DRAMA EM UM ATO
João Andreazze e Isaias Edson Sidney
2001
PERSONAGENS
HELENA – mulher madura, traços duros.
JÉSSICA – jovem, bonita, presa a uma cadeira de rodas
bastante gasta. Teve paralisia infantil. É muito ágil.
CENÁRIO
Apartamento no oitavo andar de um prédio em ruínas,
tomado por sem-teto. Poucos móveis, incluindo um baú e uma banheira, todos
muito velhos. Há uma janela ao fundo, por onde se vê uma nesga de céu, por
entre outros prédios. Há, também, uma gaiola com um pássaro empalhado.
Jéssica desenha alguma coisa, sobre
uma mesa cheia de papéis e lápis coloridos usados. Ouvem-se fortes batidas na
porta. Terror estampa-se em seu rosto e ela esconde-se atrás de um móvel
qualquer, de onde não possa ser vista por quem entrar pela porta. As batidas
terminam, mas Jéssica continua ali, ofegante. Passagem de tempo. O dia é
chuvoso. Helena abre a porta coberta por uma capa de chuva e carregando uma
sacola. Deixa-a sobre a mesa e percorre o apartamento com os olhos, forçando
bem a vista. Abre a janela e, depois, tira uma carta amassada do bolso, tenta
ler e não consegue. Procura alguma coisa na mesa, espalhando com raiva os
papéis e lápis de Jéssica.
HELENA:- Merda! Onde será
que a Jéssica escondeu meus óculos? JÉSSICA! ONDE ESTÃO MEUS ÓCULOS, SUA DIABA!
Jéssica sai do esconderijo.
JÉSSICA:- Não precisa berrar... sou paralítica e não surda.
HELENA:- Bateram de novo? Você não abriu a porta...
JÉSSICA:- Não sou burra, também.
HELENA:- Cadê meus óculos?
JÉSSICA:- Estão ali...
Helena vai até onde Jéssica apontou e encontra os seus óculos quebrados.
HELENA:- Sua... sua... Você os quebrou de propósito...
JÉSSICA:- Isso você nunca vai saber... Se
foi de propósito ou não.
Jéssica corre pela sala em sua cadeira de rodas, dando risadas, fazendo
micagens para Helena.
JÉSSICA:- A tia é cega... a tia é cega... a tia é cega... Morcegona! Morcegona!
Helena reprime o ódio e, depois de algum esforço, consegue parar a
cadeira de Jéssica. As duas se encaram.
HELENA:- Um dia, eu ainda...
JÉSSICA:- Ainda o quê? Diz! Ainda o quê? Você não tem coragem... E além do mais,
se você me matar, fica sem a sua boquinha... Fica sem a grana de meu avô... é
pouca, mas sem ela você está fodida... fodida...
HELENA:- Só queria saber onde você tem aprendido a falar desse jeito...
JÉSSICA:- Ah! Você não sabe? Não sabe, mesmo? Tem certeza?
Helena corre até um baú no canto da sala.
HELENA:- Você... você arrombou o meu
baú... Sua maldita!
JÉSSICA:- E li todas as revistinhas sujas que a senhora tem aí... Pensou que eu
não ia descobrir o seu segredo? Pensou?
Vive por aí rezando o terço... Pois, sim: por fora, bela viola; por
dentro, pão bolorento...
Helena faz um gesto de desânimo, recoloca as revistas no baú, fecha-o e
caminha lentamente até Jéssica, que a olha desafiadoramente. As duas se
encaram. Helena segura o rosto de Jéssica e as duas se beijam na boca.
HELENA:- Vem, vem pra mamãezinha... Meu bebê está sujinha, está? Precisa tomar
banhinho... Precisa tomar banhinho...
Cantando uma cantiga de ninar, Helena despe Jéssica, tira-a da cadeira
de rodas e coloca-a dentro de uma velha banheira. Despe-se também e entra na
banheira. As duas riem, se acariciam e, excitadas, masturbam-se até o gozo.
