentam-se, concentrados. Entra música “Canção da turma” em ritmo techno, em volume alto, misturada com luzes negras, com todos dançando alucinadamente, até um clímax. Tudo pára de repente. Alguns segundos de silêncio.

 

 

BIA:- Eu vi... eu vi!

 

DANTE:- Sou uma águia... nos Andes... as neves eternas, cara... Uau!

 

BIA:- Deus... eu estou vendo Deus... Eu sou Deus...

 

DANTE:- Um pássaro negro... a neve branca... o sol dourado...

 

LUCAS:- Um túnel... uma nave espacial... duendes... que da hora... bichos...

 

PATY:- Socorro... eu... eu... (chora). Me ajudem! Estou saindo... estou saindo... Ai! Minha mãe, me ajude...

 

DANTE:- ... as neves se mexem, cara... estão vivas... querem me abraçar... uma abraço de neve...

 

BIA:- Senhor, senhor... eu sei... eu não peco mais... senhor... Misericórdia, senhor... eu quero, sim... eu quero ver o paraíso... Eu estou vendo! Eu estou vendo!

 

PATY:- As luzes... minha mãe... luzes brancas... gente de branco, minha mãe... me ajude... não enxergo direito... tá muito claro... me ajude minha, mãe, eu não quero... eu não quero... eu não quero sair...

 

LUCAS:- Duendes... no jardim... na mesa... duendes... o mundo está cheio de duendes... belos... feios... lindos... horríveis... eu sou um duende também...

 

 

Em papéis trocados, dois fazem os pais de um. Primeiro Paty e seus pais.

 

 

PAI DE PATY:- Patrícia, minha filha... você já escolheu o que você quer de Natal? Uma boneca ou um vestido?

 

PATY:- Ai, Paizinho, eu queria tanto um piano...

 

MÃE DE PATY:- Filhinha, sai da água... sai... está esfriando... Ah, essa menina é tão frágil...

 

PATY:- Deixa, mãezinha, um pouquinho mais... deixa...

 

PAI DE PATY:- Patrícia, minha filha... você já escolheu o seu presente de formatura? Você quer uma viagem aos Estados Unidos ou um carro?

 

PATY:-Os dois, paizinho, os dois!

 

MÃE DE PATY:- Só tive você, minha querida.... e Deus sabe como foi difícil o seu parto... nós te amamos tanto, Patrícia... nós te amamos, viu?

 

 

Paty abraça os pais. Agora dois atores fazem o papel de pais de Lucas.

 

 

LUCAS:- Pai, eu quero uma guitarra no meu aniversário...

 

PAI DE LUCAS:- Guitarra é coisa de marginal... toma uma calculadora...

 

LUCAS:- Mãe, eu não vou vestir essa roupa ridícula...

 

MÃE DE LUCAS:- A festa é na casa da Glorinha, e você sabe como ela repara nessas coisas... Vamos, veste logo esse terno... que já estamos atrasados...

 

LUCAS:- O que eu faço com esse taco,  pai?...

 

PAI DE LUCAS:- É um taco de baseball, filho... coisa de homem... vou te ensinar a jogar...

 

MÃE DE LUCAS:- Vê se não suja a roupa... vê se não suja essa roupa!

 

 

Lucas empurra com raiva os pais, que caem. Agora dois atores fazem o papel de pais de Dante.

 

 

DANTE:- Eu não gosto de sopa de legumes... eu não gosto de sopa de legumes!

 

PAI DE DANTE:- Coma, desgraçado... (Faz o gesto de enfiar a cabeça do menino no prato). pensado o quê? Que podemos jogar comida fora? Todo mundo se mata de trabalhar pra esse vagabundo dizer que não gosta de sopa de legumes! Pois, sim...

 

MÃE DE DANTE:- Olha que bonitas essas flores, meu filho... eu mesma que plantei... você não gosta?

 

DANTE:- Eu não quero ser engraxate, pai... Eu quero estudar!

 

PAI DE DANTE:- Nenhum de seus irmãos estudou... tem que trabalhar... tem que trabalhar...

 

MÃE DE DANTE:- Acho que vou fazer um assado para o jantar... seus irmãos adoram carne assada... você também, não é, Dan... você também...

 

DANTE:- Pai, aqui o convite para minha formatura... Você vai, não vai?...

 

PAI DE DANTE:- Formatura? Que bosta é esta? É só um pedaço de papel que você vai receber! Não vale de nada. Cadê o dinheiro da casa? Vamos, cadê o dinheiro? Só sabe transar com essas riquinhas que vêm aqui... e mais nada... Vagabundo!

