PEÇA EM 1 ATO
INSPIRADA NO CONTO “CASA TOMADA”
DE JULIO CORTÁZAR
ISAIAS EDSON SIDNEY
1999
LOCALIZAÇÃO
Sala de estar de uma casa em São Paulo. No entanto, o
único móvel importante é uma cadeira de balanço. O ano é 1999.
PERSONAGENS
Um casal de meia idade, ou com
idade suficiente para terem um filho de 18 anos. Ele, professor; ela, dona de
casa (ex-funcionária pública).
São eles IRENE e JÚLIO.
SBAT – 1350
FBN – 214.051; livro 373, folha
211
RESUMO
Inspirada
(apenas inspirada) num conto de Cortázar - Casa Tomada, a peça narra o drama de
um casal de classe média paulistana que, durante três noites, aguarda notícias
de seu filho.
AUTOR
ISAIAS EDSON SIDNEY
RUA DOS BURITIS, 251 – JABAQUARA, SÃO PAULO – SP
CEP – 04321 – 001
Telefone: (11)5011-9628
Ao
começar a peça, Irene está sentada em uma cadeira de balanço, tricotando. No
chão, um cesto com vários novelos de lã, de todas as cores. A sala tem uma só
porta, ao centro. Ela tricota lenta e tristemente, olhando o relógio de vez em
quando. Ouvem-se ruídos da cidade: buzinas, vozes inaudíveis, freadas, apitos
e, principalmente, ruídos de sirenes que se repetem ao longo das cenas. Após
alguns instantes, entra Júlio, com duas xícaras.
JÚLIO:-
Café... a noite pode
ser longa...
Irene
pega a xícara e fica em silêncio por um instante. Prova o café e joga, com
ódio, a xícara contra Júlio, que se desvia a tempo.
JÚLIO:- Está louca? Que bicho te
mordeu?
IRENE:-
Você pôs menta no café!...
JÚLIO:- Você sempre gostou de
menta no café!
IRENE:- Odeio menta no café...
Júlio
recolhe a xícara e sai.
IRENE:- Vem logo, meu filho...
a mãezinha preparou um café gostoso pra você... como você gosta... com bolinho
de queijo e... menta... café com menta... não é uma delícia?
Júlio
volta, Irene se cala e continua tricotando.
JÚLIO:- O rádio disse que vai
chover...
IRENE:- Lúcio está demorando...
que horas são?
JÚLIO:- Vamos dormir... você
não pode ficar aqui a noite toda... toda noite...
IRENE:- Lúcio ligou... disse
que vai se atrasar um pouco... está morrendo de fome... quer café com
bolinho...
JÚLIO:- Você ouviu o barulho?
IRENE:- Freada de carro...
JÚLIO:- Não! Passos... vozes...
vou ver...
Sai.
Irene volta ao tricô. Sua voz, no início, é quase inaudível, mas vai aumentando
aos poucos. Ouve-se um barulho de porta batendo e ruído de chaves.
IRENE:- Meu filho, Lúcio, é um
menino bom... Está no cursinho, vai fazer vestibular... disse que quer ser
médico, para salvar as pessoas... Ele gosta de menta... sorvete de menta...
café com menta... tem mania... Eu também
gosto, mas implico: pára com essa mania de menta, Lúcio! Tudo de mais faz
mal... Ele ri...
Júlio
volta.
JÚLIO:- Tive que trancar a
porta... tomaram a parte do fundo...
IRENE:- O Lúcio não vai
gostar... lá ficavam os brinquedos dele...
JÚLIO:- Brinquedos antigos... o
computador está a salvo...
IRENE:- Não tem importância: a
gente se acostuma...
JÚLIO:- Uma casa tão grande, no
meio dessa selva...
IRENE:- Ih! Lembrei que a
bicicleta do Lúcio ficou na parte invadida... O que vamos fazer?
JÚLIO:- Eu sempre te falei para
não proteger demais esse menino... que um tombo de bicicleta não é nada... Mas,
não: você vivia vigiando ele demais... agora, deu nisso... a gente aqui, esperando...
esperando... Irene, preste atenção: um homem tem que saber escolher seus
caminhos... tem que quebrar a cara, de vez em quando... tem que saber sair dos
buracos...
IRENE:- O Lúcio nunca vai ser
esse monstro que você quer que ele vire...
JÚLIO:- Vamos dormir... já é
tarde... amanhã eu tenho umas provas pra corrigir...
IRENE:- Estou sem sono... Boa
note.
JÚLIO:- Merda de vida!
Blackout.
Quando as luzes se acendem, o cenário é o mesmo: Irene sozinha, tricotando.
Depois de alguns instantes, entra Júlio, com uma xícara de café.
JÚLIO:- Café... a noite pode
ser longa...
Irene
pega a xícara e fica em silêncio por um instante. Prova o café e joga, com
ódio, a xícara contra Júlio, que se desvia a tempo.