Helena enxuga e veste Jéssica, colocando-a de volta na cadeira de rodas e
veste-se também, tudo em no mais absoluto silêncio.
JÉSSICA:- Tia Helena... Eu juro que foi sem querer...
HELENA:- Sem querer o quê, Jéssica?
JÉSSICA:- Seus óculos... eu passei em cima deles com minha cadeira de rodas...
foi sem querer... eu juro...
HELENA:- A carta! Eu preciso ler a carta...
JÉSSICA:- Me dá... eu leio para a senhora...
HELENA:- Não... não sei...
JÉSSICA:- Ora, tia, deixa de frescura... Eu sempre li suas cartas...
HELENA:- Você ... sempre... leu... minhas cartas? Todas?
JÉSSICA:- Só não li as que senhora queimou...
Jéssica faz um movimento rápido com a cadeira e toma das mãos da tia a
carta. Helena senta, conformada, e espera a sobrinha ler a carta. Jessica abre o
envelope e, ao abrir a boca para a leitura, é interrompida pela tia.
HELENA:- Espere! De onde veio essa carta? É do governo... é do governo? Olha aí
se tem o endereço do palácio...
JÉSSICA:- Não, tia... não veio do governo... É de...
HELENA:- Que droga! Não quero saber de quem é... não quero... Já escrevi não sei
quantas cartas pro governo e não tenho resposta... Droga! Droga!
JÉSSICA:- Calma, tia...
HELENA:- Calma! Calma? Você quer que eu fique calma?... Ele tem que responder,
ele já morou aqui. Só ele pode impedir que derrubem o prédio. Acenda uma vela,
já está escurecendo.
JÉSSICA:- Não, tia... ainda não está escurecendo... e não podemos gastar velas à
toa...
HELENA:- As velas que iluminavam os jantares dele, Jéssica! Ah! Você não imagina
o luxo dos candelabros... o brilho das joias... Este prédio, Jéssica, brilhava
como um palácio! Até eu, Jéssica, vestia o meu melhor vestido... e ficava na
portaria observando o movimento...
JÉSSICA:- Já ouvi essa história mil vezes, tia Helena... A carta...
HELENA:- Ele não era ainda presidente, Jéssica... Eu preciso... eu preciso falar
com ele... só ele pode nos ajudar, Jéssica!
JÉSSICA:- A carta, tia Helena... A carta!
HELENA:- Dezenas de cartas, Jéssica... Dezenas! E nada... Ele tem de
responder... um dia ele vai responder...
Helena leva a mão à boca, tendo uma ânsia de vômito e sai como louca,
tropeçando em uma cadeira. Jéssica fica em silêncio, com a carta na mão,
enquanto se ouvem os ruídos de vômito e o barulho da descarga. Helena volta,
cambaleando um pouco. Tem um lenço tapando a boca.
JÉSSICA:- Você não está legal, de novo, tia... O que andou comendo na rua?
HELENA:- Nada... não comi nada... Não tinha dinheiro...
JÉSSICA:- Como? Não tinha dinheiro? E o dinheiro que lhe dei?...
HELENA:- Eu... eu... eu perdi!
JÉSSICA:- Perdeu? Você perdeu? Não é possível... você perdeu o dinheiro da
comida!...
Jéssica corre, com sua cadeira de rodas, para a sacola que Helena tinha
deixado sobre a mesa ao chegar. Nervosamente, revira tudo e encontra mais uma revista
de sacanagem.
JÉSSICA:- Isso... isso... isso o que você comprou com o dinheiro que lhe dei?
Maldita!
HELENA:- Me perdoa... me perdoa... eu... não... resisti...
Helena ajoelha-se aos pés de Jéssica, colocando a cabeça em suas pernas.
Jéssica esboça um gesto de ódio que vai, aos poucos, abrandando-se e
transforma-se em carinho. Alisa seus cabelos. Um breve silêncio, quebrado por
batidas fortes à porta. Jéssica corre para seu esconderijo, enquanto Helena
fica estática, olhando com horror para a porta, até que as batidas cessem.