 

MÃE DE DANTE:- Tão bonita aquela sua amiguinha... como ela se chama, mesmo? Beatriz? Chama ela para almoçar com a gente um domingo desses... chama...

 

DANTE:- Só você me segura, minha mãe... Se não, já teria feito uma besteira...

 

 

Olha com ódio para o pai e sai. O grupo se desfaz. Tempo. Casa de Beatriz. Ela ouve música – a “Canção de Beatriz” – com ar alheado, como se estivesse longe, sonhando. Seu pai entra de repente, desliga o som e, com a bíblia nas mãos, lê de forma alucinada os versículos 18 a 21 do capítulo 21 de Deuteronômios, ante o olhar cada vez mais espantado da garota.

 

 

PAI:- “Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedecer à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e, castigando-o eles, lhes não der ouvido, então seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar; e dirão aos anciãos da cidade: este nosso filho é rebelde e contumaz, não dá ouvidos à nossa voz: é um comilão e beberrão. Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão com pedras, até que morra. E tirarás o mal do meio de ti, para que todo o Israel o ouça e tema”.

 

BIA:- Que é isso, meu pai... que é isso?... Ficou louco?

 

PAI:- Louco!? Eu sou louco!? E você, filha de Satã? O que anda fazendo por aí, hem?

 

 

Tira o cinto e ameaça bater-lhe. Enquanto ela foge, entra a mãe.

 

 

MÃE:- Por Deus, não, meu marido! Tenha piedade! Tenha piedade!

 

PAI:- Piedade? Eu lhe ensinei a vida toda a palavra de Deus e o que recebo de volta? Isso!

 

 

Atira um pedaço de papel no rosto da Mãe.

 

 

MÃE:- O que é isso? (Pega o papel, lê aterrada e começa a chorar). Eu não estou entendendo direito... Isso é...

 

PAI:- Entendeu! Você entendeu direitinho... Essa miserável está fazendo coisa muito feia por aí... Que dinheiro é esse que o seu amiguinho está querendo, hem? Me diz, filha de Satã! No que o Diabo fez você se meter! Vamos, me diz!

 

 

Beatriz consegue pegar o papel e lê o que está escrito. Procura disfarçar o medo.

 

 

BIA:- Calma, pai... Calma... Eu explico... Não é nada disso... Não fiz nada demais... É só... é só uma... uma dívida à toa...

 

PAI:- Uma dívida à toa? Você tem coragem de dizer que isso é uma dívida à toa? Quase o preço de uma... uma... uma geladeira!

 

MÃE:- Deixa a menina falar, meu marido... deixa a menina falar...

 

PAI:- Cala a boca, mulher... “Bem-aventurado é o homem a quem tu repreendes, ó Senhor, e a quem ensinas a tua lei”. (Salmos, 94:12). Fala, maldita... Convença-me de que não está metida com algo muito feio!

 

BIA:- Eu vou explicar... pai, mas por favor, tenha calma... Olha o seu coração... não precisa ficar assim, paizinho... Eu vou explicar... Sabe ... o Dante?...

 

PAI:- Aquele vagabundo!

 

BIA:- Ele não é vagabundo, pai... Só porque é... é mais pobre que a gente...

 

PAI:- Pobreza não é crime, mas não gosto dele... não tenho boas referências...

 

BIA:- Referências, meu pai? Referências? E desde quando a gente pede referências a um amigo? Escuta: ele é boa gente... um pouco perdido, eu sei... mas bem intencionado... Ele comprou uma guitarra, contando que podia pagar a prestação...

 

PAI:- A velha lengalenga... dar um passo maior que perna...

 

BIA:- Só que ele não contava perder o emprego... Mandaram ele embora da firma... Corte de despesas, sei lá... Você sabe como é... Não, você não sabe... Deus não costuma mandar embora os seus pastores, não é mesmo?

 

PAI:- Não blasfeme, filha de satanás...

 

BIA:- Ele é músico, pai... a guitarra podia lhe dar a oportunidade de um bico... tocar em festas... ele apenas me pediu uma ajuda...

 

MÃE:- vendo, senhor meu marido... tudo tem explicação... é só ter confiança em nossa filha...

 

PAI:- Não estou totalmente convencido dessa história... Dessa vez passa, só dessa vez...

 

BIA:- Então o paizinho vai me arranjar o dinheiro, vai?

 

 

Bia abraça e beija o pai, que se desvencilha e cita Salmos, 94:22.

 

 

PAI:- “O Senhor foi o meu alto retiro; e meu Deus a rocha em que me refugiei”. Não!

