quarta-feira, 5 de maio de 2021

A UM PASSO... NA LUA

(Fernando Botero)

DRAMA EM UM ATO

 


ISAIAS EDSON SIDNEY

 

TELEFONE: (11)5011-9628

 

1999

 

SBAT – 1349

FBN – 214.050; livro 373, folha 210

 

 

PERSONAGENS

 

DOIS CASAIS:

 

DOMÊNICO E NÁDIA

ISIDORO E LAURA

 

 

 

Cenário

 

uma sala e cozinha, num só ambiente, com móveis precários ou muito simples: fogão, mesa e seis cadeiras, sofá, uma estante repleta de livros, uma televisão ligada de costas para o público e, num dos cantos, um berço onde dorme uma criança.

 

Data

 

indicada por uma folhinha na parede: 1969, dia 20 de julho, um sábado, à noite.

 

Local

 

são Paulo, Bairro do Brás.

 


 

 

O homem sentado numa cadeira de balanço, lendo, tem cerca de 28 anos, usa óculos e é professor. Sua mulher, um pouco mais velha, arruma a mesa para um jantar de quatro pessoas. Aguardam os convidados. Ela transita entre o fogão, a mesa e, às vezes, o berço do filho. A luz esverdeada da televisão sem som contrasta com a luz amarelada das lâmpadas. São eles Domênico e Nádia.

 

 

DOMÊNICO:-  Vou desligar essa merda...

 

NÁDIA:-  Vão transmitir a descida do primeiro homem na Lua... eu quero ver...

 

DOMÊNICO:- Ainda é cedo... Isso vai levar ainda umas duas horas...

 

NÁDIA:-  Já não tem som... e as imagens me distraem... dessa porcaria de jantar...

 

DOMÊNICO:- Lá vem você de novo...

 

NÁDIA:-  Não consigo te entender... A gente nessa merda, e você dando jantar de gala para...

 

DOMÊNICO:-  Não entende porque não quer... já lhe expliquei mil vezes... Agora me deixe em paz, que eu preciso terminar esse livro...

 

NÁDIA:-  Livro... livro... livros... A gente ainda vai acabar tendo de comer livros...

 

DOMÊNICO:-  Eu vivo deles... nós vivemos deles... portanto, comê-los não seria tão difícil...

 

NÁDIA:- Enquanto isso, servimos camarões...

 

DOMÊNICO:-  Lá vem você de novo...

 

NÁDIA:-  Você já disse isso: está se tornando repetitivo...

 

DOMÊNICO:-  É o que eu faço nas minhas aulas! Repetir... repetir... repetir...

 

NÁDIA:-  Para os seus alunos, você repete regras... E na vida? Os mesmos erros... sempre os mesmos erros...

 

DOMÊNICO:-  Nós estávamos falando de camarões...

 

NÁDIA:-  Você sabia que camarões se alimentam de cadáveres?

 

DOMÊNICO:- Por isso nós os servimos... e viramos, também, comedores de cadáveres... nessa merda de vida.

 

NÁDIA:-  Olha, Domênico, você tem uma cultura invejável... já leu todos os livros... é inteligente... Mas, de vida... de vida prática... você não entende nada, ouviu? Nada.

 

DOMÊNICO:-  Porra, você faz tempestade em copo d’água e eu é que não entendo de vida?... Não vê, minha cara Nádia, que eu me ralo o dia inteiro... faço das tripas coração pra agüentar tudo o que eu agüento por nosso filho... por você? Agora vai acabar esse jantar, que eu preciso me concentrar pra deixar a aula de segunda-feira preparada... Vai, vai...

 

NÁDIA:-  É sempre assim: você vive fugindo... Você se esconde atrás dos livros, das aulas, do raio que o parta, para não falar comigo... Nem pra brigar você presta!

 

 

O gesto de desdém de Domênico, que volta para sua leitura, desestimula Nádia, que continua seus afazeres. Dá uma olhada no berço, ajeita as cobertas do filho e senta por uns instantes, cansada. As badaladas longínquas de um relógio batendo dez horas quebram o silêncio.

 

 

NÁDIA:-  A que horas você combinou com eles?

 

DOMÊNICO:-  Dez horas... já te falei.

 

NÁDIA:-  Fiz coquetel de camarão...

 

DOMÊNICO:-  Só espero que o seu amigo Isidoro não queira farofa pra comer com o coquetel...

 

NÁDIA:-  O amigo é seu... e não seja tão venenoso...

 

DOMÊNICO:-  É que ele e meio caipirão mesmo...

 

NÁDIA:-  Até que a mulherzinha lá dele é bem ajeitadinha...

 

DOMÊNICO:-  É? Não reparei...

 

NÁDIA:-  Vocês, homens! Deixa de fingimento! Aposto que você esticou muito bem esticado o olho pra cima dela...

 

DOMÊNICO:-  Ora, Nádia... imagine! Ela é muito magra... você sabe que eu prefiro um pouco mais de...

 

NÁDIA:-  Não me chame de gorda!

 

DOMÊNICO:-  Eu não disse isso...

 

NÁDIA:-  Mas pensou...

 

DOMÊNICO:-  Pensei nada, deixa de ser boba... Vem cá, senta aqui... me dá um beijo...

 

NÁDIA:-  Não! Agora não... preciso me arrumar um pouco... Eles já devem estar chegando... Vou tomar um banho rápido pra tirar esse cheiro de comida...

 

DOMÊNICO:-  Gosto do seu cheiro assim...

 

NÁDIA:-  Você só me vê como um prato de comida...

 

DOMÊNICO:-  Um apetitoso prato de comida...

 

NÁDIA:-  Acho que você só casou comigo porque...

