terça-feira, 4 de maio de 2021

O VAMPIRO QUE NÓS AMAMOS


Isaias Edson Sidney

SBAT – 1346

FBN – 214.048 – livro 373, folha 208

1999

  

PERSONAGENS

 J.O. (Judas, o Obscuro)

Lucas e Sara (irmãos)

Espencer (detetive brasileiro)

Tracy (detetive inglês...)

Delegado

Homem e mulher (vítimas/testemunhas)

Capangas de Espencer

Bloco carnavalesco

 

 Um bloco carnavalesco, com estranhas figuras fantasiadas, passa animadamente pelo palco. O último de seus membros, meio afastado do grupo é Lucas. Meio bêbado, está fantasiado de mulher e segura uma garrafa de cachaça. Canta a música do bloco meio desafinadamente. Uma figura sinistra surge de repente e joga-se sobre ele. Enrolam-se no chão, com a imensa capa preta cobrindo a ambos. Há uma luta surda por sob o pano, com grunhidos, gritos etc. Depois de alguns segundos, a capa é aberta e vê-se J.O., de costas para a platéia, segurando firmemente o pescoço de Lucas, que se debate como uma criança. Só se ouvem o ruído de ânsia de vômito de J.O. e alguns grunhidos surdos de Lucas.

 

 

J.O.:- Puta-que-o-pariu! Que droga! Odeio esse cheiro... Seu miserável! O que é que você comeu... heim! O quê?

 

 

Sacode Lucas, que esperneia grotescamente, sem poder falar.

 

 

J.O.:- Perdeu a língua?

 

 

Lucas sacode negativamente a cabeça

 

 

J.O.:- Então, fala, maldito... Ou você quer morrer?

 

 

Lucas continua fazendo esforços para falar.

 

 

J.O.:- Eu vou arrancar a sua língua, desgraçado...

 

 

Aproxima um pouco a cabeça em direção de Lucas, mas logo a afasta. Vem outra ânsia de vômito. Com isso, larga o pescoço de Lucas, mas continua comprimindo-o com a mão sobre o peito. Lucas tenta recuperar-se.

 

 

J.O.:- Eu não agüento essa... esse... o que você comeu, mortal filho-da-puta?...

 

 

Lucas tartamudeia.

 

 

LUCAS:- Pi... pi... eu... co... co... comi... u... u... uma... pi... pi...

 

J.O.:- Que diabo de pi... pi... é esse? Você comeu foi...

 

LUCAS:- ...pi... pi... pizza...

 

J.O.:- Pizza?!!

 

LUCAS:- É... é... uma... pi... pizza... uma pizza de alho!

 

J.O.:- Arhg!!! Tinha que ser alho? Tanta gente que come pizza de... de muzzarella... de atum... até de escarola! Esse desgraçado, não... tinha de comer pizza de alho...

 

LUCAS:- Mas eu adoro pizza de alho...

 

 

J.O. volta-se para o público. Seu rosto é excessivamente branco. Os olhos, injetados. Sua fúria amaina-se pouco a pouco.

 

 

J.O.:- Eu odeio alho... não posso nem chegar perto que me dá urticária... desde menino... há dois mil... Por que você tinha que comer alho?

 

LUCAS:- Você... você... quem é você? Quer o meu relógio? Minha carteira? Pode levar... tem aí uns dois passes de ônibus e um vale refeição de três reais e cinqüenta... Pode levar... Ah! e tem também uma camisinha...

 

J.O.:- Cala a boca, miserável comedor de alho... se não...

 

LUCAS:- Se... não, o quê? Vai me matar, vai?

 

J.O.:- Estou pensando no que eu vou fazer com você...

 

LUCAS:- Que tal começar tirando essa mão do meu peito... Caramba! Que mão pesada!

 

J.O.:- Se você tentar fugir...

 

LUCAS:- ... vai tentar morder o meu pescoço como agora há pouco?

 

J.O.:- Cala a boca... você não sabe o que está falando...

 

LUCAS:- Olha... eu não tenho nada... Sou só um pobre diabo... você escolheu o cara errado pra assaltar... só tenho isso aí comigo... Minha vida...

 

J.O.:- Sua vida não vale nem esses trecos aí... e pára de falar... Argh! Esse fedor... misturado com cachaça... isso me mata...

 

LUCAS:- Eu sei que não devia ter bebido tanto... mas não sou tão fedido assim... eu tomei banho, viu, seu assaltante?

 

J.O.:- Fecha essa boca!

 

LUCAS:- Se eu fechar a boca, como vou falar?...

 

J.O.:- Não fale!... Maldito cheiro de alho!...

 

LUCAS:- Hum!... Isso está me cheirando... tem coisa aqui...

 

J.O.:- Seu sangue... seu sangue fede... fede a cachaça... fede a alho...

 

LUCAS:- O garçom... era meu amigo... Eu pedi pra ele caprichar e ele caprichou...

 

 

Lucas bafeja sobre J.O., que se afasta com nojo.

 

 

LUCAS:- Alho... alho do bom... Sente, seu ladrão...

 

J.O.:- Vou te dependurar pelo pé numa árvore até você secar... seu... seu...

 

LUCAS:- Tá pensando que eu sou bacalhau, é? Sente... sente o meu cheirinho... seu vampiro!

 

J.O.:- Como? O que você disse?

 

LUCAS:- Vampiro! É isso mesmo: vampiro! Vampiro é que não gosta de alho...

 

 

J.O. tenta agarrar Lucas, mas este bafeja de novo em sua direção, com toda força. J.O. afasta-se com nojo.

 

 

LUCAS:- Está com medo, agora, está? Pensou que podia vir com esse papo de vampiro... e levar toda a minha grana...

 

J.O.:- Grana!!! Um vale refeição e dois passes de ônibus?

 

LUCAS:- Não interessa! É pouco, mas é meu!

 

J.O.:- Olha aqui... esse papo já foi longe demais...

 

 

Lucas ameaça-o com outro bafo.

 

 

LUCAS:- Nem tenta... nem tenta...

 

 

J.O. se senta, enrola-se na capa e fica pensativo. Lucas senta-se a seu lado, juntando suas coisas.

 

 

LUCAS:- Não fique assim... você vai encontrar outro com mais dinheiro pra assaltar... é carnaval... a gente sai com dinheiro contado... nunca se sabe onde a gente acaba dormindo... Teve um ano, sabe, que na terça-feira gorda eu bebi tanto, que acordei no dia seguinte num galinheiro... não sei até hoje como fui parar lá... e acabei preso... eu, Lucas dos Santos Neves, o mais honesto dos filhos de meu pai, preso como ladrão de galinha... Já pensou?

 

J.O.:- Seis meses... seis meses de abstinência... e o primeiro que encontro, além de comedor compulsivo de alho, é um boquirroto...

 

LUCAS:- Olha aqui, seu... seu... seu vampiro... posso ser muita coisa, mas isso aí, não... bo... bo... bo... o que foi mesmo que o senhor disse?

 

J.O.:- Deixa pra lá... Meu nome é Judas... mas todos me chamam de J.O....

 

LUCAS:- J.O.?

 

J.O.:- É! J.O.! E não me pergunte por quê...

 

LUCAS:- Tá bom... tá bom... Lucas... E você é mesmo um vampiro?

 

J.O.:- Que fixação você tem em vampiro... Acho que você é que é um...

 

LUCAS:- Deus me livre e guarde, seu J.O. Mas... seu jeito, assim... sei lá... Sabe: eu sei tudo de vampiro... já vi todos os filmes... já li tudo quanto é gibi...

