(Fernando Botero)
DRAMA EM UM ATO
ISAIAS EDSON SIDNEY
TELEFONE: (11)5011-9628
1999
SBAT
– 1349
FBN – 214.050; livro 373, folha
210
PERSONAGENS
DOIS CASAIS:
DOMÊNICO E NÁDIA
ISIDORO E LAURA
Cenário
uma sala e cozinha, num só ambiente, com móveis
precários ou muito simples: fogão, mesa e seis cadeiras, sofá, uma estante
repleta de livros, uma televisão ligada de costas para o público e, num dos
cantos, um berço onde dorme uma criança.
Data
indicada por uma folhinha na parede: 1969, dia 20 de
julho, um sábado, à noite.
Local
são Paulo, Bairro do Brás.
O homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, tem cerca
de 28 anos, usa óculos e é professor. Sua mulher, um pouco mais velha, arruma a
mesa para um jantar de quatro pessoas. Aguardam os convidados. Ela transita
entre o fogão, a mesa e, às vezes, o berço do filho. A luz esverdeada da
televisão sem som contrasta com a luz amarelada das lâmpadas. São eles Domênico
e Nádia.
DOMÊNICO:- Vou desligar essa merda...
NÁDIA:- Vão transmitir a descida do primeiro homem na Lua... eu quero ver...
DOMÊNICO:- Ainda é cedo...
Isso vai levar ainda umas duas horas...
NÁDIA:- Já não tem som... e as imagens me distraem...
dessa porcaria de jantar...
DOMÊNICO:- Lá vem você de novo...
NÁDIA:- Não consigo te entender... A gente nessa
merda, e você dando jantar de gala para...
DOMÊNICO:- Não entende porque não quer... já lhe
expliquei mil vezes... Agora me deixe em paz, que eu preciso terminar esse
livro...
NÁDIA:- Livro... livro... livros... A gente ainda vai
acabar tendo de comer livros...
DOMÊNICO:- Eu vivo deles... nós vivemos deles...
portanto, comê-los não seria tão difícil...
NÁDIA:- Enquanto isso,
servimos camarões...
DOMÊNICO:- Lá vem você de novo...
NÁDIA:- Você já disse isso: está se tornando
repetitivo...
DOMÊNICO:- É o que eu faço nas minhas aulas! Repetir...
repetir... repetir...
NÁDIA:- Para os seus alunos, você repete regras... E
na vida? Os mesmos erros... sempre os mesmos erros...
DOMÊNICO:- Nós estávamos falando de camarões...
NÁDIA:- Você sabia que camarões se alimentam de
cadáveres?
DOMÊNICO:- Por isso nós os
servimos... e viramos, também, comedores de cadáveres... nessa merda de vida.
NÁDIA:- Olha, Domênico, você tem uma
cultura invejável... já leu todos os livros... é inteligente... Mas, de vida...
de vida prática... você não entende nada, ouviu? Nada.
DOMÊNICO:- Porra, você faz tempestade em copo d’água e eu
é que não entendo de vida?... Não vê, minha cara Nádia, que eu me ralo o dia
inteiro... faço das tripas coração pra agüentar tudo o que eu agüento por nosso
filho... por você? Agora vai acabar esse jantar, que eu preciso me concentrar
pra deixar a aula de segunda-feira preparada... Vai, vai...
NÁDIA:- É sempre assim: você vive fugindo... Você se
esconde atrás dos livros, das aulas, do raio que o parta, para não falar
comigo... Nem pra brigar você presta!
O gesto de desdém
de Domênico, que volta para sua leitura, desestimula Nádia, que continua seus
afazeres. Dá uma olhada no berço, ajeita as cobertas do filho e senta por uns
instantes, cansada. As badaladas longínquas de um relógio batendo dez horas
quebram o silêncio.
NÁDIA:- A que horas você combinou com eles?
DOMÊNICO:- Dez horas... já te falei.
NÁDIA:- Fiz coquetel de camarão...
DOMÊNICO:- Só espero que o seu amigo Isidoro não queira
farofa pra comer com o coquetel...
NÁDIA:- O amigo é seu... e não seja tão venenoso...
DOMÊNICO:- É que ele e meio caipirão mesmo...
NÁDIA:- Até que a mulherzinha lá dele é bem ajeitadinha...
DOMÊNICO:- É? Não reparei...
NÁDIA:- Vocês, homens! Deixa de fingimento! Aposto que
você esticou muito bem esticado o olho pra cima dela...
DOMÊNICO:- Ora, Nádia... imagine! Ela é muito magra...
você sabe que eu prefiro um pouco mais de...
NÁDIA:- Não me chame de gorda!
DOMÊNICO:- Eu não disse isso...
NÁDIA:- Mas pensou...
DOMÊNICO:- Pensei nada, deixa de ser boba... Vem cá,
senta aqui... me dá um beijo...
NÁDIA:- Não! Agora não... preciso me arrumar um
pouco... Eles já devem estar chegando... Vou tomar um banho rápido pra tirar
esse cheiro de comida...
DOMÊNICO:- Gosto do seu cheiro assim...
NÁDIA:- Você só me vê como um prato de comida...
DOMÊNICO:- Um apetitoso prato de comida...
NÁDIA:- Acho que você só casou comigo porque...
DOMÊNICO:- ... você é a melhor cozinheira do mundo!
NÁDIA:- Chato! Ainda arrumo um amante que me dê valor
como mulher...