Ouvem-se passos afastando-se.
HELENA:- Era o oficial de justiça, não era? Era aquele maldito oficial de
justiça, de novo, não era?
Jéssica sai de seu esconderijo. Procura disfarçar.
JÉSSICA:- Não... não sei... devia ser...
HELENA:- Você não está me escondendo alguma coisa, está? Fala: você sabe quem
estava batendo, não sabe?
JÉSSICA:- Claro que não, tia... Imagine! Devia ser o oficial de justiça...
HELENA:- Se você estiver escondendo...
JÉSSICA:- A carta! Vamos ler a carta... Tem uma letra estranha... Nós nunca
recebemos carta escrita a mão... Só cobrança de banco... de cartório... da
justiça... Vamos ler...
Jéssica pega a carta e lê para si mesma.
HELENA:- O que está escrito aí... Deve ser alguma corrente... deve ser
besteira...
JÉSSICA:- Quem é Guiomar?
HELENA:- Guiomar???
JÉSSICA:- É... quem é essa mulher?
HELENA:- Não... não é mulher... é homem!
JÉSSICA:- Mas, quem é?
HELENA:- Está vendo essa cicatriz em minha mão, está? Uma vez nós brigamos... e ele
me cortou a mão com uma faca...
JÉSSICA:- Quem? Quem te cortou, minha tia?
HELENA:- Meu irmão... o seu tio...
JÉSSICA:- Não sabia que eu tinha um tio...
HELENA:- E está vendo essa marca de queimado em minhas costas, está? Veja...
veja bem...
JÉSSICA:- Foi... foi ele também?
HELENA:- Não... essa queimadura foi feita por seu... seu avô...
JÉSSICA:- Meu avô?! Eu tenho... eu tinha
um avô? E você nunca...
HELENA:- Tem... você tem um avô, sim... Pronto, agora já sabe...
JÉSSICA:- Maldita! Você me dá um fantasma de presente... não queria uma família
morta... um avô morto! Maldita!
HELENA:- Morto? O que você está dizendo, sua louca...
Toma a carta das mãos de Jéssica e tenta ler. Não consegue. Devolve-a a
Jéssica.
JÉSSICA:- Eu... tenho... eu tinha... um avô... Eu tinha um avô...
Jéssica aproxima-se da gaiola do pássaro empalhado e fala com ele.
JÉSSICA:- Eu tinha... eu tinha um avô... Você está me ouvindo, Rúbi, você está
ouvindo?... Eu tinha um avô... e ela não me disse nada... Ela não me contou que
eu tinha um avô, Rúbi... e um tio, também... Eu tenho... eu tenho uma família,
Rúbi, eu tenho uma família... e ela nunca me disse nada... A vida inteira presa
aqui... neste apartamento... nesta cadeira... e tinha uma família! Rúbi... ela
não me contou, Rúbi! ELA NÃO ME CONTOU!
Enquanto Jéssica chora, Helena se recompõe e pouco a pouco sua expressão
se torna dura.
HELENA:- Ela está chorando... chorando por um homem de quem ela nunca soube que
existia... Idiota! Se morreu, já morreu tarde... Era seu... seu avô, sim...
Você não tem o direito de me acusar de nada, ouviu? De nada. Eu só quis te
proteger...
JÉSSICA:- Eu vou embora... eu vou sair daqui...
HELENA:- Embora! Embora... embora como? Pilotando essa sua cadeira imprestável?
Você não sabe o que te espera lá fora! Você não conhece nada das pessoas... a
maldade que existe lá fora... o mundo não tem compaixão com pessoas como nós...
Só temos uma à outra, ouviu? Uma à outra... Não existe ninguém lá fora! Estamos
sozinhas... sozinhas... nesses andares todos... não existe ninguém lá fora...
JÉSSICA:- Você sabe quem estava batendo, sabe? Não era o oficial de justiça,
não... Existe alguém lá fora, sim... alguém que gosta de mim... alguém que me
ama... Você é uma mentirosa...
