sexta-feira, 14 de maio de 2021

SE FOSSE ROMEU, NÃO SERIA JULIETA.

 

(Salvador Dalí - Romeo and Juliet)



Comédia em um ato

 (inspirada nos personagens de Shakespeare)

  

João Andreazze e Isaias Edson Sidney

 

2001


SBAT – 1612 (11. abril.2001)

FBN – 230.138 – LIVRO 405; FOLHA 298

PERSONAGENS

 

 

*ROMEU MONTECCHIO: 28 anos mais ou menos.

 

*JULIETA CAPULETO: 26 anos mais ou menos.

 

RESUMO

 

 Uma fantasia sobre as personagens de Shakespeare: Romeu e Julieta não morreram e vivem escondidos, anônimos, dez anos depois, em alguma cidade longínqua da Itália. Pobres e, por isso, com um relacionamento difícil, descobrem que o “bardo inglês” teria ficado rico com a peça sobre suas vidas e decidem procurá-lo, para ver se obtêm algum dinheiro.


 

Citações de Shakespeare

 

Shakespeare, William, 1564-1616. Tragédias (Romeu e Julieta; Macbeth; Hamlet, Príncipe da Dinamarca; Otelo, o Mouro de Veneza). Traduções de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes; sinopses, dados históricos e notas de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros. – São Paulo: Abril Cultural, 1981.

 

AUTORES

 

JOÃO ANDREAZZE – TEL. 5571-2762 (São Paulo)

 ISAIAS EDSON SIDNEY – TEL. 5011-9628 (São Paulo)

Blackout.

  

JULIETA:- Ai, Romeu! Não é aí... Parece que esqueceu...

 

ROMEU:-  Eu sempre pus aí e você nunca reclamou...

 

JULIETA:- Idiota! Você nunca pôs aí...

 

ROMEU:- Idiota é você que nunca percebeu que eu sempre pus exatamente aí...

 

JULIETA:- Você não me chama de idiota...

 

ROMEU:- Só você pode me chamar de idiota, não é mesmo?

 

JULIETA:- Ai! Me machucou!...

 

ROMEU:- Desculpe, vou tentar de novo...

 

JULIETA:- Tem que ser devagar... você é muito desajeitado, Romeu...

                   

ROMEU:- É você que não colabora... Levanta um pouco...  isso...

 

JULIETA:- Ai! Você está me machucando de novo...

 

ROMEU:- Assim, também não dá...  você  reclama à toa...

 

JULIETA:- Eu reclamo à toa? Então vamos inverter, eu ponho e você levanta...

 

ROMEU:- Essa eu quero ver... (Pausa. Ruídos). Ai! Me  machucou...

 

JULIETA:- Não te falei que...

 

ROMEU:- Você também é muito desajeitada... Vamos voltar à posição de antes...

 

JULIETA:- Só tem um jeito...

 

ROMEU:- Qual...

 

JULIETA:- É você deixar de ser sovina e acender a luz...

 

ROMEU:- Eu não gosto de luz acesa!

 

JULIETA:- Você não gosta é de gastar o azeite da luz... Vou acender!

 

ROMEU:- NÃO! Por favor, não... a gente vai ficar duro de novo...

 

JULIETA:- Duro, de novo? Deixa de bobagem: a coisa já está dura há dez anos! Desde que a gente fez aquela besteira...

 

ROMEU:- É...  mas agora está pior...

 

JULIETA:- Pior??? O que pode ser pior do que isso?

 

 

Julieta acende a luz e vê-se a seguinte cena: Romeu em cima de uma cadeira meio quebrada, equilibrando-se com a ajuda de Julieta, que segura uma de suas pernas, tentando colocar uma mala velha sobre um guarda-roupa velho. Todo o cômodo e os móveis (de sala, quarto, cozinha, tudo misturado) têm ar de ruína e abandono.

 

 

ROMEU:- Essa nossa mala...  ela contém tudo o que foi um dia o nosso amor...

 

JULIETA:- E agora não cabe mais aí...  onde sempre a guardamos... Oh! Romeu! Se eu soubesse... se eu pudesse ter sabido...