DOMÊNICO:- Amante! Ora, Nádia... quer melhor amante do
que eu? Não seja boba... você sabe que eu som bom de cama...
NÁDIA:- Acho que homem devia ser como camarão: servido
sem cabeça...
DOMÊNICO:- Tá bom... tá bom... Me sirva uma taça de vinho
antes de entrar no chuveiro...
NÁDIA:- Dá uma olhada no filhote, de vez em quando...
Não estou gostando desse sono pesado dele...
DOMÊNICO:- Pode deixar... não deve ser nada... É bom
dormir... o sono ajuda a recuperar...
Nádia sai. Domênico
degusta vagarosamente o vinho. Senta. Levanta. Anda de um lado para o outro.
Vai até o berço, olhar o filho. Começa a dar sinais de nervosismo. Olha várias
vezes no relógio.
DOMÊNICO:- E esses putos que não chegam... Odeio falta de
pontualidade. Dois minutos de atraso, uma vez, somente dois minutos e eu me
ferrei. Droga. Não quero pensar nisso. Já passou. Preciso da proteção do
Isidoro... senão eu vou me ferrar de novo. (Para
dentro da casa). Nádia, Nádia, vai demorar muito?
Nádia responde lá
de dentro, tentando abafar a voz.
NÁDIA:- Fala baixo... quer acordar nosso filho?... Já estou indo...
Domênico
aproxima-se da porta e tenta fazer-se ouvir.
DOMÊNICO:- Já são quase dez e meia e eles não aparecem...
Nádia abre a porta.
Está bem vestida e maquiada. Domênico olha-a com certa admiração. Nádia desfila
diante dele, provocando-o.
DOMÊNICO:- Puxa! Até parece um jantar de gala...
NÁDIA:- Você só gosta de me ver mulambenta...
cozinhando, trocando fraldas, lavando o chão... Fique sabendo que não sou de se
jogar fora... Tenho belas pernas... meus
seios ainda estão firmes... Quando me arrumo um pouco, ainda faço sucesso...
Precisa ver o olhar do dono da banca da esquina... quando eu passo...
DOMÊNICO:- Ah! Ah! Ah! Fazer sucesso
no Brás... até eu, se me vestir de mulher... e usar uma saia curta...
NÁDIA:- Você é um grosso, mesmo... E seus amigos que
não aparecem...
DOMÊNICO:- Nádia... quero te fazer um pedido... Por
favor, trate bem... o... Isidoro e a Laura... principalmente a... a... Laura...
Nada de cenas, por favor... Meu emprego depende deles... É uma bosta de
emprego... mas nunca vou conseguir arrumar outro... não na minha condição...
Você sabe... Todo cuidado é pouco... Eles... eles conhecem um pouco da minha
história... não sabem tudo... é claro... Por isso, muito cuidado... qualquer
descuido pode ser fatal... eles parecem boa gente, mas nunca se sabe... Na
minha situação, acostumei-me a não confiar em ninguém...
NÁDIA:- Fiquei o dia inteiro te chamando de
Domênico... acho que já me acostumei... não vou errar...
DOMÊNICO:- Principalmente, nada de detalhes de nossa vida
em Florianópolis... Se perguntarem, desconverse... mude de assunto...
NÁDIA:- A Laura é bem bonita, não é mesmo? E bem mais
nova do que eu...
DOMÊNICO:- O vinho! Você comprou mais vinho? Daquele vinho espanhol que eu gosto?
NÁDIA:- Comprei... comprei... Será que o seu amigo
Isidoro não arrumaria umas aulas para mim, também? Aquele colégio é tão
grande...
DOMÊNICO:- Ora, Nádia... não é hora...
Toca a campainha, ouvem-se vozes, a de homem e, mais
exaltada, a voz de uma mulher.
DOMÊNICO:- Eles chegaram... vou abrir a porta...
Nádia corre a ver
se o filho acordou, enquanto Domênico abre a porta. Entra Laura e, em seguida,
Isidoro. Ele tem mais ou menos a mesma idade de Domênico, mas Laura é bem mais
nova, aparentando no máximo 20 anos. Veste-se de forma extravagante.
LAURA:- Eu falei pra esse imbecil... mas ele não me
ouve...
ISIDORO:- ... eu me perdi...
só isso... chegamos... não precisa...
LAURA:- ... ficamos rodando como uns tontos...
ISIDORO:- ... calma, já
chegamos...
LAURA:- ... nesse
bairro... horroroso...
ISIDORO:- Boa noite,
Domênico... como vai?
LAURA:- Desculpe, Domênico... é que fiquei...
DOMÊNICO:- Sejam bem-vindos... entrem... não reparem...
Os dois casais se
cumprimentam. Laura acende um cigarro e senta-se na ponta do sofá. Isidoro
tenta fazer-lhe um gesto para que não fume. Nádia percebe.
NÁDIA:- Pode ficar tranqüila... o fumo não vai
incomodar o menino...
Laura apaga nervosamente o cigarro.
LAURA:- Desculpe... desculpe... vou tentar não
fumar... Como vai o menino?
NÁDIA:- Está melhor... dorme...
LAURA:- Não vamos
acordá-lo com nossa conversa?
NÁDIA:- Não... não, ele já está acostumado... Além
disso, o remédio que ele tomou... o médico disse que ele teria um sono
pesado...
DOMÊNICO:- Aceitam um copo de vinho, como aperitivo? Ou
preferem algo mais forte?
