Comédia em um ato
João Andreazze e Isaias Edson Sidney
2001
SBAT – 1612
(11. abril.2001)
FBN –
230.138 – LIVRO 405; FOLHA 298
PERSONAGENS
*ROMEU
MONTECCHIO: 28 anos mais ou menos.
*JULIETA CAPULETO: 26 anos mais ou menos.
RESUMO
Citações de Shakespeare
Shakespeare, William, 1564-1616. Tragédias (Romeu e Julieta; Macbeth; Hamlet, Príncipe da Dinamarca;
Otelo, o Mouro de Veneza). Traduções de F. Carlos de
Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes; sinopses, dados históricos e notas de F.
Carlos de Almeida Cunha Medeiros. – São Paulo: Abril Cultural, 1981.
AUTORES
JOÃO ANDREAZZE – TEL. 5571-2762 (São Paulo)
Blackout.
JULIETA:- Ai, Romeu! Não é
aí... Parece que esqueceu...
ROMEU:- Eu sempre pus aí e você nunca reclamou...
JULIETA:- Idiota! Você nunca
pôs aí...
ROMEU:- Idiota é você que
nunca percebeu que eu sempre pus exatamente aí...
JULIETA:- Você não me chama
de idiota...
ROMEU:- Só você pode me
chamar de idiota, não é mesmo?
JULIETA:- Ai! Me
machucou!...
ROMEU:- Desculpe, vou
tentar de novo...
JULIETA:- Tem que ser
devagar... você é muito desajeitado, Romeu...
ROMEU:- É você que não
colabora... Levanta um pouco... isso...
JULIETA:- Ai! Você está me
machucando de novo...
ROMEU:- Assim, também não
dá... você reclama à toa...
JULIETA:- Eu reclamo à toa?
Então vamos inverter, eu ponho e você levanta...
ROMEU:- Essa eu quero
ver... (Pausa. Ruídos). Ai! Me
machucou...
JULIETA:- Não te falei
que...
ROMEU:- Você também é
muito desajeitada... Vamos voltar à posição de antes...
JULIETA:- Só tem um jeito...
ROMEU:- Qual...
JULIETA:- É você deixar de
ser sovina e acender a luz...
ROMEU:- Eu não gosto de
luz acesa!
JULIETA:- Você não gosta é
de gastar o azeite da luz... Vou acender!
ROMEU:- NÃO! Por favor,
não... a gente vai ficar duro de novo...
JULIETA:- Duro, de novo?
Deixa de bobagem: a coisa já está dura há dez anos! Desde que a gente fez
aquela besteira...
ROMEU:- É... mas agora está pior...
JULIETA:- Pior??? O que pode
ser pior do que isso?
Julieta acende a luz e vê-se a seguinte cena: Romeu em
cima de uma cadeira meio quebrada, equilibrando-se com a ajuda de Julieta, que
segura uma de suas pernas, tentando colocar uma mala velha sobre um
guarda-roupa velho. Todo o cômodo e os móveis (de sala, quarto, cozinha, tudo
misturado) têm ar de ruína e abandono.
ROMEU:- Essa nossa
mala... ela contém tudo o que foi um dia
o nosso amor...
JULIETA:- E agora não cabe
mais aí... onde sempre a guardamos...
Oh! Romeu! Se eu soubesse... se eu pudesse ter sabido...
ROMEU:- Se você soubesse o
quê? Vamos, me dá mais um
empurrãozinho... Pronto... Coube! Puxa! Não agüento mais...
JULIETA:- Não agüenta mais,
o quê, hem? O quê?
ROMEU:- Suas
reclamações... sua cara feia, toda manhã...
JULIETA:- E eu não agüento
mais, sabe o quê, Romeu? Sabe? Senhor Romeu! Os seus peidos à noite... suas
bebedeiras à tarde... sua barba de manhã!
ROMEU:- Puxa, Juli...
JULIETA:- E não me chame de
Juli... meu nome é JULIETA, ouviu? JULIETA!