 

ROMEU:- Se você soubesse o quê? Vamos,  me dá mais um empurrãozinho... Pronto... Coube! Puxa! Não agüento mais...

 

JULIETA:- Não agüenta mais, o quê, hem? O quê?

 

ROMEU:- Suas reclamações... sua cara feia, toda manhã...

 

JULIETA:- E eu não agüento mais, sabe o quê, Romeu? Sabe? Senhor Romeu! Os seus peidos à noite... suas bebedeiras à tarde... sua barba de manhã!

 

ROMEU:- Puxa, Juli...

 

JULIETA:- E não me chame de Juli... meu nome é JULIETA, ouviu? JULIETA!

 

ROMEU:- Mas não tem nada em mim que você goste?...

 

JULIETA:- Tem, tem, sim...

 

ROMEU:- Ah! bom... o que é?

 

JULIETA:- Sua distância... gosto de você bem longe... ouviu? Bem longe! Agora vai, que eu tenho muito que fazer...

 

ROMEU:- Ir pra onde, benzinho?

 

JULIETA:- Ir pra onde... ir pra onde... é, mesmo: além de tudo, não tem pra onde ir... não trabalha... Quando é que você vai arrumar um emprego, hem? Até quando eu vou sustentar sozinha esta casa?

 

ROMEU:- Você chama a isto de... casa?

 

JULIETA:- Oh! Deus meu! Sair do palácio de meu pai, para viver nesse... nesse...

 

ROMEU:- Galinheiro!

 

JULIETA:- Não ofende! Galinheiro, não! Pode estar assim... meio... que... desarrumado... mas é a minha casa, ouviu? Minha... Agora, chispa daqui... vai ver se arruma um emprego... Ouvi dizer que o ferreiro da esquina está precisando de ferrador de mulas...

 

ROMEU:- E você acha que eu, um Montecchio, vou saber ferrar mula?

 

JULIETA:- Pois devia saber... que mula você já é...

 

ROMEU:- Ofensa, não, Juli... ofensa, não...

 

JULIETA:- Não me chame de Juli... Um Montecchio não pode ferrar mula, mas uma Capuleto, que tem sangue muito mais nobre, pode lavar, passar, cozinhar, arrumar a casa... e ainda faturar algum por fora... para manter esse... esse...

 

ROMEU:- Galinheiro! Ai! Não precisa me bater... Está bem: você diz que lava, passa, cozinha, cuida da casa... Faz anos que eu não visto uma camisa branca: estão todas encardidas, amarelentas... fedidas; uma boa perna de carneiro, daquelas que minha mãe fazia, regada a um bom vinho... isso pra mim, agora, é miragem: meu estômago até ronca de pensar numa coisa dessas; quanto a cuidar da casa, nem preciso dizer, é só olhar ao redor... mas o faturar por fora, a senhora Capuleto faz isso muito bem, bem demais, para o meu gosto... eu só queria saber...

 

JULIETA:- Mais respeito aí, senhor Romeu Montecchio... nem sabão direito eu tenho para lavar suas roupas... sabe por quê? Porque não tem dinheiro... Nem para a brasa do ferro de passar... que não esquenta direito... Sabe por quê, seu Montecchio? Porque não tem dinheiro... Quanto à perna de cordeiro...

 

ROMEU:- Carneiro! Eu odeio cordeiro!

 

JULIETA:- Quanto à perna de carneiro, nem daqui a mil anos nós vamos ter... Sabe por quê, senhor Romeu Montecchio? Sabe? Porque não temos dinheiro nem nunca teremos... Porque você é um vagabundo, nunca parou em emprego nenhum, não sabe fazer nada... e por isso não traz um tostão furado para casa!

 

ROMEU:- Ah! Emprego! Foi bom você falar...

 

JULIETA:- Você arrumou emprego... vai ferrar mulas...

 

ROMEU:- Isola! Vê se eu tenho cara...

 

JULIETA:- Não tem cara de ferrador, mas de ferrado... duro... fodido...

 

ROMEU:- Escuta, eu fiquei sabendo de uma coisa... que você nem imagina... Sabe, a nossa história...

 

JULIETA:- Que história? Quando você começa a falar desse jeito, sempre vem encrenca...

