(drama)
Telefone: (11)5011-9628
2002
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SBAT 2590 |
DATA 16.9.2002 |
FBN 269.325 LIVRO 483 FOLHA 485 |
Personagens:
PAI: diretor de
teatro, mais ou menos cinqüenta anos.
MÃE: dona de
casa, mais ou menos quarenta e cinco anos.
PEDRO: filho de
ambos, jovem.
IVAN: um pouco
mais velho que Pedro.
MÃE DE IVAN: jovem e
bela.
FRANCISCO: travesti.
IRMÃS DE PEDRO:
representadas por bonecos, que compõem os cenários dos jantares da família.
RESUMO
Pedro odeia
teatro, mas seu pai é dramaturgo e encenador.
Homossexual, apaixona-se por um dos atores que trabalham na montagem de
Henrique V, sem saber que esse amor poderá complicar sua vida e sua relação com
a Mãe e com o Pai, por esconder fatos muito graves do passado.
╬
Diretor/Pai ensaia cena de Shakespeare, com
ator/Ivan.
ATOR/IVAN:- “Trinquem os dentes,
vibrem as narinas, / Prendam o fôlego, e que a bravura / Se mostre em cada um
plena e altiva! / Avante, ingleses nobres, que nasceram / De pais enrijecidos
pela guerra; / Pais que, quais tantos Alexandres, / Nesta terra lutaram, noite
e dia, / Parando só por falta de oponentes. / Honrem as suas mães provando hoje
/ Que os que chamam de pais é que os geraram...” (1)
DIRETOR/PAI:- Porra! Está uma
merda!
ATOR/IVAN:- Você está sempre implicando...
DIRETOR/PAI:- Você não está
segurando o personagem... Estamos falando de Henrique V... Shakespeare constrói
um herói íntegro, bondoso, justo e, sobretudo, um herói... um homem, ouviu, um
homem com H maiúsculo...
ATOR/IVAN:- Você está insinuando...
DIRETOR/PAI:- Que saco! Não estou
insinuando mais nada: quero que você seja macho, só isso! Macho! Veados no
teatro só deviam fazer papéis... deixa pra lá... vamos recomeçar...
ATOR/IVAN:- O senhor diretor não tem convivido
bastante com sua família, ultimamente? Tem?
DIRETOR/PAI:- O que você está
querendo dizer?
ATOR/IVAN:- Nada, nada...
DIRETOR/PAI:- Se voltar a falar na
minha família de novo... Posso não crer em nada, mas o bem mais precioso de um
homem é a família, ouviu? Meus filhos são tudo o que eu tenho de mais...
mais... você não vai entender isso nunca... você não tem família, você é
sozinho no mundo... E tem mais uma coisa, senhor grande ator de merda: só o
sucesso importa, na nossa profissão, só o sucesso compensa tudo... nossas
frustrações, nossos pesadelos, nossas humilhações... Ouviu? Só o sucesso!
Um foco de luz sobre Pedro, que está vestido
de terno e gravata e porta uma maleta executiva. Enquanto ele fala,
desmancha-se a cena do ensaio e arma-se a cena do jantar, com a Mãe arrumando a
mesa.
PEDRO:- Este é meu pai: um homem de teatro. Eu
odeio teatro. Queria ser artista plástico, desenhista, sei lá... Começa aí
minha encrenca com meu pai, que
só tinha olhos para o teatro e achava que todas as demais artes eram
inferiores... Um pai que eu amo e que eu odeio. Mas não é para falar de mim
que eu estou aqui. Deixe-me apresentar: meu nome é Pedro, filho mais velho...
Porra, já disse que não estou aqui para falar de mim... Quero falar de meu pai, de minha família. Meu pai é homem de teatro, dramaturgo,
encenador, sei lá: já disse isso. Um dia levou-me para ver uma peça de um
americano que nem sei o nome... o cara começa a peça fora do palco... como eu,
agora, estou fazendo... só que isto aqui não é teatro, é a vida... é a
verdade... ou, pelo menos, a minha verdade...
MÃE (falando para si mesma):- Pedro, ah! Esse meu
filho é tão mentiroso!...
PEDRO:- Eu não sou dramaturgo e não sei
escrever teatro... por isso, não é teatro o que lhes vou contar... Sabem,
fiquei imaginando apenas que, se um dia minha família virasse drama, eu
começaria essa peça assim, como estou agora... como o americano cujo nome
esqueci...
PAI (retornando):- Tennesse Williams...
Tennesse Williams... (faz um gesto de desolação e sai).
A
Mãe termina de arrumar a mesa e fala para algum ponto no interior da casa.
MÃE:- Pedro... ó Pedro, meu filho... vem logo,
está na mesa! Vai esfriar!...
PEDRO:- Já vou num instante, Mamãe...
MÃE:- Avise também o seu Pai!
PEDRO:- Meu Pai não está em casa... mas ela
sempre manda avisar Papai... Já vou, Mamãe, só estou esperando um amigo... ele
está procurando uma vaga para estacionar!... Como eu ia dizendo, e se não era
isso que ia dizendo, fica sendo... minha família começou comigo, o filho mais
velho, esperança de bom emprego, segurança... continuidade... Minha mãe sempre
quis um neto, não um neto qualquer, fruto do ventre feminino de minhas irmãs,
mas um neto do macho primogênito: meu filho! Mãe! Mãe! Meu amigo chegou... Já
vamos entrar!... Ah! os jantares de minha mãe... eram sagrados! Todos
reunidos... não importava de onde viessem, não importava o trânsito... não
importava nada... todos deviam reunir-se para o jantar... e isso era sagrado!
Entra o “amigo”. Os dois dão-se as mãos e
beijam-se apaixonadamente, fazem um gesto de cumplicidade e dirigem-se para a
mesa posta para o jantar. A Mãe, que saíra por um instante, volta, com uma
terrina de sopa – que deposita sobre a mesa.
MÃE:- E seu pai? Você não avisou seu pai que o
jantar está servido? Ah! Que louca eu sou, não é mesmo? Seu pai... seu pai
vai-se atrasar, de novo... Sabem como é, teatro... esse negócio de teatro é
sempre muito complicado... nunca nada acontece na hora, não é mesmo? Oh! Que
descuido o meu... aqui tagarelando... como... como uma idiota... e seu amigo...
ele vai pensar que sou louca, não é mesmo? Vamos... apresente-me seu amigo...
Ah! Parece que já nos conhecemos... Já nos conhecemos... Não, não... é que
Pedro fala tanto de você, que parece que já nos conhecemos há muito...
Sente-se, sente-se, por favor... não faça cerimônia... não repare... nossa mesa
é simples, mas muito farta... Pode nos faltar tudo, mas que não nos falte o
alimento, não é mesmo, Pedro?... Uma... uma comidinha simples... sem luxo...
mas feita com muito carinho... Pode nos faltar tudo... menos comida, não é
mesmo, Pedro?... Sirva seu amigo... esteja à vontade...
Enquanto todos começam a servir-se
animadamente, Pedro levanta-se da mesa e dirige-se ao público. Durante sua
fala, aos poucos, desmancha-se a cena do jantar.
PEDRO:- Cozinha como ninguém, minha Mãe...
Mas sempre diz que é uma “comidinha simples”. Nossa geladeira está sempre
cheia... nossos armários de cozinha, sempre cheios... o freezer, sempre
cheio... de comida... Comida! Se eu lhe pedia biscoitos, ela corria a comprar –
os mais variados e os mais finos... – e eu distribuía entre os meus colegas na
escola e provocava inveja em todos eles... Se meu Pai lhe pedia um macarrão no
almoço de domingo, lá ia ela comprar massas, massas de todos os tipos, de todos
as marcas, grano duro, da Itália... com ovos... sem ovos... espaguete, pene,
taglarini, rigattoni... e não sei que mais... e eu ficava pensando como meu pai
não engordava comendo tanta massa... com todos aqueles molhos e temperos... de
cada país aonde ia meu Pai ou que ele fizesse menção de ir... Uma vez, Papai,
voltando da França, comentou que provara num restaurante típico chinês carne de
cobra... Argh!... E gostara... Foi o suficiente para nossa geladeira se encher
de carnes, muitas carnes... filés, frangos, perus, picanhas, alcatras,
faisão... Acho até que ela andou procurando carne de cobra! Muita... muita
comida... Tennessee Williams... o americano... acho que era Tennessee Williams… Merda! Tanta comida na geladeira, nos
armários, no freezer... para tudo virar merda, vômito!... Mas essa era... era,
não... é a minha Mãe... Mesmo quando meu Pai...