ISIDORO:- Você não teria aí uma...
LAURA:- Nada disso, Isidoro... não me vá encher a
cara... Desculpem... se ele bebe muito, fica chato... que ninguém agüenta...
ISIDORO:- O vinho... o vinho tá bom...
LAURA:- Gostei do seu vestido, Nádia... deixou você
mais...
ISIDORO:- Olha, Laura, que interessante... o quadro que
você viu naquela feira... Não é parecido?
NÁDIA:- O autor é um amigo nosso... de
Florianópolis... Você gostou mesmo do meu vestido?
ISIDORO:- Ela comprou num
brechó... A Nádia fez coquetel de camarões... vocês gostam?
ISIDORO:- Coquetel de camarões??!!
LAURA:- Claro... claro... faz tempo que a gente não
toma, não é mesmo, Isidoro?
ISIDORO:- É... é... sim... faz tempo... ô Nádia, você
disse Florianópolis... vocês vieram de lá, não é?
ISIDORO:- Por isso, gostamos
de camarões... é a terra dos camarões... Vamos servir o coquetel, Nádia... acho
que nossos convidados já estão com fome...
ISIDORO:- ... não conheço
Florianópolis... parece ser uma bela cidade...
NÁDIA:- Vou servir... camarões do sul... sem cabeça...
sem cabeça...
DOMÊNICO:- Essa transmissão da Apolo 11 está ficando
meio chata... mas, olha: estão se aproximando da Lua...
LAURA:- Puxa! Já está dando pra ver as crateras...
Nádia começa a servir o coquetel.
NÁDIA:- Não é só a Lua que tem crateras...
Florianópolis também...
LAURA:- Não entendi...
DOMÊNICO:- Brincadeira... brincadeira da Nádia, não é,
meu bem?... Nádia, vai fazer uma
farofinha pro nosso amigo Isidoro, vai... ele adora...
ISIDORO:- Farofa? Você vai
fazer farofa? Com frango... ou com lombo?...
DOMÊNICO:- Com camarão... com camarão...
LAURA:- Deixa de ser bobo, Isidoro... não vê que eles
estão brincando com você?
ISIDORO:- Não entendi a
brincadeira... só porque eu gosto de farofa...
DOMÊNICO (olhando, maliciosamente, as pernas de Laura):- Até que está bonita a imagem, não
é mesmo, Laura?
LAURA:- Parece que de
cratera você entende...
NÁDIA:- Vocês dois querem parar com esse namoro e vir
para a mesa?...
LAURA:- Eu e Domênico nos
amamos, Nádia... não adianta você ficar com ciúmes...
ISIDORO:- E eu? E eu? Eu também estou ficando
apaixonado por uma certa barriga-verde... principalmente depois de ver o que
ela preparou para nós...
NÁDIA:- É minha sina, meu Deus... os homens só gostam
de mim por aquilo que eu faço na cozinha...
ISIDORO:- Quem faz bem na
cozinha, também faz bem na cama...
DOMÊNICO:- É um filósofo... esse Isidoro, não é, Nádia...
e parece entender do que fala...
LAURA:- Isso aí? Só entende de cama-de-gato...
DOMÊNICO:- Um brinde... eu proponho um brinde ao meu
amigo Isidoro... e ao monte de aulas que ele me arrumou...
ISIDORO:- E eu proponho um
brinde à dona da casa...
Enquanto todos começam a se servir, Nádia vai até o berço
da criança.
LAURA:- Tudo bem com o menino?
NÁDIA:- Tudo... tudo bem...
ISIDORO:- Ei, Nádia, ouvi
dizer que além de ótima cozinheira...
DOMÊNICO:- ... borda, faz tricô, lava, passa... e cuida
do bebê...
NÁDIA:- Só não tenho o salário, não é seu Domênico?...
ISIDORO:- ... você também é professora...
NÁDIA:- Esse é apenas o menor dos meus dotes, apesar do meu marido...
DOMÊNICO:- Quando nos conhecemos...
NÁDIA:- Quando nos conhecemos, eu era uma idiota...
que entrou em sua conversa de intelectualoide de esquerda festiva...
ISIDORO:- Esquerda? Você é
comunista, Domênico?
DOMÊNICO:- Você já falou besteira demais, Nádia... Suas
frustrações matrimoniais não estão em jogo...
NÁDIA:- E o que está em
jogo? Essa relação que... eu nem sei direito com quem casei... Você só tem
discurso, Domênico... Discurso de quem foi treinado para mandar... mandar... e
mandar...
LAURA:- Treinado para
mandar? Que história é essa?
ISIDORO:- Não se meta,
Laura... Isso é com eles...
LAURA:- Não me amole... Se
eles estão falando na nossa frente, eu quero saber...
DOMÊNICO:- Não há nada para
saber... São coisas de uma cabeça doente, que não consegue controlar a própria
vida.
NÁDIA:- Você quer saber o que está acontecendo, Laura?
Olhe, olhe bem para esse cara... O que você vê? Um professor preocupado com a
educação? Um pai dedicado? Um marido exemplar? Nada disso. A única coisa que o
preocupa é o destino da humanidade. As pessoas, não... Ele não gosta de gente,
ele gosta é da humanidade...
LAURA:- Não entendi...
ISIDORO:- Cala a boca,
Laura... Vamos embora. Acho que foi um erro...
DOMÊNICO:- Nada disso... erro
nenhum... A Nádia não está falando nada sério... nós não estamos brigando.
