PEÇA
EM 1 ATO
Isaias Edson Sidney
TELEFONE: (11)5011-9628
SBAT 1348
FBN 214.0409, LIVRO 373, FOLHA 209
ADAPTAÇÃO DO ROMANCE
A ILUSTRE CASA DE RAMIRES
de
EÇA DE QUEIROZ
SÃO PAULO
2000
PERSONAGENS
DO NÚCLEO “ATUAL”
·
GONÇALO MENDES RAMIRES (nobre português,
recém-chegado do curso de Direito em Coimbra, dono da Quinta de Santa Irinéia,
no interior de Portugal, situada próxima às cidades de Oliveira e Vila Clara).
·
ANDRÉ CAVALEIRO (administrador civil de Oliveira, cargo anteriormente
exercido pelo pai de Gonçalo; ex-namorado de Graça Ramires, o que o torna
inimigo de Gonçalo);
·
GRAÇA RAMIRES (irmã de Gonçalo; abandonada por André, casa-se com o
simplório José Barrolo).
·
JOSÉ BARROLO (cunhado de Gonçalo, simplório e, por isso, chamado de
bacoco).
·
ANTÔNIO VILLALOBOS, o TITÓ (amigo e companheiro constante de Gonçalo).
·
JOÃO GOUVEIA (administrador da aldeia de Vila Clara, amigo de e
companheiro de Gonçalo).
·
VIDEIRINHA (músico e companheiro de farra de Gonçalo; escreve um fado
sobre os feitos heróicos da ilustre casa de Ramires).
·
D. ANA LUCENA (viúva do Deputado Sanches Lucena e quase noiva de
Gonçalo).
·
CASCO e MANUEL PEREIRA (lavradores a quem Gonçalo promete arrendar a
quinta).
·
ERNESTO DE NARCEJAS (valentão da região, que destrata Gonçalo três vezes
e, na última, é desfigurado por seu chicote, numa “crise” de valentia incomum).
·
ROSA (criada da casa de Gonçalo Ramires).
·
BENTO (criado da casa de Gonçalo Ramires).
·
CRIADO (da casa dos Barrolos).
·
MULHER DO CASCO (pede a Gonçalo a soltura do marido).
·
RAPARIGA (da estrada, a quem Gonçalo pede informação).
·
RAPAZ (da estrada, a quem Gonçalo pede informação).
·
HOMEM (pai do rapaz da estrada).
DO NÚCLEO “HISTÓRICO”
·
TRUCTESINDO
RAMIRES (fiel vassalo e alferes-mor de D. Sancho, a quem jurara defender a
honra e a vida da infanta D. Sancha).
·
LOURENÇO
RAMIRES (filho de Tructesindo, derrotado e morto por Lopo de Baião).
·
MENDO PAIS
(genro de Tructesindo, casado com sua filha mais velha, D. Teresa, chamada a Garça Real).
·
LOPO DE
BAIÃO, O BASTARDO (inimigo de Tructesindo; no passado, apaixonado por sua
filha, D. Violante).
·
D. GARCIA
VEIGAS, O SABEDOR (amigo e fiel companheiro de Tructensido).
·
MENSAGEIRO.
·
SOLDADOS de
ambas as tropas.
ATORES:
1.
UM ATOR,
para fazer os papéis de GONÇALO E TRUCTESINDO;
2.
TRÊS OU
QUATRO ATORES, para fazer os demais papéis masculinos (Cavaleiro e Bastardo
deverão ser feitos pelos mesmos atores).
3.
UMA OU DUAS
ATRIZES, para os demais papéis femininos: GRAÇA, dona ANA, ROSA etc.)
O FADO DOS RAMIRES
Quem te v’rá
sem que estremeça,
Torre de
Santa Irinéia,
Assim tão
negra e calada,
Por noites
de lua cheia...
Ai! Assim calada, tão negra,
Torre de Santa Irinéia!
Ai! Aí estás, forte e soberba,
Como uma história em cada ameia,
Torre mais velha que o reino,
Torre de Santa Irinéia!...
Ai! Lá na grande batalha...
El-Rei Dom Sebastião...
O mais moço dos Ramires
Que era pajem do guião...
Todo alegre, e a mão no cinto,
Junto da signa real,
Gritando às naus – “Amainai
Por El-Rei de Portugal...”
Velha casa de Ramires,
Honra e flor de Portugal!
Quem te v’rá
sem que estremeça.
Torre de
Santa Irinéia,
Assim tão
negra e calada,
Por noites
de lua cheia
Quem só em Paio Ramires
Põe agora o mundo a esperança...
Que junte os seus cavaleiros
E que salve o rei de França!
Os Ramires doutras eras
Venciam com grandes lanças,
Este vence com um chicote,
Vede que estranhas mudanças!
É que os Ramires famosos,
Da passada geração,
Tinham a força nas armas
E este a tem no coração!
Quem te v’rá
sem que estremeça.
Torre de
Santa Irinéia,
Assim tão
negra e calada,
Por noites
de lua cheia
RESUMO
Após os estudos em Lisboa, Gonçalo Mendes Ramires retorna às suas terras, no interior de Portugal. Sua irmã, Graça Ramires, está casada com o rico e simplório José Barrolo. A vida transcorre monótona, medíocre. Anima-o a vontade de entrar para a política. Para isso, imagina abrir-lhe as portas uma novela que resolve escrever sobre seus antepassados, instado por um amigo de Lisboa, que a promete publicar numa revista chamada Anais de Literatura e História. Enquanto escreve, mete-se em intrigas com seu desafeto, André Cavaleiro, administrador civil de Oliveira e antigo noivo de sua irmã. Quando morre o deputado da região, Gonçalo vê aí a oportunidade para lançar-se à política, mas, para isso, precisa reconciliar-se com o odiado Cavaleiro. Isso de fato acontece. Ele é eleito e descobre que não precisava ter-se rendido ao inimigo, com o perigo de uma aproximação entre ele e Gracinha. Vai para Lisboa e, dois anos depois, renuncia, parte para a África, de onde volta quatro anos depois, rico e estabelecido.
A ILUSTRE CASA DOS RAMIRES
(DRAMA)
Quinta de Santa
Irinéia. Escritório de Gonçalo Ramires, que escreve, concentrado. Depois de
alguns segundos, gritos de mulher e palavrões de bêbado.
GONÇALO:- Raios! Que acontece?
Não se pode um homem em sua própria casa ter sossego para rever seus
antepassados? Que diabos!
ROSA:- Aqui del-rei contra o Relho!
Entra Rosa, chorando.
ROSA:- Olha, patrão, o que aquele bêbado me fez... (Mostra o braço machucado). Assim não
dá... Vou m’embora... pra não voltar... eu to juro que vou...
GONÇALO:- Por oitocentos
contos de arrendamento, uma bagatela, pra aturar isso!... Bebedeiras, pedras na
janela, e agora isso! (Para dentro, para
o Relho). Estás despedido, ó Relho! Arruma tuas malas que não quero ver-te
aqui nunca mais... Despedido, ouviu! Despedido! (Consola Rosa). Não te preocupes, que o Relho nunca mais vai a
fazer-te mal. Vai, avisa ao Bento que mande vir aqui o Casco, logo pela
manhã... (Rosa sai). Oitocentos
contos... uma bagatela... e ainda isso...
Tranca a porta.
Ruídos de vozes, de cães latindo. Gonçalo volta para sua escrivaninha.
Amanhece. Batidas na porta acordam-no, adormecido que estava em sua
escrivaninha. Abre. É o Bento com o Casco, que entra. Gonçalo se ajeita um
pouco, cumprimenta o homem.
CASCO:- Desde a morte do senhor teu pai, que me
interessa arrendar essas terras... A torre... a torre de Santa Irinéia sempre
me fascinou... Agora podemos fazer negócio...
GONÇALO:- Sim... sim... a torre de meu avô
Tructesindo... Mas quanto ao negócio...
CASCO:- Novecentos e dez mil réis...
GONÇALO:- Como?! Nem pela alma de meus antepassados...
Um terra ilustre! Sabes quantos anos de história têm essas terras? Portugal nem
era ainda Portugal... Mais de mil anos, ouviu, mais de mil anos!
CASCO:- Acho que podemos... quem sabe... o senhor...
Eu sei... Talvez novecentos e trinta e cinco...
GONÇALO:- Mil anos de história por novecentos e trinta
e cinco contos! Não se respeita mais a tradição, não se reconhece o valor da
história... É por isso que Portugal anda nesse estado de coisas... É preciso
respeitar a tradição, senhor José Casco, a tradição!
CASCO:- Um poucochito mais, senhor Gonçalo Mendes
Ramires, pelos Ramires, pelos Ramires... Novecentos e cinqüenta contos e
estamos conversados!
Gonçalo pensa um
pouco, coça o queixo e, num gesto de aquiescência e, ao mesmo tempo, de
desânimo, aperta a mão ao Casco, que sai. Gonçalo grita para a Rosa trazer-lhe
o desjejum. Retoma alguns papéis na escrivaninha e lê.
GONÇALO:- “Na sala altaneira e
larga, onde os largos e pálidos raios da lua... “ Droga! Droga! Larga e
largos... e os pálidos, os eternos pálidos
raios!... Também esse maldito castelo, tão complicado!... E esse D.
Tructesindo... tão antigo... enfim, um horror... de nada adiantaram tantos
livros... estou entupido... completamente entupido... e esse calor... e toda
essa trapalhada com o Relho e agora, o Casco, aquele animal, a manhã inteira...
Arremessa com raiva
os papéis. Um instante pensativo. Vozes de fora. É Antônio Villalobos, o Titó.
TITÓ:- Oh sô Gonçalo! Oh sô Gonçalão! Oh sô
Gonçalíssimo Mendes Ramires!...
Gonçalo corre à
janela.
GONÇALO:- Oh Titó, sobe!...