HELENA:- Do que você está falando? Você.... você andou abrindo essa porta
para...
JÉSSICA:- Abri, sim... abri! E não abri só a porta, não! Abri minha boca para os
beijos dele... Assim, ó... e ele... ele abriu minhas pernas... minhas pernas
inertes... ele abriu, sim... assim, ó... com sua mão enorme e me possuiu... e
me fez gozar... gozar como nunca gozei... um homem... um homem com um pinto...
um homem de verdade... Você saía e ele entrava... entrava em mim... Um homem!
Helena esbofeteia Jéssica, que a olha com ódio e se cala. Helena anda de
um lado para outro da sala, como um animal ferido, tropeçando às vezes em
alguma cadeira ou objeto.
HELENA:- Não importa... nada mais importa... Ele está morto... ele está morto...
Meu Deus, por que não o matei eu mesma? Por quê? Por quê?
Corre até Jéssica, tenta passar a mão em sua cabeça e é repelida.
HELENA:- Você não sabe o peso que essa carta tirou de meu peito, minha filha...
JÉSSICA:- Não sou sua filha.
HELENA:- Desde que você nasceu, eu só tinha um pensamento, na vida... te
proteger.
JÉSSICA:- Você nunca me protegeu... você me prendeu... a vida toda aqui, sem ver
ninguém... sem amigos...
HELENA:- Eu prometo... a vida vai melhorar para nós, eu prometo...
JÉSSICA:- Você não acha que é tarde demais, minha tia? Eu vou embora com...
HELENA:- Você não entende... O pesadelo acabou... o pesadelo acabou...
JÉSSICA:- Não, tia, o pesadelo apenas começou... Olha pra mim: quem sou eu? Me
diz! Quem sou eu? Eu quero viver, tia Helena... eu quero viver... Ver o sol lá
fora sem o batente dessa janela... sem ver sempre essa mesma paisagem de
prédios, de um céu sempre igual... Esta carta, tia, esta carta tem muito mais
do que a morte de meu avô...
HELENA:- Me dá essa carta... vamos rasgá-la... queimá-la... esquecer para sempre
que esta carta existe ou que chegou até nós...
Helena toma a carta das mãos de Jéssica, rasga-a e joga-a pela janela.
HELENA:- Pronto... foram para baixo... para o nada... todos os nossos pesadelos... Nós duas, nós
duas - ouviu? - vamos sair daqui... e
vamos ser felizes... Eu te amo! Eu te amo! Será que você não entende? Eu te
amo!
Tempo. Luz baixa.
Jéssica levanta-se da cadeira de rodas, vai até o baú, pega um chicote e um
enorme pênis de borracha, amarra-o à cintura e, estalando o chicote, procura
por Helena.
JÉSSICA:- Helena! Helena! Onde você está, sua diaba... Vem aqui, com seu pai,
vem... Ah! Aí está você... escondendo de
novo, não é? Vamos, de joelhos... de joelhos! Isso, agora segura isso...
vamos... segura... alisa... alisa... Isso... de novo... com vontade... Vamos!
Mais forte... mais forte... mais forte! Ah! Vou... vou... gozar!
Helena, aterrada,
limpa as mãos.
JÉSSICA:- Se você abrir o bico... já sabe... castigo...
Estalando o chicote
com violência, Jéssica guarda os apetrechos e volta para sua cadeira de rodas.
Luz suave.
JÉSSICA:- Você me ama de verdade, tia Helena?
Helena apenas
concorda com a cabeça, ainda assustada com a cena anterior.
JÉSSICA:- Se você me ama, me leva para dar uma voltinha, tia Helena... uma só...
por favor...
HELENA:- Não! Está... está chovendo... você não viu? Está chovendo... e eu
estou... estou... sabe, as luzes, as luzes da festa! Os convidados estão
chegando... Venha, venha para a janela... Veja! Ali... ali... está vendo?
Aquele homem que está acenando... é ele... é ele! Veja... olhe bem para ele...
