terça-feira, 18 de maio de 2021

OS CEGOS

 

 

(Pieter Brueghel - 1525 ? , Breda, Holanda – 1569, Bruxelas: Parábola dos cegos)

 

 OS CEGOS -1 ATO DE MICHEL DE GHELDERODE

uma releitura de

ISAIAS EDSON SIDNEY

São Paulo, 2001


 

A obra original, Les Aveugles - moralidade de Michel Ghelderode, inspirada pelo quadro de Brueghel o Velho, constitui uma reflexão sobre a cegueira da alma humana: três cegos vão em peregrinação a Roma.  Exaustos pela longa marcha, imaginam-se já perto da cidade santa, onde esperam recuperar milagrosamente  a visão. Lamprido - um indivíduo só com um olho - que vive no cimo de uma árvore, diz-lhes que eles continuam em Brabant, onde há semanas os vê passar e repassar e que os sinos tocando são os de Bruxelas. Oferece-se para guiá-los, mas os cegos recusam acreditar nele e retomam o caminho, acabando por morrer, vítimas da sua própria cegueira.

 

 

« J'ai un ange sur l'épaule et un diable dans la poche. »

 

Michel de Ghelderode


 

NOTA: Esta peça é mais um exemplo de exercício de dramaturgia. Para que alguém a leve ao palco profissionalmente, creio ser necessário entrar em contato com os administradores do espólio de Michel de Ghelderode (1898-1962), na Bélgica, ou aguardar o ano de 2037, quando as obras do autor cairão em domínio público.

  

PERSONAGENS:

 

 

XANA

CRONO

ZENO

NANDRIQUE, o “vesgo”, presidente do país dos brejos.

 

Local:

 

Uma estrada, perto de uma cidade, onde há uma placa indicando a direção a seguir (“Grande Cidade”).

  

Ouve-se um canto. Três cegos aproximam-se, pela estrada. É bastante animado o canto, se bem que entoado por dois homens famintos, trôpegos e maltrapilhos, acompanhados de uma mulher nas mesmas condições. Ela não canta, pois considera ofensiva a música entoada pelos outros dois. Eles seguem tateando com bastão e segurando-se um ao outro pela ponta do casaco. Eis seu canto de marcha: “Ti... ti..tiri...ti...ti.. /Tirei, olhei, usei, chacoalhei, guardei no mesmo lugar.../ Tornei tirar, olhar, usar, chacoalhar, guardar no mesmo lugar...”.

 

 

CRONO (cantando as últimas palavras):- “... chacoalhar, guardar no mesmo lugar...” (Falando). E agora? Por mim eu paro! Se essa porra de musiquinha não atrai ninguém...

 

XANA:- Essa porra de musiquinha é muito machista... Que bosta!... Não vai atrair ninguém!... Se eu mostrasse meus peitos...

 

ZENO:- Ah! Ah! Ah! Se ocê mostrá essas muxiba, aí é que tu vai espantá quarquer vivente... Ah! Ah! Ah!

 

CRONO:- (Tentando dar uma bordoada em Zeno e acertando Xana, que solta uma enxurrada de palavrões):- Cala a boca, desinfeliz, você só sabe dizer asneira, nesse seu linguajar porco de ignorante... E você, sua chorona fedida, fecha essa latrina... só fala merda!

 

 

Os dois se calam, fazendo gestos feios para Crono e depois amuando-se.

 

 

CRONO:- Agora que paz se restabeleceu... como eu ia dizendo, é preciso parar... quando eu paro, todos devem parar... quando eu ando, todos devem andar... Entenderam?

 

 

Os dois fazem gestos que sim.

 

 

CRONO:- Entenderam?

 

 

Os dois fazem novos gestos que sim.

 

 

CRONO:- Eu não vi nem ouvi nenhuma concordância. Vou perguntar de novo... se não ouvir, vou moer o lombo dos dois de pancada! Entenderam?

 

 

ZENO E XANA:- Sim... sim... nós entendemos! (À parte). Que porra! Que merda! Sujeito maldito! Desgraçado! Ainda te pego, fedaputa...

 

CRONO:- Por acaso, ouvi protestos? Ouvi?

 

ZENO E XANA:- Não... não...

 

 

Trombam com a placa de sinalização e tateiam buscando ler o que está escrito.

 

 

CRONO:- É o primeiro sinal de que estamos no caminho certo...

 

 ZENO:- Tá... tá... caminho certo... mas o que está iscrito na praca?

 

XANA:- Você não enxerga, Zeno? O Crono já não disse que estamos no caminho certo?

 

ZENO:- O caminho certo é o caminho da praca ou o caminho dos óios do Crono?

 

XANA:- Não enche! Você vê pra onde vai a estrada que a placa aponta, Crono?

 

CRONO:- Não. Não consigo enxergar o fim dessa estrada. Você está vendo alguma coisa, Xana? E você, Zeno? Está vendo? Então, proponho que comecemos a gritar e gemer, com todas as nossas forças. Talvez alguém nos ouça... Vamos!

 

OS TRÊS:- Socorro! Me ajudem! Ai! Ui! (Etc., totalmente desafinados).

 

CRONO:- Aqui del rei!

 

CRONO:- Aqui del rei??!!! Que merda é essa, Crono?

 

XANA:- Que coisa mais antiga... Credo! Arreda! Sai fora!

 

CRONO:- Seus ignorantes...