Casais discutem, não é mesmo? Vão me dizer que vocês nunca tiveram um
arranca-rabo por coisa nenhuma...
Alguns instantes de silêncio.
LAURA:- Vou lá fora fumar um cigarro...
NÁDIA:- Não quer sobremesa, Laura?
LAURA:- Não, obrigado...
DOMÊNICO:- Eu te acompanho... tem uma sacada ali...
Laura e Domênico saem para uma sacada. Isidoro começa a
ajudar Nádia a tirar a mesa.
NÁDIA:- Não precisa...
ISIDORO:- Faço questão... depois de tudo... é preciso
arrumar nossas vidas... pôr ordem nos restos...
NÁDIA:- Eu devia estar envergonhada, mas sabe de uma
coisa? Foi bom que vocês ouviram... Eu não estou agüentando...
ISIDORO:- Eu também não... Tenho sido um banana nessa
minha relação com Laura... O problema é que eu a amo, apesar de tudo...
NÁDIA:- Amor! O amor é a maior farsa da humanidade.
Inventaram isso para nos fazer de trouxas...
ISIDORO:- Olha... vou abrir o jogo com você... Depois que prenderam o professor de
geografia... porque ele criticou o projeto das duzentas milhas... a situação
anda crítica... Eu preciso saber se posso confiar no Domênico... Qual é o
problema dele?
NÁDIA:- Pronto... Vamos ter que sair correndo outra
vez...
ISIDORO:- Não. Eu prometo:
só preciso saber...
NÁDIA:- Pra quê? Vai alterar a aula dele, se você
souber o passado dele? Olha, Isidoro, desculpe, mas não dá pra confiar em ninguém...
Eu e o... Domênico já passamos por muitas coisas... Na hora da necessidade,
acabamos ficando juntos... apesar de tudo...
ISIDORO:- Ele não a merece,
Nádia...
NÁDIA:- Não me venha com essa conversa de
cerca-lourenço... esse não é o problema...
ISIDORO:- Qual é o problema, então? Me diz: ele é
procurado... eu sei. Só quero saber: é coisa brava ou dá pra aliviar? Como
arrumar tudo, se vocês escondem de mim informações...
NÁDIA:- Você quer saber se
ele é terrorista... Não, não é... pelo menos, ainda não... Ele teve treinamento
para guerrilha... seis meses no mato... só. Agora, se ele não ficar nesse
emprego, Isidoro... ele não vai conseguir lecionar em nenhum outro lugar....
você entende? O seu colégio foi o único... Pelo amor de Deus, não comente isso
com ninguém... entende... ninguém... Meu filho está ali, dormindo... ele está
doente e precisa de cuidados... nossa vida precisa de cuidados... e não se
limpa uma vida como se limpa uma mesa... Se acontecer alguma coisa a meu
filho... sou capaz de qualquer loucura...
ISIDORO:- Claro, claro... eu
sei... agora, sei... Psss... eles estão voltando... vamos mudar de assunto...
Mas, Nádia, essa receita parece ser muito interessante...
Domênico e Laura
voltam.
LAURA:- Pô... Isidoro...
você só pensa em comida...
NÁDIA:- O Isidoro também... só pensa em comida...
DOMÊNICO:- Nádia!
NÁDIA:- Estou falando em comida de comer pela boca...
ISIDORO:- Olhem... o módulo
lunar já está pousando na Lua... O homem está conquistando o espaço...
DOMÊNICO:- É... o homem conquista a Lua e abre crateras
na vida das pessoas aqui na Terra...
LAURA:- Que coisa mais idiota o que você está
dizendo, Domênico... Ei gente: eu não estou a fim de ficar vendo televisão...
isso tá muito chato... Vamos jogar um buraco?
NÁDIA:- Das crateras da Lua para um buraco no Brás...
boa idéia... Vamos... Vou pegar o baralho...
DOMÊNICO:- E eu vou dar uma
mijadinha... e já volto...
Nádia e Domênico saem.
LAURA:- Vê se presta atenção no jogo... pra não fazer
bobagem...a gente sempre perde por sua causa...
ISIDORO:- Bobagem? Você vem
me falar de bobagem? Se abrindo toda pra esse... esse intelectualzinho de
esquerda...
LAURA:- Eu não queria
vir... isso aqui tudo é um lixo... e vê se não enche meu saco, porque não estou
disposta a ouvir merda... Você sabe muito bem...
DOMÊNICO:- Não sei porra
nenhuma... se você não se comportar dessa vez...
LAURA:- O que vai
acontecer, me diga...
DOMÊNICO:- Eu te prometo: será a última, ouviu, a
última...
LAURA:- Você é um
covarde... e um frouxo...
DOMÊNICO:- Nunca pensei que ia me arrepender tão cedo...
Aquela bolsa de estudos na França...
LAURA:- Por que você não
vai?... Ainda tem tempo... Será um bom motivo para o desquite...
DOMÊNICO:- Desquite? Você ousa falar em separação? Isso,
nunca! O casamento é sagrado...
LAURA:- Seu moralismo é um
lixo... sua família é um lixo... um lixo embalado em papel celofane colorido,
mas um lixo... eu não vou te agüentar por muito tempo...
Nádia e Domenico
regressam. Nádia passa pelo berço, ajeita as cobertas do bebê. Os quatro
arrumam a mesa e começam a jogar.
LAURA:- Tudo bem?...