 

 

Videogame. Todos cantam e dançam “A canção do videogame 2”:

 

 

eu jogo, é vida

eu jogo a vida

vidas, vidas, vidas

algumas vidas tenho ainda

tenho ainda pra jogar

 

eu jogo, eu jogo

compulsão do fogo

matar, morrer

que importa a vida?

eu sonho, eu sonho

eu brigo, eu chuto

eu fujo, eu sujo,

eu perco rios,

eu perco vidas,

sou quase herói

sou só o que minto

sou só o que sinto

no labirinto

 

 

Tempo. Bia sozinha, pensativa por alguns instantes. Pega o telefone e liga para Dante. Não consegue completar a ligação, pois o telefone só dá sinal de ocupado.

 

 

BIA:- Aquele desgraçado... não atende ao telefone...

 

 

Pega uma bolsa e sai. Encontra-se com Dante.

 

 

BIA:- Seu maldito, por que não ligou... em vez de mandar aquele bilhete escroto...

 

DANTE:- O que aconteceu, Bia, você está...

 

BIA:- Puta! Estou puta da vida... Meu pai pegou o seu bilhete...

 

DANTE:- Cortaram nosso telefone... e eu precisava falar com você... Só você pode me ajudar...

 

BIA:- Podia, podia! Mas agora, miou, cara, miou... Meu pai não vai me dar nunca aquela grana...

 

DANTE:- Os caras vão me matar, Bia... Estou fodido... Só resta você...

 

BIA:- Uma roubada, cara... uma roubada... A gente devia ter parado...

 

DANTE:- Cadê o Lucas e a Paty? Eles podiam dar uma mão, cara...

 

BIA:- Esquece. A Paty tem uma família careta pra caralho... e o Lucas, bem... não sei, só falando com ele...

 

DANTE:- Mas os dois chegaram juntos em todas as viagens... com tudo quanto é tipo de merda que a gente cheirou, fumou, picou, tomou... Eu vou na captura dos dois. Eu quero os dois aqui, com a gente... que porra!

 

 

Casa da Patrícia. Ela está sentada no chão, sobre uma almofada, com as pernas cruzadas e as mãos sobre os joelhos, em posição de ioga. Um incenso queima à sua frente. Tem o olhar e a fisionomia alheados. Balança o corpo de um lado para outro, entoando um mantra.

 

 

PATY:- Um bicho... eu sou um bicho... quero entrar na terra... eu sou um bicho... uma minhoca... (Ri).

 

 

Canta “A canção da loucura”:

 

 

eu sou um bicho

quero entrar na terra

me sinto um lixo

a minhoca que erra

 

ah! ah! ah! um bicho eu sou

vejo duendes no ar

sai, sai, sai pra lá,

seu duende mau, sai,

o sonho é meu, vai,

pro sonho do Lucas, vai,

 

ai, Luquinhas, seu bilau,

seu bobo, você é mau,

ai mãe, me ajude, pai,

seu duende mau, sai,

 

não quero mais, meu pai,

eu quero morrer, mãezinha,

um pico, um pico, um sonho

para não voltar mais

eu quero ir pra terra do jamais

eu quero morrer, meu pai,

eu juro que vou, meu pai,

eu juro que não vou mais

ai, seu duende mau,

me mostra o bilau,

Lucas, você não é mais

você não sonha mais

eu vou pra terra do jamais

 

 

PATY:- Mais um pico, mãezinha, só mais um... a última... a última viagem... Eu vou sair dessa, mãezinha, eu juro... eu não faço mais...

 

 

Entra um médico, acompanhado dos pais de Patrícia. O médico aplica-lhe uma injeção.

 

 

PAI DE PATRÍCIA:- Ela... ela tem cura, Doutor?

 

MÉDICO:- Ela é jovem e o problema foi detectado no começo... e vocês souberam agir com rigor e carinho. Um bom programa de desintoxicação poderá salvá-la. Mas o apoio de vocês será fundamental. Nunca a deixem sem o apoio de vocês. Vai ser uma dura viagem de volta, mas ela voltará...

 

 

Saem todos, com o médico amparando Patrícia, que diz palavras ininteligíveis. Tempo. Bia e Dante vagam à procura de Lucas. Estão cansados e desorientados.

 

 

BIA:- Vem... mais um clube... eu sei que ele gosta de freqüentar esse clube... Vamos lá...

 

DANTE:- Já fomos em tudo quanto é festa de mauricinho... Eu não agüento mais... Me deixa...

 

BIA:- Não... precisamos achar o Lucas... Ele... só ele pode nos salvar... Ouça, a música que ele gosta... é ele, só pode ser ele... Vamos.

 

 

Chegam a uma festa rave. Luzes, som etc. Encontram Lucas, dançando como um louco. Bia e Dante esquecem o cansaço, ao aceitar o fumo de Lucas e entram na dança com ele. Após algum tempo, saem os três.