Sobe enquanto me visto. Tomas um cálice de genebra... Vamos depois passear até
aos Bravais...
Titó entra.
TITÓ:- Não posso, homem... Ouve lá! Tu queres hoje à
noite cear no Gago? Comigo e com o João Gouveia... vai também o Videirinha... o
Videirinha e o violão... Temos tainha assada, que eu comprei essa manhã...
assada pelo Gago!... Entendido, hem? O Gago abre pipa nova de vinho... do abade
de Chandim... eu conheço: é ponta fina, é daqui, ó!
GONÇALO:- Homem... eu ando com
o estômago arrasado... desde ontem à noite... uma dor nos rins, ou no fígado,
ou no baço, sei lá! Uma dor dessas aí... estranha! Para o jantar, só caldo de
galinha e galinha cozida... Enfim... vá lá... mas com cautela... recomenda ao
Gago que me prepare um franguinho assado... Onde nos encontramos? Na
assembléia?
Titó sai apressado,
assentindo. Gonçalo berra.
GONÇALO:- Rosa! Que diabos,
mulher! Estou a berrar há uma hora, já e ninguém me atende! Nem você nem o
Bento! Vou cear na Vila-Clara com os amigos
Voz da Rosa, do fundo
do corredor.
ROSA:- Oh senhor Doutor...
nem ao menos um caldinho de galinha, apurado desde cedo, cheirando que nem
feito no céu?
GONÇALO:- Está bem, Rosa, está bem... ao seu caldo,
então... E mande aqui o Bento para vestir-me!
Entra o Bento.
Enquanto ajuda Gonçalo a vestir-se, conversam.
BENTO:- Achei um pergaminho
antigo, senhor... deve ser alguma carta de El-Rei D. Sebastião para algum
avozinho do doutor...
GONÇALO:- Naturalmente, Bento... e para dar-lhe alguma
coisa boa, alguma coisa gorda... Antigamente, ter rei era ter renda! Agora...
com efeito, essa instituição de rei anda muito safada, muito safada mesmo,
Bento...
BENTO:- Andam dizendo que os reis vão acabar, e por
dias! O jornal... não sei se o senhor leu... ah! No de hoje, tem a festa dos
anos do senhor Sanches de Lucena, nosso deputado...
GONÇALO:- Esse Sanches de
Lucena é um idiota... Imagine os arranjos que deve estar a fazer em Lisboa... a
rosnar de vez em quando um “apoiado”... aos sessenta anos, Bento! Que ele me
cedesse a cadeira que me sairia melhor... mesmo não tendo tanto dinheiro e
tantas terras... que ele tem... E aquela mulher lá dele, hem, Bento, a Dona
Ana... Dona Ana de Lucena, bela mulher, hem, Bento... hem?
BENTO:- Pois quando o senhor
estava em Lisboa, a estudar lá as suas leis, eles passaram aqui, na caleche...
até pararam! E o senhor Sanches de Lucena apontou para a torre, a mostrar à
senhora... mulher muito perfeita! Jóias... tudo ouro!
GONÇALO:- Essa moça, dona Ana
não era uma moça do campo, lá de Corinde?
BENTO:- Nada! A senhora dona Ana é de gente muito
baixa! Filha de um açougueiro de nem sei onde... e o irmão tem até morte nas
costas...
GONÇALO:- Filha de açougueiro...
irmão procurado... bela mulher... jóias... ouro... merece uma roupa nova! Como
estou?
Vila-Clara, os amigos
vão-se reunindo. Videirinha entra com seu violão, cantando o Fado dos Ramires.
VIDEIRINHA:- Quem te v’rá sem que estremeça,
Torre de Santa Irinéia,
Assim tão negra e calada,
Por noites de lua cheia...
Ai! Assim calada, tão negra,
Torre de Santa Irinéia!
Ai! Aí estás, forte e soberba,
Como uma história em cada ameia,
Torre mais velha que o reino,
Torre de Santa Irinéia!...
Todos aplaudem. Riem, bebem, conversam.
GOUVEIA:- Ora, esse senhor
Cavaleiro tem tratado Oliveira com autoridade... tem uma inteligência superior
esse nosso administrador...
GONÇALO:- Não me venha com
disparates, senhor João Gouveia... somos amigos.... mas falar desse asno...
dizer que Oliveira nunca teve administrador civil como o Cavaleiro!... Não é
por meu pai... que já lá vai há três anos, infelizmente... Concordo que ao
final não fosse boa autoridade, andava meio frouxo... doente... Mas este cavalo
deste Cavaleiro! É ridículo! Com aquela sua cabeleira de cantor, aqueles
horrendos bigodes, o olho languinhento, assim, ó, de enganador de donzelas... é
um estúpido... um estúpido fundamental... oh! Senhores... um animal... sem
contar que é um malandro...
GOUVEIA:- Acabou? Acabou? Pois, Gonçalinho, escute...
Em todo o distrito de Oliveira, note bem, em todo ele, ouviu?, não há ninguém
que se compare ao Cavaleiro em inteligência, caráter, maneiras, saber, e finura
política!
GONÇALO:- Isso são as opiniões
de um... um subalterno!... um puxa-saco!
GOUVEIA:- E isso são palavras
de um malcriado!
Titó impede que entre
os dois a coisa chegue às vias de fato.
TITÓ:- Olá, rapazes, que
desconchavo é esse? Estão bêbados? E tu, Gonçalo...
Mas já Gonçalo se
acovarda e procura redimir-se.
GONÇALO:- Perdoe, meu amigo João Gouveia.... perdoe...
Sei que você defende o Cavaleiro por amizade, não por dependência... Mas,
desculpe... quando me falam nesse cavalo... não sei... viro besta por contágio
da besta... atiro coice!
Os dois amigos
reconciliam-se, entre abraços, risadas e a música do Videirinha. Corte para o
escritório de Gonçalo, aonde o fidalgo retoma a narrativa dos feitos heróicos
de sua família.
GONÇALO:- Á luta... à luta com
as palavras... um luta atroz... mas eu preciso: em boa hora o meu amigo
Castanheiro cismou de publicar os Anais de Literatura e de História... os meus
ilustres Ramires do passado darão prestígio a esse pobre Ramires do presente...
Escreve .Passagem de
tempo com a luz focando apenas o fidalgo, que adormece, debruçado na mesa.
Ruídos de patas de cavalos e relinchos, de vozes, de correntes, de passos o
acordam, já transformado em Tructesindo (com uma longa barba amarrada meio).
Entra Mendo Pais. Tructesindo corre a abraçá-lo.
TRUCTESINDO:- Salve, meu filho...
por minha filha, Dona Teresa, sua esposa, posso chamá-lo de filho, não é mesmo?
Mas que bom vento o traz pela torre, meu filho?
MENDO PAIS:- Ide ao certo a
Monte-Mor, senhor Tructesindo Ramires! Mas em recado de paz... persuadir vossa
senhora Dona Sancha e as senhoras infantas que voltem honradamente a quem hoje
contam por seu pai e seu rei!
TRUCTESINDO:- Irei a Monte-Mor,
Mendo Pais, irei... mas para levar o meu sangue e dos meus para que justiça
logre quem justiça tem!
MENDO PAIS:- Mas, senhor...
TRUCTESINDO:- Sabei, meu genro, que
a palavra de um Ramires é uma espada sobre a cabeça de quem a profere... Jurei
no leito de morte de D. Sancho defender a honra e a vida da infanta Dona
Sancha...
MENDO PAIS:- Maior dó, maior dó!
Será bom sangue de ricos homens vertido por más desforras... Sabei, senhor meu
sogro, que em Canta-Pedra vos espera Lopo de Baião, o Bastardo, para vos tolher
a passagem com cem lanças!
TRUCTESINDO:- Viestes a
intimidar-me, senhor meu genro?
MENDO PAIS:- Para vos intimidar?!
Nem o senhor Arcanjo São Miguel com sua espada de luz e suas hostes a descer do
céu vos intimidaria! Casei na vossa casa. Se não vos posso melhor ajudar nessa
guerra, que sejais, ao menos, por mim, melhor avisado!
TRUCTESINDO:- Deixai receios, Mendo
Pais...
MENDO PAIS:- Só um cuidado me
pesa, senhor! Que nesta jornada ides ficar de mal com o reino e com el-rei Dom
Afonso!
TRUCTESINDO:- Filho e amigo! De mal
ficarei com o reino e com o rei, mas de bem com a honra e comigo! Não serão cem
lanças a quebrar uma palavra dada por um Ramires!
Só um foco em
Gonçalo, que acorda ao ouvir praticamente os mesmos ruídos do início da cena,
mas agora são os ruídos de seu tempo.
GONÇALO:- De mal com o rei, mas de bem com a honra e
comigo... que barulho... que barulho é esse...
Entra o Bento.
GONÇALO:- És tu, Bento?
BENTO:- Senhor... senhor... É
o Pereira! Está lá embaixo no pátio o Pereira, que quer falar ao senhor doutor.
GONÇALO:- Que maçada!... O
Pereira... Que Pereira?
BENTO:- O Pereira: o Manuel
Pereira, da Riosa, o Pereira Brasileiro, o lavrador... que arrenda a fazenda
dos condes de Monte-Agra...
GONÇALO:- Ah! Está bem... está
bem... Diga ao Pereira que suba... conversamos...
O Bento sai, Gonçalo
arruma um pouco a si mesmo e aos livros e folhas espalhadas pela mesa. Ergue a
última página que acabara de escrever.
GONÇALO:- De mal com o rei,
mas de bem com a honra e comigo... Esse Tructesindo era mesmo um homem de
palavra! Isso tem lá substância...
Entra o Pereira. Eles
se cumprimentam.
GONÇALO:- Então, que bom vento
o traz pela torre, Pereira amigo? Não o vejo desde abril.
PEREIRA:- É verdade, meu fidalgo... desde as vésperas
da eleição...