 

J.O.:- O que o faz pensar que eu seja um vampiro?

 

LUCAS:- O senhor... você não tentou morder o meu pescoço?

 

J.O.:- Tentei... Lucas, tentei... E vou tentar de novo... Depois que passar esse... esse teu cheiro de alho...

 

 

 Ouve-se uma voz ao longe, gritando. É Sara, irmã de Lucas.

 

 

SARA:- Lucas! Lucas! Onde você está.

 

LUCAS:- É minha... mãe... quero dizer, minha irmã... É que desde que minha mãe morreu, há quase cinco anos, ela é que toma conta de mim...

 

J. O. :- Um marmanjo como você... a irmãzinha é que toma conta... que lindinho que ele é!

 

LUCAS:- Não enche, tá... te dou um bafo...

 

J. O. :- Você não vai responder à sua irmãzinha?

 

LUCAS:- Ela me encontra... ela sempre me encontra...

 

J. O. :- Acho que você está com medo...

 

LUCAS:- Medo o caralho... e eu vou ter medo de mulher? 

 

 

 

De novo a voz de Sara.

 

 

SARA:- Responde, Lucas... onde você está? Eu vou te encontrar, seu safado...

 

LUCAS:- O pior é que ela sempre me encontra...

 

J.O.:- Que lindinho! Está com medinho da irmãzinha....

 

LUCAS:- Qual é, cara... tá me estranhando? Sou muito macho pra lhe dar umas porradas...

 

 

Lucas ameaça J.O. com um bafo, leva um safanão, cai e J.O imobiliza-o facilmente.

 

 

J.O.:- A “donzela” não me ameaça... que eu esqueço que teu sangue está sujo...

 

LUCAS:- Su... su... sujo? Que porra é isso agora?...

 

J.O.:- Pois é... seu mortalzinho de merda: eu sou um vampiro... E daí...

 

LUCAS:- Que legal, cara... Me solta... Eu sempre quis conhecer um vampiro... Não: você está brincando comigo... Não é verdade... vampiro é coisa de literatura... Não existem vampiros...

 

 

J.O. mostra-lhe as presas e ameaça mordê-lo.

 

 

LUCAS:- Não... pelo amor de Deus, não... eu acredito... eu acredito... Ai meu são Judas, me protege...

 

J.O.:- Tá bom... não vou te morder... perdi o apetite...

 

 

Solta Lucas. Encontra algo caído de seu bolso. É uma foto. Olha-a e fica apavorado.

 

 

J.O.:- Que... que... diabo é isso... Quem... quem... quem é essa mulher?

 

LUCAS:- É minha mãe... quero dizer, minha irmã... A que está me procurando...

 

J.O.:- Oh! Não! Não pode ser verdade... por todos os deuses de todos os tempos... Não é possível... Minha memória... depois de tantos séculos... está me traindo... Não pode ser verdade... Eu morro de saudade de você, minha mãe... dois mil anos... não esqueci nunca... é você, mãezinha...

 

LUCAS:- Ih! O cara pirou... De que hospício será que ele veio? A gente vê cada coisa no carnaval...

 

J.O.:- A única lembrança que eu tenho... da minha infância... me atormenta... nem sei mais... é esse rosto... o rosto de minha mãe... não é possível... devo estar louco... essa mulher não existe... não está acontecendo...

 

LUCAS:- Olha aqui... cara: não tenho nada com suas neuras... Me dá a foto...

 

J.O.:- Não! É a foto de minha mãe!

 

LUCAS:- Que sua mãe, que nada... seu merda... É a minha! Quero dizer, minha irmã...

 

 

Lucas percebe que J.O. está chorando. Comove-se.

 

 

LUCAS:- Tá bom... tá bom... Saco! Não posso ver homem chorando... eu fico besta... vou me arrepender disso... mas... Olha aqui, seu J.O., senta aqui, vai... vamos conversar... Sua... sua mãe... ela já morreu há muito tempo?

 

J.O.:- Você nem imagina quanto...

 

LUCAS:- Eu posso entender isso... Eu também perdi minha mãe... faz cinco anos... Se não fosse essa daí... minha irmã... eu teria sofrido muito, também... ainda sofro... sofro, sim... uma baita saudade...

 

J.O.:- A minha tem dois mil anos...

 

LUCAS:- Não entendi... sua mãe tinha dois mil anos?

 

J.O.:- Não, seu idiota... desculpe... é que nunca imaginei passar por um constrangimento desse... nessa minha longa existência... já passei por tudo quanto você possa imaginar... só não poderia pensar que um dia eu, J.O., o imortal... o poderoso... fosse acabar chorando nos braços de um... de um...

 

LUCAS:- Olha o que você vai dizer, cara... Sou pobre, sou ignorante, mas sou orgulhoso pacas...

 

J.O.:- Desculpe... desculpe, meu amigo... Posso chamá-lo assim, não posso? Meu único amigo...

 

LUCAS:- Tá bom... tá desculpado... Toque aqui... Me diga uma coisa, já que somos amigos, você é mesmo um vampiro? (J.O. confirma com a cabeça). Daqueles que chupam sangue? (J.O. confirma). Daqueles que não morrem nunca? (J.O. confirma). Meu santo são Judas, tô fodido... Desculpe, meu santinho... O que eu fui arrumar: ser amigo de um vampiro! Ai, meu santinho... tô condenado...

 

J.O.:- Não seja imbecil... Desculpe. Não devo falar assim com um amigo...

 

LUCAS:- Amigo? E vampiro tem amigo? Você vai me morder...

 

J.O.:- Não, Lucas, eu não vou mordê-lo... Os vampiros têm por ética nunca morder um amigo... um verdadeiro amigo... porque eles nunca têm amigos... Só que agora eu tenho um... e não vou mordê-lo... Senta aqui... vou te contar toda a minha história...

 

 

J.O. narra sua história a Lucas. Passagem de tempo, por efeito de luz ou outro qualquer. Lucas está boquiaberto, olhos arregalados, completamente imóvel. De repente, a voz de Sara faz-se ouvir de muito perto. Lucas tenta levantar-se para correr, é surpreendido por Sara, que praticamente salta sobre ele e subjuga-o com o pé, numa pose de caçador que matou a presa. Lucas, a contragosto, aquieta-se medrosamente.

 

 

SARA:- Safado! Pensou que escapava, não é? E ainda te encontro com essa fantasia ridícula... Com calcinha de rendas, ainda por cima, não é seu Lucas?

 

 

Lucas, vexado, tenta baixar o vestido, para esconder a calcinha.

 

 

SARA:- Seu desgraçado... eu me mato de trabalhar e você na farra! Quanto custou essa fantasia horrorosa! Quanto? E esse bafo nojento... Encheu o caco com o salário do mês, não é, seu desgraçado.

 

LUCAS:- N... n... não... Eu não bebi... Juro! Foi... foi... só um golinho!

 

SARA:- Levanta logo daí e vamos pra casa... Anda... Vou te dar um banho frio pra curar essa bebedeira... pra você ir trabalhar amanhã...

 

LUCAS:- Não... não... posso...

 

SARA:- Como? Não pode ir trabalhar? É claro que pode... Pode e vai!

 

LUCAS:- Não... não... não... posso... é... me... levantar... Seu... pezinho...

 

SARA:- Ah! Seu desgraçado! Não pode se levantar... Vai levantar pra apanhar!