ROMEU:- Mas não tem nada em
mim que você goste?...
JULIETA:- Tem, tem, sim...
ROMEU:- Ah! bom... o que
é?
JULIETA:- Sua distância...
gosto de você bem longe... ouviu? Bem longe! Agora vai, que eu tenho muito que
fazer...
ROMEU:- Ir pra onde,
benzinho?
JULIETA:- Ir pra onde... ir
pra onde... é, mesmo: além de tudo, não tem pra onde ir... não trabalha...
Quando é que você vai arrumar um emprego, hem? Até quando eu vou sustentar
sozinha esta casa?
ROMEU:- Você chama a isto
de... casa?
JULIETA:- Oh! Deus meu! Sair
do palácio de meu pai, para viver nesse... nesse...
ROMEU:- Galinheiro!
JULIETA:- Não ofende!
Galinheiro, não! Pode estar assim... meio... que... desarrumado... mas é a
minha casa, ouviu? Minha... Agora, chispa daqui... vai ver se arruma um
emprego... Ouvi dizer que o ferreiro da esquina está precisando de ferrador de
mulas...
ROMEU:- E você acha que
eu, um Montecchio, vou saber ferrar mula?
JULIETA:- Pois devia
saber... que mula você já é...
ROMEU:- Ofensa, não,
Juli... ofensa, não...
JULIETA:- Não me chame de
Juli... Um Montecchio não pode ferrar mula, mas uma Capuleto, que tem sangue
muito mais nobre, pode lavar, passar, cozinhar, arrumar a casa... e ainda
faturar algum por fora... para manter esse... esse...
ROMEU:- Galinheiro! Ai!
Não precisa me bater... Está bem: você diz que lava, passa, cozinha, cuida da
casa... Faz anos que eu não visto uma camisa branca: estão todas encardidas,
amarelentas... fedidas; uma boa perna de carneiro, daquelas que minha mãe
fazia, regada a um bom vinho... isso pra mim, agora, é miragem: meu estômago
até ronca de pensar numa coisa dessas; quanto a cuidar da casa, nem preciso
dizer, é só olhar ao redor... mas o faturar por fora, a senhora Capuleto faz
isso muito bem, bem demais, para o meu gosto... eu só queria saber...
JULIETA:- Mais respeito aí,
senhor Romeu Montecchio... nem sabão direito eu tenho para lavar suas roupas...
sabe por quê? Porque não tem dinheiro... Nem para a brasa do ferro de passar...
que não esquenta direito... Sabe por quê, seu Montecchio? Porque não tem
dinheiro... Quanto à perna de cordeiro...
ROMEU:- Carneiro! Eu odeio
cordeiro!
JULIETA:- Quanto à perna de
carneiro, nem daqui a mil anos nós vamos ter... Sabe por quê, senhor Romeu
Montecchio? Sabe? Porque não temos dinheiro nem nunca teremos... Porque você é
um vagabundo, nunca parou em emprego nenhum, não sabe fazer nada... e por isso
não traz um tostão furado para casa!
ROMEU:- Ah! Emprego! Foi
bom você falar...
JULIETA:- Você arrumou
emprego... vai ferrar mulas...
ROMEU:- Isola! Vê se eu
tenho cara...
JULIETA:- Não tem cara de
ferrador, mas de ferrado... duro... fodido...
ROMEU:- Escuta, eu fiquei
sabendo de uma coisa... que você nem imagina... Sabe, a nossa história...
JULIETA:- Que história?
Quando você começa a falar desse jeito, sempre vem encrenca...
ROMEU:- A história do
nosso romance... como a gente se conheceu lá em Verona... a briga entre nossas
famílias... aquele imbróglio todo...
JULIETA:- Que acabou numa
grande besteira...
ROMEU:- É... que acabou
numa grande besteira... Mas, diacho! Escuta: a história... a nossa história...
tem um inglês, lá na Inglaterra...
JULIETA:- Não podia ser um
inglês lá na França?