Você não deve nunca esquecer esse rosto... ele vai nos ajudar...
Helena afasta-se da
janela, dançando uma música que só ela ouve.
HELENA:- Essa música, Jéssica... Ah! Como eu posso te dizer tudo? Como? Olha!
Você pode duvidar de tudo o que eu digo... você pode duvidar... mas não duvide
nunca de uma coisa... Eu te amo, Jéssica... Eu te amo... disso você não pode
duvidar, nunca... nunca... Eu jurei... eu jurei te proteger... e esse político,
Jéssica... ele é hoje poderoso... ele é o presidente... ele vai nos ajudar...
Helena tira do
bolso uma chave, abre uma gaveta e retira um maço de cartas, amarradas com uma
fita.
HELENA:- Veja... veja, Jéssica... as cartas... quantas cartas eu lhe escrevi...
Veja... Ele vai ter que responder... Uma só... que seja uma só... ele vai ter
que responder, Jéssica!
Jéssica vai até
Helena, toma-lhe das mãos o maço de cartas, desamarra-o e olha atentamente
alguns envelopes.
JÉSSICA:- Essas... cartas... você escreveu todas elas? Escreveu? E não enviou
nenhuma... não pôs no correio! Você escreveu... escreveu... e guardou? Você não
mandou nenhuma!
Jéssica joga-as
para cima, espalhando-as pelo apartamento.
JÉSSICA:- Cartas! Cartas para o presidente! Por quê, minha tia? Por quê? Por quê?
HELENA:- Eu tive... eu tenho um sonho... Você será rica, Jéssica... você será
rica... Vou-lhe comprar os melhores vestidos... cobrirei seu colo de joias... E
vamos viajar, Jéssica, vamos sair desse buraco... Europa! Sei, lá... Japão...
Você já ouviu falar no Japão, Jéssica? Dizem que lá eles têm muita máquina,
muito robô... tecnologia, sabe? E então, eu vou mandar fazer pra você, no
Japão, uma cadeira de rodas supermoderna, com motor, com uma porção de
botões... e você vai poder voar, Jéssica, você vai poder voar na sua cadeira de
rodas...
JÉSSICA:- Chega! Chega! Tia Helena, escuta... escuta... Não tem presidente, não
tem proteção... nem fortuna... Só o cadáver de um avô que eu julgava morto há
muitos anos e agora volta... volta como um cadáver recente... Isso é a realidade,
tia... E esse prédio caindo aos pedaços... nós vamos cair junto com ele, tia...
Nós vamos ser demolidos com ele... Suas cartas, suas cartas ao presidente... se
você as tivesse enviado, não teria mudado nada... nada, tia... Vamos embora
daqui, antes que seja tarde...
Pequena pausa.
JÉSSICA:- Tia... tia... você não menstrua nunca?
HELENA:- Você... está... louca?
JÉSSICA:- Nunca vi... nem um sinal... sangue no banheiro... Modess no lixo...
Nada! Você não menstrua, tia?
HELENA:- Veja este retrato: sabe quem é ela? Sabe?
Helena mostra a
Jéssica uma foto de revista, com uma modelo nua.
HELENA:- Sua mãe, Jéssica... Sua mãe! Não era bonita? Não era?
JÉSSICA:- Preferia estar morta a ter uma mãe assim...
HELENA:- Você acha que sua mãe não podia ser assim? Acha? Me diz: você pensa que
sua mãe gerou você por obra e graça do Espírito Santo? Que sua mãe não trepou,
não fodeu, para te gerar?
JÉSSICA:- Para, para com isso... não me interessa. Minha mãe era pura, ouviu...
Pura. Não ficava lendo revistinha de sacanagem...