 

 

Sara tira o pé de cima de Lucas, que se levanta e tenta se recompor, mas começa a levar alguns sopapos da irmã. J.O. sai da imobilidade catatônica em que estava.

 

 

J.O.:- Me bate, também... me bate, também...

 

 

Sara encara J.O., prestando atenção nele pela primeira vez.

 

 

SARA:- Quem o senhor pensa que é para se meter em briga de família, heim... seu... seu... seu cara de vampiro?

 

J. O. :- Eu não sou vampiro...

 

LUCAS:- Ele não é vampiro... só não gosta de alho...

 

SARA:- Você já andou com melhores companhias, seu Lucas...

 

LUCAS:- Minha irmã, Sara... ela... ela é assim, mesmo... mas é boa pessoa...

 

J. O. :- Sara... minha mãe! ... meu nome é...

 

SARA:- Não interessa... deve ser mais um vagabundo a querer roubar meu irmão...

 

LUCAS:- Ele é rico, Sara...

 

J. O. :- Pela declaração de renda que ele fez há pouco, eu é que devia ter medo de ser assaltado...

 

LUCAS:- Também não precisa ofender...

 

SARA:- O desgraçado já gastou o salário todo... por isso é que não tem dinheiro...

 

J. O. :- Dinheiro... vocês, mor... digo, vocês humanos...

 

SARA:- E por acaso você não é humano? Tá certo que essa cara...

 

J. O. :- Desculpe... é só uma maneira de falar...

 

SARA:- Olha aqui, seu... seu... seu cara de...

 

LUCAS:- Ele não é vampiro...

 

J. O. :- Eu não sou vampiro! Só não gosto de... do bafo do irmãozinho aí...

 

SARA:- Olha aqui seu...

 

J. O. :- J.O...

 

SARA:- ... seu Jotapó...

 

LUCAS:- J.O.... Jó... ta... ó...

 

SARA:- ... J.O. , o senhor...

 

J. O. :- Você, por favor, minha mã... digo, senhora...

 

SARA:- Você não sabe o que é ter confiança num irmão... criar... não, criar, não... mas confiar, entende... estou procurando emprego, mas tá difícil... os tempos são bicudos... só temos o salário desse... desse safado... Quando mamãe morreu... que Deus a tenha num bom lugar... esse desgraçado prometeu se regenerar... cuidar de mim... Sabe, seu J.O.... a única coisa que a gente tem... é nossa casa... a casa em que a gente mora... e agora, esse desgraçado torra todo o dinheiro da hipoteca... amanhã é o último dia... se a gente não pagar, ó: adeus... adeus casa... nós vamos morar debaixo da ponte... no meio da rua... eu dei um duro danado pra manter a nossa casa... enquanto trabalhava na fábrica, eu conseguia pagar as promissórias...todo mês... tudo direitinho... mas a fábrica fechou, seu J.O.! Nesses anos todos... o Lucas, seu J.O., vivia às minhas custas... eu mantinha ele... dava tudo... Sabe o que ele é, seu J.O.? Sabe? Lucas é um vampiro!

 

J. O. :- Um vampiro?!!!

 

SARA:- É, sim, seu J.O.... Ele sugou o meu sangue inteirinho... nesses anos todos... E agora nós vamos perder nossa casa!... A hipoteca vence amanhã... e Lucas gastou todo o dinheiro da hipoteca na farra... na farra, seu J.O.!...

 

J. O. :- Nós vamos achar uma solução... nós vamos achar uma solução...

 

 

Sala de delegacia. Escrivaninha desarrumada. Atrás dela, o delegado. À sua frente, o detetive Espencer.

 

 

DELEGADO:- Não. Mil vezes, não!

 

ESPENCER:- Só algumas horas por semana...

 

DELEGADO:- Com tanta merda acontecendo por aí, é impossível... preciso de todas as suas porras de horas aqui... Veja: crime na favela... crime no bairro elegante... crime no clube de bocha dos velhinhos... essa cidade enlouqueceu! E você tem a coragem de me pedir para investigar isso? Olha aqui, detetive Espencer: se eu souber que o senhor deu cinco minutos de seu tempo para esse caso, eu te suspendo, ouviu? Eu te dou cadeia...

 

ESPENCER:- A INTERPOL é que...

 

DELEGADO:- Eu quero que a INTERPOL vá o pro raio que a parta. Agora saia, vai cuidar dessas encrencas que eu te passei...

 

 

O detetive Espencer sai. Vai até um telefone, verifica que não há ninguém por perto. Disca.

 

 

ESPENCER:- Alô... É o Espencer... Vou pegar o caso... Esse desgraçado não escapa, dessa vez... Nem que eu tenha de... Não!... Não!... Sim!... Ok!... o endereço é esse mesmo... Até lá, então...

 

 

É noite. Casa de Sara e Lucas. Sara está arrumando a mesa para o jantar. Coloca três pratos na mesa. Titubeia. Olha para cima. Retira um dos pratos. Entra Lucas, com roupa de operário e uma marmita na mão. Coloca tudo na pia. Senta à mesa, em silêncio. Sara serve-lhe uma sopa. Lucas toma-a em silêncio, com ar contrariado. Sara serve-se também e senta-se do lado oposto a Lucas. Toma a sopa, olhando de vez em quando para cima.

 

 

LUCAS:- Perdeu alguma coisa lá cima?

 

SARA:- Dormiu o dia todo...

 

LUCAS:- Pagou a hipoteca?

 

SARA:- Claro... e ainda...

 

LUCAS:- Ainda o quê?... Já sei: você arrancou um pouco mais... Cadê o dinheiro? Eu também quero um pouco...

 

SARA:- Vê se te enxerga...

 

LUCAS:- Nem pra comprar uma carne pra colocar nessa merda de sopa! Olha aqui, minha irmã: não me faça de trouxa... Eu sei que...

 

SARA:- A única coisa que você sabe é farrear... Vai pedir dinheiro pras suas negas...

 

LUCAS:- Enquanto você pede dinheiro pra ele, não é, sua vagabunda...

 

SARA:- Pela alma de nossa mãe... você me respeita...

 

LUCAS:- Alma de nossa mãe! Lave a boca, pra falar naquela santa... sua... sua...

 

SARA:- Não fale... não fale... que eu te arrebento...

 

LUCAS:- Assassina!

 

 

Sara ameaça jogar o prato em Lucas e pára de repente ao dar com a figura de J.O. ao pé da escada.

 

 

J.O.:- Não quero atrapalhar o colóquio amoroso dos dois... Já estou de saída...

 

 

Antes que qualquer dos dois irmãos conseguisse falar alguma coisa, J.O. desaparece pela noite.

 

 

SARA:- Aceita um pouco mais de sopa, meu irmãozinho?

 

LUCAS:- Claro, querida... Essa sopa está uma delícia... Vou até lhe dar um beijinho...

 

 

Sara aproxima-se para servi-lo. Lucas beija-a sensualmente, no rosto e depois nos lábios. Passa a mão em suas pernas, sob o vestido.

 

 

LUCAS:- Ah! Minha irmã... minha querida irmã... A gente devia...

 

SARA:- Não, Lucas... Ainda não estou preparada... Eu também queria... espere um pouco mais... ainda não...

 

 

Sara afasta-se de Lucas, olhando-o com certo ar de sensualidade, e ambos continuam a tomar a sopa silenciosamente, por alguns segundos. Foco sobre J.O. numa esquina escura, em pose de espera. Acende um cigarro e traga-o com prazer. Ouve ruído de passos. Apaga rapidamente o cigarro e, assim que o vulto se aproxima, atira-se sobre ele. É uma mulher.

