Bernini: ecstasy of st. Teresa
UM AMOR DE PERDIÇÃO
DRAMA EM UM ATO
INSPIRADO NO LIVRO
“AMOR DE PERDIÇÃO”
DE
CAMILO CASTELO BRANCO
e nas cartas de
SÓROR MARIANA ALCOFORADO
♥
ISAIAS EDSON
Rua dos Buritis, 251
Jabaquara, São Paulo, SP
cep.04321-001
telefone: (11)5011-9628
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dezembro de 2000
PERSONAGENS
Mariana Alcoforado
(freira do século XVII)
Teresa de Albuquerque e Simão Botelho
(amantes do século XVIII)
Baltasar
(primo de
Teresa, século XVIII
Teresa de Albuquerque
( professora, atualidade)
Simão
(jovem estudante, aluno de Teresa; atualidade)
ATORES
Dois atores fazem todos os papéis.
Música e ruído de mar, altos. Um pequeno
silêncio. Só ruído de mar. Foco sobre Teresa dentro de uma espécie de jaula.
Ela está deitada, encolhida em posição fetal. Vai aos poucos se movendo, até
sair da jaula totalmente, enquanto termina o monólogo.
TERESA:-
“Que será de mim?....e que queres tu que eu faça?...Vejo-me bem longe de tudo o
que tinha imaginado! Oh! triste de mim! Quanta compaixão mereço, visto não
sermos ambos participantes das penas, mas eu só a desgraçada!...Este pensamento
mata-me, e morro de susto de que jamais tenhas sido extremamente sensível a
todos os nossos prazeres. E como é possível que com tanto Amor eu não tenha
podido fazer-te completamente venturoso? Lamento, por Amor de ti somente, as
deleitações infinitas que perdeste...” Eu, Mariana Alcoforado! Eu, Mariana
Alcoforado! Eu, esbatida e abatida pelo teu amor, me confesso, perante Deus...
o meu pecado... o meu pecado... Deus! Qual foi o meu pecado, meu Deus? Amar um
homem que não me amou? Sofrer por este amor... enlouquecer por esse homem? Eu
juro, Senhor, pequei, pequei, sim, pequei por amar demais...
Já fora da jaula.
TERESA:- Por que falar de um amor
de séculos atrás, no milênio da máquina? Por que falar de amor, no milênio da
velocidade? Eu, Teresa de Albuquerque, filha única de um pai que um dia me
abandonou, a mim e a minha mãe, cego de amor e esperança por outra mulher,
estou aqui, agora, para julgar uma
freirinha portuguesa idiota que um dia se entregou a um soldado francês, nas
escadarias e nos nichos de convento quase medieval de séculos atrás? Posso
julgá-la? Que moral tem alguém para julgar o amor? Eu tenho um útero... sou
mulher! Eu tenho seios... sou mulher! Eu tenho lábios que se cobrem de cores...
sou mulher! Eu tenho cabelos longos... que se tratam com os melhores xampus...
eu sou mulher! Eu tenho nádegas... que provocam... que alucinam... eu sou
mulher! EU TENHO CABEÇA... E DENTRO DELA UM CÉREBRO... que comanda... que
pensa... que imagina... que sonha... QUE AMA! EU SOU MULHER!
Batidas fortes.
TERESA:- Vai embora! Não estou
para ninguém... Vai!
Som de batidas de coração, volume alto. Teresa, acuada,
corre de um lado para outro.
TERESA:- Vai embora, por
favor... não quero... não quero... não quero!
Voz de homem. É Simão, do lado de fora.
SIMÃO:- Professora!
Professora! Por favor, abra... abra... preciso falar... com a senhora... é
urgente!
TERESA:- Que urgência tem o
amor? Diz: que urgência tem?
SIMÃO:- Toda a urgência do
mundo... não posso mais esperar! Por favor!
TERESA:- Entra!
Simão entra e pára diante de Teresa. Numa
atmosfera de sonho, como uma cega, ela tateia seu corpo desde a cabeça até os
pés.
TERESA:- Tens uma cabeça... e
dentro dela um cérebro... tens o peito liso... teus mamilos não enrijecem como
os meus... tens um membro entre as pernas...
por ele te perdes, muitas
vezes... tens pernas fortes... nádegas
firmes... passo do leão à procura da presa... és um homem! Mas quem és? Que idade tens? O que fazes? Como te
comportas? Teus instintos... teus instintos... teus instintos te levam para a
caçada e não sabes o que te espera!
Teresa abre os olhos. Desfaz-se o sonho. Seu semblante está aborrecido e sério.
TERESA:- O que você quer, Simão?
SIMÃO:- Veja... o anúncio...
TERESA:- Anúncio?