HELENA:- E você? E você? Também não lê minhas revistas? Não se excita com as
fotos de homens e mulheres trepando como animais? Não se masturba escondida? Eu
sei... já vi manchas na sua calcinha... Você, como sua mãe, também ejacula
quando goza... Sabia disso, sabia? Há mulheres que ejaculam quando gozam! E sua
mãe era assim... Quanto maior o prazer, mais escorria um líquido branco, de
cheiro e sabor agridoce... Isso enlouquecia os homens... Deixava todos eles malucos
por sua mãe... Uma mulher que ejacula quando goza: sua mãe!
JÉSSICA:- Não! Não! Por favor, não! Eu prometo não mexer mais em suas revistas...
Eu prometo... Não fale assim de minha mãe, por favor, tia... não fale...
Helena tem nova
crise de vômito e sai. Jéssica vai até a janela, em sua cadeira de rodas, e
olha para baixo. Fala com o pássaro empalhado.
JÉSSICA:- Olha... olha lá, Rúbi, deu certo... Deu certo! Ele está lá no parapeito
do prédio, esticadinho, Rúbi... ele está morto, Rúbi, aquele desgraçado do gato
preto que andou rondando nossa janela, Rúbi... esticadinho lá embaixo... Bem
feito! Ele queria te comer, Rúbi, e isso eu não ia deixar... A gente tem que
matar quem nos ameaça, não é mesmo, Rúbi?
Helena retorna.
HELENA:- Matar? Matar quem, Jéssica?
JÉSSICA:- Nada, não, tia... Falava aqui com o Rúbi...
HELENA:- Cadê a carta... onde você escondeu a carta?
JÉSSICA:- Que carta, tia... está louca? Você jogou a carta pela janela!... Tia,
eu li num livro que um pai brinca, faz carinho, briga, dá banho e leva a gente
pra passear. Porque a senhora nunca fala de meu pai?
HELENA:- É preciso rezar, Jéssica, é preciso rezar muito. Vamos, reze comigo.
Pai nosso, que estais no céu, santificado seja Vosso nome. Esse o único e
verdadeiro pai. Venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade, assim na
terra como no céu. Livrai-nos da sede que embebeda e leva para a morte.
Livrai-nos do sexo que corrompe e leva para a morte. O pão nosso de cada dia
nos dai hoje. O pecado que mora dentro da gente e nos leva para a morte.
Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido... Não! Há ofensas que não podemos perdoar, Pai, há ofensas que não
podemos perdoar... Mas perdoa assim mesmo, Pai... E não nos deixeis cair em
tentação, mas livrai-nos do mal, livrai-nos do mal, meu Pai...
Batidas fortes na
porta. Jéssica corre, em sua cadeira de rodas, para o esconderijo. Helena fica
paralisada, com o medo estampado no rosto, até que as batidas cessem e passos
indicam que o intruso foi embora. Helena corre até um baú ou guarda-roupas e
tira um surrado vestido de baile e começa a vestir-se e pintar-se. Jéssica sai
do esconderijo e fica contemplando-a por algum tempo e depois começa a girar em
torno dela, com sua cadeira de rodas.
JÉSSICA:- O que é isso, tia... Por que todo esse luxo? Vai a algum baile, vai?
Vai encontrar um namorado ou... amante? Ou só vai até a esquina para comprar
mais revistinha de sacanagem? Puxa! Que batom bonito, esse... Tão vermelho...
parece menstruação... e essas unhas, tia, não vai passar também um esmalte...
assim, bem vermelho?! Precisa fazer o pé, tia... precisa arrumar melhor esse
cabelo... se não seu namorado não vai gostar... ou será seu amante? Hem, tia,
hem? Que tal uma lingerie mais fina? Igual àquelas mulheres de suas revistas?
Hem? Uma cinta-liga preta! Calcinha rendada... meias de seda...
HELENA:- Chega! Chega! Por favor, Jéssica! Chega! Eu vou... eu vou... eu vou ao
baile... É isso! Veja... vem até a janela e veja lá fora... Os convidados estão
chegando, Jéssica... só estão esperando por mim... E eu vou dançar, Jéssica...