GONÇALO:- E os seus votos, os
seus sessenta e tantos votos, Pereira amigo, segundo o costume, lá se foram
para o eterno Sanches Lucena, direitinhos como os rios vão para o mar! (Apertando a campainha, para chamar os
criados). Então, almoças comigo?
PEREIRA:- Agradeço, mas vou esta tarde à casa de meu
genro... festa dos anos de meu netinho...
GONÇALO:- Um copo de vinho
verde, então...
PEREIRA:- Entre as comidas, meu fidalgo, nem água nem
vinho!
GONÇALO:- Mas, Pereira, esse teu Sanches Lucena não faz
honra cá à nossa Oliveira... respeitável, excelente homem, é claro... mas mudo,
Pereira, inteiramente mudo!
PEREIRA:- Sabe as coisas, pensa com acerto...
GONÇALO:- Mas o pensamento com
acerto não lhe sai do crânio... Depois, está muito velho, Pereira! Que idade
terá ele? Sessenta?
PEREIRA:- Sessenta e cinco. Mas de gente muito rija,
meu fidalgo. O avô durou até aos cem anos...
GONÇALO:- Mas nossa Oliveira precisa de alguém que
grite por ela... Olhe a estrada de Riosa! Ainda no papel... Se o Sanches de
Lucena fosse homem de berrar já o Pereira trazia por lá os carros a chiar...
PEREIRA:- Aí talvez o fidalgo acerte... Por essa
estradinha da Riosa sempre faltou quem gritasse... (Pigarreia). Mas, meu fidalgo, se aqui vim a aperreá-lo nessas
horas, é que vim conversar com Vossa Excelência sobre o arrendamento da
torre...
GONÇALO:- Você queria arrendar
a torre, Pereira?
PEREIRA:- Queria conversar com Vossa Excelência. Como o
Relho foi despedido...
GONÇALO:- Mas eu já tratei com
o Casco, o José Casco dos Bravais! Ficamos meio apalavrados, há dias... Há mais
de uma semana.
PEREIRA:- Pena! Grande pena... só no sábado inteirei-me
da desavença com o Relho. Mas se o fidalgo não ressalva o segredo, por quanto
ficou o arrendamento?
GONÇALO:- Não ressalvo não,
homem! Novecentos de cinqüenta mil réis.
PEREIRA:- Pena! Maior pena para o fidalgo... Enfim, palavra dada... Mas é pena... gosto da
propriedade... andei pensando em oferecer um conto e cinqüenta... isso, um
conto e cinqüenta...
GONÇALO:- Isso é sério, oh
Pereira?
PEREIRA:- Meu fidalgo, eu não era homem que entrasse na
torre para caçoar com Vossa Excelência! Proposta a valer, escritura a fazer...
Mas se o arrendamento está tratado...
GONÇALO:- Escute homem!... Eu
não contei por miúdo o caso do Casco. Você compreende; sabe como são essas
coisas... O Casco veio, conversamos; eu pedi novecentos e cinqüenta mil-réis e
um porco pelo Natal. Primeiro, concordou... logo adiante emendou, que não...
Voltou com o compadre... com a família... andou por aí tudo, a medir, a cheirar
a terra... uma tarde, aceitou os novecentos e cinqüenta mil réis, sem o porco...
Cedi do porco. Aperto de mão, copo de
vinho... ficou de aparecer para combinar, tratar da escritura. Não o avistei
mais, há quase duas semanas! Naturalmente já virou, já se arrependeu... Para
resumir: não tenho com o Casco nenhum contrato firme... Ficou tudo meio vago,
você compreende... E eu, que detesto coisas vagas, já andava a pensar em
encontrar melhor homem!
PEREIRA (desconfiado):- Não se lavrou escritura... Mas ficou ou
não ficou a palavra dada entre o fidalgo e o Casco?
GONÇALO:- Homem, essa pergunta!...
Pois se eu tivesse confirmado ao Casco a palavra de Gonçalo Ramires, um
Ramires! estava agora aqui a tratar, ou sequer a conversar consigo, Pereira?
PEREIRA:- Era verdade... Nesse caso, renovo minha
proposta: um conto cento e cinqüenta, sem porco, sem leite, sem hortaliça ou
fruta... cuido do pomar e da horta para o fidalgo, mas só... Escritura assinada
no sábado... está feito?
GONÇALO (depois de pensar um pouco):- Toque! Agora sim! Agora fica palavra dada!
PEREIRA:- Então está entendido... no sábado, na cidade.
E, se não faz transtorno ao fidalgo, passamos pelo tabelião Guedes e fica o
feito arrumado.
Palacete dos
Barrolos, em Oliveira. Estão reunidos o Barrolo, sua esposa Graça, Titó e
Videirinha. Este afina o violão.
VIDEIRINHA:- Quem te v’rá sem que estremeça,
Torre de Santa Irinéia,
Assim tão negra e calada,
Por noites de lua cheia...
Não termina a canção.
Irrompe na sala, transtornado, o Gonçalo.
GONÇALO:- Raios! Que não se
pode vir à cidade sem encontrar de cara este animal!
BARROLO:- Que fantasma terá
visto o senhor meu cunhado?
GONÇALO:- Fantasma que nada...
Essa bigodeira não achará outro lugar para onde vá caracolar com aquela mula? A
besta do Cavaleiro!...
BARROLO:- Mula?!... Oh menino,
que o Cavaleiro tem agora um lindo cavalo!...
GONÇALO:- Pois bem! É um burro
feio em cima de um cavalo bonito. Que fiquem ambos na cavalariça, e não a
passear em frente ao palacete...
Barrolo desata a rir
e contamina, depois, aos demais.
BARROLO:- Essa é boa! Um burro
feio em cima de um cavalo bonito... E ambos a pastarem... Ambos a pastarem, com
o focinho na erva, o governador civil e o cavalo... Essa é muito boa, mesmo!
Gonçalo se dá conta
da presença de Gracinha, que corre para o irmão que a envolve com um abraço e
dois beijos.
GONÇALO:- Dê cá esses ossos ou
antes, esses untos... que estás mais gorda, até mais alta... É sobrinho? Não?
Nada. Por ora?
BARROLO:- A culpa não é cá do
patrão... mas ela não se decide!
GONÇALO:- Pois é necessário um
menino... eu, por mim, não caso... não tenho jeito... Se não fores tu, minha
irmã, lá se vão Barrolos e Ramires! A extinção dos Barrolos é uma limpeza, mas
acabados os Ramires, acaba Portugal! Senhora Dona Graça Ramires, depressa, em
nome da nação, um menino... um gordo menino a que darei o nome de Tructesindo!
BARROLO:- Tructesindo? Não!
Acabem-se os Barrolos e os Ramires!
Gonçalves solta
Gracinha e cumprimenta os demais. Depois ainda se volta para a irmã.
GONÇALO:- Aquele cavalo do
Cavaleiro tira-me do sério. Esqueci na caleça os presentes de teus anos. Manda
um dos criados buscá-los.
BARROLO:- Pode deixar, que eu
mesmo mando... (Sai, por um instante).
GRAÇA:- Pareces melhor do
estômago, meu irmão... Até ceias com o Titó, conforme soube...
GONÇALO:- Oh, esse animal... (Para Titó) Então, além de fofoqueiro,
andas com intimidade com o Sanches Lucena?
TITÓ:- Bem...
GONÇALO:- Cala-te e ouve:
antes do meu encontro com... com aquela besta do Cavaleiro e seu cavalo, topei
na estrada com o Sanches e a bela Dona Ana... Olha, ela pode ser...
BARROLO (acabando de voltar):- ... uma mulher
soberba! Um quebrado de quadris, uns olhões, um peitoril...
GONÇALO:- Cala essa boca
impura, devasso! Ao lado da sua mulher, que é a flor das Graças, ousa louvar
semelhante peça de carne!...
GRAÇA:- Mas ela é realmente
uma bela mulher, senhor meu irmão...
GONÇALO:- Sim... bela como uma
égua... e com aquela voz de taquara rachada! (Imitando a voz de Dona Ana). “O cavalheiro pode fumar”, “tem graça,
tem muita graça”, o cavalheiro está enganado...” Um horror! Um horror!
TITÓ:- Uvas verdes, senhor
D. Gonçalo. Uvas verdes!
Ruídos de patas de
cavalo. Gonçalo, desconfiado, corre à janela.
GONÇALO:- Isto é uma
provocação! Se este descarado deste Cavaleiro passa outra vez na maldita mula
por debaixo das janelas, apanha com um balde de água suja!...
BARROLO:- Naturalmente vai para
a casa das Lousadas... Anda agora muito íntimo das Lousadas... sempre por aqui
o vejo... e indo para as Lousadas...
GONÇALO:- Que vá para o inferno!
TITÓ:- Oh Gonçalinho, todo
esse escarcéu só por causa da política?
GONÇALO:- Política! Aí vens tu
com a política! Por política não se atira água suja aos governadores civis. Que
ele não é político: é só um malandro... (Olha,
ressabiado, para a irmã, dá de ombros e muda de assunto). Bem... não é
hora... e você Videirinha, afina esse violão para uma valsa bem bonita em
homenagem à flor dos Ramires (abraça
Gracinha).
Luz de passagem.
Gonçalo busca o sítio da batalha de seus antepassados. Encontra uma camponesa,
a quem pede informação e é destratado pelo Ernesto de Narcejas.
GONÇALO:- Por esses sítios
deve ficar o vale de Canta-Pedra, onde meus avós e o Bastardo lutaram... Mas
onde? (Para uma rapariga à beira da
estrada). Perdão, minha menina... Vou bem por aqui, para Canta-Pedra?
RAPARIGA:- Vai, sim, senhor.
Embaixo, à ponte, mete para a direita, para os álamos. E é sempre a seguir...
Gonçalo suspira e
graceja.
GONÇALO:- Ah! Antes desejava
ficar!