NÁDIA:- Tá... tá tudo
bem... acho...
DOMÊNICO:- Eu dou as cartas...
NÁDIA:- Você sempre tem que dar as cartas...
LAURA:- Homem nenhum manda
em mim, não...
DOMÊNICO:- Nem o seu marido, Laura? Joga logo, Nádia...
LAURA:- Eu disse
ninguém...
NÁDIA:- Eu não falei que ele era mandão?... Pronto...
bati... me dá o morto...
ISIDORO:- Pô... Laura, você deu a carta que ela tava esperando...
LAURA:- E eu podia
adivinhar?
ISIDORO:- Se estivesse
prestando atenção...
LAURA:- Não enche.. você
já fez cagada também...
DOMÊNICO:- Cagada todo mundo faz... esse jogo está muito
falado...
NÁDIA:- E falar, dialogar, ouvir o que os outros dizem
não é com você, não é seu... Domênico...
LAURA:- Olha o que você
jogou, Isidoro... desse jeito, eles vão acabar dando uma lavada em nós...
ISIDORO:- Droga... agora já
foi...
NÁDIA:- Canastra real...
LAURA:- Bati... me dá o
morto... Merda! Esse morto tá mais morto que certas coisas que eu tenho em
casa...
ISIDORO:- Como você é
grossa, Laura...
NÁDIA:- Vou dar uma olhada no baby... segura um
pouquinho...
DOMÊNICO:- Não... deixa que eu vou... Assim, eu ando um
pouco...
Domênico vai até o
berço, fica um instante lá e volta.
ISIDORO:- Que foi... você está pálido...
DOMÊNICO:- Acho que é o ar... está um pouco abafado...
NÁDIA:- Tudo bem com meu filho?
DOMÊNICO:- Dorme... dorme como um anjo...
LAURA:- Sabe que eu uma
vez sonhei com um anjo?
DOMÊNICO:- Anjo? Você? Bati... Conta os pontos, Nádia...
Era um anjinho inocente ou um anjão cabeludo?
NÁDIA:- Você é uma besta, Domênico... Acha que a Laura
ia perder tempo com anjinho?
LAURA:- Era anjo, mesmo... com pena e tudo... Disse
que eu ia encontrar o amor da minha vida... numa sala cheia de gente...
DOMÊNICO:- E aí você encontrou o Isidoro... um anjão
faminto...
LAURA:- Isso aí? De anjo só tem a asa,
que vive arrastando pra tudo quanto é mulher...
ISIDORO:- Você não pode se queixar... afinal tem de
tudo...
NÁDIA:- Por que vocês ainda não têm filhos?
DOMÊNICO:- Ora, Nádia... pra ter filho é preciso ter
barriga... Você acha que a Laura vai querer perder a “silhoutte”?
NÁDIA:- Trezentos e vinte pontos... e vocês?
LAURA:- Cento e
quarenta... Anota aí... Não é questão de silhueta... ainda é cedo... sou muito
nova pra ser mãe... mas eu quero ter filho, sim... um só... talvez...
DOMÊNICO:- Filho único é muito triste... Agora eu dou as
cartas...
ISIDORO:- Eu também sou filho
único...
LAURA:- Você não é só
filho único... você é todo único... Seus pais ainda vivem, Domênico?
DOMÊNICO:- Moram em
Florianópolis...
NÁDIA:- Não sei por que filho único é triste...
ISIDORO:- Não é o filho
único que é triste... são os pais...
LAURA:- Você não diz coisa
com coisa...
NÁDIA:- Agora explica... por que filho único é
triste... ou os pais, sei lá...
ISIDORO:- É assim: filho
único é sempre muito mimado, muito querido... cresce cercado de todos os
cuidados, quando cresce... Os pais depositam toda a sua esperança naquele
filho...
NÁDIA:- Isso é verdade: eu
morro pelo meu filho...
ISIDORO:- Ah! e tem uma coisa: eu acredito numa lei...
numa lei inexorável... da vida... Bati. Me dá o morto... Um filho não pode nunca morrer antes dos
pais...
LAURA:- Essa história está ficando muito... muito...
DOMÊNICO:- Lúgubre... Vamos mudar de assunto... Eu também
bati... Será que o cara lá do módulo lunar já pisou na Lua? Vou dar uma olhada
no baby...
Domênico vai até a
tevê, pára um instante, faz sinal a Isidoro para acompanhá-lo e ambos se
dirigem para o berço. Ficam alguns momentos debruçados, em silêncio. Voltam.
NÁDIA:- O nenê está agasalhado direito?
DOMÊNICO:- Está... bem... agasalhado... e sem febre...
NÁDIA:- Ainda bem... aquela febre estava me
preocupando...
LAURA:- Seu parto, Nádia... foi difícil?...
NÁDIA:- Que nada, sou boa parideira... O médico queria
fazer cesariana, eu não deixei... Quis tudo normal... Ele nasceu de manhã, bem cedo... acho que
eram umas seis horas... no dia seguinte à noite eu já estava em casa... Foi a
experiência mais fantástica da minha vida... você não imagina o quanto eu amo
esse guri...
LAURA:- Se eu engravidar,
eu vou querer fazer cesariana... Saco! Só pego carta ruim...
DOMÊNICO:- Infeliz no jogo...
LAURA:- ... olha o Isidoro fazendo mais uma cagada...
ISIDORO:- Se a vida fosse um jogo... ninguém precisava
ficar lutando por um morto... Um morto seria apenas uma dor que passa no fundo
memória...