SIMÃO:- Sim... o que a
senhora... deixou no quadro de avisos...
TERESA:- Eu pedi um auxiliar...
para a minha tese... Você se candidata?
SIMÃO:- Não...
TERESA:- Não?! Então o que faz
aqui?...
SIMÃO:- Não sou um candidato...
sou quem a senhora... procura!
TERESA:- Que idade tem?
SIMÃO:- Todas... qualquer uma...
TERESA:- Computador... você
entende de computador?
SIMÃO:- Sou o hacker da turma...
TERESA:- Não preciso de hacker,
preciso de alguém que pesquise na Internet...
SIMÃO:- Não há recanto do mundo
virtual que eu não entre... invadirei todos os sites, todos as almas... todos
os corações... pela senhora...
TERESA:- Uma condição...
SIMÃO:- Todas! Eu aceito.
TERESA:- Tire o senhora! Agora
vem... ali, naquele bar, está Teresa, a heroína de Camilo Castelo Branco, e seu
primo, Baltasar... Baltasar ama Teresa que ama Simão... Eles decidem o nosso
destino... Vem...
Sentam-se, frente a frente, a uma mesa de
bar, com algumas garrafas e dois copos. Simão faz o papel de Baltasar, primo de
Teresa.
BALTASAR:- Beba!
TERESA:- É veneno?
BALTASAR:- Claro que não, é...
vodka! Vodka é chique!
TERESA:- Preferia veneno!
BALTASAR:- É tempo de abrir-lhe o
coração, prima. Está bem disposta a ouvir-me?
TERESA:- Eu estou sempre bem
disposta a ouvi-lo, primo Baltasar.
BALTASAR:- Os nossos corações penso
eu que estão unidos; agora é preciso que as nossas casas se unam.
Teresa toma o copo e, olhando-o com ódio,
esvazia-o.
TERESA:- Veneno! O que estou
tomando é veneno!
BALTASAR:- Acaso lhe diria eu
alguma coisa desagradável?
TERESA:- O primo engana-se: os
nossos corações não estão unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em ser
sua esposa, nem me lembrou que o primo pensasse em tal.
BALTASAR:- Posso eu saber quem é
que disputa o coração de minha prima?
TERESA:- Que lucra em o saber?
BALTASAR:- Lucro saber, pelo menos,
que a minha prima ama outro homem... É exato?
TERESA:- É.
BALTASAR:- Com tamanha paixão
que...
TERESA:- ... que nada...
absolutamente nada... irá impedir-me!
Teresa levanta-se, Simão sai.
TERESA:- Eu, Diana, princesa de
Gales, amei um dia um príncipe... Casamo-nos... a cerimônia do século...
dei-lhe filhos... Não, não o amei... apenas o sonho realizado de cada plebéia,
nas capas de revista... meu verdadeiro amor tem a dimensão de uma mina que
explode e mutila e mata e devora dois corações num túnel de Paris... Dois
corações num túnel de Paris! (Pausa).
Eu também sou Teresa, Teresa de Calcutá... não amei homem nenhum, mas o meu
amor tem a dimensão de cada chaga que ajudei a curar, de cada lágrima que
ajudei a secar... (Pausa). Joana, Joana de França, minha paixão foi queimada pela
fúria de quem não soube amar... a bandeira, a bandeira de uma pátria de
joelhos... (Pausa). Romeu, Romeu...
em meus braços... tu ouvirás a cotovia... ouvirás a cotovia... a cotovia...
Ouve-se um tiro.
TERESA:- Será de sangue o nosso destino? Devo buscar o amor
que redime ou aceitar o amor de perdição? A Teresa de Camilo responderá por
mim...
Simão entra com uma arma fumegante na mão.
SIMÃO:- Fugirei... fugirei como
assassino... Não te horrorizes de minha vingança!
TERESA:- Deus! Eu já não peço a
Deus senão a tua vida. Foge... foge desses sítios... vai para Coimbra e espera
que o tempo melhore a nossa situação...
SIMÃO:- Teu primo... teu primo
Baltasar! Está morto!
TERESA:- Tinha tido um sonho, em
que via muito sangue, e eu estava a chorar porque via uma pessoa muito minha
amiga a cair numa cova muito funda...
SIMÃO:- Isso são sonhos, Teresa!
TERESA:- São sonhos, são; mas eu
nunca sonhei nada que não acontecesse...
SIMÃO:- Adeus! Antes, um
beijo...
TERESA:- Não, Simão... é preciso
que nosso amor permaneça puro como nasceu... Adeus!
Focos de luz destacam Teresa e Simão, que
trocam mensagens por computador.
SIMÃO:- Dize-me a noite e a hora
em que devo esperar-te...