Da sombra surge o
Ernesto de Narcejas. Encara-o firmemente. Gonçalo baixa os olhos e tenta
seguir. O homem ameaça barrar-lhe o caminho, é impedido pela moça. Gonçalo
apressa o passo.
ERNESTO:- Esses fidalgos de
merda!...
Em seguida, Gonçalo
encontra o José Casco. Tenta ser afável.
GONÇALO:- Olá! É você, José!
Então, que temos?
CASCO:- Temos que eu falei
sempre claro com o fidalgo, e não era para que depois me faltasse à palavra!
GONÇALO:- Em que lhe faltei eu
à palavra, homem? Por causa do arrendamento da torre? Essa é nova! Houve por
acaso escritura assinada entre nós? Você não voltou, não apareceu!...
CASCO:- Era como se
houvesse... para gente de bem! O fidalgo deu a sua palavra.
GONÇALO:- Escute, José Casco,
aqui não é lugar, na estrada... Se quer conversar comigo, apareça na torre...
CASCO:- O fidalgo há de dizer
aqui mesmo! O fidalgo deu a sua palavra... a mim não me fazem dessas
desfeitas...
GONÇALO:- Escute, homem... as
coisas não se arranjam assim, no grito... pode haver desgosto, aparecer o
regedor... depois é o tribunal, a cadeia... e você tem mulher e filhos
pequenos...
CASCO:- O fidalgo me ameaça
com justiça!? Com cadeia!? Com os diabos! (Ergue
o cajado). Antes de ir pra cadeia, hei eu de lhe esmigalhar os ossos! Fuja,
fidalgo, fuja que eu me perco... Fuja que o mato e me perco!
Gonçalo sai a correr,
tremendo. Chega à cancela da Torre e grita pelos empregados.
GONÇALO:- Rosa! Bento! Que me
abram a cancela, que diabos! (Os dois se
aproximam). Então, não me ouviram chamar?... (Puxa o fôlego). Pois encontrei lá embaixo um bêbado que não me
conheceu e me ameaçou com uma foice!... Felizmente levava a bengala... E vocês
aí a tagarelar! Com os diabos! Que desaforo! Outra vez que isso aconteça, todos
para a rua... E quem resmungar, entra no cacete!
Os dois criados
ajudam Gonçalo a entrar.
GONÇALO:- Se não é a minha
bengala, o homem positivamente me ferra com um tiro...
BENTO:- Mas o senhor não
disse que era uma foice!?...
GONÇALO:- Ele correu para mim
com uma foice... mas vinha atrás do carro e no carro trazia uma espingarda. O
Casco é caçador, anda sempre de espingarda. Enfim, estou aqui vivo, na torre,
por mercê de Deus. E também porque, nesses casos, não me falta decisão! Mas
isso não fica assim, vou amanhã mesmo ao Gouveia... que, nos tempos do avô
Tructesindo, vilão de tal atentado assaria, como porco montês, numa ruidosa
fogueira, diante dos barbacãs da Honra!
De manhã, no Castelo,
Gonçalo prepara-se para ir para Vila-Clara procurar o Gouveia, administrador do
concelho. Enquanto dá ordens, “arma-se” ridiculamente com uma velha garrucha,
uma bengala antiga, uma velha faca de cozinha, uma espada também antiga, um
espeto de churrasco, um garfo e um apito.
GONÇALO:- Rápido, Bento, manda
os dois moços da horta esperar-me armados e muito bem armados, lá embaixo no
pátio. Esse Casco não perde por esperar... Não pode ficar impune que ofende
assim a ilustre casa dos Ramires!...
BENTO:- Mas, patrão, o pobre
diabo tem mulher e filhos...
GONÇALO:- Nos tempos do bisavô
Inácio, os homens dobravam o joelho nos caminhos quando passava o senhor da
torre!
BENTO:- Homens armados,
patrão?... Para quê?
GONÇALO (meio que caindo em si):- Uma milícia... é,
está direito... não precisa... mas eu vou armado! (Sai).
Na Vila, Gonçalo
encontra Gouveia. Porém é este que se dirige de dedo em riste para Gonçalo.
GOUVEIA:- Então, já sabe?
GONÇALO:- O quê?
GOUVEIA:- Pois não sabe,
homem?... O Sanches Lucena!
GONÇALO:- O quê?
GOUVEIA:- Morreu!
GONÇALO:- Santo Deus! Quando?
GOUVEIA:- Esta madrugada. De
repente. Angina pectoris, não sei quê no coração... De repente, na cama...
GONÇALO:- Eu há pouco falei
dele... e com pouca admiração... coitado...
GOUVEIA:- E eu! Ainda ontem
lhe escrevi... uma carta comprida... Foi o cadáver que recebeu a carta...
GONÇALO:- Ora, ora... e que
idade tinha ele?
GOUVEIA:- Parecia mais
velho... eu lhe dava setenta invernos... Mas não: ia fazer sessenta em
dezembro... Consumido, arrasado, casara tarde e com fêmea forte... e agora
temos aí a bela Dona Ana viúva aos vinte e oito anos, sem filhos, herdeira de
mais de duzentos contos... talvez mais...
GONÇALO:- Oh! Gouveia! Então
agora hem?... Temos eleição suplementar... Quem será o escolhido?
GOUVEIA:- Agora, meu amigo,
com o tio do Cavaleiro Ministro da Justiça, vai deputado por Vila-Clara quem o
André Cavaleiro mandar. Como o Cavaleiro é regionalista, é claro que ele vai
apoiar alguém daqui mesmo... o deputado tem que ser local... (Pausa. Gouveia aproxima-se mais de Gonçalo e
fala em tom de conspiração). Oh, Gonçalo, ouça lá... Você agora tinha uma
ocasião soberba! Você, se quisesse, dentro de poucos dias, estava deputado por
Vila-Clara! Você não tem compromissos sérios com nenhum partido...
GONÇALO:- Mas...
GOUVEIA:- Escute, homem! Você
quer entrar na política? Quer. Então: não importa o partido... é tudo igual...
A questão é entrar, é furar. Aí está a porta aberta. O que pode embaraçar? As
suas inimizades particulares com o Cavaleiro? Tolices! Então eu não sei que
tudo isso são umas birras por causa da sua irmã Gracinha que esperava ser a
senhora Cavaleiro e não houve acerto?...
GONÇALO:- Gracinha? O que você
sabe sobre isso...
GOUVEIA:- Sei o que eu te
disse...
GONÇALO:- Não... isso não é
nada... Amigos... irmãos... eu e o Cavaleiro...
GOUVEIA:- Desembucha, homem...
houve crime de morte entre vocês?
GONÇALO:- Pior do que morte:
traição... Não foi a Graça a traída, fui eu...
GOUVEIA:- Não te entendo...
GONÇALO:- Está certo,
promessas de bodas não houve, mas é como se tivesse havido... por tudo...
GOUVEIA:- Então o Barrolo...
GONÇALO:- Não. O Barrolo é
honrado, e não tem na cabeça nada que o torne indigno, ele é só um bacoco...
nem minha irmã seria capaz...
GOUVEIA:- Então...
GONÇALO:- É difícil
confessar... todos aqueles anos juntos... Já lhe disse, mais que amigos,
irmãos... e então ele, vupt, sumiu... e voltou agora...
GOUVEIA:- Sim... voltou...
GONÇALO:- ... poderoso...
homem da corte... tio ministro... administrador de Oliveira...
GOUVEIA:- Não sei onde está
querendo chegar...
GONÇALO:- A casa dos Ramires
tem mil anos... mais fidalga que o rei... E eu? Eu tenho só o nome...
Ramires...
GOUVEIA:- Um nome ilustre da
ilustre casa dos Ramires!
GONÇALO:- Olhe para mim,
Gouveia, olhe bem... o que você vê de ilustre nessa figura? A torre de
Tructesindo, Gouveia, a torre é só um amontoado de ruínas... e eu sou... não,
não sou nem uma barbacã daquela torre... nem um tijolo...
GOUVEIA:- Ora, homem, você a
falar de ruínas quando há todo um futuro...
GONÇALO:- Entre mim e o
futuro, um inimigo... como uma torre...
GONÇALO:- Besteiras, homem,
besteiras... Vocês, no fundo, nem são inimigos! O Cavaleiro é rapaz de talento,
de gosto... de maneiras... de tradição... Numa terra pequena, não cabe
desavença entre dois homens como você e o Cavaleiro!
GONÇALO:- Mas o Cavaleiro vai
querer alguém de posses, como o Lucena, com fortuna e influência...
GOUVEIA:- Que diabo! Você tem
aqui propriedade. Tem a torre... tem uma quinta... sua irmã hoje é rica, mais
rica que o Lucena... E depois o nome, a família... Você mesmo disse: é mais
fidalgo que o rei... Não é uma situação muito superior à do Lucena? Sem contar
a inteligência...
GONÇALO:- E Gracinha... A
aproximação com o Cavaleiro equivale a mexer em cinzas em que pode haver
brasas...
GOUVEIA:- Olha, sabe o que
disse o Cavaleiro sobre você, outro dia mesmo?
GONÇALO:- O Cavaleiro falou a
meu respeito?
GOUVEIA:- Palavras textuais: “
Entre os rapazes dessa geração, nenhum com mais seguro e mais largo futuro na
política que o Gonçalo. Tem tudo! Grande nome, grande talento... E eu conservo
por ele todo o carinho antigo... gostava ardentemente, ardentissimamente, de o
levar às Câmaras!” Palavras textuais, meu amigo!
GONÇALO:- Ah, Gouveia,
eu... eu também conservo a antiga
simpatia pelo Cavaleiro...
GOUVEIA:- Titubeias por
escrúpulos... Gracinha é forte e além disso, o Barrolo, bem, a Pátria está
acima dos enfeites da cabeça de qualquer mortal...
GONÇALO:- A Pátria?
GOUVEIA:- Sim! A Pátria!