 

DOMÊNICO:-  ... você é a melhor cozinheira do mundo!

 

NÁDIA:-  Chato! Ainda arrumo um amante que me dê valor como mulher...

 

DOMÊNICO:-  Amante! Ora, Nádia... quer melhor amante do que eu? Não seja boba... você sabe que eu som bom de cama...

 

NÁDIA:-  Acho que homem devia ser como camarão: servido sem cabeça...

 

DOMÊNICO:-  Tá bom... tá bom... Me sirva uma taça de vinho antes de entrar no chuveiro...

 

NÁDIA:-  Dá uma olhada no filhote, de vez em quando... Não estou gostando desse sono pesado dele...

 

DOMÊNICO:-  Pode deixar... não deve ser nada... É bom dormir... o sono ajuda a recuperar...

 

 

Nádia sai. Domênico degusta vagarosamente o vinho. Senta. Levanta. Anda de um lado para o outro. Vai até o berço, olhar o filho. Começa a dar sinais de nervosismo. Olha várias vezes no relógio.

 

 

DOMÊNICO:-  E esses putos que não chegam... Odeio falta de pontualidade. Dois minutos de atraso, uma vez, somente dois minutos e eu me ferrei. Droga. Não quero pensar nisso. Já passou. Preciso da proteção do Isidoro... senão eu vou me ferrar de novo. (Para dentro da casa). Nádia, Nádia, vai demorar muito?

 

 

Nádia responde lá de dentro, tentando abafar a voz.

 

 

NÁDIA:-  Fala baixo... quer acordar nosso filho?... Já estou indo...

 

 

Domênico aproxima-se da porta e tenta fazer-se ouvir.

 

 

DOMÊNICO:-  Já são quase dez e meia e eles não aparecem...

 

 

Nádia abre a porta. Está bem vestida e maquiada. Domênico olha-a com certa admiração. Nádia desfila diante dele, provocando-o.

 

 

DOMÊNICO:-  Puxa! Até parece um jantar de gala...

 

NÁDIA:-  Você só gosta de me ver mulambenta... cozinhando, trocando fraldas, lavando o chão... Fique sabendo que não sou de se jogar fora...  Tenho belas pernas... meus seios ainda estão firmes... Quando me arrumo um pouco, ainda faço sucesso... Precisa ver o olhar do dono da banca da esquina... quando eu passo...

 

DOMÊNICO:-  Ah! Ah! Ah! Fazer sucesso no Brás... até eu, se me vestir de mulher... e usar uma saia curta...

 

NÁDIA:-  Você é um grosso, mesmo... E seus amigos que não aparecem...

 

DOMÊNICO:-  Nádia... quero te fazer um pedido... Por favor, trate bem... o... Isidoro e a Laura... principalmente a... a... Laura... Nada de cenas, por favor... Meu emprego depende deles... É uma bosta de emprego... mas nunca vou conseguir arrumar outro... não na minha condição... Você sabe... Todo cuidado é pouco... Eles... eles conhecem um pouco da minha história... não sabem tudo... é claro... Por isso, muito cuidado... qualquer descuido pode ser fatal... eles parecem boa gente, mas nunca se sabe... Na minha situação, acostumei-me a não confiar em ninguém...

 

NÁDIA:-  Fiquei o dia inteiro te chamando de Domênico... acho que já me acostumei... não vou errar...

 

DOMÊNICO:-  Principalmente, nada de detalhes de nossa vida em Florianópolis... Se perguntarem, desconverse... mude de assunto...

 

NÁDIA:-  A Laura é bem bonita, não é mesmo? E bem mais nova do que eu...

 

DOMÊNICO:-  O vinho! Você comprou mais vinho? Daquele vinho espanhol que eu gosto?

 

NÁDIA:-  Comprei... comprei... Será que o seu amigo Isidoro não arrumaria umas aulas para mim, também? Aquele colégio é tão grande...

 

DOMÊNICO:-  Ora, Nádia... não é hora...

 

 

Toca a campainha, ouvem-se vozes, a de homem e, mais exaltada, a voz de uma mulher.

 

 

DOMÊNICO:-  Eles chegaram... vou abrir a porta...

 

 

Nádia corre a ver se o filho acordou, enquanto Domênico abre a porta. Entra Laura e, em seguida, Isidoro. Ele tem mais ou menos a mesma idade de Domênico, mas Laura é bem mais nova, aparentando no máximo 20 anos. Veste-se de forma extravagante.

 

 

LAURA:-  Eu falei pra esse imbecil... mas ele não me ouve...

 

ISIDORO:- ... eu me perdi... só isso... chegamos... não precisa...

 

LAURA:-  ... ficamos rodando como uns tontos...

 

ISIDORO:- ... calma, já chegamos...

 

LAURA:- ... nesse bairro... horroroso...

 

ISIDORO:- Boa noite, Domênico... como vai?

 

LAURA:-  Desculpe, Domênico... é que fiquei...

 

DOMÊNICO:-  Sejam bem-vindos... entrem... não reparem...

 

 

Os dois casais se cumprimentam. Laura acende um cigarro e senta-se na ponta do sofá. Isidoro tenta fazer-lhe um gesto para que não fume. Nádia percebe.

 

 

NÁDIA:-   Pode ficar tranqüila... o fumo não vai incomodar o menino...

 

 

Laura apaga nervosamente o cigarro.

 

 

LAURA:-  Desculpe... desculpe... vou tentar não fumar... Como vai o menino?

 

NÁDIA:-  Está melhor... dorme...

 

LAURA:- Não vamos acordá-lo com nossa conversa?

 

NÁDIA:-  Não... não, ele já está acostumado... Além disso, o remédio que ele tomou... o médico disse que ele teria um sono pesado...