ROMEU:- Não goza... é
sério... o que eu vou te dizer... Esse inglês... ele é dramaturgo...
JULIETA:- Que diabo é isso?
ROMEU:- Gente que escreve
peça de teatro... igual àqueles caras malucos que vimos outro dia na praça...
fazendo palhaçada...
JULIETA:- Um palhaço,
então...
ROMEU:- Não!... Isto é,
mais ou menos... um palhaço... mas sério...
JULIETA:- Então é um palhaço
chato...
ROMEU:- Sei, lá... um
escritor, isso... e ele é ator também...
JULIETA:- Então é um
palhaço...
ROMEU:- Bem, sei lá... só
sei que esse cara escreveu uma peça contando nossa história...
JULIETA:- Contando...
nossa... história... essa merda em que a gente vive?...
ROMEU:- Não. A história de
como nos conhecemos... há dez anos... ou mais, sei lá...
JULIETA:- E daí...
ROMEU:- E daí... dizem que
fez um grande sucesso... a peça... Se fez um grande sucesso, deu dinheiro... se
deu dinheiro, ele está rico... se ele está rico, uma parte dessa riqueza é
nossa...
JULIETA:- Nossa? Por quê?
ROMEU:- Entenda... Juli...
JULIETA:- Não me chame de
Juli...
ROMEU:- ... se ele
escreveu sobre nós, se ele contou a nossa história... nós temos direito
também... afinal, nós é que fizemos que ele ficasse rico...
JULIETA:- É... tem
sentido... Mas você tem certeza de que ele contou a nossa história na peça?
ROMEU:- Te... tenho...
Quer ver? Me deram uma cópia... eu deixei em algum lugar... (Procura
desesperadamente). Que droga... essa bagunça... a gente não acha nada...
Ah! Está aqui! Veja: ROMEU E JULIETA... de... de... Wil...li...am... como é que
se lê isso?
JULIETA:- Sha... kes...
pe-a-re.... (lendo como se escreve). Shakespeare....
ROMEU:- Não foi assim que
eu ouvi... Foi... deixe-me lembrar... Ah, sim : Shakespeare! (Pronunciando
corretamente).
JULIETA:- E o que esse tal
de Shakespeare escreveu sobre a gente?...
ROMEU:- Vamos ver... vamos
ver... Nossa! Que coisa esquisita... Eu não falo assim: “Oh! Ódio amoroso! Oh!
Todas as coisas primeiramente criadas do nada! Oh! Pesada ligeireza! Séria
vaidade! Informe caos de sedutoras formas! Plumas de chumbo, fumaça luminosa,
flama gelada...”
JULIETA:- Flama gelada? Que
merda é essa?
ROMEU:- Sei, lá... ouça:
“sono em perpétua vigília, que não é o que é!” Que não é o que é? Que droga
será isso?
Enquanto vão lendo trechos, riem muito.
JULIETA:- E eu... e eu...
não tem fala minha aí?
ROMEU:- Tem, tem, sim, tem
muitas...
JULIETA:- Tem nada, tem
poucas... Ah! Aqui está uma...”Bondoso peregrino, injusto até o excesso sois
com vossa mão, que mostrou devoção cortês...” Bondoso peregrino, quem é?
ROMEU:- Sou eu, é claro...
JULIETA:- Você? Ouça mais:
“... e enlaçar palma com palma é o ósculo dos piedosos portadores de palmas...”
que raio é isso? Não entendo...
ROMEU:- De acordo com a
peça, eu estou fantasiado de peregrino e conduzindo algumas palmas...
JULIETA:- Mas que eu me
lembre... você nunca se fantasiou de peregrino... De malandro, sim... pra me
conquistar...
ROMEU:- E acabei
conquistando... E agora vejo que não foi tão difícil assim... Mas leia mais...
veja: aqui tem uma cena muito engraçada... Diz que é uma das cenas mais
emocionantes... o público até chora... é a cena no balcão...