Luz sobre a Mãe e o Pai.
MÃE:- Você gostou do bacalhau que eu fiz? Gostou?
Usei o lombo... a parte mais nobre do bacalhau... Diz... diz que gostou...
PAI:- Estou indo embora...
MÃE:- Amanhã eu vou fazer um estrogonofe... que
você gosta... Eu vou fazer... Já tenho tudo comprado, meu querido, achei um
creme de leite importado...
PAI:- Ela é jovem... muito jovem, sim... Não sei
se a amo... Nos damos bem, no palco... na cama, às vezes... Talvez seja uma
grande bobagem... dentre tantas outras de minha vida... Não sei... não sei mais
o que digo... não sei mais o que eu quero... Perdi meu rumo...
MÃE:- Pedro vai mudar de emprego... Recebeu uma
proposta... Vai ganhar o dobro! Pedro é o teu rumo, meu marido...
PAI:- Não sei se volto para o jantar...
MÃE:- Eu sei que você vai, eu sei que você
volta... Você sempre volta... Os homens sempre voltam... E seu prato estará
sempre na mesa... Sempre... sempre...
Apagam-se
as luzes sobre o Pai e a Mãe. Pedro retoma a narrativa.
PEDRO:- Sabe, há também um alemão...
Bertold... Bertold... Bertold Brecht! Isso! Lembrei…
Bertold Brecht! Meu Pai falava muito nele… ainda fala, porra! É que eu penso
que... puxa, que Deus me perdoe, mas às vezes penso que ele está morto... que
meu Pai não me ouça falar isto: “que Deus me perdoe!” – ele... ele é ateu...
mas ele não está morto, apenas saiu de casa!...
MÃE (em off):- Pedro! Pedro! Pedro,
meu filho... cadê você, meu querido?
PEDRO:- Estou aqui, Mãe... Quero
apresentar-lhe um amigo...
Entra o “amigo”. Beijam-se apaixonadamente.
Entra a Mãe.
PEDRO:- Mãe... este é o meu amigo, Ivan...
MÃE:- I... Ivan!? Mas...
IVAN:-
Muito... muito prazer... minha... senhora...
MÃE:- Sim... sim... Mas... você... é... amigo...
do meu filho?... Sim, sim... amigo. Muito prazer, Ivan... O Pedro... o Pedro
fala muito de você, não é, mesmo, meu filho? Você... você fica para o jantar,
com certeza... Estou fazendo uma receita nova de salmão, você gosta de peixe,
não é, mesmo? Eu sei... eu sei que você deve gostar de peixe... Ah! E vou fazer
sonhos para sobremesa... Você gosta de sonhos, não é mesmo... I... Ivan?...
IVAN:- Não sei se...
MÃE:- Deve! Deve, sim, ficar para o jantar...
deve, sim... Amigos de meu filho são sempre bem-vindos nesta casa...
principalmente se gostam de sonhos...
Pedro retoma sua fala.
PEDRO:- Não entendi, naquele dia, o
constrangimento de mamãe, com meu amigo... antes ou durante o jantar... Mas ele
acabou ficando para o jantar e tudo transcorreu... bem... transcorreu...
Retoma-se a cena do jantar. Pedro e o “amigo”
sentam-se com a Mãe e riem descontraidamente. Entra o Pai, transtornado, num
terno todo amassado e gravata frouxa. Está visivelmente bêbado, mas procura
manter uma certa dignidade.
MÃE:- Eu não disse que o Pai viria? Eu não disse?
Ele sempre vem... Atrasado, mas vem... Sente-se, querido... Estávamos esperando
por você... A gente entende que o ensaio sempre atrasa... Ensaios sempre
atrasam, não é mesmo? Sente-se... Vou aquecer a sopa...
PAI:- Você... você, Pedro... disse que mora... que
divide um apartamento...
PEDRO:- Sente-se, meu Pai, você está tão
bonito, nesse terno novo... Sente-se...
PAI:- Não! Perto dele, não...
PEDRO:- Este é o meu amigo, meu Pai... Já lhe
disse que...
PAI:- Você não disse que dava o rabo para esse
daí...
PEDRO:- Isso não é teatro, meu Pai... Dar o
rabo é coisa de teatro... Seja mais...
PAI:-... delicado? É isso o que você quer
dizer? Delicado? Não acha que já temos “delicadeza” demais nessa casa? Diz!
Você não acha que já está na hora de termos uma conversa de macho? Afinal, não
foi como macho que sua mãe o criou? Não foi com “delicadeza” que, afinal, você
apresentou esse... esse...
PEDRO:- Espere! Não diga nada de que você
possa arrepender-se mais tarde... Como num teatro, num filme, sei lá, vamos
congelar a cena...
Pedro dirige-se à platéia.
PEDRO:- Meu Pai! Esse, o meu Pai... Não, esse
não é o meu Pai! Sempre o vi como um homem sem... sem preconceitos, entende?
Artista, homem do teatro, acostumado a viver mil vidas em um ato... mil
conceitos e preconceitos em uma fala de Shakespeare... mil sentimentos em um
ato de Ibsen... Não! Não podia crer em meus ouvidos, não podia acreditar em
meus sentidos: um Pai que a gente cria e imagina e constrói através da
infância, da adolescência... e que chega à idade adulta como um modelo... um
modelo de Pai... de tolerância... de fidelidade!... E esse Pai, num momento
besta de revelação, aparece como... como um... como um troglodita!...
Pedro volta à mesa. Retoma-se a cena.
PAI:- Você apresentou esse... esse cara aí como
seu amigo... Amigo! Amigo?! Dormindo em cama de casal... cama de casal!...
Eu... vi... ninguém me contou, não... eu vi... Naquela bosta de quitinete só
tem uma cama... e de casal!...
PEDRO:- Você... você invadiu meu
apartamento?!! Eu não acredito...
PAI:- Eu precisava ver... Eu precisava ver como
você estava morando... Subornei o zelador... para descobrir que você...
PEDRO:- Não há nada de mais, meu Pai... e
minha Mãe... Somos uma família... moderna... sem preconceitos... Portanto,
pedindo desculpas a todos por minha falha... por nossa falha... quero
apresentar a todos o meu “amigo” que não é amigo... que é... vamos dizer
assim... meu companheiro... a pessoa que eu amo... Tudo bem?
Pedro dirige-se ao público.
PEDRO:- Só me lembro de um mal-estar e de um
silêncio iguais a esse, há muitos anos... Não... não foi nunca um silêncio como
esse... É preciso voltar... Voltar no tempo, para entender esse silêncio e o
que se seguiu a ele... o que se seguiu a ele... Meu Deus, que meus ouvidos me
levem à loucura, mas nunca mais eu quero o silêncio de um momento como
aquele... (Pausa). Foi num dos famosos jantares de minha mãe...
Recompõe-se a cena do jantar, numa outra
época, com todos os personagens, menos Ivan. A Mãe está arrumando a mesa do
jantar, o Pai lê um jornal.
MÃE:- E o
Pedro que não chega!... O que será que houve, meu Deus... o jantar já está
quase servido...
PAI:- Será
que um dia, na vida, não podíamos jantar só nós dois? Eu e você nunca pudemos
conversar como dois civilizados...
MÃE:-
Logo hoje, essa passeata... Ainda tenho medo de passeatas, tenho medo dessas
manifestações... tenho medo...