 

DOMÊNICO:-  Aceitam um copo de vinho, como aperitivo? Ou preferem algo mais forte?

 

ISIDORO:-  Você não teria aí uma...

 

LAURA:-  Nada disso, Isidoro... não me vá encher a cara... Desculpem... se ele bebe muito, fica chato... que ninguém agüenta...

 

ISIDORO:-  O vinho... o vinho tá bom...

 

LAURA:-  Gostei do seu vestido, Nádia... deixou você mais...

 

ISIDORO:-  Olha, Laura, que interessante... o quadro que você viu naquela feira... Não é parecido?

 

NÁDIA:-  O autor é um amigo nosso... de Florianópolis... Você gostou mesmo do meu vestido?

 

ISIDORO:- Ela comprou num brechó... A Nádia fez coquetel de camarões... vocês gostam?

 

ISIDORO:-  Coquetel de camarões??!!

 

LAURA:-  Claro... claro... faz tempo que a gente não toma, não é mesmo, Isidoro?

 

ISIDORO:-  É... é... sim... faz tempo... ô Nádia, você disse Florianópolis... vocês vieram de lá, não é?

 

ISIDORO:- Por isso, gostamos de camarões... é a terra dos camarões... Vamos servir o coquetel, Nádia... acho que nossos convidados já estão com fome...

 

ISIDORO:- ... não conheço Florianópolis... parece ser uma bela cidade...

 

NÁDIA:-  Vou servir... camarões do sul... sem cabeça... sem cabeça... 

 

DOMÊNICO:-   Essa transmissão da Apolo 11 está ficando meio chata... mas, olha: estão se aproximando da Lua...

 

LAURA:-  Puxa! Já está dando pra ver as crateras...

 

 

Nádia começa a servir o coquetel.

 

 

NÁDIA:-  Não é só a Lua que tem crateras... Florianópolis também...

 

LAURA:-  Não entendi...

 

DOMÊNICO:-   Brincadeira... brincadeira da Nádia, não é, meu bem?...  Nádia, vai fazer uma farofinha pro nosso amigo Isidoro, vai... ele adora...

 

ISIDORO:- Farofa? Você vai fazer farofa? Com frango... ou com lombo?...

 

DOMÊNICO:-  Com camarão... com camarão...

 

LAURA:-  Deixa de ser bobo, Isidoro... não vê que eles estão brincando com você?

 

ISIDORO:- Não entendi a brincadeira... só porque eu gosto de farofa...

 

DOMÊNICO (olhando, maliciosamente, as pernas de Laura):-  Até que está bonita a imagem, não é mesmo, Laura?

 

LAURA:- Parece que de cratera você entende...

 

NÁDIA:-  Vocês dois querem parar com esse namoro e vir para a mesa?...

 

LAURA:- Eu e Domênico nos amamos, Nádia... não adianta você ficar com ciúmes...

 

ISIDORO:-  E eu? E eu? Eu também estou ficando apaixonado por uma certa barriga-verde... principalmente depois de ver o que ela preparou para nós...

 

NÁDIA:-  É minha sina, meu Deus... os homens só gostam de mim por aquilo que eu faço na cozinha...

 

ISIDORO:- Quem faz bem na cozinha, também faz bem na cama...

 

DOMÊNICO:-  É um filósofo... esse Isidoro, não é, Nádia... e parece entender do que fala...

 

LAURA:-  Isso aí? Só entende de cama-de-gato...

 

DOMÊNICO:-  Um brinde... eu proponho um brinde ao meu amigo Isidoro... e ao monte de aulas que ele me arrumou...

 

ISIDORO:- E eu proponho um brinde à dona da casa...

 

 

Enquanto todos começam a se servir, Nádia vai até o berço da criança.

 

 

LAURA:-  Tudo bem com o menino?

 

NÁDIA:-  Tudo... tudo bem...

 

ISIDORO:- Ei, Nádia, ouvi dizer que além de ótima cozinheira...

 

DOMÊNICO:-  ... borda, faz tricô, lava, passa... e cuida do bebê...

 

NÁDIA:-  Só não tenho o salário, não é seu Domênico?...

 

ISIDORO:-  ... você também é professora...

 

NÁDIA:-  Esse é apenas o menor dos meus dotes, apesar do meu marido...

 

DOMÊNICO:-  Quando nos conhecemos...

 

NÁDIA:-  Quando nos conhecemos, eu era uma idiota... que entrou em sua conversa de intelectualoide de esquerda festiva...

 

ISIDORO:- Esquerda? Você é comunista, Domênico?

 

DOMÊNICO:-  Você já falou besteira demais, Nádia... Suas frustrações matrimoniais não estão em jogo...

 

NÁDIA:- E o que está em jogo? Essa relação que... eu nem sei direito com quem casei... Você só tem discurso, Domênico... Discurso de quem foi treinado para mandar... mandar... e mandar...

 

LAURA:- Treinado para mandar? Que história é essa?

 

ISIDORO:- Não se meta, Laura... Isso é com eles...

 

LAURA:- Não me amole... Se eles estão falando na nossa frente, eu quero saber...

 

DOMÊNICO:- Não há nada para saber... São coisas de uma cabeça doente, que não consegue controlar a própria vida.

 

NÁDIA:-  Você quer saber o que está acontecendo, Laura? Olhe, olhe bem para esse cara... O que você vê? Um professor preocupado com a educação? Um pai dedicado? Um marido exemplar? Nada disso. A única coisa que o preocupa é o destino da humanidade. As pessoas, não... Ele não gosta de gente, ele gosta é da humanidade...

 

LAURA:- Não entendi...

 

ISIDORO:- Cala a boca, Laura... Vamos embora. Acho que foi um erro...