TERESA:- Não me desampares,
Simão...
SIMÃO:- Onde estás?
TERESA:- ... convento
rigoroso... é preciso, para que não me forcem a falar de ti...
SIMÃO:- És minha! Não sei de que
me serve a vida, se não a sacrificar a salvar-te...
TERESA:- Vem, Simão... NÃO...
NÃO VENHAS... Armadilhas te esperam...
Teresa desliga o computador. Levanta-se, anda
de um lado para o outro, ansiosa.
TERESA:- A Teresa de Albuquerque
de Camilo não escreveria isto: “não, não venhas...” Seu amor por Simão, presa
naquele convento por um pai tirânico que preferia vê-la morta, sim, morta, como
Mariana Alcoforado, enterrada viva nos votos, no hábito de freira... seu amor a
levaria a fugir, se tivesse oportunidade. Ou não? Qual Teresa eu quero
encontrar? A virgem abúlica ou a Teresa guerreira que penso ser? Qual Teresa eu
sou, afinal? Terei a coragem de meu pai? Terei? Terei a coragem de enfrentar o
mundo por um amor louco e sem razão?
Batidas à porta. Teresa faz Simão entrar. Ele
traz alguns papéis e livros.
SIMÃO:- Veja... o resultado de
minhas pesquisas... Há muito, muito material sobre a tua Teresa e sobre todas
aquelas mulheres que a senhora... que você pediu que eu pesquisasse... Mas há
coisa melhor, que eu trouxe... Veja: é de primeira. Vai-nos dar ânimo, vai-nos
dar brilho para...
TERESA:- Simão!... Cale-se... não
fale! Eu sei que é loucura, mas eu sou Teresa
de Albuquerque e da sina desse nome não posso fugir...
Beijam-se. Armam, no chão, a carreira de pó.
Cheiram e amam-se.
TERESA:- Estamos procurando
encrenca, encrenca das bravas... Não! Não fale! Sou sua professora e você...
você é tão jovem... meu querubim... Nossas orgias de sexo e droga, nunca
pensei... Você me leva para o paraíso que Julietas e Dianas nunca tiveram...
SIMÃO:- Jura que morrerá por
mim... Vamos, jura... Você é uma nova mulher... e eu te batizo (despejando o líquido de uma garrafa sobre
Teresa) com o álcool que nos envenena... eu te faço mulher... sou eu o teu
homem... Vamos morrer juntos... vamos...
TERESA:- Julieta! Eu sou a tua
Julieta... numa cripta escura, eu estou morta... Assim... esticada... por obra
e graça de um padre louco... não, não estou morta de verdade... eu finjo... mas
você, Romeu... você acredita... você acredita que morri... Você se matará?
Jura? Você se matará por mim?
Às gargalhadas, eles brincam e rolam pelo chão. Tempo.
Teresa escreve ao computador.
TERESA:- Temos o mesmo nome e a
mesma paixão: Teresa de Albuquerque, ainda tão jovem, 16 anos, e tão
terrivelmente apaixonada! Não sou tão jovem, mas o meu coração ainda é puro...
Meu pai... Lembro meu pai alucinado por uma... uma qualquer... nunca o
entendi... Talvez agora o encontre dentro de mim... depois de morto, morto por
uma paixão que o consumiu, em noites de orgia e drogas e bebidas... Um amor...
um amor de perdição! Talvez compreenda meu pai nesse amor louco da Teresa de
Camilo... Ei-la, ei-la que surge de meus sonhos e não tem um pai como eu
tive... o MEU pai me apontou o caminho da liberdade... num amor bandido... num
amor de fúria!... O pai da Teresa de Camilo apontou-lhe o caminho da
submissão... da tristeza...
Teresa levanta-se e começa a dançar com
alguém invisível, já como a heroína de Camilo. Entra Simão e contempla-a de
longe.
TERESA:- Sim, meu pai... a noite
está maravilhosa... Este baile, os convivas... Sim, meu pai, estou feliz... Mas
sinto... sinto uma dor... preciso respirar... O ar está um pouco abafado... Com
vossa licença, meu pai...
Teresa faz uma pequena reverência ao pai
invisível e corre até Simão, que a espera. Não se tocam, embora manifestem, por
gestos, o anseio de se abraçarem.
TERESA:- Vai-te embora; vem
amanhã às mesmas horas... Vai, vai!
Separadamente, sem se tocarem, cada um simula
um longo beijo. Simão sai e Teresa caminha arrastadamente até o computador.
Senta-se e, com os braços pendentes ao longo do corpo, cabeça baixa, fica por
alguns instantes pensativa. Ergue-se, de repente.