PAI:- Preste
atenção, mulher: o mundo lá fora está desabando para colocar pra fora um
presidente corrupto... mas e nosso mundo aqui dentro, hem? Como fica o nosso
mundo aqui dentro? Você não vê que tudo está desabando também? E você com
medo... medo de polícia! E preparando um jantar para uma família que...
Entra Pedro, rosto pintado, na maior
animação, ainda gritando slogans como “Fora, Collor”, “Corrupto”, “Ladrão”.
PEDRO:- Foi o maior sucesso, Pai... Uma
multidão... que você nem imagina... Estão dizendo que ele vai renunciar...
MÃE:- Venham para a mesa... O jantar está
servido... Vem, meu marido... meu filho...
Todos
se sentam à mesa.
PEDRO:- Uma grande vitória da democracia, meu
Pai... Ele tem de sair: esse canalha
está fodendo o país!
MÃE:- Que isso, meu filho, olha a boca... Respeite
o seu pai...
PEDRO:- Desculpe, meu pai, mas a palavra só
pode ser essa... Temos um filho da puta na presidência... que está nos
fodendo... fodendo!
MÃE:- As pessoas passam, o país fica, meu filho...
Existem coisas mais importantes, como valores: falar a verdade, sempre...
Preservar a família... Trabalhar por um futuro melhor...
PEDRO:- É isso aí, minha Mãe... Nunca pensei
que a senhora fosse tão... tão... politizada!
MÃE:- Você fica aí zombando... fica... Mas o que
queria mesmo saber é quem teria coragem de confessar, assim, de cara aberta,
que votou no Collor...
PEDRO:- Taí uma coisa que eu respeito... Não
concordo, mas respeito: gente que deu a cara pra bater... que fez campanha e
agora não tem coragem de sair a público para condenar o que ele está fazendo...
MÃE (encarando Pedro):- Eu repito: gostaria
de saber aqui, na minha família, quem votou no Collor e não disse nada? Hem?
Quem? Vamos lá, quem admite que votou nele?
Um breve instante de silêncio. Todos se
entreolham.
PAI:- Eu... Eu... Eu votei nele... Disse que ia
votar no Lula, mas na hora “h” votei nele, sim... Nunca disse isso pra
ninguém... Nunca admiti isso...
Depois de um instante de estupefação.
PEDRO:- Pai... o senhor teve a coragem...
MÃE:- Pedro! Você não vai atirar a primeira
pedra...
PEDRO:- Desculpe, minha Mãe... desculpe...
Atirar a primeira pedra significa esconder nossas misérias mais íntimas... Eu
confesso... só a Mãe sabia... eu confesso... Eu também votei no Collor!
MÃE:- Vocês votaram nele... como muita gente que
até hoje esconde o voto... Se não tivessem votado, ele não seria o presidente,
não é mesmo? Pois essa vergonha eu não vou levar nunca para o meu túmulo: nunca
votei nem no Collor, nem no Jânio... E sou eu a mais “politizada” da
família!...
Enquanto se desmancha a cena, cada personagem
fala com o público.
PEDRO:- A pior traição, a meu ver, é a
traição silenciosa, pérfida, que se cala quando devia falar, que não se mostra
para não se comprometer... Naquele dia, ruía um pouco da admiração que eu tinha
por meu pai... Naquele momento, no entanto, eu não podia atirar pedra
nenhuma... Meu rabo também estava preso, muito preso... embora eu não fosse,
como ele, um formador de opinião... Mas meu rabo estava preso por muitas outras
razões também...
MÃE:- O Pedro é um bom filho... Tem lá seus
defeitos, mas quem não tem, não é mesmo? Casei muito moça, estudei pouco, mas
tenho acompanhado a carreira do meu marido... Enquanto ele crescia no meio
artístico, sempre me escondendo um pouco... Só às vezes ele trazia aqui o
pessoal do teatro e eu ficava na cozinha fazendo o que eles gostavam... E eles
até me elogiavam... Elogiavam a comida que eu fazia... E eu ficava tão
agradecida! “De nada”, “volte sempre”, “puxa, você é mais bonita ao vivo que na
televisão”, “você, também”, “não, ainda não vi... mas eu vou ver, prometo,
dizem que vocês estão fantásticos”, “é... eu vi, sim... na televisão... no
programa da Hebe...” e eu era a dona de casa bem comportada, com cara de
imbecil... Aqueles filhos-da-puta! Bando de chupins!
Mãe dirige-se a um espelho, pinta-se, substitui
o vestido de dona-de-casa por outro mais provocante, arruma-se e, assim,
caminha lentamente ao encontro de Ivan.
MÃE:- Ivan, meu amor, é loucura...
IVAN:- Por que sou mais jovem? Você é a mulher de
meus sonhos...
MÃE:- Tenho um filho de sua idade... e mais duas
filhas...
IVAN:- Eu te amo... E isso é só o que importa...
MÃE:- Duas filhas... jovens... Um dia você irá
conhecê-las...
IVAN:- Como? Conhecê-las
como?
MÃE:- Não sei, não sei... Eu pressinto... Você irá
conhecê-las... Me promete... Promete... olhando aqui, bem nos meus olhos...
Promete...
IVAN:- Prometo tudo o que você quiser, meu amor...
MÃE:-... Você nunca, mas nunca, mesmo, ouviu...
nunca vai sair com uma das minhas filhas... Você promete? Promete que nunca vai
sair com uma das minhas filhas?
IVAN:- Querida, que pensamento louco esse que passa
em sua cabeça... Eu te amo!
MÃE:- Nunca, ouviu, nunca... Você não vai sair
nunca com uma das minhas filhas!... Com nenhuma delas, ouviu? Nenhuma delas! Eu
não suportaria... eu não suportaria perder você... para ninguém... para
ninguém... Eu só tenho você, Ivan, eu só tenho você! Toda a minha vida é apenas
um palco, um palco onde eu atuo dirigida por meus filhos... por meu marido...
IVAN:- Não seja melodramática, minha
querida... Afinal, o ator aqui sou eu... E eu te amo... Já disse: eu te amo!
Pedro fala com o público.
PEDRO:- Conheci Ivan numa das reuniões de
discussão comunitária que minha Mãe freqüentava, no nosso bairro... Essas
reuniões com vereadores e políticos, para melhoria do bairro... que nunca levam
a coisa nenhuma. Eu tinha saído para fumar e, no estacionamento, acabamos
puxando assunto... Nunca soube o que ele fazia ali... por que estava ali...
Disse-me apenas que era a primeira vez naquele tipo de evento... Não era a
minha primeira vez num outro tipo de evento: a amizade que nasceu ali e que
virou paixão... Apesar do fato de que Ivan era ator – o que só vim a descobrir
depois... E eu odeio teatro!
Apartamento de Pedro e Ivan. Eles se preparam
para dormir.
PEDRO:- Você não achou que minha Mãe estava
estranha naquele jantar?...
IVAN:- Estranha? Como vou achar sua Mãe estranha,
se foi a primeira vez que... que a vi... na minha vida...
PEDRO:- Não sei, algo mais aconteceu ali...
IVAN:- Pedro, meu caro, me poupe de sua família, me
poupe de suas preocupações, me poupe de suas neuras... Eu quero é dormir... Boa
noite!
Eles deitam-se de costas um para o outro e
apagam as luzes de cabeceira. Um instante de silêncio.
PEDRO:- Ivan, meu querido, eu te amo...
IVAN:- Eu também te amo...
PEDRO:- Promete não me trair... Promete?
Principalmente com mulher... Você nunca gostou de mulher, não é mesmo?
IVAN:- Só de mulheres mais velhas... como sua Mãe,
por exemplo...
PEDRO:- Não brinque com isso... Posso
sobreviver a que você me traia com outro... posso sobreviver... mas com mulher,
não... Isso eu jamais conseguiria suportar... Eu te amo... Eu te amo, Ivan...
Você nunca saberá o quanto...
IVAN:- Quero sua Mãe... como minha Mãe, seu bobo...
Esqueceu que não tenho mãe? E agora vamos dormir... Eu... também... também te
amo...