JULIETA:- No balcão... que
balcão? Não me lembro de balcão nenhum... Só se era o balcão da estalagem do...
ROMEU:- Não! É no jardim
dos Capuleto...
JULIETA:- Mentira!
ROMEU:- É verdade!
JULIETA:- Não me lembro de
balcão nenhum no palácio de meu pai...
ROMEU:- Mas a cena se
passa num balcão...
JULIETA:- Balcão...
balcão... será que... deve ser a sacada do quarto de meus pais...
ROMEU:- Não importa: vamos
representar... Parece que eu estou num balcão... ou nesta sacada... sei, lá...
Procura alguma coisa que possa servir de balcão e topa
com o guarda-roupa.
ROMEU:- O guarda-roupa...
(Trepa no
guarda-roupa e começa a declamar de forma exagerada e caricata).
ROMEU:- “Que luz brilha
através daquela janela! É o Oriente e Julieta é o Sol! Surge, claro sol, e mata
a invejosa lua, já doente e pálida de desgosto...” Tem alguma coisa errada aqui...
Deixe-me ver... Ah! Já sei: é você,
Juli, que está na janela... no balcão... Vamos, troquemos de lugar...
JULIETA:- Não me chame de
Juli...
Eles trocam de lugar. Julieta trepa no guarda-roupa e
Romeu fica embaixo.
ROMEU:- “O fulgor de suas
faces envergonharia aquelas estrelas, como a luz do dia a de uma lâmpada!”
Fulgor de suas faces... só se for de vergonha pelo que você anda fazendo...
Julieta atira-lhe algo, com raiva.
ROMEU:- “Seus olhos
lançariam da abóbada celeste raios tão claros através da região etérea que
cantariam as aves acreditando chegada a aurora!...” Chispas de ódio e de
safadeza, isso sim...
Julieta atira-lhe outro objeto, do qual ele se desvia.
ROMEU:- “Olhai como apóia
o rosto na mão! Oh! Fosse eu uma luva sobre aquela mão para que pudesse tocar
naquele rosto.” Mãos que fingem lavar e
passar e cozinhar... mas que só sabem, mesmo, é fazer sacanagem...
Julieta atira-lhe a mala, que se abre e de onde caem dois bonecos muito feios
vestidos de Romeu e Julieta quando jovens.
JULIETA:- “Meus ouvidos não
beberam cem palavras ainda dessa língua, mas eu reconheço o som: não és Romeu? Não és um Montecchio?” Sim, um
Montecchio de língua atrevida e ferina... que só abre a boca para promessas
inúteis... língua de falso... de bêbado... de vagabundo...
ROMEU:- “Nem um nem outro,
formosa donzela, se os dois te desagradam.”
JULIETA:- Os dois me
desagradam? Mas que infame! Tudo em você me desagrada, Romeu...
ROMEU:- “É melhor que
termine minha vida, vítima do ódio... do que esperando teu amor, minha morte
retardada.”
JULIETA:- Morte retardada é
a vida que você me dá... Preguiçoso... “Gentil Romeu!” Pois, sim... tão gentil
quanto mentiroso...
ROMEU:- “Senhora, juro por
essa lua que coroa de prata as copas destas árvores frutíferas...”
JULIETA:- Ah! O tal do
Shakespeare agora acertou: tu juraste pela lua, pela inconstância da lua, que
muda todos os meses... por isso teu amor é tão variável... tão inútil... depois
desses anos todos...
Julieta desce do armário, meio chorosa.
JULIETA:- “Jura pela tua
graciosa pessoa que é o deus de minha idolatria e acreditar-te-ei!” Não, ainda
é ele que está colocando essas palavras na minha boca... eu te odeio, Romeu...
eu te odeio...
ROMEU (ainda
representado):- “Oh! Queres deixar-me assim tão
insatisfeito?”
JULIETA:- “Quanto mais te
dou, mais tenho...” Não, não, mil vezes, não, Romeu... Foi um erro tudo...
Romeu abandona a pose de ator e tenta consolar Julieta.