 

ROMEU:- A história do nosso romance... como a gente se conheceu lá em Verona... a briga entre nossas famílias... aquele imbróglio todo...

 

JULIETA:- Que acabou numa grande besteira...

 

ROMEU:- É... que acabou numa grande besteira... Mas, diacho! Escuta: a história... a nossa história... tem um inglês, lá na Inglaterra...

 

JULIETA:- Não podia ser um inglês lá na França?

 

ROMEU:- Não goza... é sério... o que eu vou te dizer... Esse inglês... ele é dramaturgo...

 

JULIETA:- Que diabo é isso?

 

ROMEU:- Gente que escreve peça de teatro... igual àqueles caras malucos que vimos outro dia na praça... fazendo palhaçada...

 

JULIETA:- Um palhaço, então...

 

ROMEU:- Não!... Isto é, mais ou menos... um palhaço... mas sério...

 

JULIETA:- Então é um palhaço chato...

 

ROMEU:- Sei, lá... um escritor, isso... e ele é ator também...

 

JULIETA:- Então é um palhaço...

 

ROMEU:- Bem, sei lá... só sei que esse cara escreveu uma peça contando nossa história...

 

JULIETA:- Contando... nossa... história... essa merda em que a gente vive?...

 

ROMEU:- Não. A história de como nos conhecemos... há dez anos... ou mais, sei lá...

 

JULIETA:- E daí...

 

ROMEU:- E daí... dizem que fez um grande sucesso... a peça... Se fez um grande sucesso, deu dinheiro... se deu dinheiro, ele está rico... se ele está rico, uma parte dessa riqueza é nossa...

 

JULIETA:- Nossa? Por quê?

 

ROMEU:- Entenda... Juli...

 

JULIETA:- Não me chame de Juli...

 

ROMEU:- ... se ele escreveu sobre nós, se ele contou a nossa história... nós temos direito também... afinal, nós é que fizemos que ele ficasse rico...

 

JULIETA:- É... tem sentido... Mas você tem certeza de que ele contou a nossa história na peça?

 

ROMEU:- Te... tenho... Quer ver? Me deram uma cópia... eu deixei em algum lugar... (Procura desesperadamente). Que droga... essa bagunça... a gente não acha nada... Ah! Está aqui! Veja: ROMEU E JULIETA... de... de... Wil...li...am... como é que se lê isso?

 

JULIETA:- Sha... kes... pe-a-re.... (lendo como se escreve). Shakespeare....

 

ROMEU:- Não foi assim que eu ouvi... Foi... deixe-me lembrar... Ah, sim : Shakespeare! (Pronunciando corretamente).

 

JULIETA:- E o que esse tal de Shakespeare escreveu sobre a gente?...

 

ROMEU:- Vamos ver... vamos ver... Nossa! Que coisa esquisita... Eu não falo assim: “Oh! Ódio amoroso! Oh! Todas as coisas primeiramente criadas do nada! Oh! Pesada ligeireza! Séria vaidade! Informe caos de sedutoras formas! Plumas de chumbo, fumaça luminosa, flama gelada...”

 

JULIETA:- Flama gelada? Que merda é essa?

 

ROMEU:- Sei, lá... ouça: “sono em perpétua vigília, que não é o que é!” Que não é o que é? Que droga será isso?

 

 

Enquanto vão lendo trechos, riem muito.

 

 

JULIETA:- E eu... e eu... não tem fala minha aí?

 

ROMEU:- Tem, tem, sim, tem muitas...

 

JULIETA:- Tem nada, tem poucas... Ah! Aqui está uma...”Bondoso peregrino, injusto até o excesso sois com vossa mão, que mostrou devoção cortês...” Bondoso peregrino, quem é?

 

ROMEU:- Sou eu, é claro...

 

JULIETA:- Você? Ouça mais: “... e enlaçar palma com palma é o ósculo dos piedosos portadores de palmas...” que raio é isso? Não entendo...

 

ROMEU:- De acordo com a peça, eu estou fantasiado de peregrino e conduzindo algumas palmas...

 

JULIETA:- Mas que eu me lembre... você nunca se fantasiou de peregrino... De malandro, sim... pra me conquistar...