Depois de um instante, Ivan levanta-se e,
enquanto se veste para sair, fala consigo mesmo.
IVAN:- Mãe... Mãe do Pedro... Minha Mãe... Onde
você está, Minha mãe? Por que partiu tão cedo? Lembro de você, tão bela, naquele
camarim, preparando-se para mais uma apresentação...
Ilumina-se um camarim, onde uma mulher retoca
a maquiagem diante do espelho.Não é possível ver-lhe o rosto. Entra um
cavalheiro com um chapéu cobrindo-lhe o rosto e portando um ramo de flores, beija-a
apaixonadamente e, descendo a alça de seu negligé, acaricia-lhe os seios. Ivan
apenas olha, extasiado. A luz ilumina o rosto do cavalheiro, que sorri: é o Pai
de Pedro. Apaga-se a “memória” e Ivan vai ao encontro da Mãe de Pedro (que é a
mesma atriz, vestida exatamente igual) e leva-a para o mesmo cenário onde
estava sua mãe, pega do chão o ramo de flores, estende-o para a mulher que se
senta na mesma posição da outra e os dois se beijam. Ivan tira do bolso do
paletó uma adaga vermelha e esfaqueia a mulher. Blackout. Ivan grita. Pedro
desperta, acende a luz de cabeceira e vê o leito vazio. Chama por Ivan,
levanta-se assustado e vai ao encontro de seu companheiro, que está acuado e
chorando num canto. Abraça-o, leva-o de volta para a cama e despe-o.
PEDRO:- Um dia eu ainda vou querer saber...
Ah! Vou, sim... Vou querer saber que pesadelo é esse, meu querido... Você ainda
vai me dizer... e eu vou ajudá-lo... vou sim... Mas você vai ter de me contar
direitinho que sonho mau é esse...
IVAN:- Meus pesadelos... meus pesadelos... Meus
pesadelos não serão também os seus, meu querido?
Blackout. Sons de clarins. O Pai/Diretor está ensaiando mais uma cena de
Henrique V com o Ato/Ivan.
ATOR/IVAN:- “Honrem suas mães provando hoje / que
os que chamam de pais é que os geraram. / Ora copiem homens mais brutais / E
ensinem-nos a guerrear. Vocês, / bom povo que foi feito na Inglaterra, / Provem
hoje o valor do que os nutriu. Juremos que honrarão os que os formaram, / O que
eu não duvido; pois aqui / Não há um só tão vil, tão mal nascido, / Que não
traga no olhar um brilho nobre...”
DIRETOR/PAI:- Porra! Que merda!
Você está vomitando o texto!
ATOR/IVAN:- Vomitando? Você disse
“vomitando”?
DIRETOR/PAI:- Shakespeare está
falando de pátria! De honra! De passado ilustre...
ATOR/IVAN:- E você está falando de vômito... Deve
entender muito de vômito, não é mesmo?
DIRETOR/PAI:- Você está me
desafiando? Está? Acho que você ainda não me entendeu, senhor atorzinho de
porra nenhuma: só eu serei capaz de transformar você em sucesso, sabia? Eu já
lhe disse mil vezes que...
ATOR/IVAN:-... só o sucesso importa... Só o
sucesso importa... Já ouvi isso mil vezes, sim, senhor Diretor... Mas será que
o sucesso compensa mesmo nossas humilhações e nossas frustrações? Por que não
olha um pouco para si mesmo, senhor diretor de vômito?!...
Arma-se uma cena de quase agressão entre
ambos, que vai, aos poucos, congelando e escurecendo. Pedro fala com o público.
PEDRO:- Foi uma época difícil... Não podia
dizer à Mãe que fora demitido... sem nenhum motivo... Por pura birra de um
chefe estúpido...
Um
escritório. O chefe é apenas uma voz e um facho de luz. Pedro, cabisbaixo, ouve
a bronca.
VOZ DO CHEFE:- É o que dá prestar
favor a gente de teatro! Seu irresponsável... Fez-me passar o maior vexame,
diante do cliente... com aquele seu relatório estúpido... Posso admitir tudo:
preguiça, mentiras, desculpas pelo atraso... Mas não posso admitir
irresponsabilidade, ouviu? Um relatório técnico... até bem feito... O cliente
estava até satisfeito... quando, de repente, um monte de desenhos... de
desenhos pornográficos!
PEDRO:- Não... eram... pornográficos...
VOZ DO CHEFE:- Não? Não eram? Um
monte de pênis e pêlos pubianos... isso não é pornográfico? Rua! Você está
despedido... Rua!
Pedro
retoma sua narrativa.
PEDRO:-... porque ela contaria para o Pai
que, por sua vez, ia pegar no meu pé... Pegar no meu pé é até um jeito mais...
mais delicado... de falar... Nossa última briga ainda estava em minha
memória...
Pedro aproxima-se do Pai, que está sentado à
mesa de jantar, lendo um jornal.
PEDRO:- Pai... preciso lhe dizer uma coisa...
O
Pai não tira os olhos do jornal.
PAI:- O que é, dessa vez?
PEDRO:- Fui... fui expulso do colégio... Me
pegaram colando... outra vez!
PAI:- Desgraçado! Eu te coloquei no melhor colégio
da cidade, para ver se você aprende alguma coisa de honradez, de amor à
Pátria... para ver se você aprende valores... valores, ouviu?
Tira a cinta e dá-lhe uma surra. Luzes. Pedro
conversa com a Mãe.
MÃE:- Você tem de parar com isso, Pedro...
PEDRO:- Mãe! Mãe! O que você está me dizendo?
Eu não posso acreditar nisso, minha Mãe!
MÃE:- Acredite ou não, eu estou mandando: você tem
de parar de ver esse rapaz!
PEDRO:- Você não está pensando que eu...
MÃE:- Não interessa o que eu estou pensando...
Interessa é que, se seu pai fica sabendo, ele morre de desgosto...
PEDRO:- Pai... você sempre se escondendo
atrás do que o Pai vai pensar... E ele nunca está em casa para dizer o que
realmente pensa...
MÃE:- Seu Pai é um homem muito importante, meu
filho... e muito ocupado...
PEDRO:- Ivan e eu somos amigos... E eu não
vou entender nunca sua implicância com ele... Passe bem, minha Mãe!
A Mãe arruma a mesa para o jantar e fala para
si mesma.
MÃE:- Pedro, ah! meu filho: você é uma mentira, meu
filho... Você é uma mentira!...
Pedro
retoma a posição de narrador.
PEDRO:- Não... não é teatro: é a minha
verdade... E eu gostaria de contar minha verdade como fez aquele autor
americano...
PAI (retornando):- Tennesse Williams...
Tennesse Williams...
Faz um gesto de desolação e sai. A Mãe
termina de arrumar a mesa e fala para um ponto dentro da casa.
MÃE:- Pedro... ó Pedro, meu filho... vem logo,
está na mesa! Vai esfriar!...
PEDRO:- Já vou num instante, Mamãe...
MÃE:- Avise também o seu Pai!
PEDRO:- Meu Pai não está em casa... Mas ela
sempre manda avisar Papai... Já vou, Mamãe, só estou esperando um amigo... Ele
está procurando uma vaga para estacionar!...
Entra Ivan. Os dois dão-se as mãos e, em
seguida, beijam-se apaixonadamente, fazem um gesto de cumplicidade e dirigem-se
para a mesa posta para o jantar. A Mãe, que saíra por um instante, volta, com
uma terrina de sopa. Ao deparar-se com o filho e o amigo, deixa cair a terrina
e tem um leve desfalecimento. Todos a socorrem até que ela retoma o controle de
si e da situação.
MÃE:- Desculpem. Desculpem. Não foi nada. Apenas um
ligeiro mal estar. Seu Pai, seu Pai não virá, como sempre. Queiram sentar-se.
Ah! Que descuido o meu: apresente-me o seu amigo, Pedro...
Fazem-se as apresentações, bastante formais.