ROMEU:- Não chore, sua
boba... não chore... São palavras de um poeta... Você sabe que nós passamos o
diabo para ficar juntos... Só não
falamos desse jeito... (Imitando um sotaque britânico). “Quisera ser teu
pássaro!”
JULIETA (enxugando as
lágrimas e forçando um sorriso):- Deve ser por que ele é inglês... e nós somos de Verona... Romeu, meu
Romeu... eu ainda... vamos voltar para Verona, procurar nossos parentes...
dizer-lhes que estamos vivos... que foi tudo uma grande palhaçada...
ROMEU:- Você está louca?
Tudo, menos isso... eles nos matam, agora de verdade...
JULIETA:- Você se lembra de
como enganamos todos eles? Você se lembra, Romeu?
ROMEU:- Acho... acho...
acho que sim...
JULIETA:- O vinho está
afetando sua memória... não é possível que você não se lembre... só pode ser o
vinho... e a velhice... você está ficando velho, Romeu...
ROMEU:- Eu tenho só vinte
e oito anos, ouviu?
JULIETA:- Venha: vamos
refrescar sua memória, “meu velho”...
Armam a cena da morte de Romeu e Julieta.
JULIETA:- Primeiro, foi o
frade, como era mesmo o nome dele? Ah!... Uh!... frei... frei... frei Lourenço.
(Imita o frei, usando as palavras de Shakespeare). “Escuta, então. Volta para casa, mostra-te
alegre e dá o teu consentimento em casar com Páris...”
ROMEU:- Páris, aquele filho
da puta... eu devia tê-lo matado...
JULIETA:- E eu devia ter-me
casado com ele...
ROMEU:- Pensando bem,
devia mesmo...
JULIETA:- Você é um canalha,
Romeu... Continuando: “Amanhã é quarta-feira; procura ficar só à noite, em teu
quarto, não deixando que a ama durma contigo...”
ROMEU:- Ah! aquela ama
idiota... quantas vezes eu a enganei para dormir com você...
JULIETA:- Romeu! Isso é
coisa que se diga...
ROMEU:- E não foi assim
mesmo?
JULIETA:- Foi... mas vão
pensar que eu sou... que eu era...
ROMEU:- Quem vai pensar?
Estamos sozinhos aqui... Vai, continua, estou começando a me lembrar da
encrenca...
JULIETA:- “Quando estiveres
na cama, toma esse frasco e bebe até a última gota deste licor destilado...”
ROMEU:- Hmm... até que era
gostoso aquele licor...
JULIETA:- Disso você se
lembra, não é? “Imediatamente correrá por tuas veias um humor frio e letárgico,
porque nenhuma pulsação continuará seu curso, tudo parará.”
ROMEU:- Agora me lembro...
agora me lembro...
De forma bem rápida, como em filmes mudos, Julieta toma de um frasco, bebe de seu
conteúdo, deita-se fingindo de morta. Romeu chega e, com gestos exagerados, toma-lhe o pulso etc., e constata que ela morreu. Desespera-se,
caricatamente. Toma, também, do mesmo frasco e bebe. Então, em câmara lenta,
vai morrendo e cai sobre o “cadáver” de Julieta, que lhe dá um empurrão.
Desmancha-se a cena.
ROMEU:- E então, depois
daquela choradeira toda no velório, antes do enterro, o frei Lourenço exigiu
ficar sozinho com nossos corpos, ele nos acordou com um antídoto, colocou esses
horríveis bonecos no caixão...
JULIETA:- Que depois nós
roubamos, no cemitério, como lembrança...
ROMEU:- Não sei como
nossas famílias acreditaram que isso éramos nós...
JULIETA:- Será que eles
ainda estão se matando, como no nosso tempo?...
ROMEU:- Bons tempos
aqueles... em que surrar um Capuleto até a morte era uma diversão e tanto...
JULIETA:- ... em que botar
fogo num Montecchio e vê-lo pular em chamas no lago nos fazia rir até perder o
fôlego...