 

ROMEU:- E acabei conquistando... E agora vejo que não foi tão difícil assim... Mas leia mais... veja: aqui tem uma cena muito engraçada... Diz que é uma das cenas mais emocionantes... o público até chora... é a cena no balcão...

 

JULIETA:- No balcão... que balcão? Não me lembro de balcão nenhum... Só se era o balcão da estalagem do...

 

ROMEU:- Não! É no jardim dos Capuleto...

 

JULIETA:- Mentira!

 

ROMEU:- É verdade!

 

JULIETA:- Não me lembro de balcão nenhum no palácio de meu pai...

 

ROMEU:- Mas a cena se passa num balcão...

 

JULIETA:- Balcão... balcão... será que... deve ser a sacada do quarto de meus pais...

 

ROMEU:- Não importa: vamos representar... Parece que eu estou num balcão... ou nesta sacada... sei, lá...

 

 

Procura alguma coisa que possa servir de balcão e topa com o guarda-roupa.

 

 

ROMEU:- O guarda-roupa...

 

 

(Trepa  no guarda-roupa e começa a declamar de forma exagerada e caricata).

 

 

ROMEU:- “Que luz brilha através daquela janela! É o Oriente e Julieta é o Sol! Surge, claro sol, e mata a invejosa lua, já doente e pálida de desgosto...” Tem alguma coisa errada aqui... Deixe-me ver... Ah! Já sei: é você,  Juli, que está na janela... no balcão... Vamos, troquemos de lugar...

 

JULIETA:- Não me chame de Juli...

 

 

Eles trocam de lugar. Julieta trepa no guarda-roupa e Romeu fica embaixo.

 

 

ROMEU:- “O fulgor de suas faces envergonharia aquelas estrelas, como a luz do dia a de uma lâmpada!” Fulgor de suas faces... só se for de vergonha pelo que você anda fazendo...

 

 

Julieta atira-lhe algo, com raiva.

 

 

ROMEU:- “Seus olhos lançariam da abóbada celeste raios tão claros através da região etérea que cantariam as aves acreditando chegada a aurora!...” Chispas de ódio e de safadeza, isso sim...

 

 

Julieta atira-lhe outro objeto, do qual ele se desvia.

 

 

ROMEU:- “Olhai como apóia o rosto na mão! Oh! Fosse eu uma luva sobre aquela mão para que pudesse tocar naquele rosto.”   Mãos que fingem lavar e passar e cozinhar... mas que só sabem, mesmo, é fazer sacanagem...

 

 

Julieta atira-lhe a mala, que se abre e  de onde caem dois bonecos muito feios vestidos de Romeu e Julieta quando jovens.

 

 

JULIETA:- “Meus ouvidos não beberam cem palavras ainda dessa língua, mas eu reconheço o som: não és  Romeu? Não és um Montecchio?” Sim, um Montecchio de língua atrevida e ferina... que só abre a boca para promessas inúteis... língua de falso... de bêbado... de vagabundo...

 

ROMEU:- “Nem um nem outro, formosa donzela, se os dois te desagradam.”

 

JULIETA:- Os dois me desagradam? Mas que infame! Tudo em você me desagrada, Romeu...

 

ROMEU:- “É melhor que termine minha vida, vítima do ódio... do que esperando teu amor, minha morte retardada.”

 

JULIETA:- Morte retardada é a vida que você me dá... Preguiçoso... “Gentil Romeu!” Pois, sim... tão gentil quanto mentiroso...

 

ROMEU:- “Senhora, juro por essa lua que coroa de prata as copas destas árvores frutíferas...”

 

JULIETA:- Ah! O tal do Shakespeare agora acertou: tu juraste pela lua, pela inconstância da lua, que muda todos os meses... por isso teu amor é tão variável... tão inútil... depois desses anos todos...

 

 

Julieta desce do armário, meio chorosa.

 

 

JULIETA:- “Jura pela tua graciosa pessoa que é o deus de minha idolatria e acreditar-te-ei!” Não, ainda é ele que está colocando essas palavras na minha boca... eu te odeio, Romeu... eu te odeio...