 

 

LUCAS:- Mais uma viagem? Vamos?

 

BIA:- Você está louco? Nem pensar...

 

DANTE:- Estamos sem grana, cara... e tem uns caras aí que...

 

LUCAS:- Vocês são uns frouxos...

 

DANTE:- Já te falei, cara... tão na nossa cola... querem apagar a gente... não dá mais...

 

LUCAS:- Eu pago... eu pago...

 

DANTE:- Você tem dinheiro, seu puto? Você tem dinheiro?

 

LUCAS:- Tinha... tinha... uma boa grana... olha aqui...

 

 

Tira os papelotes de droga do bolso e mostra para os amigos.

 

 

DANTE:- O filho-da-puta... ele tinha grana...

 

BIA:- E comprou mais droga...

 

LUCAS:- É isso aí, meu irmão... uma viagem... uma grande viagem... patrocinada pelo Luquinhas aqui... Vamos nessa...

 

BIA:- Mas, Lucas, os caras para quem nós devemos... O que vamos fazer?

 

LUCAS:- Esquece... esquece eles... vamos nos divertir... Olha: um amigo meu tem um chalé na praia... um lugar descolado pra caramba... Vamos pra lá... é um sitting legal... tenho aqui cinco hits pra cada um... é pra botar pra foder, camaradas... Vamos nessa!

 

DANTE:- Não, cara... chega! A gente não pode dar bobeira... os caras que estão atrás de nós são barra pesada... eles não aliviam... Temos que arrumar grana... de qualquer jeito...

 

LUCAS:- Porra, cara... virou maricas... Eu já disse que grana não é problema: quando a gente voltar, a gente arruma...

 

BIA:- Arruma como, cara? Tá maluco? O Dante perdeu o emprego... meu pai trancou o cofre... e que eu saiba você não é nenhum riquinho que anda queimando verdinha por aí...

 

LUCAS:- Aí é que o bicho pega... Achei uma mina...

 

BIA:- Mulher, Lucas! Você está explorando mulher?!

 

LUCAS:- Sai fora, Bia, que mulher que nada... Eu falei mina, mas mina de ouro... grana fácil... tá ligada? Grana!

 

DANTE:- Você é pirado...

 

LUCAS:- Vocês são a minha tribo... meus irmãos... acham que eu ia entubar vocês, acham? Pois eu juro... juro pela minha mãezinha que tá tudo sobre controle...

 

BIA:- Sob controle... sob...

 

LUCAS:- É... isso aí... numa boa, irmãzinha... sobre... sob... é tudo a mesma merda e pra você não encher o meu saco... sobre um monte de grana... É só eu querer.

 

BIA:- Então me diz: onde está essa porra de mina que você falou... que nós vamos lá pegar a grana e pagar os caras...

 

LUCAS:- Calminha, calminha... Primeiro, a fé e depois o trampo... Vamos dar um rolê nessa praia... a gente fica lá uns dois dias... espera a barra aliviar por aqui e depois a gente volta, passa a mão na grana, paga os caras e...

 

DANTE:- Liberdade! Estaremos livres... você jura?

 

BIA:- Eu não sei, não...

 

DANTE:- O que a gente tem a perder? Estamos fodidos mesmo...

 

BIA:- bem, mas é a última, hem?

 

 

Tempo. Quarto de Bia. Ela acorda e se olha ao espelho.

 

 

BIA:- Quem merda... olheiras! E uma espinha... quando vão acabar? Como eu queria que essas espinhas acabassem... meu tempo acabasse... o mundo acabasse... Estou uma bosta...

 

 

Canta “A canção do espelho”:

 

uma moça não deve nunca

olhar-se ao espelho de manhã

uma moça não pode nunca

murchar como uma maçã

 

sentir-se feia na mocidade

espinhas no rosto, nariz torto,

boca grande, nunca é tarde,

nunca é cedo para um porto

onde está minha juventude

onde estão os meus sonhos

já fiz tudo o que pude

sinto-me feia, no espelho,

de manhã, de manhã,

um bicho, um escaravelho,

cara murcha de maçã

onde estão os meus sonhos

onde está minha manhã

 

 

BIA:- Eu estou perdida... perdida... o que eu faço, meu Deus? O que eu faço?

 

 

Começa a arrumar uma mochila. Entra o pai. Como sempre, tem uma bíblia nas mãos.

 

 

PAI:- O que você está fazendo?

 

BIA:- Não vê? Arrumando minha mochila.

 

PAI:- Cada dia pior, meu Deus! Até onde vai essa menina, meu Pai?

 

BIA:- Não enche, pai... Vou dar um tempo...