 

DOMÊNICO:- Nada disso... erro nenhum... A Nádia não está falando nada sério... nós não estamos brigando. Casais discutem, não é mesmo? Vão me dizer que vocês nunca tiveram um arranca-rabo por coisa nenhuma...

 

 

Alguns instantes de silêncio.

 

 

LAURA:-  Vou lá fora fumar um cigarro...

 

NÁDIA:-  Não quer sobremesa, Laura?

 

LAURA:- Não, obrigado...

 

DOMÊNICO:-  Eu te acompanho... tem uma sacada ali...

 

 

Laura e Domênico saem para uma sacada. Isidoro começa a ajudar Nádia a tirar a mesa.

 

 

NÁDIA:-  Não precisa...

 

ISIDORO:-  Faço questão... depois de tudo... é preciso arrumar nossas vidas... pôr ordem nos restos...

 

NÁDIA:-  Eu devia estar envergonhada, mas sabe de uma coisa? Foi bom que vocês ouviram... Eu não estou agüentando...

 

ISIDORO:-  Eu também não... Tenho sido um banana nessa minha relação com Laura... O problema é que eu a amo, apesar de tudo...

 

NÁDIA:-  Amor! O amor é a maior farsa da humanidade. Inventaram isso para nos fazer de trouxas...

 

ISIDORO:-  Olha... vou abrir o jogo com você... Depois que prenderam o professor de geografia... porque ele criticou o projeto das duzentas milhas... a situação anda crítica... Eu preciso saber se posso confiar no Domênico... Qual é o problema dele?

 

NÁDIA:-  Pronto... Vamos ter que sair correndo outra vez...

 

ISIDORO:- Não. Eu prometo: só preciso saber...

 

NÁDIA:-  Pra quê? Vai alterar a aula dele, se você souber o passado dele? Olha, Isidoro, desculpe, mas não dá pra confiar em ninguém... Eu e o... Domênico já passamos por muitas coisas... Na hora da necessidade, acabamos ficando juntos... apesar de tudo...

 

ISIDORO:- Ele não a merece, Nádia...

 

NÁDIA:-  Não me venha com essa conversa de cerca-lourenço... esse não é o problema...

 

ISIDORO:-  Qual é o problema, então? Me diz: ele é procurado... eu sei. Só quero saber: é coisa brava ou dá pra aliviar? Como arrumar tudo, se vocês escondem de mim informações...

 

NÁDIA:- Você quer saber se ele é terrorista... Não, não é... pelo menos, ainda não... Ele teve treinamento para guerrilha... seis meses no mato... só. Agora, se ele não ficar nesse emprego, Isidoro... ele não vai conseguir lecionar em nenhum outro lugar.... você entende? O seu colégio foi o único... Pelo amor de Deus, não comente isso com ninguém... entende... ninguém... Meu filho está ali, dormindo... ele está doente e precisa de cuidados... nossa vida precisa de cuidados... e não se limpa uma vida como se limpa uma mesa... Se acontecer alguma coisa a meu filho... sou capaz de qualquer loucura...

 

ISIDORO:- Claro, claro... eu sei... agora, sei... Psss... eles estão voltando... vamos mudar de assunto... Mas, Nádia, essa receita parece ser muito interessante...

 

 

Domênico e Laura voltam.

 

 

LAURA:- Pô... Isidoro... você só pensa em comida...

 

NÁDIA:-  O Isidoro também... só pensa em comida...

 

DOMÊNICO:-  Nádia!

 

NÁDIA:-  Estou falando em comida de comer pela boca...

 

ISIDORO:- Olhem... o módulo lunar já está pousando na Lua... O homem está conquistando o espaço...

 

DOMÊNICO:-  É... o homem conquista a Lua e abre crateras na vida das pessoas aqui na Terra...

 

LAURA:-  Que coisa mais idiota o que você está dizendo, Domênico... Ei gente: eu não estou a fim de ficar vendo televisão... isso tá muito chato... Vamos jogar um buraco?

 

NÁDIA:-  Das crateras da Lua para um buraco no Brás... boa idéia... Vamos... Vou pegar o baralho...

 

DOMÊNICO:- E eu vou dar uma mijadinha... e já volto...

 

 

Nádia e Domênico saem.

 

 

LAURA:-  Vê se presta atenção no jogo... pra não fazer bobagem...a gente sempre perde por sua causa...

 

ISIDORO:- Bobagem? Você vem me falar de bobagem? Se abrindo toda pra esse... esse intelectualzinho de esquerda...

 

LAURA:- Eu não queria vir... isso aqui tudo é um lixo... e vê se não enche meu saco, porque não estou disposta a ouvir merda... Você sabe muito bem...

 

DOMÊNICO:- Não sei porra nenhuma... se você não se comportar dessa vez...

 

LAURA:- O que vai acontecer, me diga...

 

DOMÊNICO:-  Eu te prometo: será a última, ouviu, a última...

 

LAURA:- Você é um covarde... e um frouxo...

 

DOMÊNICO:-  Nunca pensei que ia me arrepender tão cedo... Aquela bolsa de estudos na França...

 

LAURA:- Por que você não vai?... Ainda tem tempo... Será um bom motivo para o desquite...

 

DOMÊNICO:-  Desquite? Você ousa falar em separação? Isso, nunca! O casamento é sagrado...

 

LAURA:- Seu moralismo é um lixo... sua família é um lixo... um lixo embalado em papel celofane colorido, mas um lixo... eu não vou te agüentar por muito tempo...

 

 

Nádia e Domenico regressam. Nádia passa pelo berço, ajeita as cobertas do bebê. Os quatro arrumam a mesa e começam a jogar.