 

ROMEU (ainda representado):- “Oh! Queres deixar-me assim tão insatisfeito?”

 

JULIETA:- “Quanto mais te dou, mais tenho...” Não, não, mil vezes, não, Romeu... Foi um erro tudo...

 

 

Romeu abandona a pose de ator e tenta consolar Julieta.

 

 

ROMEU:- Não chore, sua boba... não chore... São palavras de um poeta... Você sabe que nós passamos o diabo para ficar juntos... Só  não falamos desse jeito... (Imitando um sotaque britânico). “Quisera ser teu pássaro!”

 

JULIETA (enxugando as lágrimas e forçando um sorriso):- Deve ser por que ele é inglês... e nós somos de Verona... Romeu, meu Romeu... eu ainda... vamos voltar para Verona, procurar nossos parentes... dizer-lhes que estamos vivos... que foi tudo uma grande palhaçada...

 

ROMEU:- Você está louca? Tudo, menos isso... eles nos matam, agora de verdade...

 

JULIETA:- Você se lembra de como enganamos todos eles? Você se lembra, Romeu?

 

ROMEU:- Acho... acho... acho que sim...

 

JULIETA:- O vinho está afetando sua memória... não é possível que você não se lembre... só pode ser o vinho... e a velhice... você está ficando velho, Romeu...

 

ROMEU:- Eu tenho só vinte e oito anos, ouviu?

 

JULIETA:- Venha: vamos refrescar sua memória, “meu velho”...

 

 

Armam a cena da morte de Romeu e Julieta.

 

 

JULIETA:- Primeiro, foi o frade, como era mesmo o nome dele? Ah!... Uh!... frei... frei... frei Lourenço. (Imita o frei, usando as palavras de Shakespeare).  “Escuta, então. Volta para casa, mostra-te alegre e dá o teu consentimento em casar com Páris...”

 

ROMEU:- Páris, aquele filho da puta... eu devia tê-lo matado...

 

JULIETA:- E eu devia ter-me casado com ele...

 

ROMEU:- Pensando bem, devia mesmo...

 

JULIETA:- Você é um canalha, Romeu... Continuando: “Amanhã é quarta-feira; procura ficar só à noite, em teu quarto, não deixando que a ama durma contigo...”

 

ROMEU:- Ah! aquela ama idiota... quantas vezes eu a enganei para dormir com você...

 

JULIETA:- Romeu! Isso é coisa que se diga...

 

ROMEU:- E não foi assim mesmo?

 

JULIETA:- Foi... mas vão pensar que eu sou... que eu era...

 

ROMEU:- Quem vai pensar? Estamos sozinhos aqui... Vai, continua, estou começando a me lembrar da encrenca...

 

JULIETA:- “Quando estiveres na cama, toma esse frasco e bebe até a última gota deste licor destilado...”

 

ROMEU:- Hmm... até que era gostoso aquele licor...

 

JULIETA:- Disso você se lembra, não é? “Imediatamente correrá por tuas veias um humor frio e letárgico, porque nenhuma pulsação continuará seu curso, tudo parará.”

 

ROMEU:- Agora me lembro... agora me lembro...

 

 

De forma bem rápida, como em filmes mudos,  Julieta toma de um frasco, bebe de seu conteúdo, deita-se fingindo de morta. Romeu chega e,  com gestos exagerados,  toma-lhe o pulso etc.,  e constata que ela morreu. Desespera-se, caricatamente. Toma, também, do mesmo frasco e bebe. Então, em câmara lenta, vai morrendo e cai sobre o “cadáver” de Julieta, que lhe dá um empurrão. Desmancha-se a cena.

 

 

ROMEU:- E então, depois daquela choradeira toda no velório, antes do enterro, o frei Lourenço exigiu ficar sozinho com nossos corpos, ele nos acordou com um antídoto, colocou esses horríveis bonecos no caixão...

 

JULIETA:- Que depois nós roubamos, no cemitério, como lembrança...

 

ROMEU:- Não sei como nossas famílias acreditaram que isso éramos nós...

 

JULIETA:- Será que eles ainda estão se matando, como no nosso tempo?...