Todos começam a servir-se animadamente, enquanto a Mãe se mantém fria e
distante, sem que os demais o notem. Entra o Pai. Usa roupas coloridas e parece
estar com excelente humor. Cumprimenta a todos efusivamente e é recebido
friamente pela Mãe. Senta-se à mesa.
PAI:-
Estive em seu apartamento, Pedro... Não entendi o que você quer que eu faça...
Está tudo tão perfeito... tão em ordem...
PEDRO:-
Você... você... esteve... em meu... apartamento?! Como? Quem... quem lhe deu as
chaves?
PAI:-
Não se preocupe... Não vou contar para ninguém que você e o Ivan... bem, você
sabe... Mas acho melhor você esclarecer a situação com todos nós... Afinal,
somos uma família, como se diz, pra frente... sem preconceitos...
PEDRO:- É, realmente não há nada de mais, meu
Pai... e minha Mãe... e minhas irmãs... Portanto, pedindo desculpas a todos por
minha falha... por nossa falha... quero apresentar a todos o meu “amigo” que
não é amigo... que é... vamos dizer assim... meu companheiro... a pessoa que eu
amo... Tudo bem?
A Mãe levanta-se com ódio nos olhos. Encara
Ivan e Pedro.
MÃE:- Canalhas! Vocês são dois canalhas! E você,
Ivan, nunca podia esperar uma coisa dessas de você!
Sai intempestivamente. Apartamento de Pedro e
Ivan, que chegam e preparam-se para dormir. Passam-se alguns instantes de
silêncio, em que se nota o constrangimento de ambos.
PEDRO:- Você tem que me explicar o que minha
Mãe quis dizer com aquilo...
IVAN:- Não tenho que lhe explicar nada, já lhe
disse mil vezes... Ela é louca e não aceita nossa amizade... É só isso... Nada
mais! E agora pára de me encher com esse assunto e vamos dormir.
Eles se deitam de costas um para o outro e
apagam as respectivas luzes de cabeceira. Pai e Mãe, entre eles a mesa de
jantar. A Mãe segura uma revista.
MÃE:-
Está escrito aqui: você passou o fim de semana na casa dela...
PAI:- Jogada
de marketing... Será que você não compreende?... Não foi a primeira vez: era
preciso promover a peça. Inventaram essa história.
MÃE:-
Estou cheia de suas histórias... Estou cheia de suas mentiras... Estou cheia de
seus amigos...
PAI:- Seus
jantares! Seus magníficos jantares! Sabe para que serviram, sabe?
MÃE:-
Você deve deixar esta casa agora... Neste instante... Não quero mais olhar em
sua cara... Não quero mais ouvir sua voz... Não quero mais ouvir os seus passos
pela sala... Não quero mais ter uma sombra em minha vida!
PAI:- E o
dramaturgo da família sou eu!
MÃE:-
Não estou fazendo drama! Apenas quero que você vá embora, para sempre...
Acabou! Você entendeu? Acabou!
O Pai pega a mala, que já estava ao lado da
Mãe, dirige-se a um cabideiro e pega um chapéu velho. Olha desacorçoadamente
para ele.
PAI:- Isso
tudo é tão ridículo, que eu, que não uso mais chapéu, sou obrigado a pegar essa
coisa antiga e cair fora. Um dramalhão de quinta categoria, indigno de alguém
como eu. Um dramalhão... um dramalhão indigno!
Pára um instante diante da Mãe, que o olha
com desdém.
MÃE:- Não
está esquecendo nada?
Vai até uma gaveta, tira um revólver antigo e
entrega-lhe.
MÃE:-
Uma arma tão inútil quanto você...
Ele sai. A Mãe retoma sua atividade: arruma a
mesa para o jantar, colocando seis pratos em seis lugares.
MÃE:-
Pedro, ó Pedro... Vem jantar... Chame suas irmãs... Avise seu Pai!
PEDRO:- Já
vou, Mãe... Estou esperando um amigo, que está procurando vaga para estacionar
o carro...
MÃE:- Que
ótimo, meu filho, que ótimo que temos visita para jantar... Há quanto tempo não
temos visita para o jantar... Cadê suas irmãs, meu filho... Chame suas irmãs,
que eu fiz o prato que elas mais gostam: macarrão com molho branco e filé com
molho de queijo... Ah! Meu filho, será que seu amigo vai gostar do cardápio? Se
ele não gostar, eu posso fazer outra coisa, qualquer coisa... Vou já começar a
preparar um frango grelhado para ele... Ou talvez um peixe... um salmão com
molho de alcaparras... Eu sei que ele gosta de peixe, não é mesmo? Ah! E
sonhos... Ele adora os sonhos que eu faço... Farei sonhos para sobremesa...
PEDRO:-
Nossa família era um modelo de amizade, de cooperação uns com os outros, de
companheirismo... Meu Pai, mesmo quando ausente por muito tempo, por causa de
suas viagens constantes, temporadas em outras cidades, parecia marcar presença
entre mim e minha Mãe, em todos os momentos de nossa vida...
Apartamento de Pedro e Ivan. Ivan arruma-se
para sair, enquanto Pedro, quase nu, espreguiça-se sobre a cama, fumando
maconha e bebendo vodka.
PEDRO:-
Vem aqui, Ivan... Preciso de você...
IVAN:-
Você precisa é de um bom banho, para curar essa ressaca. Vou sair.
PEDRO:-
Não, não... Fique comigo... Estou uma merda... O bode está difícil de
segurar...
IVAN:-
Vai ter de segurar sozinho... Estou fora, ouviu, estou fora!
PEDRO:-
Fora? Fora de quê? De mim?
IVAN:- De
você, da sua família, das suas mentiras! Você saiu de casa, dizendo a todos
que...
PEDRO:-...
Eu juro, eu juro... Era verdade... Eu tinha um bom emprego... Me prometeram
aumento... Me prometeram promoção...
IVAN:-
Você veio morar comigo e virou de ponta cabeça a minha vida, Pedro... Eu...
eu... preciso de ar... de respirar... Vou sair, não sei que horas volto...
Quando voltar, terei tomado algumas decisões importantes para nossa vida... Até
mais...
Ivan Sai.
PEDRO:-
Meu Pai... meu Pai... me ajude, meu Pai... Você, que sabe tudo, que entende da
porra do Shakespeare... da merda do Tennesse Williams... da bosta do Checkov...
até do Checkov... meu Pai... você nunca entendeu de mim... de mim... seu
filho... Puta-que-o-pariu, meu Pai... me salve! Eu preciso tanto de você, meu
Pai... Sabe, meu Pai, quando eu fui expulso do colégio, meu Pai... Sabe? Não
foi porque eu estava colando, não, meu Pai... me pegaram com um outro moleque,
no banheiro, meu Pai... Me pegaram... E eu não podia mais continuar naquele
colégio... Todos... todos os moleques... eles... eles... todos eles queriam,
depois... Não, meu Pai, eu não vou
mentir mais!
A Mãe entra, com uma bandeja com vários
pratos de comida.
MÃE:-
Meu filho... meu filho querido... Tão magro... não anda comendo direito...
Vamos, levante-se daí... vem ver o que lhe trouxe... O seu prato preferido:
estrogonofe de frango, batatas fritas... E pudim... pudim de sobremesa...
Vem... vem comer... Você está tão magrinho... tão sem cor...
Pedro levanta-se da cama, cambaleando,
sente-se à mesa e, enquanto come com um misto de sofreguidão e asco, usando as
mãos em vez de talher, a Mãe acaricia-lhe os cabelos. Pedro sente dores no
estômago, tem ânsia de vômito e sai correndo para o banheiro, para vomitar.
Enquanto se ouve o barulho da descarga, a Mãe arruma tudo e sai. Pedro volta,
olhos esbugalhados, como um louco, e fala para a Mãe como se ela estivesse
presente.
PEDRO:-
Mãe! Mãe! Por favor, Mãe... Desculpe... desculpe, Mãe... Eu te amo, Mãe... Eu
te amo... mas odeio... odeio a sua comida... o seu tempero... as suas ervas...