LAURA:- Já está bêbado...
DOMÊNICO:- Você tem razão, Isidoro... se a vida fosse um
jogo, acho que a gente podia entender sua brevidade... E como vamos fazer para
pegar um morto sem jogar o jogo muitas vezes?
NÁDIA:- Que coisa mais louca o que os dois aí estão
falando... não estou entendendo nada...
ISIDORO:- Não se pode falar sério uma vez na vida...
LAURA:- Filosofia de mesa de jogo... é merda...
NÁDIA:- Ficam aí filosofando, que vão abrir é umas
crateras nas cadeiras...
DOMÊNICO:- Deixa essas duas pra lá, Isidoro... o buraco
que jogamos é bem mais negro...
NÁDIA:- Você fez besteira também... Bati... Me dá o
morto... Vou dar uma olhada no...
DOMÊNICO:- Não!... Isto é, fica aí... você...
NÁDIA:- Que foi? Não posso ver meu filho?
DOMÊNICO:- Não... não é isso... você anda meio cansada...
deixa... deixa que a Laura vá dar uma olhada no menino... Vai lá, Laura... faz
esse favor pra nós...
LAURA:- Claro... claro...
Fica de olho no Domênico, Isidoro... acho que ele está escondendo alguma
coisa... vou aproveitar pra fazer um xixi...
Laura vai até o
berço. Demora-se um pouco e, depois, vai para o banheiro.
NÁDIA:- Vocês querem um café? Posso coar...
ISIDORO:- Não... prefiro vinho... Acho que estou a fim
de ficar um pouco bêbado...
DOMÊNICO:- Eu também... a barra vai pesar... Quanto mais
bêbado, mais lúcido eu fico...
NÁDIA:- Conversa... conversa de bêbado... Enche a
cara, faz besteira, não se lembra do que fez...
DOMÊNICO:- Me diz, me diz quando é que eu dei vexame...
NÁDIA:- Se eu for dizer, vou ficar aqui uns três dias
só contando...
ISIDORO:- A Laura tá
demorando no banheiro... Será que ela...
DOMÊNICO:- Espero que não...
NÁDIA:- Ei... vocês... esse código já tá enchendo...
querem falar coisa com coisa?
Laura volta.
NÁDIA:- Você está pálida...
LAURA:- Tirei a maquiagem... Como vamos fazer... com
o morto...
NÁDIA:- Mais uma que ficou tantã...
DOMÊNICO:- Ficou besta você?!! O morto já está com a
Nádia... Vamos jogar...
Jogam em silêncio
por alguns instantes.
NÁDIA:- Olhem: o Neil
Armstrong está saindo do módulo...
LAURA:- Quem?! Quem está saindo do quê?...
ISIDORO:- Não seja burra... o homem está descendo na Lua.
DOMÊNICO:- Isso eu quero
ver... quem sabe ele tropeça ao descer a escada...
NÁDIA:- Começou a
baixaria... só porque o cara é americano...
Todos abandonam o
jogo e reúnem-se frente à televisão.
NÁDIA:- Aumenta um
pouco o som... Não dá pra saber o que está acontecendo.
LAURA:- Acho que é porque não está acontecendo nada.
Domênico aumenta o
som da televisão. Os ruídos e vozes da transmissão da Missão Apollo 11 fazem-se
ouvir. Primeiro em inglês quase inaudível. Depois, a voz clara do locutor em
português.
ÁUDIO:- Um momento histórico... O primeiro homem a pôr os pés
na Lua... Suas palavras foram: “Este é um pequeno passo para o homem, um grande
salto para a humanidade”.
LAURA:- Parece um canguru... ou uma alma do outro mundo...
ISIDORO:- É a falta de gravidade... corpo mais leve... Não vou
ficar explicando isso para você...
LAURA:- Claro, claro... eu sou burra... pra que você ia
gastar sua “sabiência” comigo?...
DOMÊNICO:- Sapiência...
sa - pi
- ên - cia...
LAURA:- Pronto! Agora são dois...
Domênico baixa
novamente o som e cada um busca um lugar para sentar-se, abandonando de vez a
mesa de jogo. Continuam bebendo.
ISIDORO:- Por que você não fica quieta só pra variar um
pouco?...
LAURA:- Quando você casou comigo eu já falava, sabia?
ISIDORO:- Menos besteira...
NÁDIA:- Quanto tempo
vocês estão... casados?
ISIDORO:- Um ano e meio...
LAURA:- Duzentos.
NÁDIA:- O quê?
NÁDIA:- Duzentos
anos...
DOMÊNICO:- Você está
conservada... com toda essa idade...
LAURA:- Por que você não vai tomar...
ISIDORO:- Pronto! Baixou a periferia...
LAURA:- Você me achou lá... e gostou.
DOMÊNICO:- Calma, gente...
Deixe-me servir um pouco mais de vinho... In vino veritas!
LAURA:- É assim, sabe... Nádia? Só querem saber de comer a
gente... Depois é essa merda..
ISIDORO:- Agora você foi um pouco longe demais... Nó casamos,
não foi?
LAURA:- Cagamos... você quer dizer... ca – ga – mos.
DOMÊNICO:- Até que você
tem razão. Casar é mesmo como cagar: todo mundo faz e sabe o que fez...
NÁDIA:- Se nosso
casamento é uma merda, como você diz, então o que é o nosso filho?