 

 

LAURA:-  Tudo bem?...

 

NÁDIA:- Tá... tá tudo bem... acho...

 

DOMÊNICO:-  Eu dou as cartas...

 

NÁDIA:-  Você sempre tem que dar as cartas...

 

LAURA:- Homem nenhum manda em mim, não...

 

DOMÊNICO:-  Nem o seu marido, Laura? Joga logo, Nádia...

 

LAURA:- Eu disse ninguém...

 

NÁDIA:-  Eu não falei que ele era mandão?... Pronto... bati... me dá o morto...

 

ISIDORO:- Pô... Laura,  você deu a carta que ela tava esperando...

 

LAURA:- E eu podia adivinhar?

 

ISIDORO:- Se estivesse prestando atenção...

 

LAURA:- Não enche.. você já fez cagada também...

 

DOMÊNICO:-  Cagada todo mundo faz... esse jogo está muito falado...

 

NÁDIA:-  E falar, dialogar, ouvir o que os outros dizem não é com você, não é seu... Domênico...

 

LAURA:- Olha o que você jogou, Isidoro... desse jeito, eles vão acabar dando uma lavada em nós...

 

ISIDORO:- Droga... agora já foi...

 

NÁDIA:-  Canastra real...

 

LAURA:- Bati... me dá o morto... Merda! Esse morto tá mais morto que certas coisas que eu tenho em casa...

 

ISIDORO:- Como você é grossa, Laura...

 

NÁDIA:-  Vou dar uma olhada no baby... segura um pouquinho...

 

DOMÊNICO:-  Não... deixa que eu vou... Assim, eu ando um pouco...

 

 

Domênico vai até o berço, fica um instante lá e volta.

 

 

ISIDORO:-  Que foi... você está pálido...

 

DOMÊNICO:-  Acho que é o ar... está um pouco abafado...

 

NÁDIA:-  Tudo bem com meu filho?

 

DOMÊNICO:-  Dorme... dorme como um anjo...

 

LAURA:- Sabe que eu uma vez sonhei com um anjo?

 

DOMÊNICO:-  Anjo? Você? Bati... Conta os pontos, Nádia... Era um anjinho inocente ou um anjão cabeludo?

 

NÁDIA:-  Você é uma besta, Domênico... Acha que a Laura ia perder tempo com anjinho?

 

LAURA:-  Era anjo, mesmo... com pena e tudo... Disse que eu ia encontrar o amor da minha vida... numa sala cheia de gente...

 

DOMÊNICO:-  E aí você encontrou o Isidoro... um anjão faminto...

 

LAURA:-  Isso aí?  De anjo só tem a asa, que vive arrastando pra tudo quanto é mulher...

 

ISIDORO:-  Você não pode se queixar... afinal tem de tudo...

 

NÁDIA:-  Por que vocês ainda não têm filhos?

 

DOMÊNICO:-  Ora, Nádia... pra ter filho é preciso ter barriga... Você acha que a Laura vai querer perder a “silhoutte”?

 

NÁDIA:-  Trezentos e vinte pontos... e vocês?

 

LAURA:- Cento e quarenta... Anota aí... Não é questão de silhueta... ainda é cedo... sou muito nova pra ser mãe... mas eu quero ter filho, sim... um só... talvez...

 

DOMÊNICO:-  Filho único é muito triste... Agora eu dou as cartas...

 

ISIDORO:- Eu também sou filho único...

 

LAURA:- Você não é só filho único... você é todo único... Seus pais ainda vivem, Domênico?

 

DOMÊNICO:- Moram em Florianópolis...

 

NÁDIA:-  Não sei por que filho único é triste...

 

ISIDORO:- Não é o filho único que é triste... são os pais...

 

LAURA:- Você não diz coisa com coisa...

 

NÁDIA:-  Agora explica... por que filho único é triste... ou os pais, sei lá...

 

ISIDORO:- É assim: filho único é sempre muito mimado, muito querido... cresce cercado de todos os cuidados, quando cresce... Os pais depositam toda a sua esperança naquele filho...

 

NÁDIA:- Isso é verdade: eu morro pelo meu filho...

 

ISIDORO:-  Ah! e tem uma coisa: eu acredito numa lei... numa lei inexorável... da vida... Bati. Me dá o morto...  Um filho não pode nunca morrer antes dos pais...

 

LAURA:-  Essa história está ficando muito... muito...

 

DOMÊNICO:-  Lúgubre... Vamos mudar de assunto... Eu também bati... Será que o cara lá do módulo lunar já pisou na Lua? Vou dar uma olhada no baby...

 

 

Domênico vai até a tevê, pára um instante, faz sinal a Isidoro para acompanhá-lo e ambos se dirigem para o berço. Ficam alguns momentos debruçados, em silêncio. Voltam.

 

 

NÁDIA:-  O nenê está agasalhado direito?

 

DOMÊNICO:-  Está... bem... agasalhado... e sem febre...

 

NÁDIA:-  Ainda bem... aquela febre estava me preocupando...

 

LAURA:-  Seu parto, Nádia... foi difícil?...

 

NÁDIA:-  Que nada, sou boa parideira... O médico queria fazer cesariana, eu não deixei... Quis tudo normal...  Ele nasceu de manhã, bem cedo... acho que eram umas seis horas... no dia seguinte à noite eu já estava em casa... Foi a experiência mais fantástica da minha vida... você não imagina o quanto eu amo esse guri...

 

LAURA:- Se eu engravidar, eu vou querer fazer cesariana... Saco! Só pego carta ruim...

 

DOMÊNICO:-  Infeliz no jogo...

 

LAURA:-  ... olha o Isidoro fazendo mais uma cagada...