Odeio, Mãe... Odeio... Minhas irmãs, Mãe... elas vomitavam para não engordar...
para ficarem sempre magras... Eu...
eu... eu, Mãe, sempre vomitei sua comida por que eu tinha... eu tinha
ódio, Mãe... ódio de tudo... de meu Pai... da vida... de ser... de ser um
homossexual, Mãe... de ser uma bicha louca a vomitar tudo o que sua Mãe servia
no jantar, a encontrar namorados, amantes, homens, pelas ruas, à noite, quando
todos pensavam que eu estava nas baladas atrás de mulher... Eu odeio tudo isso,
minha Mãe... Eu odeio... Eu queria ser respeitado, minha Mãe... Fazer meus
desenhos... Pintar... Sei, lá... Eu queria qualquer coisa... menos ser o que
sou, minha Mãe!
Pai/diretor e Ivan/ator ensaiam mais uma cena
de Shakespeare.
PAI/DIRETOR:- Vejamos:
Henrique V está diante de Harfleur, há no ar um agito... um gosto de perigo...
de sangue... a batalha está para começar... É preciso que os ingleses se
inspirem... se inflem de coragem, já que estão inferiorizados...
IVAN/ATOR:-
Você está me subestimando... Já disse isso mil vezes... Já estudamos essa cena
umas trezentas vezes...
PAI/DIRETOR:-
(...) Não! É mais adiante... uma tentativa de parlamentação... mas Henrique
promete destruir Harfleur, se os franceses não se renderem... eu vejo aí um
misto de fúria e... e vingança... Vamos, diga a fala a partir... a partir
daqui... está vendo... “as portas da piedade...”
Ivan se concentra e tenta assumir o
personagem de Henrique V. Declama.
IVAN/ATOR:-
“As portas da piedade hão de fechar-se / e o soldado curtido, duro e bruto /
vai correr, com licença sanguinária, / e a consciência no inferno, ceifando /
virgens belas e infantes em botão. / O que me importa que uma ímpia guerra /
vestida em chamas como rei dos demos, / execute, com aspecto nauseabundo, / horrendos
feitos de desolação? O Que me importa que, por sua causa, / puras donzelas
caiam nas vis garras / de violação forçada e luxuriosa? / Quem pode controlar o
mal liberto / quando ele corre, horrendo, morro abaixo?” (Continua no mesmo
tom, abandonando o texto de Shakespeare). O mal todo já está
feito, / senhor meu Pai de todos os demônios... / Que satanás se esconda / em
cada recanto de minha alma / para a força de minha vingança! / Quem sou eu,
senhor Diretor de todas as vidas? / Quem sou eu? Diga, dessa vez, pelo menos /
qual o sangue que corre em minhas veias? / que me impede de... de... matá-lo?
PAI/DIRETOR:-
Que merda é essa? Você está louco?
IVAN/ATOR:- “Recém-nascidos
cujas mães, com uivos, / vão penetrar os céus como, em Judéia, / aconteceu com
a matança de Herodes”.
PAI/DIRETOR:-
Sim... você tem razão... Herodes tem razão! Não pude renegar o que não me
pertencia e hoje...
IVAN/ATOR:- “Sê
piedoso com todos. Quanto a nós / com o inverno e a doença que ora chegam...”
PAI/DIRETOR (agarrando Ivan):-
“... hoje eu sou só convidado; / amanhã, estou pra marcha preparado”...
Pedro... Pedro não é meu filho! Ouviu? Pedro não é meu filho! (Larga Ivan). Ah! Isso era a espada de
Henrique V dentro da minha garganta: Pedro não é meu filho!
IVAN:-
Mas eu sou!
PAI:- O
quê?
IVAN:- Eu
sou seu filho! Quando minha mãe estava para morrer... tiraram-me de seu ventre
antes... Eu sei que você a amava muito, mas ela morreu... Morreu para que eu
vivesse...
PAI:- Você
está falando asneiras... Eu não acredito em uma só palavra do que você está me
dizendo... Você é louco!
IVAN:-
Você diz que eu sou um ator medíocre, mas me chamou para fazer Henrique V...
Sabe por quê? Sabe? Porque eu sou o melhor... e serei o maior ator desse
país... Seu filho e filho de uma grande atriz! Está no sangue, meu Pai! Você
nunca desconfiou, não é mesmo? Como podia? Você só me via como um corpo que age
e fala segundo suas ordens... para a sua glória... para os seus prêmios...
senhor Diretor! Veja: o exército de Henrique V prepara-se para conquistar
Harfleur... Uma matança desenha-se no ar... E nós, ouviu, nós dois, pai e
filho, vamos ganhar essa guerra, meu Pai! Vamos ganhar essa guerra, mesmo que
nossas tropas sejam inferiores... Vamos ganhar essa guerra! (Sai).
PAI:-
“... quem vendeu a pele do leão / ainda vivo, morreu ao caçá-lo”. Eu preciso...
Eu preciso... Não! Não é possível... Pedro, o filho que eu renego, porque é
tão... tão o oposto de mim... de tudo o que eu mais acredito... E Ivan, também meu filho... meu filho de
sangue? Ambos... ambos são meus filhos... e são... e são... amantes! Apostei
minha vida em valores que eu julgava corretos e agora, isso?! O passado me
persegue... Eu errei e tenho de pagar com a pele de meus filhos um erro
medonho... Crime, castigo... Crime, castigo... a lei inexorável da vida...
Crime e castigo... Eu era tão jovem, eu era tão inexperiente... Eu era uma
besta!... Não devia... não devia... mas eu fiz... A justiça tem caminhos lentos
e tortuosos, mas como um leão na caça, sempre apanha a presa incauta... Quem
sou eu para julgar, se a mim mesmo não consigo absolver?
Música francesa misturada ao som de rua:
gritos, tiros, sirenes etc. É 1968. Apartamento em Paris. O Pai, deitado em uma
cama, acorda aos poucos, totalmente de ressaca. Num banquinho diante de um
espelho, Françoise transforma-se em Francisco, tirando aos poucos a maquiagem
pesada, a peruca, o soutien etc.
PAI:- Quem...
quem... é você? Onde estou? Ai... minha cabeça! Que barulho é esse?... Que
diabos é você?
FRANCISCO: - Oh! Mon amour... mon amour... mon enfant terrible... Levez-vous…
levez-vous… (Cantarola). “Sonne le matine... sonne le matine… Din… den… don…” (Fala sem sotaque).
Paris ferve, meu amor… e fervemos nós a noite toda, nesta cama… Agora
levante-se, vamos… Preciso ir trabalhar… Françoise não existe mais… E o
Francisco aqui precisa pegar no duro… Aliás, já peguei, e bastante… Vamos…
Falando sério: há muita confusão nas ruas... brigas homéricas entre estudantes
e polícia... Parece que o mundo vai acabar... E eu preciso trabalhar... o
restaurante abre às dez... Vamos, vamos... Podemos nos encontrar de novo, se
você quiser... E acho que vai querer!
PAI:- O
que... o que você está dizendo? Não entendo... não estou entendendo nada...
Onde estou? Que lugar é esse? Quem é você?
FRANCISCO:-
Foi tão grande assim, a carraspana?
PAI:-
Que porra é essa? Ai, minha cabeça! Quer me dizer que diabos é isso? Que
brincadeira é essa?
FRANCISCO:-
Brincadeira? Agora é brincadeira? Ontem, não era...
PAI:- Não
era o quê? (Ameaçador).
O que você, uma bichona cretina...
FRANCISCO:-
Agora eu sou uma bichona cretina? Sou? Pra dormir comigo e fazer tudo o que
você fez a noite toda, eu não sou uma bichona, não é?
PAI:- O
quê? Eu dormi com... com... você?!!
FRANCISCO:-
Não... você não dormiu comigo... Você trepou comigo a noite toda... Só dormiu
agora há pouco... quase de manhã...
O Pai desespera-se. Levanta-se da cama, vai
até onde estão suas roupas e tira de dentro do bolso de um paletó uma arma.