ROMEU:- Eu tinha como
amuleto o olho de um Capuleto... onde será que eu o guardei?
JULIETA:- Uma vez meu primo
me deu de presente um colar de dentes arrancados de vários Montecchios... era
tão bonito!
ROMEU:- Uma vez, eu furei
a barriga de um Capuleto e deixei os cães comerem-lhe as tripas enquanto ele
morria... e eu morria de rir...
JULIETA:- Escuta, Romeu, foi
assim que o seu amigo inglês... o tal de Shakespeare...
ROMEU:- Ele não é meu
amigo! Ele contou um monte de mentiras sobre nós e ficou rico com isso... É só
isso que interessa... Eu vou na captura desse cara...
JULIETA:- Vai, vai, mesmo...
e dê-lhe uma boa surra antes de lhe arrancar a grana... Passa em Verona e leva uns Capuletos com
você... para te dar coragem...
ROMEU:- Prefiro morrer a
andar com tal raça...
JULIETA:- Andar com tal
raça, você não pode... mas dormir com ela,
você pode...
ROMEU:- Juli... Juli...
JULIETA:- Não me chame de
Juli!
ROMEU:- Você é
diferente... você é... você é mulher, porra!
JULIETA:- Não é só você que
diz isso...
ROMEU:- O que você está
querendo dizer com isso, hem?... Se pensa que vou levar chifre calado, pode ir
tirando o seu cavalinho da chuva, que eu lhe dou umas porradas...
JULIETA:- Experimente...
vamos... experimente me dar um tapa, sequer... que você vai ver o que é o
sangue de uma Capuleto...
ROMEU:- Sangue de Capuleto
eu sei que é, já vi muito... aqui, na minha mão... sua, sua...
JULIETA:- Olha o que você
vai dizer...
ROMEU:- Um Montecchio é
incapaz de ofender uma mulher, mesmo que essa mulher seja... seja...
JULIETA:- Olha!...
ROMEU:- ... indigna de seu
amor... uma Julieta qualquer...
JULIETA:- Sangue de
barata... como todo Montecchio!
ROMEU:- Não me provoque...
JULIETA:- Covarde...
bêbado...
ROMEU:- Não me provoque!!!
JULIETA:- Você é um
grande... um grande ganso...
ROMEU:- Isso, não!
JULIETA:- E sabe o que mais,
sabe? Teu pau nunca tocou o meio-dia... assim, ó... (Faz um gesto obsceno
com o dedo indicador para cima). Você é um broxa, Romeu...
Romeu dá um tapa em Julieta, que cai estatelada. Senta-se
com os olhos arregalados, como a não acreditar no que aconteceu.
JULIETA:- Isso... isso...
nunca... nunca...
Levanta-se e corre para o fogão, enfiando a cabeça no
forno e gritando.
JULIETA:- Eu vou me matar...
eu vou me matar...
Romeu corre a tirá-la de dentro do forno.
ROMEU:- Desculpe...
desculpe... eu não queria... Perdão, amor...
JULIETA:- Perdão?!!! Você
vem me pedir perdão?...
ROMEU:- Perdão... eu lhe
imploro... de joelhos... Eu prometo nunca mais...
JULIETA:- Não... seu
idiota... bate mais... bate mais... é de um homem assim que eu gosto... bate...
bate! Ai, que tesão...
Blackout. Ao se acenderem as luzes, Romeu e Julieta estão
decompostos e abraçados um ao outro, como se tivessem acabado de fazer amor.
JULIETA:- Romi... Romi...
Acorde, Romi...
ROMEU:- Não me chame de
Romi... que isso é nome de bicha...
JULIETA:- Ai, Romi, foi tão
bom... foi a melhor desses dez anos todos...
ROMEU:- Melhor do que
aquele dia em que enfiamos a cama da ama embaixo da sua, com ela amarrada em
cima? E a coitada passou a noite inteira gemendo lá embaixo?