 

 

MULHER:- Valha-me, Senhor...

 

 

J.O. segura a mulher de modo que ela possa ver sua expressão amedrontadora, com os caninos salientes.

 

 

MULHER:- O senhor quer me roubar? Olha, moço: não tenho nada. Só essa bíblia e uns trocados...

 

J.O.:- Não sou ladrão.

 

MULHER:- O que o senhor quer? O que eu tenho que possa atrair um homem como o senhor?

 

J.O.:- Quero o seu sangue!...

 

MULHER:- O senhor vai me matar...

 

J.O.:- Vou.

 

MULHER:- Por favor, espere só um minuto...

 

J.O.:- Um minuto? Que merda é essa? A senhora está pedindo um minuto para não morrer?

 

MULHER:- Para minhas orações... assim poderei morrer em paz e Deus também ficará contente em colher minha alma...

 

J.O.:- Não está com medo?

 

MULHER:- O verdadeiro cristão só pode ter alegria quando vai ao encontro do Senhor...

 

J.O.:- Merda! Sangue de covarde... sem adrenalina...

 

 

Torce o pescoço da mulher, esconde o cadáver, acende um cigarro e volta à posição de espera. Apartamento do detetive Espencer, que anda de um lado para o outro, ansioso. Toca a campainha. Espencer corre a abrir a porta. Um homem vestido à moda dos detetives ingleses permanece extático à porta. Fala com um pouco de sotaque.

 

 

ESPENCER:- Trouxe tudo, Mr. Tracy?

 

TRACY:- Yes... sim... está tudo nesta caixa...

 

ESPENCER:- Ótimo!... vamos analisar tudo... Estou morrendo de curiosidade...

 

TRACY:- Por que o senhor está parado aí?

 

ESPENCER:- Esperando que me convide a entrar...

 

TRACY:- Ora, senhor Tracy, no Brasil não existem tais formalidades...

 

ESPENCER:- O senhor me convida ou não?...

 

TRACY:- Está bem: queira entrar, por favor, Mr. Tracy...

 

TRACY:- Obrigado.

 

ESPENCER:- Os documentos...

 

TRACY:- São documentos do início do século até hoje...

 

ESPENCER:- Antes de examinarmos os documentos, veja este jornal...

 

TRACY:-  É... o estilo é o mesmo... parece ser ele... Não pode ser coincidência...

 

ESPENCER:- E não é o primeiro, Mr. Tracy... não é o primeiro... Só que a imprensa ainda não ligou os fatos... ainda bem... Vamos aos documentos...

 

 

J.O. apaga o cigarro ao ouvir passos. Salta sobre a vítima e domina-a da mesma forma que na vez anterior. É um homem. Grita desesperado ao ver o rosto de J.O.

 

 

HOMEM:- Não... não... por favor, não me mate... eu não quero morrer...

 

J.O.:- Não é cristão?

 

HOMEM:- Sou... sou... eu...

 

J.O.:- Sabe que vai morrer?

 

HOMEM:- Por favor... não me mate... eu tenho muitos pecados... não me arrependi ainda... se eu morrer vou direto pro inferno...

 

J.O.:- Tem medo do inferno? Tem?

 

HOMEM:- Te... te... tenho... tenho medo de morrer... não me mate... Ai! meu Deus do céu...

 

 

J.O. aperta o pescoço da vítima, que pára de gritar e aguarda alguns segundos para que o terror da morte transpareça em seu rosto. Com um sorriso, aproxima os caninos de sua jugular. Casa de Lucas e Sara. Batidas de relógio, ao longe, indicam a meia-noite. Sara costura e Lucas ouve o rádio de pilha, com comentários sobre futebol.

 

 

SARA:- É melhor ir dormir, meu irmão...

 

LUCAS:- Quero ver a cara dele, quando chegar...

 

SARA:- Às vezes ele chega pouco antes do amanhecer... quando chega...

 

LUCAS:- Enquanto estiver pagando...

 

SARA:- E vai pagar muito mais... Você vai ver... Me disse que pretende comprar uma casa nova... para nós... Já  imaginou?!... É só o tempo do banco liberar a grana... Ah! Meu irmão... vamos sair desse miserê... Não importa que ele seja estranho... que durma o dia inteiro... Que quase não coma nada... vamos sair dessa vida de merda...

 

LUCAS:- Eu não vejo a hora de deixar aquele emprego... Hospital é o cu do mundo, minha irmã... só desgraça... mexer com o lixo do lixo... é humilhante...

 

SARA:- Ele disse que vai te arrumar um serviço bom... serviço, não: emprego... Para disfarçar, sabe? Para as pessoas não colocar reparo que ninguém trabalha nesta casa... nesta, não... na nova... na nova, se Deus quiser...

 

 

J.O. entra de repente.

 

 

J.O.:- Não vai ser preciso que ele queira... Basta eu querer... E eu quero...

 

SARA:- Quer dizer... Oh! que ótimo!... Vem, vem jantar... Guardei um prato no forno pra você, J.O....

 

J.O.:- Obrigado... não podia ter amigos melhores... Já me alimentei...

 

SARA:- Você não gosta de minha comida?

 

J.O.:- Gosto... gosto, sim... mas encontrei restaurante que serve pratos típicos de minha terra e resolvi jantar... Nos próximos dias, poderemos jantar juntos...

 

LUCAS:- Você chegou cedo...

 

J.O.:- É... como vocês dizem, a noite ainda é uma criança... Mas amanhã pretendo aproveitar um pouco do dia, para tratar de negócios... de negócios de interesse de todos...  Vou dormir cedo... Boa noite, meus caros amigos...

 

 

J.O. sobe e desaparece. Um instante de silêncio com ambos olhando embevecidos J.O subir as escadas.

 

 

SARA:- Já não mandei você ir dormir? De manhã vou ter de jogar água fria pra você acordar...

 

LUCAS:- Não enche o saco... Acho que não vou trabalhar amanhã...

 

SARA:- Ah! Vai trabalhar, sim... não vou te agüentar o dia inteiro dentro de casa... Vai nem que seja amarrado...

 

LUCAS:- Olha aqui, Sara... Já estou cheio de suas implicâncias... Qualquer hora eu perco a cabeça!

 

SARA:- E vai me bater como fez com a mãe, vai?

 

LUCAS:- Eu... nunca... você é que...

 

SARA:- Não fala... não fala nada, se não...

 

LUCAS:- Olha: eu não te cubro de porrada porque...

 

SARA:- ...não quer perder a boquinha do nosso hóspede... eu sei...

 

LUCAS:- ... mas um dia ele vai embora...

 

SARA:- ... e nós vamos voltar pra merda? Você endoidou... de vez...

 

LUCAS:- Tá bom... tá bom... eu vou trabalhar... Me acorda... Boa noite!...

 

 

 

Lucas também sobe para dormir. Sara segue-o depois de alguns instantes. Apartamento de Espencer.

 

 

 

ESPENCER:- Como vamos destruir essa criatura?

 

TRACY:- Vamos, não. Eu vou. Nem você nem toda a sua polícia têm o poder para destruí-lo.

 

ESPENCER:- Se você pensa que vou ficar fora dessa, pode ir tirando o seu cavalinho inglês da chuva...

 

TRACY:- O poder dessa criatura cresceu enormemente durante este século, quando matou vários outros de sua espécie... Os meios convencionais não o atingem...