Privar a Pátria dos serviços de um Ramires, isso sim, é traição...
GONÇALO:- Questões íntimas?
Adeus! Caducaram! Pela Pátria, por mim, estou pronto à reconciliação, todo o
coração pede... Mas há outra coisa: a timidez me impede!...
GOUVEIA:- É preciso que
Portugal se cumpra, acima de questões íntimas, de sentimentos mesquinhos...
GONÇALO:- Mas, e ele?... Eu fui um pouco feroz com o
Cavaleiro...
GOUVEIA:- Nas cartas ao jornal?
Ora... O que você disse? Que é um déspota e um dom Juan? Meu caro amigo, todo
homem gosta que lhe chamem, por oposição política, de déspota e dom Juan...
Pensa que ele se afligiu? Ficou babado! Soou como música a seus ouvidos!
GONÇALO:- E as alusões à bigodeira,
à cabeleira de fadista...
GOUVEIA:- Belos cabelos
anelados... belos bigodes retorcidos... não são defeitos que envergonhem um
macho... pelo contrário! Você lhe prestou um favor: todas as madames e moçoilas
de Oliveira até o mais distante rincão ficaram sabendo da existência de um moço
esplêndido que é governador civil de Oliveira. Gonçalo Mendes Ramires, você
amanhã corre à cidade, entra pelo governo civil de braços abertos e grita sem
outro prólogo: - “André, o que lá vai, lá vai, venham essas costelas! E como
está vaga a indicação de deputado, que venha também essa indicação!” Só
precisamos de um pretexto...
GONÇALO:- Eu tenho um
pretexto!... Quero dizer, tenho necessidade real, absoluta, de falar com o
Cavaleiro ou com o secretário geral. É uma questão lá com o Casco... Escuta:
durante semanas o Casco me torturou para lhe arrendar a torre... Mas o Pereira
me ofereceu uma renda muito, mas muito maior... O Casco passou a me ameaçar...
até que, ontem, tentou me matar, numa emboscada... a mim, Gonçalo Ramires, da
casa dos Ramires!
GOUVEIA:- Governo civil, meu
amigo, governo civil! Esses casos de prisão preventiva pertencem ao governo
civil. Cadeia... com meia ração! Isso já não é um problema seu, é questão de
ordem pública encarcerar essa fera!
GONÇALO:- Com efeito... é
questão de ordem ao pública... Vou amanhã ao governo civil... Quanto ao Casco,
talvez nem precise prender, só mostrar as grades da cadeia...
“Intervalo”: com
exceção dos dois atores que farão a cena seguinte, com as personagens Gonçalo e
Cavaleiro, os demais “invadem” a cena e comentam jocosamente com o público o
“grande encontro”. Podem portar cartazes com os dizeres VOTE EM GONÇALO;
GONÇALO É COISA NOSSA!; NÃO VOTEM EM GONÇALO, VOTEM NO “OUTRO”!; ETA RAMIRES
MENTIROSO etc.
ATOR 1:- Acendam as luzes,
por favor, quero ver as pessoas... Será que concordam com isso? Você, por
exemplo, o que acha da reconciliação?
ATRIZ:- Reconciliação? O FHC
vai se reconciliar com ACM?
ATOR 1:- Que alienação! Estou
falando do Gonçalo e do Cavaleiro...
ATRIZ:- Num sei o que é
isso, não senhor!
ATOR 1:- Vamos para outra
pessoa... Você, aí... você mesmo! O senhor assistiu à peça até agora?
ATOR 2:- Peça?! Que peça?!
ATOR 1:- Ih! Assim vamos
mal... cada peça tem aqui... Psiu! Você aí, com cara de inteligente, fale aqui
para nós o que você achou de tudo isso...
ATRIZ:- Se formos analisar a
dialética das relações sociais em plena vigência de um realismo de resultados,
como prescrevia o digno autor dessa pantomima, podemos...
ATOR 1:- Não! Chega! Isso é
demais... Vou fazer uma última tentativa... Você... você... você aí, com cara
de bocó...
ATRIZ:- Isso é comigo?
ATOR 1:- É... é com você
mesma... Pode falar alguma coisa sobre...
ATRIZ:- Claro que posso... o
que o senhor que eu diga?
ATOR 1:- ...reconciliação
entre dois inimigos está acima dos interesses pessoais?
ATRIZ:- A reconciliação
entre dois inimigos está acima dos interesses pessoais.
ATOR 1:- E então?
ATRIZ:- E então.
ATOR 1:- O que você acha?
ATRIZ:- O que eu acho? Eu
acho... eu acho... o quê mesmo que eu acho?
ATOR 1:- Estamos mal... um tinha cara de inteligente e era bocó, essa
tem cara de bocó e é bocó mesmo...
ATRIZ:- Mas eu continuo
achando que aí nessa história o FHC e o ACM deviam se entender...
ATOR 1:- Minha senhora, a senhora
não entendeu nada: estamos contando uma história do final do século passado...
ATRIZ:- Mas o final do
século passado não é 1999?
ATOR 1:- Não, não é... estou
falando de 1890 mais ou menos...
ATRIZ:- Então é século
retrasado... isso é mais velho que minha bisavó...
ATOR 1:- É.. que seja então
no século retrasado...
ATRIZ:- E eu pensei que
sacanagem fosse só no século passado...
ATOR 1:- Bem, senhoras e
senhores... já que não é possível saber o que as pessoas pensam realmente...
vamos tentar acompanhar o resto da história... vamos ao empolgante capítulo do
grande encontro!...
Saem cantando um
tanto caricatamene o refrão da Torre dos Ramires, enquanto as luzes se apagam e
volta-se ao cenário do encontro entre Gonçalo e o Cavaleiro. Este está saindo
de uma tina de banho, só de “calções” (uma calça franzida e amarrada à cintura
até os tornozelos) e tenta ser efusivo, mas há no início um certo
constrangimento entre eles, que se vai dissipando. Cavaleiro termina de se
vestir enquanto conversam.
CAVALEIRO:- Senhor Gonçalo
Ramires... desculpe... a urgência...
GONÇALO:- Sou forçado a
dirigir-me ao governador civil, à autoridade, por um motivo de ordem pública...
CAVALEIRO:- Sinto profundamente
que não seja ao homem, ao velho amigo, que Gonçalo Mendes Ramires se dirija...
GONÇALO:- As culpas são decerto
minhas...
CAVALEIRO:- Ao cabo de tantos
anos, Gonçalo, seria mais caridoso não aludir a culpas, lembrar somente a
antiga amizade que, pelo menos em mim, se conservou a mesma, leal, séria...
GONÇALO:- Se o meu antigo
amigo André recorda a nossa antiga amizade, eu não posso negar que em mim
também ela nunca inteiramente se apagou...
CAVALEIRO:- ...desacordos da
vida...
GONÇALO:- ... podemos
superar...
CAVALEIRO:- Que droga, Gonçalo:
dá cá os ossos... nossa amizade é tão antiga que acabou de nascer!
Eles se abraçam. A
conversa se descontrai.
GONÇALO:- Sabes que vim a
pretexto do Casco...
CAVALEIRO:- Sim... sossega... já
fiquei sabendo e tomei todas as providências...
GONÇALO:- Mas...
CAVALEIRO:- Não te preocupes...
Cuidemos de nós... do nosso momento...
GONÇALO:- Sim, André, falemos
da vida...
CAVALEIRO:- ... e também da
morte...
GONÇALO:- Morte? Ah! Sim...
Afinal da morte... dos outros, pode vir a vida para nós...
CAVALEIRO:- Disseste-o bem,
amigo... O Sanches, hem?
GONÇALO:- Viúva de duzentos
contos... ou mais!
CAVALEIRO:- E que belas pernas...
que peitoril!
GONÇALO:- Falas como meu
cunhado...
CAVALEIRO:- O Barrolo! Bom
sujeito... tenho-o muito em conta, por sua... irmã...
GONÇALO:- Gracinha...
CAVALEIRO:- Graça Ramires! Uma
dama de respeito...
GONÇALO:- Embaraço a morte do
Sanches, para o partido...
CAVALEIRO:- Só há embaraço se tu
não quiseres...
GONÇALO:- Como, se eu não
quiser?
CAVALEIRO:- Se tu quiseres servir
o país, ser deputado por Vila-Clara, já não estávamos embaraçados, Gonçalo.
Pausa.
GONÇALO:- Se te posso ser
útil, e ao país, estou às vossas ordens!
CAVALEIRO:- Então, à campanha...
à campanha... que estás eleito!
Novos abraços
efusivos. Eles saem ao povo, abraçados. Há gritos de alegria e muitos vivas.
Luzes. Escritório do Gonçalo em Santa Irinéia. Ele escreve.
GONÇALO:- Afinal, tudo arranjado... voltemos à saga de
Tructesindo... alma façanhuda... lição para os novos... a tradição do velho
Portugal de honra e fibra!
Coloca as barbas de
Tructesindo. Entra um soldado.
SOLDADO:- Senhor Tructesindo!
Senhor Tructesindo Ramires! O Bastardo de Baião passou a Ribeira; vem sobre nós
com grande tropa de lanceiros!
TRUCTESINDO:- Pelo sangue de
Cristo! Em boa hora vem que nos poupa caminho!
SOLDADO:- Senhor! Senhor! A
gente de Lopo de Baião parou no Cruzeiro. E um cavaleiro moço, com um ramo
verde traz mensagem...
TRUCTESINDO:- Ide receber a
mensagem!
Entra o mensageiro.
MENSAGEIRO:- Cavaleiro do Solar
de Baião!... O Senhor D. Lopo ficou além do Cruzeiro e deseja que o nobre
senhor da Honra, o senhor Tructesindo Ramires, o escute para tratar do resgate
do senhor Lourenço Ramires, vosso filho...
TRUCTESINDO:- Que se acerque! Que
se acerque! E com quantos queira dos vilões que o seguem!