TERESA:- Era isso o amor? Era
isso o amor? Sofrimento! Separação? Impossibilidades? ERA ISSO O AMOR ou É ISSO
O AMOR?
Recompõe-se, toma um jornal e lê, para a
platéia, algumas notícias.
TERESA:- Belo Horizonte: marido
ciumento surra até a morte a esposa, porque desconfiou que ela mantinha um caso
com o seu professor de piano. Na delegacia, em meio à confusão, o tal professor
confessou que era... homossexual. Bombaim, Índia: jovem apaixona-se por rapaz
de uma casta acima da sua e, rompendo os rígidos códigos que regem as relações
entre castas, a ele se entrega. Foi apedrejada até a morte pela multidão
enfurecida. Isso ocorreu numa distante cidadezinha do interior. Ah, bom... numa
distante cidadezinha do interior da Índia, pode! São Paulo, capital: polícia
prende a menor M.R.S. que, cega de ciúmes de seu companheiro, com quem vivia há
dois anos, ateou-lhe fogo, enquanto ele dormia tranqüilamente em seu barraco na
favela... Em conseqüência de seu ato, oitenta barracos foram destruídos pelo
fogo. O jovem, internado no hospital, não resistiu às queimaduras... etc., etc.
A heroína de Camilo Castelo Branco, Teresa de Albuquerque, no início do século
dezoito... Mas esta é a história a que estão assistindo, não preciso contar,
não é mesmo?
Volta-se e dá de cara com Simão que, parado
um pouco atrás, esperava que ela terminasse o monólogo. Traz nas mãos uma
pasta.
TERESA:- Simão! Meu querubim...
Pensava em você, meu amor!
Abraçam-se.
SIMÃO:- Teresa, escuta... Você
me ama mesmo, de verdade?
TERESA:- Que provas você quer de
meu amor, querido? Que eu me mate?
SIMÃO:- Matar-se? Não...
matar-se, não... Mas...
TERESA:- Então? O que você quer?
O que você tem aí, nessa pasta? Alguma surpresa? Vamos sair? O que nós vamos
fazer?
Ela gira em torno dele, dançando, feliz. Ele
fica atordoado e aborrecido.
SIMÃO:- Pára! Pára com isso,
Teresa! É sério: preciso de você...
Ela toma-lhe a pasta da mão e abre-a
desajeitadamente. Cai um revólver. Teresa se assusta.
TERESA:- Um... revólver? Isto
é... um... revólver?
SIMÃO:- Não, idiota... é uma
cenoura! Desculpe... desculpe... não queria magoá-la... Vem, me abraça... você
é o único amor de minha vida... Não chore... vamos, isso... Agora me beija...
Depois de alguns instantes, em que ele a
abraça, beija e consola, Simão, procurando ser o mais natural possível, pega a
arma no chão, coloca-a dentro da pasta e deixa-a em algum canto.
SIMÃO:- Veja que coincidência,
meu amor... Estava eu, esta sua pessoinha aqui, saindo da... da biblioteca...
que... você me pediu para ver se tinha aqueles livros sobre Camilo... pra sua
tese, sabe?... quando topei com um velho amigo meu, o Tonhão Maneta, isto é, o
Antônio... Antônio Cruz... e ele, sabe, me convidou para um lance aí, sabe...
um negócio daqui... a gente pode amarrar o burro na sombra, é coisa de muita
grana...
TERESA:- Mas, Simão... isso não
vai atrapalhar os seus estudos, vai?
SIMÃO:- Que isso, Teresa?
Querendo bancar a “tia” pra cima de mim?
TERESA:- Não fale assim... não
gosto...
SIMÃO:- Nós vamos ficar ricos,
Teresa... Ricos! Ricos!
Simão sai.
TERESA:- Trabalho... ao
trabalho, antes que esse menino tome conta de minha vida, do meu ser! Preciso
pensar no dilema de Camilo: o amor como perdição ou como salvação... E o que
tem a ver sóror Mariana Alcoforado com o amor de ambos? Mariana amou e não foi
amada. Mas Camilo tem uma outra personagem apaixonada: por coincidência, outra
Mariana, que ama Simão, que morre por Simão e depois morre com Simão, mas não é
amada por ele... Eu devia chamar-me Mariana... Não, não... Teresa pelo menos
foi amada e eu sou amada. Ah! Meu querubim... tu me amas e eu te amo... e nosso
amor não é de perdição... apesar de tudo... apesar de tudo... Sóror Mariana do
Alcoforado, a freirinha do século dezessete tem as mesmas preocupações das
teresas do século vinte e um?
Teresa, lentamente, vai-se deitando na
posição fetal, como se houvesse em torno dela a jaula da primeira cena. Só um
facho de luz ilumina-a. Fala lenta e pausadamente, ao som de ruídos de mar.