 

PAI:- Dar um tempo... dar um tempo... Vê lá aonde você vai... e o que vai fazer...

 

BIA:- Desculpe... desculpe, meu pai... Ando um pouco... estressada... estudando muito... o vestibular está aí, e eu não sei mais o que quero...

 

PAI:- Não tenho visto você com livros... A melhor aluna da classe... você sempre foi a melhor, Bia... e agora... o que está acontecendo, minha filha? Você sabe que pode sempre contar com seu pai... já esqueci a teologia... você pode fazer medicina... se é a vontade de Deus... e a sua... Mas você precisa estudar, filha... estudar muito...

 

BIA:- Mas eu tenho estudado, sim... Você não vê porque não larga essa... porque não pára em casa... ocupado com seus fiéis...

 

PAI:- Você tem razão, filha... Os caminhos de Deus têm tomado muito de meu tempo... mas agora estou aqui... Podemos conversar,  resolver todos os problemas, voltar a ser amigos...

 

BIA:- Amigos, pai? Amigos? Eu preciso de um pai, não de um amigo...

 

PAI:- Mais uma vez você tem razão... tenho sido ausente, mas ainda há tempo...

 

BIA:- Você me dá a grana de que eu preciso?

 

PAI:- Já empenhei minha palavra com o Senhor... nada de dinheiro...

 

BIA:- Então o que estamos fazendo aqui? Brincando de pai e filha? Não. Não há mais tempo, meu pai... Sem grana, não há mais tempo.

 

PAI:- Você só pensa em bens materiais... vamos à igreja, como nos velhos tempos... você se abre com Jesus. Você sabe que Ele é o caminho... a vida toda eu lhe ensinei que Cristo é o caminho, a verdade e a vida...

 

BIA:- Vida. Que vida, meu pai? Você algum dia perguntou se era essa a vida que eu queria? Perguntou? Eu sei que você procurou me dar tudo o que você achava que eu precisava... E aí está o problema... você nunca me deu opção... Sempre o seu jeito... sempre o seu caminho... sempre a sua palavra... sempre... sempre... Olha, eu queria fazer medicina, meu pai... ajudar os outros... não está fora do que você queria que eu seguisse... na sua igreja... mas do meu modo... Médica, meu pai... Uma medicina social, voltada pra quem realmente precisa... Mas não sei mais... estou confusa... Não sei mais... Agora é tarde... Acho que a vida me levou para outro lado... Tchau! Bye...bye... Hasta la vista...

 

 

Bia sai. O pai fica um instante em silêncio, cabisbaixo. Abre a Bíblia e lê o versículo 13 do capítulo 21 do Livro do Apocalipse.

 

 

PAI:- “E deu o mar os mortos que nele havia; e a morte e o inferno deram os mortos que neles havia; e foram julgados cada um segundo as suas obras.”

 

 

Entra a mãe.

 

 

MÃE:- Cadê a Beatriz?

 

PAI:- Não... não sei... saiu...

 

MÃE:- Vocês andaram discutindo de novo...

 

PAI:- É preciso orar... orar muito... para que essa menina retome os caminhos do Senhor...

 

MÃE:- Orações apenas não bastam, meu marido...

 

PAI:- Duvida da palavra do Senhor, mulher?

 

MÃE:- Não, meu marido, você sabe que não... Mas nossa filha anda estranha... alheia... agressiva... Não é a mesma menina... Tem algo de muito estranho acontecendo com ela... Nós precisamos...

 

PAI:- Nós precisamos orar... orar muito... Satanás está rondando nosso lar...

 

MÃE:- Escuta, meu marido, Satanás pode estar escondido sob a pele de coisas muito ruins... Eu sou mãe, eu sinto que estamos perdendo nossa filha... Só orações não bastam, é preciso que a levemos a um médico, a um psiquiatra... sei lá...

 

PAI:- Nossa filha não é louca... não está louca... Só Cristo salva, ouviu? Só Cristo salva!

 

 

Som de mar, música suave etc. Beatriz, Dante e Lucas estão sentados sob uma barraca de praia. Fumam e passam a bagana de um para o outro.

 

 

DANTE:- É melhor você se acalmar, Bia... senão a viagem não vai ser legal...

 

BIA:- Não consigo relaxar... depois do que aconteceu com a Paty...

 

LUCAS:- Esquece essa mina, cara... ela já era... muito careta... gente careta não agüenta o repuxo...

 

BIA:- Por que você não cala essa sua boca e me deixa em paz, hem Lucas?

 

DANTE:- Calma, pessoal... é preciso relaxar...