 

ESPENCER:- E daí? Se estacas no coração... nem decapitação... nem bala de prata... o atingem... pode deixar: de alguma forma eu, o detetive mais durão do quadragésimo distrito, acharei um modo de pegar esse desgraçado... sem precisar de gringo nenhum...

 

TRACY:- Há uma lenda... uma lenda não comprovada... só poderia destruí-lo alguém que o amasse muito...

 

ESPENCER:- Como pode alguém que ama destruir a criatura amada?

 

TRACY:- Você não é o tal... o bamba do quadragésimo distrito? Quem sabe você não se apaixona por ele?...

 

ESPENCER:- Gringo filho da puta... tá me estranhando? Eu sou é macho. E vou encontrar esse maldito nem que eu tenha de passar por cima do seu cadáver, ouviu... senhor Tracy? Por cima de seu cadáver!

 

 

Lucas e Sara, com roupas elegantes, em sua nova casa.

 

 

LUCAS:- Não sei se vou me acostumar com essa vida de rico...

 

SARA:- Você é mesmo um imbecil... quem nasce pra lamber embira nunca chega a...

 

LUCAS:- ...a quê? A essa merda de emprego como assessor de deputado?

 

SARA:- Assessor de merda nenhuma, você quer dizer... Assessor fantasma... Olha aqui, meu irmãozinho idiota... se você não gosta dessa vida... o problema é seu...

 

LUCAS:- Eu não disse que não gosto, Sara... tá é difícil de acostumar... e não é nem com o luxo, o conforto, as roupas caras... não me acostumo é com a idéia de você e aquele cara...

 

SARA:- Seu ciúme é doentio, meu irmão Lucas... meu caro irmãozinho... doentio e totalmente inútil... Enquanto “aquele cara” me tratar como a mãe dele... achar que eu sou igualzinho a mãe dele... nada pode haver entre nós... Embora...

 

LUCAS:- ...bem que você gostaria, não é, sua...

 

SARA:- ... Stop! Stop! Não quero brigar com você, agora... estou saindo para uma vernissage... e não quero uma só ruguinha de contrariedade em meu rosto... Good night, my dear... By... by...

 

 

Lucas fica só.

 

 

LUCAS:- Que raio de vida... já nem sei mais quem sou eu... sei quem eu não sou... não sou mais o velho Lucas das farras... do carnaval de rua... tô perdido... tô fudido... tô  perdendo a Sara... pareço um palhaço nessas roupas... não faço nada... e ganho um dinheirão... Antes eu trabalhava como escravo pra ganhar salário mínimo... nesse jogo do J.O. com Sara, eu sou o curinga... o curinga que não cabe no jogo...

 

 

Entra J.O., sem que Lucas perceba. Fica ouvindo por um instante.

 

 

J.O.:- Falando sozinho, seu Lucas?... Arrependido? Deixa de ser idiota... Você tem tudo graças a mim... Eu sou o teu senhor! Vem cá... beija os meus pés... Isso... Agora limpa a boca e beija minha mão... Você era escravo? Ah! Ah! Ah! Você não conhece o inferno... você não conhece o inferno... Sai daqui... me deixa só... preciso pensar... preciso pensar!

 

 

Detetive Espencer e Tracy, com mais alguns capangas.

 

 

TRACY:- Eu lhe disse que você não tinha competência para chegar ao maldito... Quase um ano e nada...

 

ESPENCER:- Consegui uma testemunha... uma, não: duas! Ouviu, seu inglês de merda? Vou arrancar delas toda a história... Você vai ver como trabalha um policial brasileiro... Traga a primeira testemunha!

 

 

Os capangas trazem um homem, meio arrastado.

 

 

ESPENCER:- O que o senhor sabe?

 

TESTEMUNHA:- Nada... eu não sei nada...

 

ESPENCER:- Levem esse cara daqui... já sabem o que fazer!

 

 

Os capangas arrastam o homem para fora, sob porradas.

 

 

ESPENCER:- Tragam a segunda testemunha!

 

 

Os capangas trazem uma mulher.

 

 

ESPENCER:- O que a senhora sabe? Fale.

 

MULHER:- Por favor, não me obrigue... Eu não posso... eu não posso falar...

 

ESPENCER:- Levem essa mulher daqui... Já sabem o que fazer...

 

 

Os capangas levam a mulher, sob porradas. Ouvem-se os gritos das testemunhas sendo torturadas.

 

 

TRACY:- No meu país, nós não torturar testemunhas...

 

ESPENCER:- No meu país, nós torturamos testemunhas...

 

TRACY:- Isso é idiota... não leva a nada...

 

ESPENCER:- E como vocês fazem, heim, sua bicha sabichona?... Dão chá com torradas para as testemunhas?

 

TRACY:- Nós não torturar testemunhas... elas falam no tribunal e nós, ó... Nós torturar a família da testemunha... Se ela tem mãe... ótimo, se tem filhos... mulher, melhor ainda...

 

ESPENCER:- País de primeiro mundo é outra coisa... tudo muito arrumadinho... Isso aqui não funciona... Esses filhos-da-puta aí venderiam a própria mãe... e comeriam os próprios filhos...

 

TRACY:- Você acha que pega maldito com duas testemunhas... Bichona sabichona é você... e metida a besta... Quando for jantar, ele já terá almoçado você...

 

ESPENCER:- Eu só queria saber por que esse desgraçado veio parar aqui... com tanto lugar no mundo pra se alimentar... principalmente em certos lugares que têm mais tradição...

 

TRACY:- Então não vê? Você é burro, mesmo... Nessa terra morre gente a toda hora... vida não ter valor... Além disso, ainda tem caixinha...

 

ESPENCER:- O que você está querendo dizer, heim, seu gringo... que aqui só tem ladrão?

 

TRACY:- Você é quem está dizendo...

 

 

Um dos capangas, com um maço de papel na mão. Entrega para Espencer.

 

 

ESPENCER:- Aqui está tudo o que precisamos para pegar aquele safado...

 

TRACY:- Precisamos estudar a nossa estratégia de ação...

 

ESPENCER:- Estratégia... isso é coisa de boiola... Comigo estratégia é porrada, seu gringo, porrada!

 

 

Consulta os papéis.

 

 

ESPENCER:- Parece que é isso mesmo... O que você acha?

 

TRACY:- Confere com a história do animal... Vamos ficar de campana para confirmar... Eu fico primeiro...

 

ESPENCER:- Não, senhor... quem fica sou eu...

 

TRACY:- O senhor já ter feito muita burrada... todo cuidado agora ser pouco... eu ficar primeiro, e pronto... o senhor obedecer... eu queixar superiores... queixar bispo... queixar puta-que-pariu... ok? Did you understand me?

 

ESPENCER:- Tá bom... tá bom... raio de gringo mais filho da puta... Mas olha aqui: se você me ferrar, eu...

 

TRACY:- O senhor não fazer nada... ficar na sua... que agora quem manda nesta porra de investigação aqui sou eu... it’s me... it’s me! Sheet!

 

 

Tracy sai, com os capangas. Spencer fica só e pensativo. Procura algo entre os papéis e pega o telefone.

 

 

ESPENCER:- Bom dia!... Com quem estou falando, por favor?... Ah! Ótimo: é com o senhor, mesmo... Aqui é o detetive Spencer... sim, ele mesmo... do Distrito... Sim, o senhor é uma pessoa bem informada, pelo que vejo... Gostaria, sim... Não... não é uma intimação, claro... é um convite... Estarei esperando... Por gentileza, queira anotar o endereço..