JÚLIO:- Está louca? Que bicho te
mordeu?
IRENE:-
Você não pôs menta no café!...
JÚLIO:- Você sempre odiou menta
no café!
IRENE:- Eu só tomo café com
menta...
Júlio
recolhe a xícara e sai.
IRENE:- Já te falei, mãe... não
venha com esse papo de esqueci... Da próxima vez, eu não vou ser bonzinho... E
cadê meus cadernos... estou atrasado pra aula, porra... Esta casa enorme... eu
nunca encontro nada... Você devia obrigar o pai a contratar uma empregada... a
gente tinha um monte de empregados, eu me lembro... Tem que ter serviçais... eu
quero o meu café com menta... e bolinhos quentes, ouviu?
Júlio
volta. Irene se cala e continua tricotando.
JÚLIO:- Meus alunos foram mal
nas provas. Estou ficando velho...
IRENE:- Precisamos contratar
uma babá para o Lúcio... logo, logo eu volto a trabalhar...
JÚLIO:- O rádio disse que vai
chover, de novo...
IRENE:- Júlio, eu queria te
pedir um favor...
JÚLIO:- Acho que ouvi um
barulho, você não ouviu?
IRENE:- Carro freando...
buzinas... Eu quero que você traga ameixas do supermercado... já é tempo de
ameixas... você sabe que o Lúcio adora ameixas...
JÚLIO:- Vou ver o que é... com
a parte dos fundos tomada, alguém pode estar precisando de ajuda...
Sai.
Irene volta ao tricô. Sua voz, no início, é quase inaudível, mas vai aumentando
aos poucos. Ouve-se um barulho de porta batendo e ruído de chaves.
IRENE:- Meu filho, Lúcio, é um
menino bom... Teve uns probleminhas, mas disse que já superou... não está mais
fumando... acho que parou... Anda meio resfriado, o nariz sempre vermelho... o
Júlio disse que é o tempo, sempre chovendo... nunca vi um verão tão chuvoso...
chove todo dia... e faz frio também... Coitado do Lúcio...
Júlio
volta.
JÚLIO:- Tive que trancar a
porta da despensa... tomaram a ala que era dos empregados...
IRENE:- O Lúcio não vai
gostar... era lá que ele reunia os amigos...
JÚLIO:- Amigos que sumiram...
cresceram e sumiram...
IRENE:- Outros vieram: a gente
se acostuma...
JÚLIO:- Uma casa tão grande, no
meio dessa selva... não vamos mais precisar limpar aquela ala... menos
trabalho...
IRENE:- Ih! Lembrei que o
computador do Lúcio ficou na parte invadida... O que vamos fazer?
JÚLIO:- Eu sempre te falei para
não proteger demais esse menino... a noite inteira na Internet... namorando ou
sei lá o quê... Mas, não: você vivia implicando comigo por que eu reclamava da
conta do telefone... Agora, deu nisso... a gente aqui, esperando...
esperando... Irene, preste atenção: um homem sempre colhe aquilo que ele
planta... Irene: você sabe o que o nosso filho andou plantando, sabe? Você sabe
o que ele anda colhendo por aí? Sabe?...
IRENE:- O Lúcio não é esse
monstro que você diz... ele tem dignidade, ouviu, Júlio... dignidade! Ele foi
educado para salvar vidas... e ele vai ser um grande médico!
JÚLIO:- Vamos dormir... já é
tarde... amanhã cedo eu tenho aula...
IRENE:- Estou sem sono... Boa
noite.
JÚLIO:- Porra de vida!
Blackout.
Quando as luzes se acendem, o cenário é o mesmo: porém, no lugar de Irene está
Júlio, sozinho, tricotando meio desajeitadamente. Depois de alguns instantes,
entra Irene, com uma xícara de café.
IRENE:-
Café... café forte: a noite vai ser longa.
Júlio
pega a xícara, leva-a até os lábios, mas não o toma, coloca-a lenta e
raivosamente no chão, olhando para Irene.
JÚLIO:- Eu não sou mais
criança... vou sair e não sei que horas vou voltar... E tem mais: não me espere
com seu café com menta e bolinhos de queijo... Odeio bolinhos de queijo...
odeio menta... e quero dinheiro... tenho direito a uma mesada... Ouviu: cadê
minha mesada!
IRENE:- Pelo amor de Deus, meu
filho... não faça mais loucuras... seu pai te arrebenta de pancada se você
bater de novo o carro... não vá... eu te peço... Não tenho mais dinheiro pra te
dar... sua mãe está doente... eu estou doente... os remédios estão caros... não
posso mais te dar dinheiro...
JÚLIO:- O colar... o colar de
brilhantes... me dá o colar... Eu preciso... eles não... eles não vão me dar
mais nem um dia de prazo... Eu preciso! Você tem de me dar o colar...
IRENE:- Não! O colar, não... Eu
te dou o dinheiro... De quanto... de quanto você precisa?