DOMÊNICO:- Não coloque
nosso filho nessa encrenca...
NÁDIA:- Ele é o fruto
de quê, então? De uma simples e inconseqüente trepada?
DOMÊNICO:- Eu nem sei
se...
NÁDIA:- Não ouse! Não
ouse levantar a menor suspeita sobre mim... Admito tudo: suas puladas de
cerca... suas encrencas... seus peidos sob as cobertas... Mas se você ousar um
dedinho de suspeita...
DOMÊNICO:- O que você vai
fazer? Se matar? Me matar?
NÁDIA:- Olha aqui,
Domênico, eu não estou brincando...
DOMÊNICO:- Calma, meu
amor, então você acha que eu teria coragem de confessar diante de meus amigos
aqui... diante do Isidoro e da Laura... que eu tenho um filho que não é meu?
NÁDIA:- Cínico... cínico e canalha é o que você é... Se ele não for seu, vai crescer
forte e saudável... Mas se ele for seu filho, há de adoecer e morrer dentro de
uma semana, para você sentir a dor de perder um filho!...
LAURA:- Calma, gente...
que é isso, Nádia... foi só uma bobagem do Domênico... Ele nunca falou uma só
coisinha assim de você... pelo contrário...
NÁDIA:- Você deve muito bem
saber o que ele tem falado de mim, não é?
ISIDORO:- Eu é que não vou
me meter nessa briga...
LAURA:- Você está tão
bêbado que ainda não entendeu que essa briga não é só deles...
ISIDORO:- O que você quer
dizer?
LAURA:- Quero dizer que eu
já estou de saco cheio...
DOMÊNICO:- Eu levo bronca e você fica de saco cheio?
LAURA:- É que você não
sabe o que é viver com esse daí...
DOMÊNICO:- Pelo que eu sei, a pinta brava da dupla aí é
você... o Isidoro até que é bem... bem... bem manso...
NÁDIA:- Está bem informado,
heim Domênico?
ISIDORO:- Estou bêbado... eu
sei... mas lúcido... eu sei de que vocês estão falando... Aliás, todos falam...
todos... falam...
LAURA:- Todos falam! Falam
o quê, homem?
ISIDORO:- De você... sua...
sua vaca... Então eu não sei? Você pensa que eu não sei... mas eu sei...
NÁDIA:- Vou fazer um café bem forte...
DOMÊNICO:- E bem doce...
LAURA:- É claro que você
sabe... vive me xingando de burra... que eu não terminei nem o ginásio... mas
na hora da necessidade, eu é que quebro todos os seus galhos... Claro que sou a
pinta brava da dupla: eu é que tenho de... como é que você fala, mesmo,
Isidoro? “Azeitar as engrenagens...” É o nome que ele usa para resolver todos
os problemas do colégio dele com os generais de plantão... usando a mim...
sabe?... a mim...
ISIDORO:- Cala... cala a
boca...
DOMÊNICO:- Eu só queria entender uma coisa, Isidoro...
NÁDIA:- Domênico: pára! Não seja burro...
DOMÊNICO:- .. estamos entre amigos, não é mesmo?
LAURA:- Acho melhor parar
por aí... que só vai vir merda dessa conversa...
DOMÊNICO:- Não, Laura... Agora é sério: eu queria saber o
que mantém vocês... quero dizer... vocês dois...
LAURA:- Não entendi...
DOMÊNICO:- Vocês... dois... juntos... Qual o segredo?
Pausa.
LAURA:- Vou te dizer uma
coisa, Domênico... Acho que você é igualzinho a todos os outros... Agora mesmo,
lá fora, você me falou um monte de coisa... Citou até Camões... um negócio aí
de amor é fogo... fogo que arde... No fundo, você queria uma coisa só... Você
está me ouvindo, não é, Nádia? Desculpe... Eu não devia estar dizendo isso...
mas é foda! Eles aprontam e a gente é que leva a fama... Acho que estou um
pouco de fogo também...
Laura bebe mais um pouco de vinho.
LAURA:- Minha mãe... minha
mãe tinha razão... Que burra que eu sou... Você também tem razão, Isidoro...
Acho que sou muito burra, pra acreditar em você, pra acreditar nos homens. Vocês
só gostam de vocês mesmos... Vocês não gostam de nós, mulheres... Quando gostam
de nós, gostam só... sabe de quê?... sabe? de nosso rabo... E mais: todo homem
tem vocação para... para... vocês sabem... Ah! Ah! Ah! Minha mãe dizia...
sabe o quê?... Que os homens gostam de chupar uma boceta com o gosto do pau de
outro homem... É isso! Eu queria dizer... eu disse!
Silêncio.
ISIDORO:- Sua... sua...
LAURA:- O quê? Diz... sua
o quê?
ISIDORO:- Sua... inepta!
DOMÊNICO:- Somos todos ineptos! Somos todos ineptos! Não sabemos viver uns com os outros...
NÁDIA:- Querem me dizer o que está acontecendo,
querem? O homem chega à Lua e nós aqui a falar... bobagens...
NÁDIA:- Isso não é o jogo da verdade... (Para Isidoro). Eu só espero que você
mantenha a sua palavra...
DOMÊNICO:- Palavra? Que porra
de palavra é essa?
ISIDORO:- Eu... eu...
LAURA:- Não sei do que
você está falando, mas se depender desse merda aí...
DOMÊNICO:- O que você disse pra ele, vamos... O que você
disse?