 

 

Espencer acende um cigarro e aguarda. Toca a campainha. Ele abre a porta e depara com J.O., extático.

 

 

ESPENCER:- Fico-lhe grato por ter vindo, Senhor J.O....

 

J.O.:- O senhor não me convida a entrar?

 

ESPENCER:- Desculpe, senhor... É que aqui no Brasil, somos muito informais... Queira entrar em meu humilde escritório, que é também a minha casa... Por favor...

 

J.O.:- Então, o senhor deseja...

 

ESPENCER:- Não quero ocupar o seu tempo... uma pessoa tão famosa... um grande empresário... afinal, time is money, não é mesmo? Acho que o senhor prefere que eu vá direto ao assunto...

 

J.O.:- Sem dúvida...

 

ESPENCER:- Pois é, senhor J.O.... Vou tentar ser... desculpe o mau jeito... vou tentar ser curto e grosso... Curto nas palavras e consistente no conteúdo... Estamos... isto é, estou... conduzindo uma investigação, o senhor sabe, uma investigação... vamos dizer... extremamente importante e... é, importante e sigilosa... isso mesmo, segredo total... nossa equipe, o senhor sabe, é muito competente... nada nos escapa...

 

J.O.:- O senhor disse que iria direto ao assunto...

 

ESPENCER:- O assunto... isso mesmo... o assunto... pois, é... nós estamos investigando um assunto sigiloso... de segurança nacional, sabe? E seu nome, senhor J.O., surgiu no meio de um cipoal de denúncias... calúnias, claro... mas apareceu o seu nome... sabe como é... às vezes, um inimigo desconhecido...

 

J.O.:- Inimigo?

 

ESPENCER:- ... ou um falso amigo... o senhor sabe... uma pessoa influente como o senhor...

 

J.O.:- Quanto?

 

ESPENCER:- Como?

 

J.O.:- Quanto?

 

ESPENCER:- Ah! sim... quanto...

 

J.O.:- O senhor é surdo ou idiota? Quanto?

 

ESPENCER:- Coisa à toa... um homem de posses...

 

 

J.O. assina um cheque e entrega para Tracy.

 

 

J.O.:- Isto basta?

 

ESPENCER:- Nossa, seu J.O... e como basta... Não esperava...

 

J.O.:- Agora, vamos à sua história... Tenho certeza de que o senhor não esquecerá nenhum detalhe, não é mesmo?

 

 

Casa de J.O. Sara e Lucas. Sara arruma a sala de forma nervosa, espanando, tirando uma coisa de um lugar e colocando em outro.

 

 

LUCAS:- Assim você se arrebenta, Sara...

 

SARA:- Preciso fazer alguma coisa... se não, o que vai arrebentar é o meu peito...

 

LUCAS:- Por favor, minha irmã... nós sempre nos bastamos...

 

SARA:- Agora é tarde, meu irmão... agora é tarde... O coração...

 

LUCAS:- Não fale, eu não agüentaria...

 

SARA:- Só temos uma saída...

 

 

Abre o vestido e mostra-lhe uma pistola, escondida no seio.

 

 

LUCAS:- Não, Sara... por mim... enquanto houver vida... nem pense nisto...

 

SARA:- Se eu me entregar a ele... definitivamente...

 

LUCAS:- Eu morreria também...

 

SARA:- Isso não é vida... Me diz, Lucas... pode alguém continuar vivendo numa prisão dourada e...

 

LUCAS:- Não prossiga... eu também me sinto assim...

 

SARA:- Assim... assim, como, meu irmão? Me diz: o que você sente?

 

LUCAS:- Perdi você... e estou perdendo também a minha dignidade... Não ouso confessar...

 

 

Entra J.O.

 

 

J.O.:- Silêncio... os dois... não quero saber de sentimentalismos... Não têm de que reclamar... Apenas cumpram... a vida que escolheram... E estejam atentos... estarei lá em cima... Sabem o que fazer...

 

 

J.O. sobe. Sara e Lucas correm a limpar uma gota de sangue que pinga de cima, sobre o assoalho. Toca a campainha. Lucas abre a porta. É Tracy, que entra precipitadamente. Assusta-se ao deparar com Sara.

 

 

TRACY:- Por todos os demônios... quem é a senhora? Não... não é possível... Estou ficando louco... não pode ser... (Tenta recompor-se). Preciso manter minha racionalidade. Isso só pode ser uma grande coincidência...

 

LUCAS:- O senhor é...

 

TRACY:- Detetive Tracy... queira avisar ao seu patrão...

 

SARA:- J.O. está repousando...

 

TRACY:- Não me interessa o que ele está fazendo... seus... seus... escravos... Vão já avisar que eu cheguei... se, não...

 

 

Do alto da escada, surge J.O., envolto em sua imensa capa preta.

 

 

J.O.:- Um lorde inglês perdendo a compostura!... Que coisa mais feia, meu irmão... ou devo dizer... detetive Tracy, da Scotland Yard?

 

SARA e LUCAS:- Irmão?

 

J.O.:- Sim, meus caros... apresento-lhes o meu irmãozinho mais velho... Se é possível dizer, depois desses séculos todos, quem é realmente mais velho... Está conservado... elegante como sempre... Travestido de detetive inglês, que Sua Majestade não o veja...

 

TRACY:- Sem ironias, meu irmão, sem ironias...

 

J.O.:- E com um nome metido a besta: Tracy...

 

TRACY:- O que é um nome se não uma contingência do tempo, não é meu irmão?

 

J.O.:-  Mesmo inglês, entra em casa alheia sem convite... Já se esqueceu da etiqueta?

 

TRACY:- Faz cem anos que te procuro... pra te encontrar neste buraco...

 

J.O.:- Deste buraco para o mundo, meu caro...

 

TRACY:- É o que veremos...

 

J.O.:- Velhas cobranças, meu irmão... ou o acerto de contas... final?

 

TRACY:- Minhas buscas nunca são inúteis.

 

J.O.:- Manda a boa educação que tratemos bem as visitas... mesmo as indesejáveis... Meu caro Lucas, sirva ao nosso visitante uma taça de vinho tinto... tinto de... Ou prefere algo mais forte, meu irmão? Além das emoções do reencontro, é claro...

 

 

Todos são servidos. Tracy, durante esse tempo, volta a encarar Sara.

 

 

J.O.:- Notei seu interesse em Sara...

 

TRACY:- Como... como você encontrou...

 

J.O.:- Assustador, não é mesmo?

 

TRACY:- Traz... muitas...

 

J.O.:- Lembranças...

 

TRACY:- Dores... ódios...

 

J.O.:- Temperados ao longo de dois mil anos...

 

TRACY:- Não vou te perdoar, nunca...

 

J.O.:- Seu perdão é pó... é nada... E seu ódio não vale o vinho que você está tomando...

 

TRACY:- Só o sangue pode apagar o seu crime.

 

SARA:- Vocês... vocês são mesmo irmãos?

 

TRACY:- Mande embora daqui os seus escravos... Nossa conversa é particular.

 

J.O.:- Eles não são escravos e não vão sair daqui... principalmente Sara... Somos irmãos, sim, como você e Lucas... e temos também uma história complicada no passado...

 

TRACY:- Complicada? Você continua o mesmo cínico...

 

J.O.:- Veja bem o rosto de Sara... um rosto de dois mil anos... Não é incrível?...

 

TRACY:- Minha mãe...