Francisco pula em cima dele, tentando desarmá-lo. Trava-se uma luta, com os
dois caindo ao chão. Ouve-se um tiro. Depois de alguns segundos, o Pai empurra
o corpo de Francisco de cima de si, levanta-se, tenta reanimá-lo. Desespera-se.
Chega até a porta e ouve, por instantes. Só o barulho da rua, agora bastante alto.
Aos poucos vai-se acalmando. Pega suas roupas, veste-se, sai e retoma o lugar
de narrador, já no presente.
PAI:-
Paris, 1968... Eu era apenas um estudante em busca de experiência... Durante
três dias vaguei pelas ruas de Paris... sem coragem de voltar à minha pousada,
no Quartier Latin... Três dias! Três dias naquele inferno de uma Paris em
fogo... Parecia uma nova revolução... E era uma nova revolução... Só não me dei
conta disso... No meio daquela confusão toda, o travesti brasileiro encontrado
morto em seu quarto não podia nunca despertar a atenção da imprensa... e da
polícia... Voltei para o Brasil... E nunca mais... nunca mais... esqueci aquela
cena...
A Mãe arruma a mesa para o jantar. Pedro
ajuda-a e quando a Mãe se retira por um instante, dança com a boneca que
representa uma das irmãs.
PEDRO:-
Você está murchando, minha irmã... Precisa casar! Aliás, as duas precisam
casar. Ou arrumar um homem... Vocês não podem continuar nessa vida... Vamos,
dance mais um pouco comigo... Dance... Ah! é tão bom, quando o Pai está
viajando... Podemos fazer tudo o que queremos... Até Mamãe parece mais
tranqüila... Leva a gente pra passear... Sabem, eu posso até trazer o Ivan
aqui... Acho que a Mãe não vai se importar... Ele... ele é tão bom... Vou lhes
contar um segredo... Vocês não vão dizer pra ninguém, não é mesmo? Acho que vou
morar com o Ivan... É... morar... morar, mesmo... Como marido e mulher... Quem
é quem? Ah! Que bobagem... não tem disso não... ninguém é mulher de ninguém...
Somos dois homens... que se desejam... que se amam... e pronto! Não tem essa de
bicha... Shssss... a Mãe está voltando... Conto com o silêncio de vocês...
A Mãe termina de arrumar a mesa, em silêncio.
Todos se sentam. A Mãe serve as filhas e Pedro e serve-se também. Silêncio. Comem.
De repente, a porta se abre num estrondo. Entra o Pai, bêbado e completamente
transtornado, portando uma porção de jornais e revistas. Espalha tudo sobre a
mesa, o chão da sala, fazendo uma grande bagunça. Agarra Pedro e chora. Depois
abraça a Mãe e chora. Sua fala é arrastada e amarga.
PAI:- Está
aí... Está tudo aí... nesses jornais nojentos... nessas revistas imundas...
Tiveram a coragem... Os filhos-da-puta... Eles tiveram coragem... Shakespeare!
Shakespeare é uma bosta, para esses sacanas... Mataram Shakespeare, esses
nojentos filhos-da-puta... Mataram o bardo... E me mataram também...
MÃE:- O
que... o que significa isso? Meu Deus, meu marido... o que aconteceu?
PEDRO:-
Pai... Pai... Pai... se acalma... por favor, fique calmo...
PAI:-
Calmo? Calmo! Calmo... Eu estou calmo... Calmo o caralho! Eles me matam, me
trucidam, me fodem... e você quer que eu fique calmo? Vejam! Vejam o que eles
disseram de Shakespeare... Vejam...
Pedro apanha alguns dos jornais ou revistas
que estavam espalhados e lê.
PEDRO:-
“Henrique V, na pior montagem de todos os tempos”... “Fracassa espetáculo que
tinha a intenção de mostrar Shakespeare como ele era...” “Shakespeare morreu
mais uma vez”! O que é isso... O que é isso, meu Pai?
PAI:-
Você está olhando para o fracasso, meu filho... Sou uma vergonha! Uma vergonha,
não... a vergonha! A vergonha nacional... Todos estão rindo de mim... Me
badalavam... Enchiam a minha bola... Diziam que eu era um dos maiores
encenadores do país... E agora?... Agora... estão todos rindo de mim... Tirando
sarro pelas minhas costas... Eu sou o fracasso... Diante de vocês, meus
filhos... diante de todos... diante do país inteiro, eu sou o fracasso... Eu
quero... eu quero morrer!
Corre para uma gaveta e tira um revólver
antigo. Aponta para todos, que correm em desespero e procuram proteger-se,
protegendo também as “irmãs”. Após um instante de silêncio, com um riso de
escárnio, aponta a arma para a própria cabeça.
PAI:- Eu
sei... eu sei... que devia matá-los... a todos... Matar você, primeiro,
mulher... tão santa... tão pura... só preocupada com o lar... com os filhos...
e comigo! Principalmente comigo, não é mesmo? E depois, você, Pedro... tão...
tão preocupado com os valores familiares... um homem... um homem com h
maiúsculo... não é mesmo?... E depois as... as... vadias de suas irmãs... essas
imprestáveis... Aí, sim... Eu teria sucesso! Eu seria o sucesso! Manchete de todos os jornais... “Diretor
enlouquecido mata a família por causa do teatro!” Mas, não! Eu sou um
fracasso... E um fracasso só pode matar a si mesmo... Um fracasso é... é... um
fracasso... E é covarde, também... Seus bostas... vocês todos, uns bostas...
Mas eu sou o bosta maior... Eu fracassei!
Entra Ivan, o Pai assusta-se e aponta a arma
para ele.
PAI:-
Você... você, não! Vai embora daqui, se não eu te mato... Vai embora...
IVAN:-
Que cena ridícula, meu Pai! Indigna do grande diretor...
PAI:-
Grande diretor! (Gargalha).
Grande diretor! Você é um bosta, também, Ivan... O mínimo que disseram de
você... que você é um grande canastrão! Canastrão! E não me chame e Pai, ouviu?
Não me chame de Pai!
PEDRO:-
Pai? Que história é essa, Ivan... Pai? Só porque você dorme comigo, não
precisa...
IVAN:-
Tenho de você o teatro nas veias, meu Pai... E não sou o canastrão que estão
dizendo aí, nesses jornais... nessas revistas... Eu só queria o seu
reconhecimento, meu Pai... eu só queria o seu amor, meu Pai... Meus
pesadelos... meus temores... minha insegurança... tudo depositei no respeito ao
grande diretor... Amei a muitos homens, meu Pai... mas via em Pedro, o seu
filho mais amado, a sua sombra, meu Pai... e fiz dele o meio para chegar até
você, meu Pai... Amei a muitas mulheres, também... Não, a muitas mulheres,
não... Só a uma: minha Mãe... que você desprezou... que você amou um dia e
depois desprezou...
PAI:-
Vergonha... vergonha... Meus filhos, calma... fiquem calmos... Eu... eu...
vou... me matar... e tudo se resolve... Tudo o que pensei a vida toda... todos
os meus ideais... família... não tenho mais família... Henrique V enterrou
minha família! Eu me mato e preservo vocês... Só isso e mais nada... O meu
silêncio será a salvação...
Aponta, novamente, a arma para a própria
cabeça. Ivan se aproxima e, de forma suave e firme, tira-lhe o revólver das
mãos, abraça-o e faz que ele se sente numa cadeira. Toma um copo e serve-lhe
água, que o Pai toma aos borbotões, sedento e trêmulo. Enquanto isso, examina
com curiosidade a arma. Todos se aproximam devagar.
IVAN:-
Que arma estranha... Não sou grande conhecedor, mas diria que esse revólver
antigo é francês... Você o comprou na França, não é? Diga: você o comprou na
França... há muitos anos... Foi uma arma assim que matou meu irmão... meu irmão
mais velho... em Paris... em sessenta e oito, acho... É, isso mesmo, em
sessenta e oito, durante aquela confusão de estudantes... A polícia nunca achou
o criminoso...