 

ISIDORO:-  Se a vida fosse um jogo... ninguém precisava ficar lutando por um morto... Um morto seria apenas uma dor que passa no fundo memória...

 

LAURA:-  Já está bêbado...

 

DOMÊNICO:-  Você tem razão, Isidoro... se a vida fosse um jogo, acho que a gente podia entender sua brevidade... E como vamos fazer para pegar um morto sem jogar o jogo muitas vezes?

 

NÁDIA:-  Que coisa mais louca o que os dois aí estão falando... não estou entendendo nada...

 

ISIDORO:-  Não se pode falar sério uma vez na vida...

 

LAURA:-  Filosofia de mesa de jogo... é merda...

 

NÁDIA:-  Ficam aí filosofando, que vão abrir é umas crateras nas cadeiras...

 

DOMÊNICO:-  Deixa essas duas pra lá, Isidoro... o buraco que jogamos é bem mais negro...

 

NÁDIA:-  Você fez besteira também... Bati... Me dá o morto... Vou dar uma olhada no...

 

DOMÊNICO:-  Não!... Isto é, fica aí... você...

 

NÁDIA:-  Que foi? Não posso ver meu filho?

 

DOMÊNICO:-  Não... não é isso... você anda meio cansada... deixa... deixa que a Laura vá dar uma olhada no menino... Vai lá, Laura... faz esse favor pra nós...

 

LAURA:- Claro... claro... Fica de olho no Domênico, Isidoro... acho que ele está escondendo alguma coisa... vou aproveitar pra fazer um xixi...

 

 

Laura vai até o berço. Demora-se um pouco e, depois, vai para o banheiro.

 

 

NÁDIA:-  Vocês querem um café? Posso coar...

 

ISIDORO:-  Não... prefiro vinho... Acho que estou a fim de ficar um pouco bêbado...

 

DOMÊNICO:-  Eu também... a barra vai pesar... Quanto mais bêbado, mais lúcido eu fico...

 

NÁDIA:-  Conversa... conversa de bêbado... Enche a cara, faz besteira, não se lembra do que fez...

 

DOMÊNICO:-  Me diz, me diz quando é que eu dei vexame...

 

NÁDIA:-  Se eu for dizer, vou ficar aqui uns três dias só contando...

 

ISIDORO:- A Laura tá demorando no banheiro... Será que ela...

 

DOMÊNICO:-  Espero que não...

 

NÁDIA:-  Ei... vocês... esse código já tá enchendo... querem falar coisa com coisa?

 

 

Laura volta.

 

 

NÁDIA:-  Você está pálida...

 

LAURA:-  Tirei a maquiagem... Como vamos fazer... com o morto...

 

NÁDIA:-  Mais uma que ficou tantã...

 

DOMÊNICO:-  Ficou besta você?!! O morto já está com a Nádia... Vamos jogar...

 

 

Jogam em silêncio por alguns instantes.

 

 

NÁDIA:-  Olhem: o Neil Armstrong está saindo do módulo...

 

LAURA:-  Quem?!  Quem está saindo do quê?...

 

ISIDORO:- Não seja burra... o homem está descendo na Lua.

 

DOMÊNICO:-  Isso eu quero ver... quem sabe ele tropeça ao descer a escada...

 

NÁDIA:-  Começou a baixaria... só porque o cara é americano...

 

 

Todos abandonam o jogo e reúnem-se frente à televisão.

 

 

NÁDIA:-  Aumenta um pouco o som... Não dá pra saber o que está acontecendo.

 

LAURA:- Acho que é porque não está acontecendo nada.

 

 

 

Domênico aumenta o som da televisão. Os ruídos e vozes da transmissão da Missão Apollo 11 fazem-se ouvir. Primeiro em inglês quase inaudível. Depois, a voz clara do locutor em português.

 

 

ÁUDIO:- Um momento histórico... O primeiro homem a pôr os pés na Lua... Suas palavras foram: “Este é um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”.

 

LAURA:- Parece um canguru... ou uma alma do outro mundo...

 

ISIDORO:- É a falta de gravidade... corpo mais leve... Não vou ficar explicando isso para você...

 

LAURA:- Claro, claro... eu sou burra... pra que você ia gastar sua “sabiência” comigo?...

 

DOMÊNICO:-  Sapiência... sa  - pi  - ên  - cia...

 

LAURA:- Pronto! Agora são dois...

 

 

Domênico baixa novamente o som e cada um busca um lugar para sentar-se, abandonando de vez a mesa de jogo. Continuam bebendo.

 

 

ISIDORO:- Por que você não fica quieta só pra variar um pouco?...

 

LAURA:- Quando você casou comigo eu já falava, sabia?

 

ISIDORO:- Menos besteira...

 

NÁDIA:-  Quanto tempo vocês estão... casados?

 

ISIDORO:- Um ano e meio...

 

LAURA:- Duzentos.

 

NÁDIA:-  O quê?

 

NÁDIA:-  Duzentos anos...

 

DOMÊNICO:-  Você está conservada... com toda essa idade...

 

LAURA:- Por que você não vai tomar...

 

ISIDORO:- Pronto! Baixou a periferia...

 

LAURA:- Você me achou lá... e gostou.

 

DOMÊNICO:-  Calma, gente... Deixe-me servir um pouco mais de vinho... In vino veritas!

 

LAURA:- É assim, sabe... Nádia? Só querem saber de comer a gente... Depois é essa merda..

 

ISIDORO:- Agora você foi um pouco longe demais... Nó casamos, não foi?

 

LAURA:- Cagamos... você quer dizer... ca – ga – mos.

 

DOMÊNICO:-  Até que você tem razão. Casar é mesmo como cagar: todo mundo faz e sabe o que fez...