JULIETA:- Ela gemia era de
prazer, seu bobo... de nos ouvir gemer e imaginar o que estávamos fazendo...
ROMEU:- E o que nós
fizemos aquela noite, hem... hem.... Juli...
JULIETA:- Não me chame de
Juli.
ROMEU:- Eu fiquei todo
esfolado...
JULIETA:- Seu porco...
Escuta, Romi...
ROMEU:- Não me chame de
Romi... eu não sou bicha...
JULIETA:- ... você vai mesmo
atrás do tal do Shakespeare?...
ROMEU:- Claro! Temos
direitos... ainda existe lei neste país...
JULIETA:- Mas ele está na
Inglaterra...
ROMEU:- Bom, eu traduzo a
lei italiana para o inglês ver o que a Itália tem...
JULIETA:- E quanto você acha
que consegue arrancar do inglês?
ROMEU:- Sei, não... mas
que vou exigir uma boa grana, isso vou... Depois a gente divide: eu te dou dez
por cento de tudo que eu ganhar...
JULIETA:- Repete... eu não
ouvi direito...
ROMEU:- Eu te dou...
JULIETA:- Dez por cento você
dá para sua mãe... se ela ainda estiver viva!
ROMEU:- Não bota a mãe no
meio...
JULIETA:- Boto! Boto, sim...
a mãe... a avó... a bisavó... e todas as Montecchios que não tinham lá grande
fama...
ROMEU:- Se é pra botar
família no meio, eu vou contar tudo o que sei... vou botar a boca no
trombone...
JULIETA:- Você não sabe é
nada... e eu quero saber, agora, é da grana...
ROMEU:- Grana? Que grana?
JULIETA:- Da grana do
inglês, seu merda!
ROMEU:- Só porque eu falei
das Capuletos, você quer mudar de assunto... Olha, um dia eu vi sua prima e sua
mãe saindo, de forma muito suspeita, da casa dos...
JULIETA:- Arrá! Então é
isso: você vivia espionando minha mãe... era de mim ou dela que você
gostava?... Vai ver que é tarado numa coroa...
ROMEU:- Até que a coroa da
sua mãe não era de se jogar fora...
JULIETA:- Que absurdo, meu
Deus! Você, então, acha que minha prima era uma alcoviteira e minha mãe, uma...
uma...
ROMEU:- ... uma
prostituta...
JULIETA:- Você está me
chamando de...
ROMEU:- Não disse nada...
você é que está falando...
JULIETA:- O jogo da verdade,
não é? Pois olhe aqui, nos meus olhos, e me diga se é mentira o que andavam
falando lá em Verona de seu amado pai...
ROMEU:- Meu pai?... O
máximo que você pode falar dele é que era um garanhão!
JULIETA:- Ah! Ah! Ah! Um garanhão... um garanhão... com todos aqueles efebos com quem ele
andava...
ROMEU:- Efebo?!!! Que
bosta é essa?
JULIETA:- Efebo, meu caro
Romi...
ROMEU:- Não me chame de
Romi...
JULIETA:- Efebo: jovens
atletas e musculosos... sarados, mesmo... que compunham a guarda especial do
seu “amado pai garanhão”... (Faz um gesto de desmunhecar). Isso explica
muita coisa do que houve entre nós...
ROMEU:- É por essas e
outras injúrias, infâmias e mentiras que eu vou te dar só cinco por cento do
que arrancar do inglês...
JULIETA:- Metade... eu quero
metade...
ROMEU:- Nem fodendo...
Num gesto rápido, Julieta pega uma grande faca com uma
mão e com outra o membro de Romeu, por sobre as calças, e ameaça cortá-lo.
JULIETA:- Pois é isso o que
vai acontecer... você nunca mais vai fazer o que fizemos há pouco...
ROMEU:- Ai! Não! Pelo amor
de Deus, não!
JULIETA:- Metade!
ROMEU:- Vinte! Eu te dou
vinte por cento!
JULIETA:- Aceito os vinte
por cento... mas vou cortar vinte por cento do seu pau! Topas?