 

BIA:- Esse cara só abre a boca pra falar asneira... Que coisa! Eu já falei que faço o que quero e vou parar quando quiser!

 

LUCAS:- Irritadinha, a menina, não? Arma barraco lá na casa dela e vem descontar em mim... Tá bom, o Luquinhas aqui agüenta o repuxo... Vamos, tripudia, cara, tripudia...

 

DANTE:- Se vocês não pararem com briguinha idiota, não vai dar... fora...

 

 

Bia e Lucas se olham com raiva, procuram acomodar-se melhor e voltam a se concentrar. Passam-se alguns instantes.

 

 

DANTE:- Agora que tudo se acalmou... estão todos relax, vamos nessa... Mas lembrem: um só hit de cada vez e só tomem...

 

BIA:- ... o segundo e o terceiro... e o quarto e o quinto... se estiverem numa boa, sem fissura... Que saco, cara... já ouvimos essa sua lição uma porrada de vezes... Pára com isso...

 

DANTE:- Está bem... Cadê os hits, Lucas.

 

 

Lucas entrega a Dante o papelote com a droga. Dante recorta um para cada um dos três.

 

 

BIA:- Eu quero a minha parte toda... de uma vez...

 

 

Dante titubeia um instante e entrega a ela toda a sua parte. Bia olha-o desafiadoramente. Num impulso, joga tudo dentro da boca e engole, sem que Dante ou Lucas tenham tempo para qualquer reação.

 

 

DANTE:- Não! Sua louca! Você sabe que não pode fazer isso... Quer morrer?

 

BIA:- Desencana, Dante... Você sabe que eu já tomei mais do que isso... Desencana... Agora é tarde... Me deixa fazer essa viagem pra valer... Afinal, sempre pode ser a última... E você sabe que...

 

DANTE E LUCAS:-  ... que eu paro quando quiser!

 

 

Lucas toma a sua dose e fica alheio. Dante apenas finge que toma também e fica de olho em Beatriz. Tempo. Lucas está num canto, curtindo sua viagem. Dante cuida de Beatriz que, deitada com a cabeça em suas pernas, tem tremores e alucinações. Somente um foco de luz sobre o casal. Figuras horríveis, com máscaras de seres estranhos multiplicadas em várias cabeças começam a girar em torno deles, numa dança alucinada, cantando e dançando “A canção da bad trip”:

 

 

foge, Bia, foge, Lucas

foge, Dante, foge, Bia,

a luz, a luz, o fogo, o fogo,

a noite, a noite, o dia,

a morte, o vento, o jogo,

carranca, carranca, o frio

foge, Lucas, foge, Dante,

não vai pra diante,

foge, Lucas, foge, Bia,

o vento, o vento, o rio,

foge, foge, foge,

a morte, o rio, o mar,

foge, foge, Bia,

a noite, o vento, o ar,

louca a vida, louca a vida,

foge, Bia, foge,

vida, vida, vida sofrida

 

 

BIA:- O inferno... meu pai... o inferno, Dante... estou no inferno... eu quero morrer, meu pai... eu quero o paraíso, meu pai...

 

 

Tempo. Lucas, em atitude de espera, consulta várias vezes o relógio, olha para um canto, para outro, caminha de um lado para outro, impaciente.

 

 

LUCAS:- Aqueles putos... aposto que estão cagando nas calças... covardes... medrosos...

 

 

Dante e Bia chegam apressados, cansados.

 

 

LUCAS:- Atrasados, seus bostas... Andem... Trouxeram tudo?

 

DANTE:- Acho... acho... que... que... sim...

 

 

Mostram um revólver e umas máscaras.

 

 

LUCAS:- Prestem bem atenção... não pode ter furo... a casa é aquela ali. O guarda tá amaciado... a gente vai dividir com ele...

 

BIA:- Então, pra que a arma?

 

LUCAS:- com medo? Ainda tem tempo de cair fora...

 

BIA:- Vou ter medo de quê? Me diga! Se eu já estive no inferno, vou ter medo de uma droga dessa...

 

LUCAS:- bem... então presta atenção...

 

 

Os três se abraçam numa roda, por alguns instantes. Depois colocam as máscaras sobre os rostos, batem as mãos uns nos outros, fazem sinal de positivo e, no cenário de videogame,  cantam e dançam“A canção do videogame 3”:

 

 

é jogo, é fogo

que me consome,

não há dor

não há fome

só o que sinto

um grande dó

um grande dó

de mim!

no jogo, o fogo

que me destrói

vem de mim

vem de mim

 

viver não basta,

morrer talvez,

tecendo a teia

rompendo a veia

jogando tudo

pra dentro

pra dentro

de mim

de mim

 

o fogo, o jogo

arrasta a vida

enfim

tão logo o jogo

tão logo o jogo

chegue ao fim

 

 

Saem correndo. Black-out. Tiros, gritos, sirene de polícia, grande confusão. Quando tudo cessa, Dante e Bia se reencontram, esbaforidos. Tiram as máscaras e se abraçam.