Entra Lopo de Baião
com Lourenço Ramires puxado numa espécie de maca.
LOPO:- Senhor Tructesindo
Ramires, nestas andas vos trago vosso filho Lourenço, que em lide leal, no vale
de Canta-Pedra, colhi prisioneiro. Senhor Tructesindo, como vós venho de reis.
De D. Afonso de Portugal recebi a pranchada de cavaleiro... Toda a nobre raça
de Baião se honra em mim... Consenti em me dar a mão de vossa filha D.
Violante, que eu quero e que me quer, e mandai erguer a levadiça para que
Lourenço ferido entre no seu solar e eu vos beije a mão de pai!
LOURENÇO:- Não, meu pai! Não!
TRUCTESINDO:- Meu filho, antes de
mim, te respondeu, vilão!
LOPO (furioso):- Senhor
Tructesindo Ramires, não me tenteis!...
TRUCTESINDO:- Arreda, vilão e
filho de viloa, arreda!
LOPO:- Pelo sangue de
Cristo eu te juro: se não me dás neste instante essa mulher que quero e que me
quer, sem filho ficas! Por minhas mãos, diante de ti e nem que todo o céu
acuda, lhe acabo o resto de vida!
Lopo ergue um punhal.
Tructesindo atira-lhe, no entanto, sua espada.
TRUCTESINDO:- Com esta, covarde!
Com esta! Para que seja puro, não vil como o teu, o ferro que atravessar o
coração de meu filho!
Num ímpeto, Lopo
enterra o punhal na garganta de Lourenço. Confusão, gritos. Lopo foge.
Tructesindo ajoelha-se diante do corpo do filho.
TRUCTESINDO (para um dos seus):-
Amigo! Cuida tu do corpo de meu filho, que a alma ainda hoje, por Deus, lha vou
eu sossegar!... (Levanta-se). E
agora, Senhores, a cavalo, e vingança brava!
Luzes. Gonçalo
ergue-se de sua escrivaninha e grita pelos criados. Recolhe alguns objetos de
batalha que ficaram pelo chão e guarda-os ou joga-os para dentro das coxias.
Veste-se e sai. Caminho da casa da irmã, encontra o Ernesto de Narcejas, que
lhe barra a passagem. Os dois se encaram por um instante. Gonçalo se amedronta
e tenta afastar-se. Ernesto segura-o por um instante pelo braço.
ERNESTO:- Fidalgo! Fidalgo de coisa nenhuma...
Solta-o. Gonçalo
foge. Casa de sua irmã.
GONÇALO (para um criado):- Os de casa?
CRIADO:- Todos muito bem de
saúde, graças a Deus, senhor Gonçalo...
GONÇALO:- Não foi isso que eu
perguntei, homem... Meu cunhado, o senhor Barrolo...
CRIADO:- O cunhado senhor
Barrolo foi jantar com o senhor Barão... só volta à noite...
GONÇALO:- E a senhora Dona
Graça?
CRIADO:- A senhora Dona Graça
desceu há um bocadinho grande para o mirante, de chapéu... Naturalmente ia à
igreja... O senhor Gonçalo deseja mais alguma coisa...
Com um gesto, despede
o criado. Caminha de um lado para o outro, preocupado. Luz sobre Graça, que
parece esperar alguém. Entra o Cavaleiro e os dois iniciam um diálogo
inaudível. Gonçalo se aproxima sem ser visto. Seu rosto reflete espanto, pavor.
GRAÇA:- Não... não... é
loucura...
CAVALEIRO:- Mas eu a amo...
GRAÇA:- Eu sei... eu
também... não, não posso...
CAVALEIRO:- Nós podíamos...
GRAÇA:- Não sei...
Beijam-se. O foco
sobre eles apaga-se e concentra-se em Gonçalo, que faz um gesto de ódio.
Afasta-se e toca uma campainha para chamar o criado.
GONÇALO:- Anda... vê uma
carruagem... volto para a Torre... rápido...
CRIADO:- Mas, o patrão nem
esquentou a cama...
GONÇALO:- Faz o que te digo!
Rápido... se não queres...
Faz um gesto de
ameaça. O criado sai, assustado. Torre de Santa Irinéia. Gonçalo senta-se à
escrivaninha. Cenho carregado. Batem à porta com força. Gonçalo, contrariado,
manda entrar. É Bento.
BENTO:- Senhor, senhor...
está aí a mulher do Casco...
GONÇALO:- Quem?!
BENTO:- A mulher do José Casco, com um filho nos
braços... insiste em falar com o senhor...
GONÇALO:- Que maçada! Nada
tenho para falar com essa mulher... mande-a embora... se precisa de alguma
coisa, dinheiro, comida, sei lá...
BENTO:- Não... não, é que ela disse que lhe prenderam
o marido...
A mulher do Casco
entra de repente, com uma criança no colo. Arroja-se aos pés de Gonçalo,
atônito.
MULHER:- Ai, meu rico
senhor... tenha compaixão! Ai que me prenderam o meu homem; que o vão mandar
para a África degredado! Jesus, meus filhinhos da minha alma que ficam sem
pai!... Ai, pelas suas almas, meu senhor, e por toda a sua felicidade!... Eu
sei que ele teve culpa!... Mas tenha piedade de meus filhinhos...
GONÇALO:- Oh mulher, sossegue,
já o vão soltar! Sossegue! Já dei ordem! Já o vão soltar!
BENTO:- Foi o que já lhe dissemos... Logo pela manhã
já o vão soltar...
MULHER:- Ai que eu morro, se
não o vejo solto! Ai, perdão, meu rico senhor de minha alma...
GONÇALO:- Escute mulher! E
olhe para mim! Mas de pé, de pé!...E olhe bem, olhe direita! Muito bem... Acha
que vou lhe mentir... você nessa aflição... acabe com os gritos... dou-lhe
minha palavra: amanhã cedo, o seu homem está solto!
BENTO:- Pois não é o que dizia a gente, criatura de
Deus? Se o senhor doutor tinha prometido... Amanhã lá tens o homem... Agora,
vamos, deixe o senhor doutor trabalhar... Vamos, pegue os seus filhos e
vamos...
GONÇALO:- Espere... está
chovendo muito... você não vai sair com essa criança... (Põe a mão na criança). Mas esta criança tem febre... E você traz o
pequeno assim desde os Bravais, mulher!
MULHER:- Ai! Era para que
eles também pedissem, que estavam sem pai, os coitadinhos...
GONÇALO:- Você é doida,
mulher! Não vai sair daqui com esse
menino nessa chuva... pelo menos este fica! A Rosa toma conta dele... até ficar
bom. (Para o Bento). Pegue a minha
capa e cubra bem essa mulher e os outros pequenos que ficaram lá embaixo... não
deixe que se molhem... Agora, vão! Deixem-me trabalhar em paz...
BENTO:- Se o fidalgo manda, está muito bem...
A mulher tenta beijar
as mãos de Gonçalo, que se livra dela, empurrando-a para fora.
GONÇALO:- Que maçada... que
grande maçada, Bento!
BENTO:- Tenho mais uma coisa
para o senhor doutor...
GONÇALO:- Não me venha com
mais problemas, Bento... o que é?
BENTO:- Uma carta...
Gonçalo lê a carta.
GONÇALO:- É... pode ser uma
saída, para mim... Sabes de quem é essa carta, Bento? De minha prima,
convidando-me... intimando-me a encontrá-la e a Dona Ana Lucena na velha capela
do cemitério de meus antepassados... aquelas ruínas... quem sabe está aí a
saída para meus problemas... livrar-me do Cavaleiro...
BENTO:- Não entendi,
senhor...
GONÇALO:- Nada, nada... Coisas
que me passaram aqui pela cachola... Vou sair cedo, amanhã... deixe tudo
preparado... e avise a Rosa para cuidar bem de nosso pequeno hóspede!
Passagem de tempo.
Gonçalo encontra Dona Ana Lucena.
GONÇALO:- Dona Ana... meus
préstimos... Recebi carta de minha prima, a senhora Dona Maria Mendonça... onde
ela está?...
DONA ANA:- Senhor Gonçalo...
sim, a prima... sua prima foi ver as ruínas e lá ficou a rezar um pouco mais na
capela... Saí a tomar ares...
GONÇALO:- E então, gostaram?
Vossa Excelência, senhora D. Ana, gostou das ruínas?... Muito interessantes,
não é verdade?
DONA ANA:- Já as conhecia... vim
aqui uma tarde com o pobre Sanches, que Deus haja...
GONÇALO:- Vossa Excelência
está talvez cansada, senhora Dona Ana?
DONA ANA:- Não... não estou
cansada... eu nunca me canso... Muito ilustres os seus antepassados, senhor
Gonçalo...
GONÇALO:- Nesse túmulo
habitava, naturalmente morto, um dos meus avós... não me lembro o nome...
Gutierrez ou Lopo... Contam que durante uma famosa batalha... contra os cinco
reis mouros... o tal Gutierrez ou Lopo soube da carnificina e arrombou o
túmulo... Não a estou aborrecendo com essas histórias antigas...
DONA ANA:- Não... não...
continue, por favor... São muito encantadoras essas histórias de quem tem um
passado tão ilustre...
GONÇALO:- ... pois então, esse
Gutierrez arromba o túmulo, sai por este pátio como um desesperado, desenterra
o seu cavalo que fora enterrado no adro onde agora crescem aqueles carvalhos,
está vendo?... monta nele todo armado e, cavaleiro morto sobre cavalo morto,
larga a galope através da Espanha, chega ao local da batalha, arranca a espada
e destroça os mouros... Que lhe parece, Dona Ana?
DONA ANA:- Tem graça! Tem muita
graça! Da minha família as histórias têm outros enredos... Mas me diga, senhor
Gonçalo... e voltou para cá esse seu avô?