TERESA:-
“Não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o que desejo... Mil tormentos
contrários me despedaçam!...Quem poderá imaginar um estado mais deplorável?...
Amo-te como uma perdida, e modero-me ainda assim contigo, até não ousar talvez
desejar-te as mesmas tribulações, os mesmos transportes que me agitam...
Matar-me-ia, ou a não fazê-lo, morreria de dor, se estivesse certa que nunca
tinhas repouso, que a tua vida era uma contínua desordem e perturbação, que não
cessavas de derramar lágrimas, e que tudo aborrecias...”
Teresa levanta-se e volta ao “normal”.
TERESA:- Amor e morte... amor e
morte... Atribulações... Amor e atribulações... Abandonada num convento, pela
família, pelo homem de sua vida, pela sociedade... Santa Mariana Alcoforado,
devias ser a santa protetora de todas as abandonadas... e serias do altar a
santa de maior prestígio...
Dirige-se
ao computador.
TERESA:- Ao trabalho, que a
outra Teresa me espera... também num convento... excluída do mundo por causa do
amor...
Escreve.
TERESA:- A pesquisar: terão as mulheres do meu tempo a
mesma capacidade de entrega? E os homens? Também se apaixonam e se entregam
através de bate-papos virtuais, o coração pulsando em bits e bytes? (Pausa). O Simão de Camilo é um assassino... matou
Baltasar por ciúmes de sua amada... Meu pai não matou... morreu por amor... E
eu? E eu, meu Deus? Qual a minha sina? Morrerei ou matarei por amor? Ai, meu
Simão... meu amado Simão... tu me enlouqueces e não sei se te entregas a mim,
como o herói de Camilo que se perde por amor de sua Teresa... Cumprirei, sim, o
teu destino, meu amado Simão, não com o amor que consome e mata por inanição,
de fome, mas com o amor que mata e faz matar pela saciedade... Meu corpo tem as
carnes cheias de quem deseja o mundo... de quem ama com suor, com lágrimas, com
saliva, com todos os líquidos e sólidos de que sou feita... não como essa...
essa heroína miserável do romantismo abúlico de Camilo... a chorar pelos cantos
de um convento a separação de seu amado...
Depois
de alguns instantes de silêncio, aos poucos, transforma-se na Teresa de Camilo.
Dirige-se ao centro do palco com uma bacia de água, com que começa a lavar-se.
TERESA:- Simão... meu amado...
Se esta água fossem as lágrimas que por ti já chorei, eu teria a certeza de que
são puras... puras como pura eu me guardo para ti, meu amado...
Um foco sobre Simão, sentado a uma enxerga,
na prisão.
SIMÃO:- Eis-me aqui, Teresa...
eis-me aqui, homicida e sem remorsos. A insânia do crime aturde a consciência;
não a minha, que não temo as escadas da forca...
TERESA:- O primo Baltasar... o
primo Baltasar cavou a sua sepultura e a minha... Morrerei... morrerei, Simão... morrerei...
Perdoa, meu amado, ao meu destino... Já te perdi... Não posso, nem poderei jamais
resgatar-te..
SIMÃO:- Se teu pai quisesse...
TERESA:- Meu pai... meu pai
guarda de ti e de todos de tua família somente ódios antigos...
SIMÃO:- ... eu me arrastaria aos pés de teu pai para
te merecer... beijaria os pés de teu pai, Teresa... Se tu me mandasses morrer
para te não privar de ser feliz com outro homem, eu morreria, Teresa...
TERESA:- Se podes, vive; não te
peço que morras, Simão; quero que vivas para me chorares...
SIMÃO:- O travor de meu cálice, Teresa, tem sobre a amargura as mil amarguras de tuas
lágrimas...
TERESA:- Estou tranqüila, Simão,
vejo a aurora da paz...
SIMÃO:- A felicidade é a morte,
Teresa...
TERESA:- Não! Não! Vive, Simão,
vive... Aceita a prisão em troca da forca... Dez anos! Dez anos... Em dez anos
terá morrido meu pai e eu serei tua esposa... Irei pedir ao rei que te
perdoe...
SIMÃO:- Esquece-te de mim!
Esquece-te de mim! Adormece no seio do nada... Quero ver o céu no meu último
olhar...
O foco sobre Simão apaga-se. Teresa termina
suas abluções e veste algo que lembra o hábito de uma freira. Ergue-se
lentamente com a bacia de água e caminha para fora de cena. Tempo. Simão, o
Simão de hoje, entra aos berros, procurando Teresa por todos os lugares, sob
vários focos de luz que não conseguem acompanhá-lo.