 

ROMEU:- Bons tempos aqueles... em que surrar um Capuleto até a morte era uma diversão e tanto...

 

JULIETA:- ... em que botar fogo num Montecchio e vê-lo pular em chamas no lago nos fazia rir até perder o fôlego...

 

ROMEU:- Eu tinha como amuleto o olho de um Capuleto... onde será que eu o guardei?

 

JULIETA:- Uma vez meu primo me deu de presente um colar de dentes arrancados de vários Montecchios... era tão bonito!

 

ROMEU:- Uma vez, eu furei a barriga de um Capuleto e deixei os cães comerem-lhe as tripas enquanto ele morria... e eu morria de rir...

 

JULIETA:- Escuta, Romeu, foi assim que o seu amigo inglês... o tal de Shakespeare...

 

ROMEU:- Ele não é meu amigo! Ele contou um monte de mentiras sobre nós e ficou rico com isso... É só isso que interessa... Eu vou na captura desse cara...

 

JULIETA:- Vai, vai, mesmo... e dê-lhe uma boa surra antes de lhe arrancar a grana...  Passa em Verona e leva uns Capuletos com você... para te dar coragem...

 

ROMEU:- Prefiro morrer a andar com tal raça...

 

JULIETA:- Andar com tal raça, você  não pode... mas dormir com ela, você pode...

 

ROMEU:- Juli... Juli...

 

JULIETA:- Não me chame de Juli!

 

ROMEU:- Você é diferente... você é... você é mulher, porra!

 

JULIETA:- Não é só você que diz isso...

 

ROMEU:- O que você está querendo dizer com isso, hem?... Se pensa que vou levar chifre calado, pode ir tirando o seu cavalinho da chuva, que eu lhe dou umas porradas...

 

JULIETA:- Experimente... vamos... experimente me dar um tapa, sequer... que você vai ver o que é o sangue de uma Capuleto...

 

ROMEU:- Sangue de Capuleto eu sei que é, já vi muito... aqui, na minha mão... sua, sua...

 

JULIETA:- Olha o que você vai dizer...

 

ROMEU:- Um Montecchio é incapaz de ofender uma mulher, mesmo que essa mulher seja... seja...

 

JULIETA:- Olha!...

 

ROMEU:- ... indigna de seu amor... uma Julieta qualquer...

 

JULIETA:- Sangue de barata... como todo Montecchio!

 

ROMEU:- Não me provoque...

 

JULIETA:- Covarde... bêbado...

 

ROMEU:- Não me provoque!!!

 

JULIETA:- Você é um grande... um grande ganso...

 

ROMEU:- Isso, não!

 

JULIETA:- E sabe o que mais, sabe? Teu pau nunca tocou o meio-dia... assim, ó... (Faz um gesto obsceno com o dedo indicador para cima). Você é um broxa, Romeu...

 

 

Romeu dá um tapa em Julieta, que cai estatelada. Senta-se com os olhos arregalados, como a não acreditar no que aconteceu.

 

 

JULIETA:- Isso... isso... nunca... nunca...

 

 

Levanta-se e corre para o fogão, enfiando a cabeça no forno e gritando.

 

 

JULIETA:- Eu vou me matar... eu vou me matar...

 

 

Romeu corre a tirá-la de dentro do forno.

 

 

ROMEU:- Desculpe... desculpe... eu não queria... Perdão, amor...

 

JULIETA:- Perdão?!!! Você vem me pedir perdão?...

 

ROMEU:- Perdão... eu lhe imploro... de joelhos... Eu prometo nunca mais...

 

JULIETA:- Não... seu idiota... bate mais... bate mais... é de um homem assim que eu gosto... bate... bate! Ai, que tesão...

 

 

Blackout. Ao se acenderem as luzes, Romeu e Julieta estão decompostos e abraçados um ao outro, como se tivessem acabado de fazer amor.

 

 

JULIETA:- Romi... Romi... Acorde, Romi...

 

ROMEU:- Não me chame de Romi... que isso é nome de bicha...

 

JULIETA:- Ai, Romi, foi tão bom... foi a melhor desses dez anos todos...