 

 

DANTE:- Que merda, Bia... como fomos entrar numa fria dessa...

 

BIA:- Estamos fodidos, cara... com o Lucas preso...

 

DANTE:- E ele vai dedurar a gente...

 

BIA:- Espero que não, cara... o Lucas pode ter um monte de defeito, mas ele não é mau caráter...

 

DANTE:- Debaixo de pau, não tem caráter que agüente, Bia....

 

BIA:- O pai dele não é pouca merda, não... eles tiram ele da cadeia...

 

DANTE:- E nós? O que vamos fazer? Se a polícia não nos pegar, os caras nos pegam... Estamos sem um puto no bolso, Bia... O que vamos fazer? Me diz: o que será da gente?

 

BIA:- Só vejo uma saída... Escuta: eu conheci um cara... na época eu tive vontade de cuspir nele... Ele me fez uma proposta...

 

DANTE:- Proposta? Que proposta?

 

BIA:- Ser garota de programa.

 

DANTE:- Puta que pariu, Bia! Você está louca?

 

BIA:- Por quê? Eu não sou bonita? Não tenho um bom corpo? Qual o problema? Faço uns michês, ganho algum e caio fora.

 

DANTE:- Michê, Bia? Michê? Você já  está falando em michê?

 

BIA:- Agora quem está falando igual a mim é você... Claro, michê, seu bobo, é um programa...

 

DANTE:- Eu não acredito! Eu não acredito! Você está falando que nem puta...

 

BIA:- É que eu não te contei... Olha: já tenho até uma parte da grana... Toma!

 

DANTE:- E você ganhou isso...

 

BIA:- Em duas noitadas, Dante... três caras... A gente pode ganhar muito mais...

 

DANTE:- A gente? O que você quer dizer com isso?

 

BIA:- É uma agência, cara... tudo profissional... os caras... eles me disseram que trabalham também com rapazes...

 

DANTE:- Pô, Bia! Você está me achando com cara de veado?

 

BIA:- Claro que não... não é isso, seu bobo... Você pode sair com algumas madames... que são louquinhas para pegar um cara assim como você... novinho... gostoso...

 

DANTE:- E eu vou ter que trepar com coroa muxibenta... cheia de celulite... gorda...

 

BIA:- Não seja idiota, Dante... E só fechar os olhos e mandar brasa... Finja... finja que está comigo... são só alguns momentos... e vale a pena!

 

DANTE:- Você está fazendo isso para pagar a grana que a gente deve ou...

 

BIA:- Já paguei... já paguei... tudo... Fica na sua...

 

DANTE:- Então você... você está fazendo isso pra quê?

 

BIA:- Ora, Dante... não seja bobo... E nossas viagens, meu querido?...

 

DANTE:- Mas você dizia que parava quando quisesse...

 

BIA:- E paro mesmo... só que eu ainda não quero parar... entendeu? Eu ainda não quero parar!

 

DANTE:- Eu fora... e você, também... Pára com isso... Não quero você se metendo com esse tipo de gente...

 

BIA:- Está bem, eu não me meto com esse tipo de gente... mas... sem a grana para as viagens você sabe muito bem que tipo de gente vai meter duas azeitonas na nossa cabeça, não sabe?!... É preciso grana, Dante! Grana!

 

 

Dante vai-se afastando desolado, enquanto Beatriz repete a palavra “grana” desafiadoramente. Tempo. Casa de Beatriz. Seu pai lê a bíblia à luz de um abajur. Toca o telefone. Ele atende.

 

 

PAI:-  Alô... Sim, ele mesmo... Sim, minha filha se chama Beatriz... Não, ela não está... Quem está falando, por favor?... Como? Delegado?... Polícia?...

 

 

Longa pausa, entra a mãe e começa a prestar atenção na conversa.

 

 

PAI:- O senhor tem certeza? Mas minha filha não é... isso o que o senhor disse... Deve haver algum engano... (Pausa). Sim... é isso, mesmo... Mas... tem que ser engano... não pode ser...... Não é possível... Está... está bem... qual é o endereço?

 

 

Anota e desliga o telefone.

 

 

MÃE:- O que houve?... Pela sua cara...

 

PAI:- Nossa filha... Beatriz... ela...

 

MÃE:- Pelo amor de Deus, homem... fala logo... o que houve com Beatriz? Quem era ao telefone?

 

PAI:- A polícia...