NÁDIA:- Nada... eu não disse
nada...
ISIDORO:- Ela não disse nada
comprometedor...
DOMÊNICO:- Pronto! Já sei...
você abriu o bico... Você não sabe que esse cara...
ISIDORO:- Eu juro... não vou
contar pra ninguém... vocês... vocês... são meus amigos... Vou ser padrinho do
filho de vocês... vou batizar esse guri...
DOMÊNICO:- Batismo bosta
nenhuma... não tem batismo bosta nenhuma! O buraco é outro...
LAURA:- Não sei o que você
confiou no Isidoro... Só espero que não seja nada de política...
NÁDIA:- É... é sobre
política, sim...
LAURA:- Não vai me dizer
que você contou pra ele...
NÁDIA:- Não contei merda
nenhuma...
DOMÊNICO:- Não contou?
NÁDIA:- Só... só confirmei...
DOMÊNICO:- Porra! É por isso que eu tenho de ser
mandão... que eu é que tenho de dizer o que fazer... Não posso me descuidar um
minuto que você borra em tudo... Você não se controla...
NÁDIA:- Mas o que tem de
tão grave, assim? Afinal, ele não é seu amigo?
A essa altura, Isidoro mal consegue manter os olhos
abertos, de tão bêbado.
ISIDORO:- Tudo amigo... tudo
amigo...
LAURA:- Amigo! Amigo da
onça... é o que ele é...
NÁDIA:- Mas você também
sabia?
LAURA:- Claro... isto é,
eu sabia... Sabia, sim... O Domênico me contou... Mas não é nada disso que você
está pensando, não...
DOMÊNICO:- O cara aí já apagou, praticamente... Acho que
podemos falar... A Laura pertence a um grupo... um grupo de ajuda a perseguidos
políticos... Ela prometeu nos ajudar... e tem nos ajudado...
NÁDIA:- E o Isidoro?
DOMÊNICO:- Esse... esse é um
canalha... Entreguista... O colégio dele só consegue ir pra frente porque ele
faz o jogo da ditadura... Tem um monte de amigos generais...
LAURA:- Vocês vão ter de
se mandar... O Isidoro não é confiável... Tenho contatos em Manaus...
DOMÊNICO:- Nada disso... Se
formos embora agora, vamos despertar suspeitas... Vamos ter que fingir que não
houve nada... e contar com a sorte...
NÁDIA:- Você não pode
decidir tudo sozinho
DOMÊNICO:- Posso e vou...
você não tem a mínima condição de decidir nada...
LAURA:- Não posso concordar
com sua atitude...
DOMÊNICO:- Você também não
tem de concordar com nada... Quem manda aqui...
LAURA:- Você pode mandar
nas suas negas... nos seus alunos... mas pra cima de mim, não vem com esse
papo... Você vai me ouvir... Chega de palhaçada! Não estou entendendo onde você
quer chegar... Além de todas as confusões que você tem na vida, ainda temos um
problemão a resolver aqui...
DOMÊNICO:- Acho que você está
extrapolando...
NÁDIA:- Que problema ainda temos mais? Será que não basta eu ter reconhecido que
errei... Que bosta...
LAURA:- Não é esse o
problema... No Isidoro eu dou um jeito depois... O jogo ainda não terminou...
DOMÊNICO:- Ainda estamos no buraco... no buraco de nossas
vidas...
LAURA:- Desculpe, Nádia...
mas se eu agüento o Isidoro é porque é impossível deixá-lo, por enquanto... ele
não admite o desquite... Que droga... Não é nada disso que eu quero falar... O
que eu não posso admitir é o controle... o controle de nossas emoções... de
nossa vida... Eu não posso admitir a falsidade... querer nos tratar como...
como, sei lá... bibelô... boneca de louça... para nos proteger... E quando a
gente pensa que está protegida... que eles nos cercaram das merdas do mundo...
Desculpe a expressão... mas aí mesmo é que estamos fodidas... Ouviu? Fodidas!
DOMÊNICO:- Agora é que você está falando bobagem...
ISIDORO (tentando entender alguma coisa):- Cala a boca, Laura!... Você
não tem o direito...
LAURA:- Direito? De quê?
De ficar calada, enquanto o Domênico manda em tudo e em todos? O que ele pensa
que é? Que pode provocar, ferir, mentir? Olha aqui, Nádia: você vai me odiar
para sempre... Não tem importância... mas eu vou falar...
DOMÊNICO:- Se você abrir essa boca...
ISIDORO:- Domênico, você não
tem o direito...
DOMÊNICO:- “Você não tem o direito...” – é só isso o que
você sabe dizer? E vai deixar que essa aí estrague tudo?
ISIDORO:- Olha aqui...
LAURA:- Cala a boca,
Isidoro... Eu não vou deixar que ele continue escondendo essa situação
absurda...
NÁDIA:- Vocês querem parar com isso? Vão acabar por
acordar o meu filho!... Que merda!
LAURA:- Nádia... seu
filho... ele... ele não vai acordar!
NÁDIA:- O quê? O que você está falando?
DOMÊNICO:- Filha da puta!
ISIDORO:- Não ouse...
DOMÊNICO:- Eu falei pra essa filha da puta...
LAURA:- Seu filho não vai
acordar!
NÁDIA:- Meu filho! Meu filho!
Nádia corre para o berço. Blackout.
FIM
Terça-feira,
8 de junho de 1999
Segunda-feira,
28 de junho de 1999
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