 

ROMEU:- Melhor do que aquele dia em que enfiamos a cama da ama embaixo da sua, com ela amarrada em cima? E a coitada passou a noite inteira gemendo lá embaixo?

 

JULIETA:- Ela gemia era de prazer, seu bobo... de nos ouvir gemer e imaginar o que estávamos fazendo...

 

ROMEU:- E o que nós fizemos aquela noite, hem... hem.... Juli...

 

JULIETA:- Não me chame de Juli.

 

ROMEU:- Eu fiquei todo esfolado...

 

JULIETA:- Seu porco... Escuta, Romi...

 

ROMEU:- Não me chame de Romi... eu não sou bicha...

 

JULIETA:- ... você vai mesmo atrás do tal do Shakespeare?...

 

ROMEU:- Claro! Temos direitos... ainda existe lei neste país...

 

JULIETA:- Mas ele está na Inglaterra...

 

ROMEU:- Bom, eu traduzo a lei italiana para o inglês ver o que a Itália tem...

 

JULIETA:- E quanto você acha que consegue arrancar do inglês?

 

ROMEU:- Sei, não... mas que vou exigir uma boa grana, isso vou... Depois a gente divide: eu te dou dez por cento de tudo que eu ganhar...

 

JULIETA:- Repete... eu não ouvi direito...

 

ROMEU:- Eu te dou...

 

JULIETA:- Dez por cento você dá para sua mãe... se ela ainda estiver viva!

 

ROMEU:- Não bota a mãe no meio...

 

JULIETA:- Boto! Boto, sim... a mãe... a avó... a bisavó... e todas as Montecchios que não tinham lá grande fama...

 

ROMEU:- Se é pra botar família no meio, eu vou contar tudo o que sei... vou botar a boca no trombone...

 

JULIETA:- Você não sabe é nada... e eu quero saber, agora, é da grana...

 

ROMEU:- Grana? Que grana?

 

JULIETA:- Da grana do inglês, seu merda!

 

ROMEU:- Só porque eu falei das Capuletos, você quer mudar de assunto... Olha, um dia eu vi sua prima e sua mãe saindo, de forma muito suspeita, da casa dos...

 

JULIETA:- Arrá! Então é isso: você vivia espionando minha mãe... era de mim ou dela que você gostava?... Vai ver que é tarado numa coroa...

 

ROMEU:- Até que a coroa da sua mãe não era de se jogar fora...

 

JULIETA:- Que absurdo, meu Deus! Você, então, acha que minha prima era uma alcoviteira e minha mãe, uma... uma...

 

ROMEU:- ... uma prostituta...

 

JULIETA:- Você está me chamando de...

 

ROMEU:- Não disse nada... você é que está falando...

 

JULIETA:- O jogo da verdade, não é? Pois olhe aqui, nos meus olhos, e me diga se é mentira o que andavam falando lá em Verona de seu amado pai...

 

ROMEU:- Meu pai?... O máximo que você pode falar dele é que era um garanhão!

 

JULIETA:- Ah! Ah! Ah! Um garanhão... um garanhão... com todos aqueles efebos com quem ele andava...

 

ROMEU:- Efebo?!!! Que bosta é essa?

 

JULIETA:- Efebo, meu caro Romi...

 

ROMEU:- Não me chame de Romi...

 

JULIETA:- Efebo: jovens atletas e musculosos... sarados, mesmo... que compunham a guarda especial do seu “amado pai garanhão”... (Faz um gesto de desmunhecar). Isso explica muita coisa do que houve entre nós...

 

ROMEU:- É por essas e outras injúrias, infâmias e mentiras que eu vou te dar só cinco por cento do que arrancar do inglês...

 

JULIETA:- Metade... eu quero metade...

 

ROMEU:- Nem fodendo...

 

 

Num gesto rápido, Julieta pega uma grande faca com uma mão e com outra o membro de Romeu, por sobre as calças, e ameaça cortá-lo.

 

 

JULIETA:- Pois é isso o que vai acontecer... você nunca mais vai fazer o que fizemos há pouco...

 

ROMEU:- Ai! Não! Pelo amor de Deus, não!

 

JULIETA:- Metade!

 

ROMEU:- Vinte! Eu te dou vinte por cento!