 

NÁDIA:-  Se nosso casamento é uma merda, como você diz, então o que é o nosso filho?

 

DOMÊNICO:-  Não coloque nosso filho nessa encrenca...

 

NÁDIA:-  Ele é o fruto de quê, então? De uma simples e inconseqüente trepada?

 

DOMÊNICO:-  Eu nem sei se...

 

NÁDIA:-  Não ouse! Não ouse levantar a menor suspeita sobre mim... Admito tudo: suas puladas de cerca... suas encrencas... seus peidos sob as cobertas... Mas se você ousar um dedinho de suspeita...

 

DOMÊNICO:-  O que você vai fazer? Se matar? Me matar?

 

NÁDIA:-  Olha aqui, Domênico, eu não estou brincando...

 

DOMÊNICO:-  Calma, meu amor, então você acha que eu teria coragem de confessar diante de meus amigos aqui... diante do Isidoro e da Laura... que eu tenho um filho que não é meu?

 

NÁDIA:-  Cínico... cínico e canalha é o que você é... Se ele não for seu, vai crescer forte e saudável... Mas se ele for seu filho, há de adoecer e morrer dentro de uma semana, para você sentir a dor de perder um filho!...

 

LAURA:- Calma, gente... que é isso, Nádia... foi só uma bobagem do Domênico... Ele nunca falou uma só coisinha assim de você... pelo contrário...

 

NÁDIA:- Você deve muito bem saber o que ele tem falado de mim, não é?

 

ISIDORO:- Eu é que não vou me meter nessa briga...

 

LAURA:- Você está tão bêbado que ainda não entendeu que essa briga não é só deles...

 

ISIDORO:- O que você quer dizer?

 

LAURA:- Quero dizer que eu já estou de saco cheio...

 

DOMÊNICO:-  Eu levo bronca e você fica de saco cheio?

 

LAURA:- É que você não sabe o que é viver com esse daí...

 

DOMÊNICO:-  Pelo que eu sei, a pinta brava da dupla aí é você... o Isidoro até que é bem... bem... bem manso...

 

NÁDIA:- Está bem informado, heim Domênico?

 

ISIDORO:- Estou bêbado... eu sei... mas lúcido... eu sei de que vocês estão falando... Aliás, todos falam... todos... falam...

 

LAURA:- Todos falam! Falam o quê, homem?

 

ISIDORO:- De você... sua... sua vaca... Então eu não sei? Você pensa que eu não sei... mas eu sei...

 

NÁDIA:-  Vou fazer um café bem forte...

 

DOMÊNICO:-  E bem doce...

 

LAURA:- É claro que você sabe... vive me xingando de burra... que eu não terminei nem o ginásio... mas na hora da necessidade, eu é que quebro todos os seus galhos... Claro que sou a pinta brava da dupla: eu é que tenho de... como é que você fala, mesmo, Isidoro? “Azeitar as engrenagens...” É o nome que ele usa para resolver todos os problemas do colégio dele com os generais de plantão... usando a mim... sabe?... a mim...

 

ISIDORO:- Cala... cala a boca...

 

DOMÊNICO:-  Eu só queria entender uma coisa, Isidoro...

 

NÁDIA:-  Domênico: pára! Não seja burro...

 

DOMÊNICO:-  .. estamos entre amigos, não é mesmo?

 

LAURA:- Acho melhor parar por aí... que só vai vir merda dessa conversa...

 

DOMÊNICO:-  Não, Laura... Agora é sério: eu queria saber o que mantém vocês... quero dizer... vocês dois...

 

LAURA:- Não entendi...

 

DOMÊNICO:-  Vocês... dois... juntos... Qual o segredo?

 

 

Pausa.

 

 

LAURA:- Vou te dizer uma coisa, Domênico... Acho que você é igualzinho a todos os outros... Agora mesmo, lá fora, você me falou um monte de coisa... Citou até Camões... um negócio aí de amor é fogo... fogo que arde... No fundo, você queria uma coisa só... Você está me ouvindo, não é, Nádia? Desculpe... Eu não devia estar dizendo isso... mas é foda! Eles aprontam e a gente é que leva a fama... Acho que estou um pouco de fogo também...

 

 

Laura bebe mais um pouco de vinho.

 

 

LAURA:- Minha mãe... minha mãe tinha razão... Que burra que eu sou... Você também tem razão, Isidoro... Acho que sou muito burra, pra acreditar em você, pra acreditar nos homens. Vocês só gostam de vocês mesmos... Vocês não gostam de nós, mulheres... Quando gostam de nós, gostam só... sabe de quê?... sabe? de nosso rabo... E mais: todo homem tem vocação para... para... vocês sabem... Ah! Ah! Ah! Minha mãe dizia... sabe o quê?... Que os homens gostam de chupar uma boceta com o gosto do pau de outro homem... É isso! Eu queria dizer... eu disse!

 

 

Silêncio.

 

 

ISIDORO:- Sua... sua...

 

LAURA:- O quê? Diz... sua o quê?

 

ISIDORO:- Sua... inepta!

 

DOMÊNICO:-  Somos todos ineptos! Somos todos ineptos! Não sabemos viver uns com os outros...

 

NÁDIA:-  Querem me dizer o que está acontecendo, querem? O homem chega à Lua e nós aqui a falar... bobagens...

 

NÁDIA:-  Isso não é o jogo da verdade... (Para Isidoro). Eu só espero que você mantenha a sua palavra...

 

DOMÊNICO:- Palavra? Que porra de palavra é essa?

 

ISIDORO:- Eu... eu...

 

LAURA:- Não sei do que você está falando, mas se depender desse merda aí...

 

DOMÊNICO:-  O que você disse pra ele, vamos... O que você disse?