GONÇALO:- Que nada, minha
senhora, assim que se apanhou livre da sepultura, mão mais apareceu por essas
plagas... o túmulo vazio como está e ele por Espanha, numa pândega heróica!...
Imagine! Um defunto que se safa de seu jazigo... Deixemos essas histórias tão
antigas a quem delas um dia já se ocupou...
DONA ANA:- Oh não, essas
histórias me interessam muito, senhor Gonçalo... o cavalheiro não me aborrece
nem um pouquinho com elas...
GONÇALO:- Devo confessar-lhe,
minha senhora, que delas me ocupei quando estudava em Coimbra, por miséria...
DONA ANA:- Por miséria?
GONÇALO:- Sim... os
companheiros e eu chegamos a não juntar entre todos um só vintém... nem para
cigarros! Então, um deles sugeriu que eu escrevesse a meus parentes na França,
prováveis descendentes de Ramires que se espalharam por toda a Europa... mas
que nada, não existem mais... foi tudo inútil... Só restamos eu e minha irmã...
DONA ANA:- Ah essas histórias de
Coimbra têm graça, têm muita graça... O Dom João da Pedrosa, em Lisboa, também
contava muitas... Desculpe... falávamos do senhor... mas os Ramires precisam
continuar honrando com sua história a nossa terra...
GONÇALO:- Minha irmã Graça até
agora não nos deu sinal de continuar essa história, senhora Dona Ana...
DONA ANA:- Mas ainda temos o
senhor...
GONÇALO:- Mas se não me caso,
senhora Dona Ana! A senhora gosta de crianças?
DONA ANA:- Oh sim, muito...
venho de família numerosa...
GONÇALO:- As crianças são os
únicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece. Os outros anjos, os
de asas, nunca aparecem. Os santos, depois de santos, ficam na bem-aventurança
a preguiçar, ninguém mais os enxerga...
DONA ANA:- Com efeito, senhor
Gonçalo, os pequenos são muito amáveis... fazem-nos ótima companhia... Quem
sabe, o senhor ainda...
GONÇALO:- Quem sabe, senhora
Dona Ana... Aqui, nestas terras, há lugares muito bonitos... lá longe, para
aquele lado... existe uma lagoa... belo lugar para um pic-nic... A senhora...
DONA ANA:- Gostaria muito,
senhor Gonçalo... teria muita honra... mas já sua prima nos chama... são
horas... Vamos?
Gonçalo oferece o
braço a Dona Ana e ambos se afastam, enquanto Videirinha entoa os primeiros
versos do Fado dos Ramires. Luzes. Gonçalo em seu escritório. De fora da Torre,
os gritos de Titó.
TITÓ:- Oh sô Gonçalo... oh
sô Gonçalinho... oh sô Gonçalão!
GONÇALO:- Titó! Velho amigo...
temos sentido sua falta... Entra!... Vem cá um grande abraço, homem... E teu
irmão?
TITÓ:- Melhor... melhor...
mas arrasado... é muita fêmea para velho de sessenta anos... Olhe que sempre
agarrado a papéis velhos e cachopas novas o mano rebenta... E por cá? Essa
eleição?
GONÇALO:- A eleição agora para
outubro, nos começos de outubro... De resto, uma monotonia universal... Ando
meio que... sei lá... meio murcho... até sem apetite...
TITÓ:- Ih! Isso está me
parecendo que há rabo de saia... Está o amigo apaixonado?
GONÇALO:- Jantas conosco, não
é? Bento!... oh Bento!... Avisa a Rosa que temos convidados...
O Bento entra com
algo enrolado numa toalha.
GONÇALO:- Que me trazes aí, oh
Bento...
Ele desenrola um
chicote antigo.
BENTO:- Nem o senhor sabia!
Estava no sótão. Atrás de uma ninhada de gatos, acabei encontrando umas esporas
e esse arrocho...
GONÇALO:- Esplêndido chicote,
hem Titó? Afiado como um cutelo. E antigo, muito antigo, como as minhas
armas... De que diabo é feito, de baleia?...
BENTO:- De cavalo-marinho...
uma arma terrível. Mata um homem... mata um homem!
GONÇALO:- Bem, acaba de
limpá-lo e põe no meu quarto, Bento! Passa a ser minha arma de guerra!
Sai o Bento, com o
chicote.
TITÓ:- Estou derreado!
Sempre a viajar e sem dormir desde ontem às quatro da manhã... Caramba, dava
agora, como aquele rei, um cruzado por um burro!
GONÇALO:- Perguntaste-me há pouco se estou... Queria te
fazer uma pergunta... sê franco... Ias muito à Feitosa... Que te parece aquela
Dona Ana?
TITÓ:- Ora essa! Mas a que
propósito?...
GONÇALO:- Olha! Não tenho
segredos para ti... Houve aí umas conversas, uns encontros... Para resumir, se
daqui a tempos eu pensasse em casar com a Dona Ana, creio que ela, por seu
lado, não recusava... Tu freqüentavas a casa do Sanches... Que tal rapariga é
ela?
TITÓ:- Pois tu vai casar com
Dona Ana?
GONÇALO:- Homem... não vou
casar... não sigo esta noite para a igreja. Só quero informações!
TITÓ:- Pois tu pensas em
casar com Dona Ana! Tu, Gonçalo Mendes Ramires!?
GONÇALO:- Se me vens com a
fidalguia e com os antigos Ramires...
TITÓ:- Qual fidalguia! É que
um homem de bem como tu não pensa em casar com uma criatura como ela!...
Fidalguia?!... Sim! Mas fidalguia de alma e de coração!
GONÇALO:- Então... então tu
sabes outras coisas... Sei que é bonita e rica... sei também que é séria...
nunca sobre ela se rosnou nem aqui nem em Lisboa... são qualidades para se
casar com uma mulher... (Pausa). Se
tu afianças que não se pode casar com ela é porque sabes outras coisas... (Pausa). Desembucha, homem de Deus!
TITÓ:- Aqui não vim para
depor como testemunha! Em princípio, sem explicações, perguntas se podes casar
com essa mulher. E eu, sem explicações, em princípio, declaro que não!... Que
diabo queres mais?
GONÇALO:- Que quero?!? Pelo
amor de Deus, Titó!!!... Supões que estou doidamente apaixonado pela Dona
Ana? Supões que tenha imenso interesse
em casar com ela?
TITÓ:- Não sei... tu é que
estás a dizer... paixão... interesse? Afinal, qual dos dois, senhor meu amigo
Gonçalo?
GONÇALO:- Amigo! Pois sim...
Não se desvia um amigo de um ato em que ele está tão fundamente empenhado, sem
lhe apresentar uma razão, uma prova...
TITÓ:- Ah! Então está
“fundamente empenhado”?!... Olha, Gonçalo, eu estou muito estafado. Tu não vais
a esta hora a igreja... e ela, menos... que o marido ainda não arrefeceu na
cova... então, amanhã conversamos!
GONÇALO:- Está certo... está
certo... Assim que demonstras amizade... deixas-me aqui com a maior aflição, na
maior dúvida e vais dormir o sono do justo! Oh Titó... é claro que ainda não me
caso... é claro que há tempo... proclamas... essas coisas... mas eu preciso
saber... não será o teu mano João quem vai rebentar-se... eu vou rebentar-me,
se não me dizes!...
Pausa! Titó baixa a
cabeça, que coça com desespero.
TITÓ:- Tu ficaste amuado...
é tolice! Entre nós não quero sombras, Gonçalo. Então lá vai! Tu não podes
casar com essa mulher porque ela teve um amante. Não sei se antes ou depois
desse teve outro. Não há criatura mais manhosa, nem mais disfarçada. Não me
venhas agora com perguntas. Mas fica certo que ela teve um amante... mais de
um... Sou eu que to afirmo; e tu sabes que nunca minto!
Titó sai. Gonçalo
caminha de um lado a outro. Luzes indicam passagem de tempo. Madrugada.
GONÇALO:- Humilhações!... Só
humilhações... tudo o que para um homem são intentos simples, seguros, para mim
resultam sempre em dor, vergonha, perda! Um irmão, um confidente, que vem para
dentro da torre, para a intimidade da torre, e logo esse homem se apodera do
coração de Gracinha e depois a abandona! Desejo ser político... de sair dessa
vida de mediocridade, de sempre tudo igual... e o acaso me força a render-me a
esse mesmo homem, agora autoridade poderosa... e a irmã, de caráter tão rijo,
abandona-se às garras desse mesmo homem... Oh sina! Penso em casar-me com uma
mulher de grande beleza e grande fortuna... e ela se revela uma criatura vil,
uma marafona cheia de amantes... E eu até já me havia acostumado com sua voz de
taquara rachada!... Por quê? Por quê? Pobre de mim! Em vida tão curta, tanta
decepção... Que contraste entre mim, escondido nesse buraco de santa Irinéia, e
os grandes avós Ramires... de vidas triunfais e sonoras!...
Dirige-se para a
escrivaninha e começa a escrever. Surge dom Tructesindo, terrível diante do
Bastardo, amarrado, humilhado, seguro por Dom Garcia, o Sabedor.
TRUCTESINDO:- Aí temos o assassino,
senhores! Longos foram os caminhos para encontrá-lo... Agora a vingança... tem
que ser terrível...
DOM GARCIA:- Enforquemo-lo, senhor dom Tructesindo...
TRUCTESINDO:- Esse Bastardo há que
ter morte mais vil que de outra igual não se possa contar desde que Portugal
foi condado! Mais vil que a forca!
TODOS:- Morte ao Bastardo...
Morra! Morra!
DOM GARCIA:- Dispam-no e joguem-no
às águas desse poço... mas deixem-no de tal forma que só a cabeça paire sobre
as águas...
TRUCTESINDO:- Por Deus, Dom
Garcia... que me ides simplesmente afogar o vilão e sujar essa água
inocente!...
MENDO PAIS:- Sossegai! Sossegai!
Velho estou certamente, mas ainda o senhor Deus me consente algumas traças.