SIMÃO:- Teresa! Teresa! Onde
você está? Que diabo! Preciso de você, mulher... Preciso de você! Teresa!
Teresa! Porra, Teresa... Quando eu mais preciso de você, você não está?! Que
merda essa? Que lugar é esse? Onde eu estou? Teresa! Estou lúcido, Teresa...
estou lúcido... não cheirei... não bebi... não fumei... Eu sei o que faço,
Teresa! E preciso de você!
Ofegante, pára um pouco, despe as roupas de
prisioneiro do Simão que estava na cadeia e começa a vestir roupas inteiramente
negras (meias, calças, camiseta), que estavam em algum lugar do palco. Por fim,
coloca um gorro, também negro, que lhe cobre todo rosto, menos os olhos, e pega
a arma. Brinca de atirar por alguns instantes e sai às gargalhadas e gritando
“Ricos, Teresa... Ricos... Ricos!” Tempo. Teresa volta lentamente e vai
apanhando uma a uma as roupas de Simão espalhadas pelo palco e dobrando-as
cuidadosamente, como uma dedicada dona de casa. Depois despe o hábito de Teresa
e dobra-o também, cuidadosamente.
TERESA:- “O homem, esse
desconhecido”. Uma vez eu vi esse livro na biblioteca de meu pai... O homem,
esse desconhecido! Nós lavamos suas calças e suas almas... passamos a ferro
suas camisas e suas dores... engomamos seus egos... alimentamos suas fantasias
com nossos desejos... abrimos nossas pernas para gerar seus filhos... às vezes
gozamos... às vezes mentimos... às vezes choramos... mas, sempre, nós os
criamos... sempre... nós os construímos... pensando que são nossos... que os
teremos para sempre... e para sempre os perdemos... Teresa era virgem... morreu
virgem... perdida num amor proibido... Fico, às vezes, pensando... será que uma
virgem entende tanto assim de amor? Será que uma virgem podia amar tanto assim
um homem? (Pausa.) Tenho em mim o
sangue quente de meu pai... a decisão da entrega... sem medir conseqüências...
E só encontrarei a mim mesma, se cumprir esse destino... se arrebentar os muros
do convento da Teresa de Camilo... sem julgamentos... sem julgamentos... que
nem eu mesma me julgue... A trilha de Simão é o meu destino... A TRILHA DE
SIMÃO É O MEU DESTINO... sem medir conseqüências... sem... medir...
conseqüências... eu estou pronta... pronta... À merda todas as convenções...
Eu, Teresa, professora?!... que porra!... sou apenas uma mulher que ama... que
se entrega a esse amor... sem... sem... medir conseqüências...
Empilha as roupas a um canto. Entra de
repente Simão, todo de negro.
SIMÃO:- Teresa! Você está
pronta? Vamos, vamos, meu amor! A fortuna nos espera!
Beijam-se rápida e apaixonadamente. Simão
coloca sobre os ombros de Teresa uma capa negra e em suas mãos uma arma. Saem
ambos correndo, de mãos dadas. Luzes que se acendem e apagam, acompanhadas de
ruídos de carros, gritos de pessoas, tiros, buzinas, sirenes, enfim uma grande
confusão. Quando tudo se acalma, Teresa e Simão reaparecem com uma mala,
exaustos, as roupas sujas, mas alegres e felizes. Sentam-se ao chão, abrem
garrafas de bebidas, abrem a mala, jogam algum dinheiro sobre si mesmos,
abraçam-se, numa festa a dois regada a droga e bebida.
SIMÃO:- Você viu... você viu a
cara do guarda?
TERESA:- E do gerente, então?
Ele nunca podia acreditar que eu... eu, aqui, uma mulher gostosa e bonita...
pudesse enfiar uma metranca na cara dele!
SIMÃO:- Você precisava atirar naquele caixa, Teresa, precisava?...
TERESA:- Folgou! Folgou! Eu
atiro mesmo...
SIMÃO:- E se sujar!
TERESA:- Se sujar, sujou! Ora,
Simão, deixa de ser panaca...
SIMÃO:- Panaca... Teresa...
panaca! Isso, não!
TERESA:- Veja! Estamos ricos...
SIMÃO:- Eu prometi... eu
cumpri...
TERESA:- Porra que VOCÊ
cumpriu... eu também ajudei...
SIMÃO:- Ajudou, não... você foi
a mais importante no esquema... a mais importante, ouviu?
TERESA:- Menos, Simão...
menos... tá certo, eu dei uns tirinhos ali... outros tirinhos mais adiante...
mas você... você foi foda, Simão!...
SIMÃO:- É! Comigo num tem tempo
quente... eu sou o Rambo... eu sou foda!
TERESA:- E agora?