 

J.O.:- Nossa mãe! Sara, conte... conte para esse imbecil a sua história... Vamos, conte...

 

SARA:- Não! Pelo amor de Deus, não... não posso...

 

LUCAS:- Que história? Você contou pra ele a nossa história...

 

SARA:- Não... não posso... eu não agüentaria...

 

J.O.:- Olha bem para mim... vamos, acalme-se... Isso... Agora fale... Talvez Lucas te odeie por isso... mas não importa...

 

TRACY:- Vamos parar com essa pantomima absurda... Esses... esses... aí não têm nada a ver com nossos ódios...

 

J.O.:- Cale a boca e ouça... Vamos, Sara, fale...

 

SARA:- Que Deus me perdoe... Éramos jovens – eu e o Lucas – e temíamos que nossos sentimentos... nosso amor... pudesse atrair desgraças... Morávamos com nossa mãe num barraco... Um dia, Lucas saiu para beber e reencontrou nosso pai, que vivia há muitos anos distante de nós... Beberam muito aquela noite... e os dois vieram para casa... Papai e Lucas são muito parecidos... Lucas desabou e nosso pai procurou mamãe... os dois discutiram... discutiram feio... Acordei com ele – não sabia se era Lucas ou papai – no meio da noite – no escuro... ele batia em mamãe com um objeto qualquer – gritei, ele fugiu... quando Lucas acordou da bebedeira, eu estava sobre o corpo de mamãe... sem sentidos... com o travesseiro sobre o seu rosto... não sei... não sei o que aconteceu... Só ficou a imagem de Lucas batendo... batendo... batendo... e ele, o Lucas, pensou que eu é que havia matado nossa mãe... Nos acusamos até hoje... nos amamos e nos odiamos até hoje... Eu nunca acreditei nele e ele nunca acreditou em mim... só ficou nosso pacto... de não contar nunca essa história pra ninguém... ficou sendo o nosso castigo...

 

J.O.:- Está bem... se acalme... não chore... Há mais de dois mil anos essa mesma história aconteceu... desse mesmo jeito, envolvendo... você sabe... Você sabe e você guarda até hoje o seu ódio, detetive Tracy, que acha que sabe tudo... Você não sabe nada...

 

TRACY:- Fiquei comovido... muito comovido... com essa palhaçada! Você não me engana, Judas, meu irmão Judas... que alguém um dia deu a alcunha de O Obscuro... Judas, o Obscuro... Tão obscura é a sua vida quanto a sua explicação para o crime... E pensar que um dia... um dia nós nos amamos... que eu te amei... J.O. ... Ah! Ah! Ah! É patética sua tentativa de me comover com alguém que tem o mesmo rosto de nossa... de minha mãe... Você não me engana... nunca enganou... E agora eu vou te destruir para sempre...

 

 

Tracy e J.O iniciam uma luta de poderes, cada um tentando morder o outro ou destruir o outro. Essa luta deve ser meio ridícula. Depois de alguns instantes, com os dois já cansados, Lucas, que havia saído no começo da luta, volta com um pizza de alho e coloca-a entre os dois. Ambos se afastam enojados.

 

 

TRACY:- Tira essa droga daqui... odeio cheiro de alho...

 

J.O.:- Você me paga, seu Lucas... você prometeu... Argh!

 

LUCAS:- Não sei por que esses dois boiolas odeiam tanto alho...

 

TRACY:- Coisa de família...

 

J.O.:- Nossa mãe... obrigava-nos a comer alho...

 

TRACY:- Dizia fazer bem para o sangue...

 

J.O.:- Tira essa droga daqui... Nós não vamos lutar mais... É inútil... essa briga...

 

 

Lucas joga longe a pizza.

 

 

J.O.:- Tenho um presente para você... Para lhe provar que não guardo ódio... Você está em jejum há muito tempo... para me enfrentar... guardando suas forças... Veja...

 

 

A um sinal de J.O., Lucas desce o corpo de Espencer, preso pelos pés, ensangüentado, mas ainda vivo. Tira-lhe a mordaça e ele grita.

 

 

TRACY:- O que esse imbecil está fazendo aí, como um presunto?...

 

J.O.:- Um presunto apetitoso... Tive de lhe dar uns trancos... Mas ainda tem muito sangue... Sirva-se...

 

ESPENCER:- Socorro, detetive Tracy... só você pode me salvar... Me salve, me tire daqui... esse monstro quer me matar...

 

TRACY:- Sangue... um vinho tinto de sangue... Não, não posso...

 

ESPENCER:- Pode, sim... pode...

 

J.O.:- Tanto pode que você já está salivando... Vamos, ele é todo seu... E veja como ele está assustado... o sangue cheio de adrenalina... Um presente de seu irmão... talvez o último...

 

TRACY:- O último... presente... seu, desgraçado... Eu... eu...

 

 

Tracy lança-se sobre o corpo de Espencer, que grita e esperneia. Levanta-se triunfante, ao último suspiro de sua vítima.

 

 

J.O.:- Muito bem, meu irmãozinho... eu sabia que você não resistiria... Satisfeito? Agora enfie sua mão no bolso do... do seu amiguinho... e veja o que tem dentro...

 

 

Tracy tira um cheque. Abre-o, espantado.

 

 

TRACY:- O que é isso? Um cheque... de valor tão alto...

 

J.O.:- Leia o nome do beneficiário...

 

TRACY:- Espencer... detetive Espencer... e essa é a sua assinatura... Eu não entendo...

 

J.O.:- O preço que eu paguei para esse desgraçado te trair, meu irmão... Você se alimentou daquele que te traiu... do sangue de um traidor... Lembra? O sangue de quem nos ama nos fortifica, mas o sangue de quem nos trai nos enfraquece... Toda a sua força acumulada, para me destruir... puf!... virou fumaça... acabou... Você está derrotado, meu irmão... Como você entrou na minha casa sem pedir licença, e mais: sem que eu, o dono da casa, permitisse... posso expulsá-lo... ou destruí-lo... Como somos irmãos, meu caro Tracy, vou apenas expulsá-lo... pois somos os dois últimos de nossa espécie... não podemos destruir um ao outro... Vai... Vai embora daqui e agradeça eu ser a favor da preservação das espécies ameaçadas... agradeça o meu espírito ecológico... Fora! Fora!

 

 

J.O. expulsa o irmão. Lucas leva para fora o corpo de Espencer e Sara coloca a sala em ordem.

 

 

J.O.:- Estou fraco... muito fraco... fogem-me as forças...

 

SARA:- Você precisa se alimentar...

 

J.O.:- O inferno está cada vez mais forte dentro de mim, perco os sentidos aguçados que tinha...meu pensamento voa para coisas proibidas... carne... carne humana.. Não mais me basta o sangue... por mais adrenalina que ele contenha... preciso de carne... carne fresca... O cheiro do corpo morto... estava me enlouquecendo...

 

SARA:- Eu me ofereço...

 

J.O.:- Não, Sara, teu sangue não me alimentaria... você não me teme...

 

SARA:- Mas eu te amo!

 

J.O.:- Ama? De verdade? Apesar do monstro que sou, você me ama? E Lucas?

 

SARA:- Lucas desconfia... mas ele também...

 

J.O.:- Não fale mais... eu preciso de você... Talvez, a salvação no seu... amor... Não aqui... vamos nos encontrar... Lucas está vindo... Vamos nos encontrar longe daqui... Eu... eu te prometo...

 

SARA:- Não prometa o que você não pode cumprir... Vamos nos encontrar, sim...