Dançar, assim... Olha... Veja como eu danço bem... Todos vão querer dançar
comigo, Jéssica... Uma valsa vienense... Danúbio Azul... Veja como eu danço,
Jéssica... Você nunca vai conseguir dançar assim, Jéssica...
JÉSSICA:- Você é tão ridícula nessa sua dança desengonçada, que ainda vai acabar
voando pela janela...
HELENA:- Veja... eu sou a rainha da festa, ouviu? Até o presidente vai querer
dançar comigo!
Helena continua
dançando sem música, por alguns instantes, enquanto Jéssica vai-se
transformando: seu rosto e suas mãos ficam crispadas de ódio, ela levanta-se da
cadeira já com o chicote nas mãos e pega Helena pelo braço, numa demonstração
de força inaudita, fazendo-a ajoelhar-se.
JÉSSICA:- Sua cadela maldita! Eu vi você se roçando toda no capataz da fazenda...
eu vi! Eu te mato, maldita... Você é só minha...
HELENA:- Não, meu pai... não! Eu juro! Eu não fiz nada!
JÉSSICA:- Nem vai fazer, sua vadia... Nem vai fazer... Vamos, me beija...
vamos...
As duas se beijam
longamente. A luz baixa. Helena se desfaz do vestido, enquanto Jéssica retoma
lentamente seu lugar na cadeira de rodas. Um instante de silêncio.
JÉSSICA:- Tia... tia, por que você não menstrua, tia... Eu também queria não
ficar menstruada, tia...
HELENA:- A carta! A carta! Onde você escondeu a carta?
JÉSSICA:- Eu odeio ficar menstruada, tia... Eu odeio!
HELENA:- Onde você escondeu a carta?
JÉSSICA:- Nunca houve carta nenhuma... você está louca... você é louca...
HELENA:- Seu pai...
JÉSSICA:- Pai? Que pai? Agora eu tenho um pai?
HELENA:- Não! Seu pai, não... Seu avô... Ele morreu, mesmo?
JÉSSICA:- Seu irmão com nome de mulher... Como é mesmo o nome dele?
HELENA:- Guiomar... Isso não interessa... Eu matei seu... seu... avô!
JÉSSICA:- Nem aquele gato maldito que queria comer o Rúbi você matou...
HELENA:- Matei... matei, sim... Há muito tempo...
JÉSSICA:- Muito engraçado: quando descubro que tenho uma família, fico sabendo de
um tio com nome de mulher... a tia que
nunca menstrua diz que matou o pai, meu avô... um avô que eu nunca soube que
existia e que aparece, assim, de repente, numa carta que não existe, e...
morto... um cadáver assassinado a quilômetros de distância, lá nos
interiores... de não sei onde... Que família!
Helena ajoelha-se
aos pés de Jéssica e coloca a cabeça sobre suas pernas.
HELENA:- Você me perdoa? Diz que me perdoa...
Jéssica tira do
bolso uma carta.
JÉSSICA:- Esta carta está dizendo que seu pai... meu avô... foi enterrado nu!
HELENA:- Nu? Ele foi enterrado nu?
Levanta-se e começa
a andar de um lado para outro, como louca.
HELENA:- Nu? Ele foi enterrado nu? Não! Não pode ser! Isso, não! Não podiam
fazer isso comigo... Me dá essa carta... Você não disse que...
Helena tenta pegar
a carta das mãos de Jéssica que, rápida, vai até a janela e ameaça jogá-la.
JÉSSICA:- Eu menti... o que você jogou foi outra carta... Talvez uma daquelas que
você escreveu para o presidente... Agora você enviou... pelo vento... Não! Não
se aproxime... essa é a verdadeira e eu vou jogá-la, sim, pela janela... e você
nunca vai poder saber o que essa carta diz... e ela diz muita coisa...
HELENA:- Por favor, me dá a carta... Me dá... Eu... eu...
JÉSSICA:- Você o quê? Vai querer fazer comigo o que fez com meu... meu avô?
HELENA:- Eu não matei seu avô, se é isso que você pensa...
JÉSSICA:- Mas matou meu pai!