SIMÃO:- Agora o quê?
TERESA:- Ora... o que vai rolar?
SIMÃO:- Nada, ora... Bebe...
bebe... vamos comemorar...
TERESA:- E só?
SIMÃO:- Não estou te entendendo!
TERESA:- Porra, Simão... você é
burro?
SIMÃO:- Mulher nenhuma me chama
de...
TERESA:- Chamo, sim... chamo...
Burro! Ouviu? Burro! Nem terminou o segundo grau...
SIMÃO:- E você, sua... sua
piranha! No primeiro lance já tá querendo dar uma de doutora? Eu tenho de crime
o que você não tem escola, tá ouvindo?
TERESA:- Até parece!... um
franguinho da sua idade!...
SIMÃO:- Não me provoca, porra!
Não me provoca!
TERESA:- Tá bom... tá bom...
vamos nos portar como civilizados... se isso é possível depois... depois do que
fizemos...
SIMÃO:- Teresa... Teresa... eu
te amo... a gente não pode brigar...
TERESA:- Desculpe... eu... eu
acho que me excedi... fiquei muito excitada com tudo isso...
Amam-se apaixonadamente.
TERESA:- Nunca imaginei melhor
afrodisíaco!...
SIMÃO:- Que porra é essa que
você está falando?
Rindo, ela o toma de novo nos braços e rolam
pelo chão.
TERESA:- Meu querubim... você é
o meu tesão... É isso o que eu estou dizendo... Vem cá... e o que você vai
fazer com tanta grana?
SIMÃO:- Vou gastar tudo em
roupa, disco... e acho que vou comprar um carro...
TERESA:- Mas é muita grana,
Simão... Você não tem família? Pai... mãe...
SIMÃO:- Não quero falar sobre
isso... não interessa!
TERESA:- Mas você tem mãe...
pai...
SIMÃO:- Que bosta, Teresa! Pai e
mãe todo mundo tem... só não quero falar sobre isso! E chega, tá bom?! (Pausa). E a minha professorinha... como
vai torrar a grana? Me conta... sem neura... me conta...
TERESA:- Acho que vou fazer uma
viagem...
SIMÃO:- Você vai cheirar tudo
isso?
TERESA:- Não seja bobo...
viagem, mesmo... pra Portugal... terminar minha tese sobre Camilo Castelo
Branco... lá nos lugares onde a história aconteceu...
SIMÃO:- Posso ir com você?
Posso?
TERESA:- Escuta, Simão, você
acha que uma virgem... uma mulher que nunca teve homem... pode amar realmente?
SIMÃO:- Que merda é essa de
virgem?... E eu sei lá... nunca vi uma!
TERESA:- Sabe, quando a gente
transou a primeira vez, eu cheguei a pensar que você era virgem...
Simão rola de rir, fazendo micagens e gestos de
incredulidade e de escárnio.
SIMÃO:- Eu?! Virgem? Acho que já nasci trepando...
TERESA:- Não seja grosseiro,
Simão... Assim você me magoa... Deixa, deixa eu pensar que você era virgem, meu
querubim... Sabe, a Teresa do livro que estou estudando, ela morreu virgem... e
morreu de amor, Simão, morreu de amor... Já a freirinha de um outro livro...
SIMÃO:- Freira, Teresa? Você
nunca me falou de porra de freira nenhuma...
TERESA:- Deixa pra lá... Vamos
aproveitar a grana que ganhamos... vamos morrer... nós dois... de tanto trepar,
cheirar, beber... tudo... tudo o que você quiser, meu querubim... meu amor... A
entrega total, Simão, sem sofrimentos... sem arrependimentos... sem o choro da
desgraça em conventos negros, sem o desespero a brotar do fundo de um navio que
leva ao degredo...
Tempo.
Teresa e Simão como personagens de Camilo. Ela, em sua cela no convento, mostra
serenidade, relendo as cartas de Simão e ele, num navio, sofrendo quase
alucinadamente. Ruído de mar.
SIMÃO:- Que trevas, meu Deus!
Dai-me lágrimas, Senhor! Deixai-me chorar, ou matai-me, que este sofrimento é
insuportável! Teresa! Teresa! Não quero ouvir a notícia de tua morte, meu amor!
Eu te matei, Teresa, eu te matei! Não sou digno de ti... eu te matei... e nem chorar
consigo por essa desgraça...
TERESA:- Obrigada, meu Deus...
obrigada por haver tido a oportunidade de tão grande amor... E vós, minhas
amigas (para freiras invisíveis), que procurais consolar-me... eu me
despeço de vós... Deus vos há de recompensar a paciência, as doces palavras que
me dissestes...
Senta-se e desamarra um maço de cartas, lendo trechos de
uma a uma.