 

JULIETA:- Aceito os vinte por cento... mas vou cortar vinte por cento do seu pau! Topas?

 

ROMEU:- Ai, não! Com oitenta por cento de pau, eu não faço nada...

 

JULIETA:- Nem eu com vinte por cento...

 

ROMEU:- Tá bom... trinta! Eu te dou trinta!

 

JULIETA:- Hmm... será que o cachorrinho da vizinha vai ficar satisfeito em comer só trinta por cento do seu pau?

 

ROMEU:- O quê?!!! Você pretende dar trinta por cento de meu pau para aquele cachorro sarnento?! Ah! Não! Isso é demais, meu Deus! Quarenta! Eu te dou quarenta por cento da grana do inglês e não se fala mais nisso...

 

JULIETA:- Metade ou...

 

ROMEU:- Já sei, vai dar quarenta por cento do meu pau pro cão sarnento da vizinha...

 

JULIETA:- Não...

 

ROMEU:- Não???

 

JULIETA:- Não... vou cortá-lo inteiro e enfiá-lo em sua garganta até você morrer engasgado com o próprio pau, como um cordeirinho!

 

ROMEU:- Isso, não! Isso, não! Pelo amor de Deus, eu morro de nojo de pau... E odeio cordeiros... Ai, Juli... por que você está fazendo isso comigo? Eu não sou cordeiro... eu odeio cordeiros...

 

JULIETA:- Você tem sido um cavalo, esses anos todos, Romeu...

 

ROMEU:- Todos?

 

JULIETA:- É... todos, não: acho que é exagero meu... No começo até que foi bom...

 

ROMEU:- Bom??? Foi ótimo...

 

JULIETA:- Menos, Romeu, menos... Ruim não foi... Mas depois, a fome, a sua preguiça, os seus maus hábitos... não há amor que resista a isto, Romeu: é  só olhar a seu redor...

 

ROMEU:- Nosso galinheiro... desculpe... mas até que não é tão ruim assim... É só tirar umas poeirinhas... matar umas baratas... caçar uns ratos... e fica tudo como novo...

 

JULIETA:- Eu quero uma vida decente, Romeu... Compras!...

 

ROMEU:- Jogar dinheiro pela janela...

 

JULIETA:- Bailes!...

 

ROMEU:- Todo mundo te paquerando...

 

JULIETA:- Banquetes!...

 

ROMEU:- Ficar gorda como uma porca...

 

JULIETA:- Você é mesquinho, Romeu...O único dinheiro que você pensa em ganhar é uma possível herança de meus pais...

 

ROMEU:- Meus pais também são ricos...

 

JULIETA:- Já te deserdaram há muito tempo... Os Montechios são muito rancorosos, você sabe...

 

ROMEU:- Os Capuletos também...

 

JULIETA:- Mas ainda não me deserdaram... que eu saiba...

 

ROMEU:- Que papo mais idiota esse... como a gente pode pensar em herança de nossos pais, se eles pensam que nós morremos... Pra toda Verona, Romeu e Julieta estão mortos e enterrados...    podemos pensar em herança, se voltarmos pra lá e aparecermos de repente: “Oi, gente, aqui estamos... não morremos...”

 

JULIETA:- E fazer todo mundo sair correndo de susto... Meu caro Romeu, ninguém deve se lembrar mais de nós... Só o teu “amigo” inglês...

 

ROMEU:- Ainda temos esperança, Julieta... Escuta, vamos parar com essa encrenca... eu vou atrás do tal do Shakespeare... e te dou a metade... isso, a metade de tudo que eu conseguir do inglês...

 

JULIETA:- Metade? Quem disse que eu quero a metade? Eu quero mais... ouviu, muito mais... por tudo quanto você me fez passar nesses anos todos... Se não, eu vou cortar o seu saco e vou cortar o saco do Shakespeare também... para ele não ficar inventando mentiras a nosso respeito... TE CUIDA, INGLÊS...  SE NÃO FOR ROMEU, SERÁ JULIETA QUEM VAI ACERTAR AS CONTAS COM VOCÊ!

 

 

 

FIM

 

 

07/01/2001

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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