Não. Nem enforcado, nem degolado, nem afogado... Mas chupado, senhores! Chupado
em vida e devagar! Pelas grandes sanguessugas que enchem toda essa água negra!
TODOS:- Boa traça! Boa
traça!
TRUCTESINDO:- Andai! Andai! E vós,
senhores, colocai-vos na lomba do cerro: será o melhor palanque para tão grande
vista!
Arrastam o Bastardo,
colocam-no numa espécie de caixa só com a cabeça para fora. Reúnem-se em torno,
de costas para o púbico, em grande alvoroço e gritaria, em que se ouvem
palavras e frases isoladas, entre os gritos de horror do homem devorado pelas
sanguessugas: “agüenta, agüenta”, “furaram o ventre”, “estão vindo mais”,
“sangue”, “sangue do porco”, “suga, suga”, “mais sangue”, “as águas estão
vermelhas”, “vede, está esgotado”... Dom Tructesindo afasta-se do grupo.
TRUCTESINDO:- Já as bichas lhe
sugam o último alento. Morto! Morto o traidor! Justiça está feita! E assim
morra de morte infame quem traidoramente me afronte a mim e aos de minha raça!
Em cortejo, levam o
corpo do Bastardo, entre gritos de vitória, numa grande comemoração. Luzes.
Gonçalo, em sua escrivaninha vai acordando aos poucos, ergue-se, retira
lentamente as barbas de Dom Tructesindo. Amanhece. Grita aos criados. Entra o
Bento com uma bacia de água quente para a barba.
BENTO:- Dormiste bem, meu
senhor?
GONÇALO:- Pessimamente!
BENTO:- Naturalmente o senhor
fidalgo abusou daquele cognac...
muito adocicado... bom para homens pesados... não para o senhor, meu fidalgo...
assim, nervoso... não devia nunca tocar naquele cognac... e o senhor doutor com certeza bebeu mais de três
cálices...
GONÇALO:- Homem, não dês
tantas leis... bebo o cognac que
preciso e que quero! E esta água está morna! Já me tenho fartado de dizer !
Para a barba, preciso sempre água a ferver!
BENTO:- Pois esta água está
ótima... nem para a barba se necessita água mais quente!
GONÇALO:- O quê!!! Mais
objeções... mais leis?! Quando eu peço água quente, quero água a ferver! Eu não
quero moral, quero obediência! Vá imediatamente trocar essa água!
Bento, espantado, sai
e volta com outra água. Em silêncio amuado, ajuda Gonçalo a barbear-se e a
vestir-se.
GONÇALO:- Dia muito bonito,
hem, Bento?
BENTO (entre dentes):- Muito bonito.
GONÇALO (quase humilde):-
Pois se achas o dia assim tão bonito, dou um passeio... O que achas? Talvez me
faça bem aos nervos... Com efeito, aquele cognac
não me convém... Também me acalma a água quente... Ah... e dá acá aquele
chicote de cavalo-marinho que tu ontem limpaste... boa arma!... muito boa
arma!...
Gonçalo caminha.
Dirige-se a um rapaz sentado junto a uma porta, tendo ao lado uma espingarda.
GONÇALO:- Tem a bondade...
sabe por acaso qual é o bom caminho para a quinta do senhor Visconde de Rio
Manso, a Varandinha?
RAPAZ:- Para a quinta do Rio
Manso... Siga pela estrada até a pedreira, depois à esquerda a seguir, sempre
rente da várzea...
Nesse instante,
aparece o Ernesto de Narcejas, o valentão que já o afrontara outras duas vezes.
ERNESTO:- Oh Manuel... que
estás tu aí a ensinar o caminho, homem! Este caminho por aqui não é para asnos!
Gonçalo titubeia
entre fugir e ficar, mas sobe-lhe uma grande raiva, que o leva a dizer quase a
engasgar as primeiras palavras.
GONÇALO:- Você é muito
atrevido! É já pela terceira vez! Eu não sou homem para levantar desordens numa
estrada... Mas fique certo que o conheço, e que não escapa sem lição.
ERNESTO:- Então cá estou! Venha
agora esta lição... E para adiante é que você não passa, seu Ramires de
merda!...
Gonçalo arremete
contra Ernesto com o chicote de cavalo-marinho. Com um berro, o homem recua,
cambaleando. Outra chicotada derruba-o ao chão, urrando. Gonçalo continua
batendo nele com chicote, num acesso de fúria. Ouve-se um tiro. Vira-se para o
rapaz com a espingarda na mão, ainda fumegando.
GONÇALO:- Ah, cão!
Atira-se ao encalço
do rapaz, que tentara fugir, e enlaça-o com outra chicotada. O rapaz também cai
ao chão, desacordado. Um homem surge gritando.
HOMEM:- Ai que mataram o meu
rapaz!
Ajoelha-se diante de
Gonçalo.
HOMEM:- Ai, que não me faça
mal, meu fidalgo, por alma de seu pai Ramires.
GONÇALO:- Esse malandro quase
me mata... Você também não tem boa cara! Que ia correndo para casa? Buscar
outra espingarda?
HOMEM:- Oh meu fidalgo, não
tenho em casa nem um cajado... Deus me ajude! Salve o meu rapaz!
GONÇALO:- Levante, rápido... e
marche na minha frente na estrada... O rapaz está só atordoado, já se mexeu...
e o outro malandro também... vamos, marche...
HOMEM:- Oh meu fidalgo...
que desgraça... não me leve preso...
Caminham por um
tempo.
GONÇALO:- Alto! Agora pode
voltar para trás... Mas, antes: como se chama aquele lugar?
HOMEM:- A Grainha, meu
fidalgo...
GONÇALO:- E você, como se
chama, e o rapaz?
HOMEM:- Eu sou o João, o meu
rapaz Manuel... Manuel Domingues, meu fidalgo.
GONÇALO:- Mentes! E o outro
malandro?...
HOMEM:- Esse é o Ernesto de
Narcejas, o valentão de Narcejas, que chamam o Caça-abraços, que tanto me desencaminhou o meu rapaz...
GONÇALO:- Diga lá a esses dois
marotos que me atacaram que não ficam quites só com a sova... que eles terão que
se entender com a justiça, ouviu? Com a justiça!
Gonçalo chega à torre
e é recebido com festa. Lá estão o Barrolo e esposa, Gracinha, Bento e
Videirinha.
TODOS:- Viva! Parabéns!
Muito bem! Viva o fidalgo! Vivam os Ramires!
GONÇALO:- Então... já sabem?!
BARROLO:- A notícia já correu
por toda Vila Clara...
BENTO:- E parece que já
chegou também a Oliveira...
GONÇALO:- Barrolo... o que
fazes aqui, homem?
BARROLO:- Ora... Gracinha e eu
viemos visitar-te, já que não apareces... e aqui soubemos do ocorrido...
GONÇALO:- Sim... Graça, minha
irmã... você... Cadê o Cavaleiro?
BARROLO:- Não soubeste?
Abalou-se para Lisboa!
GONÇALO:- O quê! o Cavaleiro
foi para Lisboa?
BARROLO:- Pois partiu há três
dias! Com grande demora... Só volta para as eleições...
GONÇALO:- Ah... para as
eleições...
BENTO:- ... que estão no
papo, meu fidalgo e cunhado... Venho trazer-lhe o apoio de quase todas as
grandes famílias de Vila Clara, de Oliveira de todos esses rincões por aqui
tudo... Você é um herói... da velha cepa dos Ramires! Pode arrumar as malas
para Lisboa...
BENTO:- Mas que hora para
essa conversa... Os bons tempos voltaram!... Viva a ilustre casa de Ramires!
Viva o deputado!
TODOS:- Viva! Viva!
Gonçalo abraça
Gracinha, no meio de toda aquela euforia, e beija-a.
GRAÇA:- Oh Gonçalo! Que
felicidade nós virmos à torre justamente hoje, que te sucedeu coisa tamanha!
GONÇALO:- É verdade, Gracinha,
grande sorte! E não me admirei nada de te ver... Era como se ainda vivesses na
torre e te encontrasse no corredor... Quem estranhei foi o Barrolo! Fiquei
imaginando: que diabo faz aqui o Barrolo? Curioso, não? Mas na verdade, minha
irmã, remocei, lembrei quando desejávamos uma guerra em Portugal e nós,
cercados na torre, eu, você e o .... o... André..., a jogar bombardas aos
espanhóis...
GRAÇA:- Oh Gonçalo... tu
deves estar muito cansado, depois dessa verdadeira batalha...
GONÇALO:- Não... cansado,
não... com fome...
GRAÇA:- Já andei a trabalhar
com a Rosa na cozinha... o almoço está quase pronto... uma pescada à espanhola...
bem picante...
GONÇALO:- Então vamos a essa
pescada, mas antes quero ouvir cá o nosso Videirinha... o que será que traz de
novo o nosso poeta?
VIDEIRINHA:- Ah senhor Gonçalo, ouça: são os últimos
versos do fado dos Ramires.
Videirinha afina o
violão e canta.
VIDEIRINHA:- Quem te v’rá sem que estremeça.
Torre de Santa Irinéia,
Assim tão negra e calada,
Por
noites de lua cheia
Quem
só em Paio Ramires
Põe
agora o mundo a esperança...
Que
junte os seus cavaleiros
E
que salve o rei de França!
Os
Ramires doutras eras
Venciam
com grandes lanças,
Este
vence com um chicote,
Vede
que estranhas mudanças!
É
que os Ramires famosos,
Da
passada geração,
Tinham
a força nas armas
E este a tem no coração!
Quem te v’rá sem que estremeça.
Torre de Santa Irinéia,
Assim tão negra e calada,
Por noites de lua cheia
Todos cantam o refrão
e depois dão grandes vivas a Gonçalo, à casa de Ramires, a Portugal etc.
FIM
Domingo, 7 de Maio de 2000
15:13
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