 

 

Sara e J. O. se encontram. Não percebem que Lucas os seguiu.

 

 

SARA:-  Eu te amo, J. O.  Mata-me, mas eu te amo...

 

J. O. :-  Pensei muito: os meus sentidos estão mudando e não quero mais pagar o preço... Você tem de me esquecer... Eu tenho de te esquecer...

 

SARA:-  Eu pago o preço... já disse... não quero viver, se não posso ter o seu amor...

 

J. O. :-  Teu amor é egoísta... não pensa no tanto que vou sofrer se não te esquecer...

 

SARA:-  Sofrimento? Não vê que sou eu que sofro com seu desprezo? Não vê que a eternidade será breve para tanto amor?

 

J. O. :- Eternidade... o que sabe você da eternidade? Sua eternidade dura quanto? Sessenta anos? Oitenta, se você viver cem anos? O que sabe você do tempo que não passa nunca? Me diz... o que uma mulher de vinte anos pode entender dos mistérios do tempo?

 

SARA:-  Não importa... Se você não me amar, a eternidade durará para mim o minuto seguinte de sua recusa... Eu me matarei... Juro, juro por tudo quanto é mais sagrado: eu me matarei no minuto mesmo que você disser que não me ama... Vamos, diga que não me ama... Diga...

 

J. O. :-  Nunca ninguém me obrigou a dizer o que eu não quero...

 

SARA:-  Obrigo eu, agora: diga que você não me ama...

 

J. O. :- Você só exige que eu negue porque você não entende de solidão... você não entende da  saudade eterna que seres como eu cultivam... Você não entende das metamorfoses de meus sentidos... do mal que corre em minhas veias e aumenta a cada gota de sangue que alimenta meu ser... a tal ponto que o próprio sangue começa a ferver em minhas veias... sempre e sempre... 

 

SARA:-  Eu conheço tudo de você... e seus enigmas não satisfazem minha paixão...

 

J. O. :-  Paixão... paixão é fogo e fogo se apaga... Vai... Deixe-me só... Não posso te amar... Meu amor é maldição...

 

SARA:- Maldição é não ter o seu amor!

 

 

Num gesto de desespero, Sara atira-se aos braços de J. O.  Beijam-se alucinadamente. J.O. desvencilha-se, a custo.

 

 

J. O. :- Não! Não posso trocar tua curta vida pela eternidade de meu sofrimento...

 

SARA:-  Não te entendo...

 

J. O. :-  Não é preciso me entender... apenas me deixe...

 

SARA:- Você me chamou de egoísta... Quer maior egoísmo do que o seu, J. O. ? Expulsar-me assim? Veja: se não posso ser sua, você vai sofrer a minha morte...

 

 

Sara abre o vestido e tira do seio uma pistola. Aponta-a para sua própria cabeça.

 

 

J. O. :-  Não! Não! Mil vezes não!

 

SARA:- Então... você me ama? Vai dizer que me ama?

 

J. O. :-  Eu te amo... eu te amo... E odeio-me por isso... Meu amor, eu me arrependerei de qualquer forma...

 

 

Eles se abraçam. J. O. beija-a, Sara desfalece e larga lentamente a arma. J. O.  dirige seus dentes pontiagudos para o seu pescoço. O grito e o salto de  Lucas na vã tentativa de evitar o beijo não impede o acasalamento, pois o vampiro, fora de si, com um gesto descomunal, joga-o longe. Sara está morta. O vampiro solta sua vítima, senta-se a seu lado e chora .Lucas recobra os sentidos.

 

 

LUCAS:-  Maldito... seu verme filho da puta... você matou minha irmã... Eu vou te matar, seu filho da puta...

 

J. O. :-  Se pudesses... se pudesses matar-me...

 

 

Lucas, desesperado, pega a pistola da irmã e descarrega-a no peito de J. O.

 

 

J. O. :- Valeu a intenção, meu amigo, valeu...

 

LUCAS:- Não me chame de amigo! Minha irmã... você matou minha irmã... você matou a vida de minha vida... vou te odiar para sempre... e vou achar um meio de te matar...

 

J. O. :- Teu sofrimento, meu amigo, durará o tempo de sua vida... E qual é o tempo da minha vida?

 

LUCAS:- O tempo de sua vida... o tempo de sua vida... será o tempo que eu vou levar para te matar...

 

J. O. :-  Com o quê pretendes matar-me? Diga... com o quê?

 

LUCAS:- Bala de prata...  bala de prata mata vampiros...

 

J. O. :-  Veja... veja quantas balas de prata eu colecionei... (tira do bolso um punhado de balas e joga-as para Lucas). Todas elas foram tiradas por mim mesmo de meu coração... se é que ainda tenho coração...

 

LUCAS:-  Coração... coração... estacas no coração!

 

J. O. :- Eu mesmo já me atirei contra estacas... e nada... A pior morte é viver para sempre e esta é a minha condenação...

 

LUCAS:-  Vírus da AIDS... é isso! Injetarei em teu sangue uma dose bem grande de sangue contaminado...

 

J. O. :-  Já o fiz... e várias vezes... E nada... o vírus desapareceu por encanto de meu organismo...  Inútil, meu querido amigo...

 

LUCAS:- Não me chame de amigo...

 

J. O. :-  Você tem sido o único amigo, nesses últimos duzentos anos... de solidão... Eu sabia que  não podia amar sua irmã... mas foi mais forte o instinto... de preservação... Só ela podia me salvar... de males maiores...  E ela me salvou!... com sua vida!... e  quem vai sofrer? Eu! Ouviu? Sou eu quem vai continuar vivendo... por séculos e séculos... pensando nela... pensando nela... e pensando em mil outras que eu amei... e lembrando de cada uma... de cada ser que me foi querido... faz mais de dois mil e duzentos anos... e eu ainda lembro de minha irmã... de minha mãe... Você sabe o que é ter dois mil anos de saudade da mãe? Sabe? Você, Lucas, sofre pela sua mãe há cinco... Cinco anos! O que são cinco anos diante de dois mil... dois mil e duzentos... sei lá!.. E sofro mais: por dezenas, centenas de pessoas que eu amei... a quem eu quis... amigos... em todas as épocas... E as mulheres que eu amei!? Cada gozo de amor, um cadáver! Sou um imenso cemitério de tesões e de amores... E agora, Sara...  Sou um monstro, sim... um monstro... de dor, de sofrimento... que não pode morrer... que não pode morrer nunca... A eternidade é a minha maldição... Quantas Saras ainda? A minha loucura é tanta que, se Deus existisse, somente ele poderia me analisar... Entendeu, agora, seu estúpido, entendeu por que, mesmo que eu quisesse, eu nunca poderia te dar a eternidade? Adeus. Volto a ser aquilo que sempre fui: o Obscuro. Judas, o Obscuro.

 

 

 J. O.  ergue-se lentamente, cobre-se com sua capa negra  e afasta-se.. Um efeito de luz projeta sua sombra imensa. O vampiro desaparece. Lucas ergue o cadáver da irmã, enquanto um bloco carnavalesco passa e envolve-o. A voz de Lucas, desesperada, sobrepõe-se à musica alegre.

 

 

LUCAS:- J. O. ! Espere! Espere, J. O. ... não me deixe só... mesmo que me mate, eu quero ser sua próxima vítima!... Eu quero ser sua próxima vítima!...

 

 

FIM

 

 

ISAIAS EDSON SIDNEY

São Paulo, 1 de junho de 1999

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