 

NÁDIA:- Nada... eu não disse nada...

 

ISIDORO:- Ela não disse nada comprometedor...

 

DOMÊNICO:- Pronto! Já sei... você abriu o bico... Você não sabe que esse cara...

 

ISIDORO:- Eu juro... não vou contar pra ninguém... vocês... vocês... são meus amigos... Vou ser padrinho do filho de vocês... vou batizar esse guri...

 

DOMÊNICO:- Batismo bosta nenhuma... não tem batismo bosta nenhuma! O buraco é outro...

 

LAURA:- Não sei o que você confiou no Isidoro... Só espero que não seja nada de política...

 

NÁDIA:- É... é sobre política, sim...

 

LAURA:- Não vai me dizer que você contou pra ele...

 

NÁDIA:- Não contei merda nenhuma...

 

DOMÊNICO:-  Não contou?

 

NÁDIA:-  Só... só confirmei...

 

DOMÊNICO:-  Porra! É por isso que eu tenho de ser mandão... que eu é que tenho de dizer o que fazer... Não posso me descuidar um minuto que você borra em tudo... Você não se controla...

 

NÁDIA:- Mas o que tem de tão grave, assim? Afinal, ele não é seu amigo?

 

 

A essa altura, Isidoro mal consegue manter os olhos abertos, de tão bêbado.

 

 

ISIDORO:- Tudo amigo... tudo amigo...

 

LAURA:- Amigo! Amigo da onça... é o que ele é...

 

NÁDIA:- Mas você também sabia?

 

LAURA:- Claro... isto é, eu sabia... Sabia, sim... O Domênico me contou... Mas não é nada disso que você está pensando, não...

 

DOMÊNICO:-  O cara aí já apagou, praticamente... Acho que podemos falar... A Laura pertence a um grupo... um grupo de ajuda a perseguidos políticos... Ela prometeu nos ajudar... e tem nos ajudado...

 

NÁDIA:- E o Isidoro?

 

DOMÊNICO:- Esse... esse é um canalha... Entreguista... O colégio dele só consegue ir pra frente porque ele faz o jogo da ditadura... Tem um monte de amigos generais...

 

LAURA:- Vocês vão ter de se mandar... O Isidoro não é confiável... Tenho contatos em Manaus...

 

DOMÊNICO:- Nada disso... Se formos embora agora, vamos despertar suspeitas... Vamos ter que fingir que não houve nada... e contar com a sorte...

 

NÁDIA:- Você não pode decidir tudo sozinho

 

DOMÊNICO:- Posso e vou... você não tem a mínima condição de decidir nada...

 

LAURA:- Não posso concordar com sua atitude...

 

DOMÊNICO:- Você também não tem de concordar com nada... Quem manda aqui...

 

LAURA:- Você pode mandar nas suas negas... nos seus alunos... mas pra cima de mim, não vem com esse papo... Você vai me ouvir... Chega de palhaçada! Não estou entendendo onde você quer chegar... Além de todas as confusões que você tem na vida, ainda temos um problemão a resolver aqui...

 

DOMÊNICO:- Acho que você está extrapolando...

 

NÁDIA:-  Que problema ainda temos mais? Será que não basta eu ter reconhecido que errei... Que bosta...

 

LAURA:- Não é esse o problema... No Isidoro eu dou um jeito depois... O jogo ainda não terminou...

 

DOMÊNICO:-  Ainda estamos no buraco... no buraco de nossas vidas...

 

LAURA:- Desculpe, Nádia... mas se eu agüento o Isidoro é porque é impossível deixá-lo, por enquanto... ele não admite o desquite... Que droga... Não é nada disso que eu quero falar... O que eu não posso admitir é o controle... o controle de nossas emoções... de nossa vida... Eu não posso admitir a falsidade... querer nos tratar como... como, sei lá... bibelô... boneca de louça... para nos proteger... E quando a gente pensa que está protegida... que eles nos cercaram das merdas do mundo... Desculpe a expressão... mas aí mesmo é que estamos fodidas... Ouviu? Fodidas!

 

DOMÊNICO:-  Agora é que você está falando bobagem...

 

ISIDORO (tentando entender alguma coisa):- Cala a boca, Laura!... Você não tem o direito...

 

LAURA:- Direito? De quê? De ficar calada, enquanto o Domênico manda em tudo e em todos? O que ele pensa que é? Que pode provocar, ferir, mentir? Olha aqui, Nádia: você vai me odiar para sempre... Não tem importância... mas eu vou falar...

 

DOMÊNICO:-  Se você abrir essa boca...

 

ISIDORO:- Domênico, você não tem o direito...

 

DOMÊNICO:-  “Você não tem o direito...” – é só isso o que você sabe dizer? E vai deixar que essa aí estrague tudo?

 

ISIDORO:- Olha aqui...

 

LAURA:- Cala a boca, Isidoro... Eu não vou deixar que ele continue escondendo essa situação absurda...

 

NÁDIA:-  Vocês querem parar com isso? Vão acabar por acordar o meu filho!... Que merda!

 

LAURA:- Nádia... seu filho... ele... ele não vai acordar!

 

NÁDIA:-  O quê? O que você está falando?

 

DOMÊNICO:-  Filha da puta!

 

ISIDORO:- Não ouse...

 

DOMÊNICO:-  Eu falei pra essa filha da puta...

 

LAURA:- Seu filho não vai acordar!

 

NÁDIA:-  Meu filho! Meu filho!

 

 

Nádia corre para o berço. Blackout.

 

 

FIM

 

 

Isaias Edson Sidney

Terça-feira, 8 de junho de 1999

Segunda-feira, 28 de junho de 1999

 

 

 

 

 

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