O Pai olha-o com terror. A bebedeira passou.
Está lúcido. Levanta-se e agarra Ivan pelos colarinhos.
PAI:- O
que você... o que você está dizendo?... Você teve... você teve um irmão? Sua
mãe nunca me falou de outro... de outro filho... É mentira!... É mentira!...
Atinge Ivan com um soco. Há uma breve luta. O
Pai está com a arma na mão. Atira. Ivan cai. Pedro e a Mãe correm a acudi-lo,
enquanto o pai volta a sentar-se,
com a cabeça entre os joelhos, cobrindo-se com as mãos, chorando
desesperadamente.
MÃE:-
Ivan... Ivan, meu amor... pelo amor de Deus, acorde...
PEDRO:-
Ivan, meu querido... fale comigo... Fale comigo, por favor...
As mãos de ambos se encontram no carinho a Ivan.
Mãe e filho encaram-se. Ivan parece dormir.
PEDRO:-
Meu amor? Que história é essa, minha Mãe?
MÃE:-
Ele... ele... ele é só seu amigo, não é? Ele é só seu amigo! Não é verdade que
vocês... Eu nunca acreditei que vocês... Diga-me, Pedro: por que vejo em seu
rosto essa dor, esse?... Seus olhos o olharam com... preocupação... Não!
Preocupação, não... Paixão! Eu vi paixão em seus olhos, meu filho... Eu vi
paixão em seus olhos!
PEDRO:-
Você... você viu paixão em meus olhos, minha Mãe? Paixão? Também eu vejo paixão
em seus olhos, minha Mãe... Quem é a imagem e quem é o reflexo, minha Mãe? Me
responda! Quem é a imagem? Quem é o reflexo? E você, meu Pai, que história é
essa? Que história é essa, meu Pai?
PAI:-
“... quem vendeu a pele do leão / ainda vivo, morreu ao caçá-lo”. “... quem
vendeu a pele do leão / ainda vivo, morreu ao caçá-lo”. Shakespeare está morto! Henrique V não venceu a
França… Henrique V não venceu a França!…
Blackout. Só um foco de luz sobre Pedro que
está vestido de terno e gravata e porta uma maleta executiva. Enquanto ele
fala, A Mãe, ao fundo, toda de negro, arruma a mesa do jantar.
PEDRO:- Eu odeio teatro.
Termina aí minha encrenca com meu pai. Um pai que eu amo e que eu odeio. Estou
agora indo vê-lo na prisão, onde também faço trabalho voluntário. De quê?
Abre
a mala, espalha alguns jornais e revistas velhos, tira um estojo de maquiagem e
começa a pintar o rosto de palhaço.
PEDRO:- Vou ser curto e grosso... Aprendi a
arte do clown, acho que herança de meu pai... Não sou um grande ator... ou um
grande palhaço... Queria ser artista plástico, desenhista, sei, lá... Apenas
faço isso para estar perto dele, no presídio onde ele cumpre pena... onde
apresento meus espetáculos... Ivan... Vejam o que disseram dele, naquele dia
fatídico (pega um recorte de jornal): “um grande ator perdido no meio de
uma porção de bobagens. Nunca houve um Shakespeare tão mal amado...” Nunca
houve um ator tão amado de forma tão errada... E ele nunca acreditou nisso...
Coloca o nariz de palhaço e tira o paletó.
PEDRO:- Henrique V recebe o embaixador
Francês... Há ameaças de ambos os lados e a poderosa França – que, com certeza,
deve ter-se arrependido mais tarde – ironiza as fanfarronices do rei inglês e
manda-lhe um presente.
Como
um “clown”, imitando sotaque francês, numa representação exageradamente
caricata.
PEDRO:- “Vossa Alteza, em recente nota à
França, / Reclamou para si certos ducados, / pelo direito de Eduardo Terceiro.
/ Como resposta, o príncipe, meu amo, / Diz que isso sabe muito a juventude / e
diz-vos que, na França, não há nada / Que se possa ganhar com gargalhadas: /
ninguém, por lá, ganha ducado em festa. / Ele vos manda então este tesouro, /
Mais para a vossa têmpera. E em troca, / Deseja que os ducados desses sonhos /
Fiquem livre de vós...”
Retira
da mala uma raquete de tênis e duas bolas e estende-as para Henrique V, a quem
toma o lugar, colocando na cabeça uma coroa amarela e nas costas um pano
imitando um manto.
PEDRO:- “Bolas de tênis?! Ficamos contentes /
Que o Delfim seja assim tão divertido; / Agradecemos brinde e portadores. / Com
as nossas raquetes e essas bolas / Jogaremos na França, praza a Deus, / Um set
pela cora de seu pai...”
Retira
a coroa e o “manto”.
PEDRO:- Bolas de tênis e raquete... Foi o que
eu tentei levar a meu pai... Não deixaram... Meu pai, melhor dizendo, nosso
pai, meu e de Ivan... Portanto, nosso pai fez de Ivan um fracasso e depois
matou-o, de ciúme, de um ciúme doentio e tardio de uma amante do passado que
lhe escondera ter outro filho... Aquela história de Paris nunca ficou muito
clara... Não sei o que houve... Perdi naquele dia o meu pai, o meu irmão, o meu amante e... não sei, talvez um
padrasto... Não tive coragem de perguntar à minha Mãe por que se vestiu de
negro no enterro de Ivan e nunca mais tirou o luto... No julgamento de meu Pai,
ela não derramou uma lágrima... Minhas irmãs se casaram e foram embora...
Naquela casa soturna, só eu e minha Mãe... Eu e minha Mãe e, mesmo assim, pouco
nos falamos... Ela continua preparando seus jantares, seus magníficos
jantares... que eu vomito toda noite em meu quarto...
MÃE:- Pedro... ó Pedro, meu filho... vem logo,
está na mesa! Vai esfriar!...
PEDRO:- Já vou num instante, Mamãe...
MÃE:- Avise também o seu Pai!
PEDRO:-
Meu Pai não está em casa... é claro, mas ela sempre manda avisar Papai... Já
vou, Mamãe, só estou terminando minha maquiagem... Engraçado, agora estou
lembrando de uma coisa: nunca vi um gesto de carinho entre meu Pai e minha
Mãe... Acho que é bobagem minha, eles sempre se respeitaram... Eles sempre se respeitaram? Como posso dizer
uma bobagem dessa, se eu não conheço meu Pai... Se eu nunca soube quem é esse
homem que me pôs no mundo e me tirou o mundo...
Retoca a maquiagem, coloca todos os
apetrechos e recortes de jornais e revistas dentro da maleta e fecha-a.
PEDRO:- Será
que meu Pai vai gostar da surpresa que lhe preparei? Vou fazer um monólogo de
Henrique V vestido de palhaço... Não, isso não vai dar certo... Não pode dar
certo: um guerreiro como Henrique V não pode nunca ser um palhaço!
Dirige-se para a mesa de jantar, dá um beijo
na Mãe, senta-se à mesa, come uma colher e sai correndo para vomitar, ante o
olhar de indiferença da Mãe, que continua trazendo pratos e mais pratos de
alimentos para a mesa.
MÃE:- Será que o seu amigo... o Ivan... será
que ele vem jantar conosco hoje, Pedro?... Eu fiz sonhos para a sobremesa...
Seu amigo gosta muito dos sonhos que eu faço... E seu Pai? Atrasado de novo...
Atrasado de novo... Esse negócio de teatro só atrapalha o nosso horário de jantar...
Só atrapalha... Depois do sucesso daquela peça de Shakespeare, então... como é
o nome da peça, Pedro?... Como é mesmo o nome da peça?...
Pedro,
de dentro, responde e vomita.
PEDRO:- Henrique V, minha Mãe! Henrique V!...
FIM
03.04.02
Isaias Edson Sidney
(1) Esta e demais citações são
do livro: Shakespeare, William, 1564-1616. Henrique V; trad. Bárbara
Heliodora – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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