Helena estende a
mão em direção a Jéssica, num gesto de horror e depois de carinho. Vai até a
sacola com que chegou da rua e tira uma boneca. Leva-a até Jéssica.
HELENA:- Para você... eu trouxe para você... minha menina. Você é a minha
menina. Não vou deixar nunca que o mundo seja mau para você, minha menina.
Venha, venha pegar a sua boneca... eu comprei para você... venha...
Jéssica encolhe-se
em sua cadeira e esconde a carta. Como uma menininha, tenta aproximar-se de
Helena e pegar a boneca. Num acesso de fúria, Helena joga, pela janela, a
boneca e a gaiola do pássaro empalhado.
HELENA:- Você duvidou de mim... você duvidou de mim... Eu sempre fiz o que você
queria... eu sempre fiz tudo o que você queria, meu pai...
Jéssica assume o
papel do pai. Levanta-se da cadeira com o chicote e avança para Helena.
Estala-o com fúria.
JÉSSICA:- Embuchada... você está embuchada! De quem é esse filho, sua puta
maldita? De quem? Vamos... me diga!
HELENA:- O filho é... o filho é... seu, meu pai! Eu juro!
JÉSSICA:- Mentira! Você andou roçando por aí...
HELENA:- Só você me tocou, meu pai... só você...
JÉSSICA:- Vou arrancar esse filho de seu ventre, sua porca... vou matá-la!
HELENA:- Não, meu pai... não! Veja: eu sou sua... Eu ainda estou bonita... e sou
sua...
Abre o vestido e
mostra-se, sedutoramente, para o “pai”. Jéssica pega um pênis de borracha e
amarra-o ao ventre. Aproxima-se de Helena, para possuí-la. Ambas simulam um ato
sexual. Quando o “pai” atinge o orgasmo, ficando largado no chão, completamente
inerte, Helena levanta-se lentamente, vai até uma gaveta qualquer, pega uma
tesoura grande e aproxima-se do “pai”.
HELENA:- Perdoa, meu pai... perdoa... eu te amo muito, meu pai... eu te amo...
eu serei sempre a sua menina levada, meu pai... Perdoa... perdoa... teu sangue
está dentro de mim... meu pai... o sangue que vai correr nas veias dessa
criança... Perdoa...
Num gesto
repentino, corta o pênis do “pai”. Batidas fortes na porta. Blackout. Quando as
luzes voltam, há apenas uma mancha vermelha no chão e Jéssica, sentada em sua
cadeira, acaricia uma boneca, a mesma que Helena atirara pela
janela. Está completamente alienada. Canta, num misto de carinho e crueldade.
JÉSSICA:- “Dorme, filhinha, filhinha da mamãe... mamãe gosta tanto dela... mas se
não dormir direito, mãezinha joga pela janela...”
Tira a carta do
bolso e olha-a por um instante.
JÉSSICA:- Meu avô morreu... meu avô morreu... ou foi meu pai quem morreu? E foi
enterrado nu... completamente nu... Helena! Cadê você, Helena? Por que você não
menstrua, Helena... Você não menstrua nunca, Helena? Então, esse sangue... de
quem é esse sangue, minha mãe... de quem?
Gira com a cadeira,
correndo de um lado para o outro.
JÉSSICA:- Mãe! Mãe! Estou sozinha, mãe... nesses andares todos... estou sozinha,
mãe... Me ajuda, mãe... Estou sozinha... Por quê, mãe? Por que estamos
sozinhas, mãe? Por que estamos sozinhas?!!
Helena entra. Está
cega e guia-se por uma bengala. Aproxima-se de Jéssica e cobre-lhe,
desajeitadamente, as costas com uma blusa. Acaricia-a. Jéssica puxa sua cabeça
e beija-a.
HELENA:- Vamos, minha filha... vamos... Você será meus olhos e eu serei seus
passos... Vamos...
Sai, empurrando a
cadeira de rodas de Jéssica.
FIM
segunda-feira, 23 de julho de 2001

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