 

MÃE:- Polícia?! Fala logo... o que houve? Me dá esse endereço...

 

PAI:- Ela... acho que... ela foi presa... está presa... como...

 

MÃE:- Fala logo, homem...

 

PAI:- ... na rua... como... prostituta... Não pode ser, deve haver algum engano...

 

MÃE:- Você não está dizendo coisa com coisa, homem... Que negócio é esse de... de prostituta?...

 

PAI:- Não sei! Não sei! Deus meu, o que fazer, meu Deus?

 

MÃE:- Temos que ir lá... vamos, me dê esse endereço... Vamos atrás de nossa filha...

 

PAI:- Como? Atrás de nossa filha... na rua? Na polícia?... Eu nunca estive na polícia... Que vergonha, meu Deus...

 

MÃE:- Não importa... Temos de ir... e nós vamos!

 

 

Saem. Na rua, Beatriz vestida com roupas extravagantes, procura clientes. Aproxima-se um sujeito mal encarado e aborda-a.

 

 

HOMEM:- O que a mocinha pensa que fazendo aqui?

 

BIA:- Não enche, cara... Cai fora...

 

HOMEM:- Trabalhas pra quem, podes me dizer?

 

BIA:- Já disse, cara... Se a fim, tudo bem... Se não, cai fora... Me deixa...

 

HOMEM:- Acho que a mocinha não está entendendo... Eu perguntei pra quem que mocinha trabalha... e não estou pra brincadeira...

 

BIA:- Vai à merda...

 

HOMEM:- Olha aqui, garota... Esse ponto é meu e aqui só trabalha quem eu deixo, entendeu... Vai caindo fora...

 

 

Chega Dante e, diante da situação, empurra o homem, que tentava agredir Beatriz, e derruba-o.

 

 

DANTE:- Cai fora, você... seu... seu ... filho da puta!

 

BIA:- Não, Dante... não... vai embora...

 

DANTE:- O que esse desgraçado queria, hem?

 

 

Parte pra cima do homem e chuta-o. Beatriz tenta afastá-lo. O homem se encolhe com o pontapé, tira uma arma e atira duas vezes em Dante, que cai ensangüentado. O homem foge, Beatriz senta-se, coloca  a cabeça de Dante sobre suas pernas e tenta reanimá-lo.

 

 

BIA:- Dante... por quê? Por quê? Não morra, Dante... você não merece isso...

 

DANTE:- Bia... estou com sede... me dá água, Bia... estou com sede... acho que a viagem não vai ser muito legal...

 

BIA:- Você não pode morrer, Dante... você não pode... Que inferno, Dante... não morra!

 

DANTE:- Eu... eu preciso te falar uma coisa...

 

BIA:- Não fale... você está fraco...

 

DANTE:- Pode... ser... que... eu... nunca mais... Bia, escuta:... eu te amo... Bia... eu sempre te amei... eu posso não... ser... o cara... mais certo... mais certo pra você... mas eu te amo...

 

Cantam “A canção do fim”:

 

Bia:

se partir, eu morrerei

se você morrer, eu sofrerei

 

Dante:

eu te amo, tenho sede,

eu tenho sede e te chamo

Beatriz, Beatriz, adeus

 

Bia:

fecho os olhos meus

pois não quero ver

você chorar, você sofrer

 

Dante:

diz, me diz,

minha Beatriz,

você me ama,

você gosta de mim?

 

Bia:

sempre, sempre, Dante,

antes, muito antes do fim,

eu não perdôo o que me fiz

eu te amo, Dante, eu te amo

 

Dante:

se me for, irei feliz,

se você... se você jurar

não mais fazer o que fez

 

Bia:

minha cabeça explode

com a droga que me fode

não farei outra vez

 

 

BIA:- Dante, Dante... por favor, não morra... eu... também... te gosto... eu... eu te amo, seu bobo... eu também te amo...

 

DANTE:- Você... você é... forte, Bia... eu sou fraco... me ajude... não deixe que... que... a droga... que ela coma... que ela coma sua cabeça, Bia... você é forte...

 

BIA:- Eu nunca fui forte, Dante... eu nunca fui suficientemente forte, Dante... eu preciso de você, agora... Dante, não morra, por favor, não me deixe com ela... ela vai comer meu cérebro, se você morrer... ela vai comer meu cérebro... ela vai comer meu cérebro...

 

 

Beija-o, chorando desesperadamente. Entram os pais de Beatriz, esbaforidos, abraçam-se a ambos, enquanto Dante morre. Entra “A canção de Beatriz”.

 

 

FIM

 

 

Isaias Edson Sidney

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2001

 

 

 

 

 

 

 

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