ROMEU:- Ai, não! Com
oitenta por cento de pau, eu não faço nada...
JULIETA:- Nem eu com vinte
por cento...
ROMEU:- Tá bom... trinta!
Eu te dou trinta!
JULIETA:- Hmm... será que o
cachorrinho da vizinha vai ficar satisfeito em comer só trinta por cento do seu
pau?
ROMEU:- O quê?!!! Você
pretende dar trinta por cento de meu pau para aquele cachorro sarnento?! Ah!
Não! Isso é demais, meu Deus! Quarenta! Eu te dou quarenta por cento da grana
do inglês e não se fala mais nisso...
JULIETA:- Metade ou...
ROMEU:- Já sei, vai dar
quarenta por cento do meu pau pro cão sarnento da vizinha...
JULIETA:- Não...
ROMEU:- Não???
JULIETA:- Não... vou
cortá-lo inteiro e enfiá-lo em sua garganta até você morrer engasgado com o
próprio pau, como um cordeirinho!
ROMEU:- Isso, não! Isso,
não! Pelo amor de Deus, eu morro de nojo de pau... E odeio cordeiros... Ai,
Juli... por que você está fazendo isso comigo? Eu não sou cordeiro... eu odeio
cordeiros...
JULIETA:- Você tem sido um
cavalo, esses anos todos, Romeu...
ROMEU:- Todos?
JULIETA:- É... todos, não:
acho que é exagero meu... No começo até que foi bom...
ROMEU:- Bom??? Foi
ótimo...
JULIETA:- Menos, Romeu, menos...
Ruim não foi... Mas depois, a fome, a sua preguiça, os seus maus hábitos... não
há amor que resista a isto, Romeu: é só
olhar a seu redor...
ROMEU:- Nosso
galinheiro... desculpe... mas até que não é tão ruim assim... É só tirar umas
poeirinhas... matar umas baratas... caçar uns ratos... e fica tudo como novo...
JULIETA:- Eu quero uma vida
decente, Romeu... Compras!...
ROMEU:- Jogar dinheiro
pela janela...
JULIETA:- Bailes!...
ROMEU:- Todo mundo te
paquerando...
JULIETA:- Banquetes!...
ROMEU:- Ficar gorda como
uma porca...
JULIETA:- Você é mesquinho,
Romeu...O único dinheiro que você pensa em ganhar é uma possível herança de
meus pais...
ROMEU:- Meus pais também
são ricos...
JULIETA:- Já te deserdaram
há muito tempo... Os Montechios são muito rancorosos, você sabe...
ROMEU:- Os Capuletos
também...
JULIETA:- Mas ainda não me
deserdaram... que eu saiba...
ROMEU:- Que papo mais
idiota esse... como a gente pode pensar em herança de nossos pais, se eles
pensam que nós morremos... Pra toda Verona, Romeu e Julieta estão mortos e
enterrados... Só podemos pensar em herança, se voltarmos pra
lá e aparecermos de repente: “Oi, gente, aqui estamos... não morremos...”
JULIETA:- E fazer todo mundo
sair correndo de susto... Meu caro Romeu, ninguém deve se lembrar mais de
nós... Só o teu “amigo” inglês...
ROMEU:- Ainda temos
esperança, Julieta... Escuta, vamos parar com essa encrenca... eu vou atrás do
tal do Shakespeare... e te dou a metade... isso, a metade de tudo que eu
conseguir do inglês...
JULIETA:- Metade? Quem disse
que eu quero a metade? Eu quero mais... ouviu, muito mais... por tudo quanto
você me fez passar nesses anos todos... Se não, eu vou cortar o seu saco e vou
cortar o saco do Shakespeare também... para ele não ficar inventando mentiras a
nosso respeito... TE CUIDA, INGLÊS... SE
NÃO FOR ROMEU, SERÁ JULIETA QUEM VAI ACERTAR AS CONTAS COM VOCÊ!
FIM
07/01/2001

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