TERESA:- Simão, meu amado, aqui
me dizias... “Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás fiel na vida e na morte”...
“Não me fujas ainda, Teresa. Já não vejo a forca, nem a morte. Meu pai
protege-me, e a salvação é possível...”
Simão anda de um lado para outro, como louco,
cambaleando.
SIMÃO:- Eu não me suicido! Eu
não me suicido!... Se eu morrer... se eu morrer no mar... atirem fora meu
papéis... e as cartas... as cartas de Teresa!... Tanta gente desgraçada que eu
fiz... Meu pai, minha mãe... meus irmãos...
Deita-se numa enxerga, já delirando.
SIMÃO:- A casinha... a casinha de Coimbra... eu
vejo... as árvores... as flores... as aves... E tu, Teresa, meu amor, tu...
estás comigo... Vem, dá-me o teu braço... passeemos à margem do Mondego...
Veja, Teresa... a lua no rio reflete nossa felicidade...
TERESA:- “Ontem, vi as nossas
estrelas, aquelas dos nossos segredos nas noites da ausência. Volvi à vida, e
tenho o coração cheio de esperanças. Não morras, filha da minha alma... não
morras!” Tu escreveste isso, Simão... Tu escreveste! E eu estou aqui, Simão...
Abençoado sejas! A manhã já rompe... vou ver minha última aurora...
SIMÃO:- Veja, Teresa... nossas
estrelas... elas nos acompanharam... e agora esmaecem à luz da aurora... É a
vida... Teresa... é a vida de nosso amor na nossa última aurora...
TERESA:- ... a última aurora de
meus dezoito anos... Deus te livre de uma agonia longa, meu amado...
As
luzes vão baixando lentamente e, antes que se apaguem totalmente, voltam a
acender de repente. Simão e Teresa se levantam e correm um para o outro e se
abraçam.
SIMÃO:- Teresa... vamos, rápido... Sujou...
TERESA:- O que você está dizendo,
Simão?...
SIMÃO:- A polícia... estão na nossa pista... É preciso
fugir...
TERESA:- O dinheiro!
Enquanto
tentam juntar algum dinheiro que está espalhado pelo chão, ouve-se ao longe o
som de sirenes.
TERESA:- Tem certeza de que
estão nos procurando?
SIMÃO:- O Tonhão... o Tonhão foi preso. Ele nos
entregou.
TERESA:- Não tenho medo de
polícia...
SIMÃO:- Você não está pensando..
TERESA:- Tenho medo de te
perder, Simão... Jura... jura que, haja o que houver, você não vai me
abandonar...
SIMÃO:- Que bobagem, Teresa!
Estamos juntos nessa... somos parceiros...
TERESA:- Parceiros!...
Parceiros, Simão! Que porra! Somos amantes... um dentro do outro, ouviu...
SIMÃO:- Eu não te obriguei a
nada...
TERESA:- Ouça, ouça bem, meu...
meu parceiro... Teresa de Albuquerque, a minha xará do século dezoito, era
frágil... uma mocinha de dezesseis, dezoito anos... e ela lutou... lutou até o
fim... e venceu... Sabe como ela venceu? Morrendo... morrendo triste e só numa
cela de convento... Era a única saída que ela podia ter...
SIMÃO:- Você... você... não
estou te entendendo...
TERESA:- Cala a boca e escuta...
meu parceiro!... Escuta: a freirinha que eu te falei, Mariana Alcoforado também
lutou... mas ela perdeu, Simão... Ela perdeu a luta... Ela se entregou a um
amor impossível, foi abandonada, sofreu... mas sobreviveu... morreu velhinha,
murcha, tendo por amante um Cristo morto na cruz...
SIMÃO:- Você endoidou de vez...
a polícia na nossa porta e você falando de uma porra de freira que nem sei quem
é?! Endoidou!
TERESA:- Você está com medo da
polícia... eu estou com medo é de te perder, seu bosta... seu bostinha... de te
perder... Não é de morrer que eu tenho medo... nem de polícia...
SIMÃO:- Você só vai me perder,
se a polícia nos pegar... Vamos, vamos... Dá tempo... a gente pode fugir...
TERESA:- Você não entendeu
nada... Deixa a polícia pra lá... Eles vão nos pegar mais cedo ou mais tarde...
SIMÃO:- Eu não vou me
entregar... EU NÃO VOU ME ENTREGAR!
TERESA:- Acho que você nunca se
entregou, meu querubim, acho que você
nunca se entregou... Vamos!
Saem correndo. Sirenes. Tiros. Blackout.
FIM
13 de dezembro de 2000
Isaias
Edson Sidney
terça-feira, 5 de dezembro de
2000
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