JÚLIO:- Dois paus!
IRENE:- Está... bem... eu... te
dou... Mas não conte a seu pai...
Irene
sai. Júlio se recompõe. Tenta tricotar, embaraça alguns fios e joga-os longe.
JÚLIO:- Malditos! Os malditos
estão tomando minha casa... Ouçam! Ouçam! São eles... e eles pensam que vão
tirar alguma vantagem com isso...
Irene
volta, arrumada para sair.
IRENE:- Tomaram a ala sul...
agora só temos a cozinha e esse cômodo... Você quer café?
JÚLIO:- Nossa vida vai
melhorar, você vai ver... eu prometo... Vou dar mais aulas, vamos nos
recuperar... já estou quase terminando de pagar a última dívida do Lúcio... e
ele não vai mais fazer loucuras...
IRENE:- Vou sair... se o Lúcio
ligar, diga isso a ele... ele precisa voltar pra casa... Não esqueça de lhe dizer
que nós o amamos...
Blackout.
Ao se acenderem as luzes, Irene está em seu posto, tricotando. Júlio entra com
duas xícaras.
JÚLIO:- Tome: é o nosso último
café. Com a casa invadida, não pude pegar mais nada na despensa...
Irene
toma lentamente o café.
IRENE:- Você pôs menta no
café... está como eu gosto... Não tem mais bolinhos de queijo? Por que você não
fez mais bolinhos de queijo, mãe? Eu gosto tanto de seus bolinhos de queijo...
e ameixas? Você comprou ameixas? É tempo de ameixas... Manda comprar ameixas,
minha mãe... Sabe, mãe... quando eu crescer, eu vou levar você pra passear num
navio, mãe... num lindo navio... cheio de luzes... e nós vamos nos divertir
muito, mãe... vamos viajar pelo mundo, mãe...
JÚLIO:- O rádio disse que vai
chover... de novo... o rio está subindo... vai haver enchente...
IRENE:- Júlio... sabe aquele
colar de pérolas que você me deu?
JÚLIO:- Vinte anos de
casamento...
IRENE:- Uma data bonita... 20
anos...
JÚLIO:- O Lúcio já ligou? Você
não dormiu e deixou de ouvir o telefone...
IRENE:- Eu acho que vou vender
o colar... a gente podia comprar um carro novo para o Lúcio...
JÚLIO:- Está vendo esse
colar... está? (Tira o colar do bolso e
mostra-o ameaçadoramente à mulher). Vai garantir o nosso futuro... ouviu?
IRENE:- O Lúcio...
JÚLIO:- Acho que você não
entendeu... estamos aqui há não sei quantas noites...
IRENE:- Três... só três...
JÚLIO:- Quanto dinheiro gasto à
toa... melhores colégios... professores particulares... clínicas... médicos...
IRENE:- Ele vai ficar bom...
ele prometeu...
JÚLIO:- Seu dinheiro é uma
merda, pai... você só sabe trabalhar... trabalhar... trabalhar... você também é
um bosta... Eu faço o que quero da minha vida... Eu viajo... eu viajo... seu
bosta... e você fica aí nesse mundinho besta... você é uma besta, pai... Na
minha turma, eu sou o líder... eu mando e desmando... sabe o que eu inventei,
pai... sabe? A gente esquenta a droga antes de injetar... dá o maior barato...
potencializa, entende? E fica todo mundo doidão... Eu tenho dois caminhos,
pai... dois futuros... e sou eu que escolho... Sabia? Eu tenho dois caminhos:
ou eu morro de AIDS... ou eles me matam...
IRENE:- Você foi o culpado...
você... que nunca deu ao seu filho o carinho que ele queria... Pai omisso!
JÚLIO:- Ele tinha você: e você
foi mãe... e foi pai... Você criou uma redoma em torno dele... seu filho... ele
só enxergava você... e você não o preparou para o mundo... e agora o mundo o
comeu... E eu sou o culpado!
Ouvem-se
ruídos de talheres, de panelas, de cozinha, enfim.
JÚLIO:- Estão tomando a
cozinha!
Os dois
pulam para a porta e trancam-na.
IRENE:- Graças... graças a
Deus... conseguimos...
Um
instante de silêncio Toca o telefone. Júlio atende. Ouve, em silêncio.
JÚLIO:- Era do Instituto Médico
Legal. Pedem a nossa presença para reconhecer o corpo do Lúcio.
Irene
coloca um casaco e Júlio, um paletó. Enfia o colar no bolso do paletó. Pega a
chave da casa. Irene pega um guarda-chuva.
IRENE:-
Você disse que vai chover...
JÚLIO:- É preciso trancar bem a
porta da frente... algum ladrão pode querer roubar e entrar aqui... a essa
hora... com a casa invadida...
Saem, abraçados. Blackout. Barulhos da cidade (buzinas,
freadas, sirenes, vozes), e de chuva.
FIM
Segunda-feira, 25 de outubro de
1999
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