 

A VOZ (ao longe):- Seus ignorantes...

 

CRONO:- Vocês ouviram? (Silêncio, ouvindo). Que merda, mais nada...

 

ZENO:- Parecia que tava ouvino... É a fome e a sede, a sede que atrapaia nossos sintido...

 

CRONO:- Pois eu ouvi. Sabem o que é? O eco. Vou experimentar de novo; ou é o diabo que faz troça de nós e não responderá, ou então é o eco, que não mente e responde. Porque vou provocá-lo religiosamente.

 

XANA:-  Sim, Crono, cante a missa para ele, você que é metido a religioso...

 

CRONO:- Metido, não! Eu sou profundamente religioso... Já lhes contei que fui criado num mosteiro?...

 

XANA:- Já... já... um milhão de vezes... Vai, canta logo a missa para esse eco idiota... Vai...

 

CRONO (canta) :- Kyyyyy...

 

OS TRÊS:- Vamos escutar.

 

A VOZ (ao longe, concluindo o cantochão):- Kyyyrie eleison...

 

CRONO:- Está se vendo que não é coisa do diabo! É o eco, um eco de verdade, na certa o eco de um convento!

 

ZENO:- Ah! Se esse mardito eco quisesse uma esmolinha pra nóis... ou pelo menos um canecão de cerveja, ansim, ó... bem gelada!

 

XANA:- Essa tua mania de igreja não vai levar a nada...

 

CRONO:- Não percam a esperança! Nosso sofrimento, nossa fome, nossa sede vão acabar, eu sei. Querem ouvir a boa notícia? É que nisso eu enxergo melhor que vocês.

 

XANA:- Mentiroso duas vezes! Você nasceu tão cego como nós.

 

ZENO:- Mentiroso três vezes! Você é o mais cego de nós três!

 

CRONO:- Amigos de minha dor, fiquem sabendo: já não estamos longe de nosso destino!

 

ZENO:- Oh! Oh! Oh! Oh!

 

 

Caminham, cantando “Ti... ti..tiri...ti...ti.. /Tirei, olhei, usei, chacoalhei, guardei no mesmo lugar.../ Tornei tirar, olhar, usar, chacoalhar, guardar no mesmo lugar...”

e voltam ao mesmo ponto onde está a placa.

 

 

CRONO:- Vejam! Outra placa de direção...

 

ZENO:- Tem certeza que num é um poste? Ocê anda ficando cada dia mais...

 

CRONO:- Não sentiram que o sol ficou mais quente? Faz sete semanas que andamos. Vejam, ainda agora ouvimos um eco que canta missa... Lá em cima, na nossa terra, para falar a verdade, não existe eco: tudo é chato, tudo é plano... Nas montanhas, sim, existem ecos. Estamos nas montanhas! Lembram aquele pintor holandês que nos pintou?

 

ZENO:- Ei, Crono, acorda... isso faz séculos! E foi num outro lugá, distante léguas e léguas daqui... num outro tempo... Acho, inté, que noutra peça de um outro autor... Ocê tá ficando véio, muito véio, seu Crono...

 

CRONO:- ... ele... ele esteve na Itália... ele disse que devíamos atravessar as montanhas! Como se chamava o pintor? Aquele esquisito, que nos deu um florim?

 

ZENO:- Num falei qu’ocê tá véio? E gagá? Florim? Que merda é essa?

 

XANA:- Acho que era um tal de Brueghel.

 

DE STROP:- Esse mesmo, Brueghel! Ele disse que, passando as montanhas, já não estávamos longe de nosso destino.

 

ZENO:- Oh! Oh! E ocê tamém, hem Xana... mais véia que sua xana enruguenta... Oh! Oh!

 

XANA:- Disse também que a gente podia andar sem medo nem receio, que de qualquer jeito acabava chegando na Grande Cidade...

 

CRONO:- Aleluia! Aleluia! E quando a gente chegar, ouviu, seu Zeno, está ouvindo? Nós vamos poder ver de novo... nós vamos ter de volta nossos olhos... porque lá, aonde nós vamos, a Grande Cidade, é a terra onde tudo é possível...

 

XANA:- Aleluia! Vamos ver um montão de maravilha... Ou então não veremos nada! O certo é que a Grande Cidade é a cidade mais fodidona de todo o mundo... e que lá beberemos até não poder mais, comeremos à beça, e dormiremos e dançaremos... Sei, de gente que não mente, que os habitantes da Grande Cidade  são alegres e amigos dos prazeres. E nunca mais voltaremos pr’aquela terra de fome, de dor... de onde nós viemos. Eu me planto nos degraus de um teatro qualquer, e acabo meus dias, ao sol.

 

ZENO:- Dando o rabo murcho, ocê qué dizê, num é mesmo, Xana?

 

XANA:- Eu te mato, desgraçado... Eu te mato...

 

CRONO:- Eh! Maus cidadãos! Que isso? Vamos viver como gente de bem... trabalhar... ganhar nosso pão... sem brigas...

 

ZENO:- Sabe o que ocê é, Crono, sabe? Um idiota... que crerdita em tudo... Num vai nunca moleza pra gente como nóis... e trabaiá? Trabaiá, como, se nóís é uns merda... uns porras... uns ninguém... que nem os caminho nóis inxerga?...

 

XANA:- Quem sabe, depois de a gente aborrecer eles bastante... fazendo uma grande confusão... cantando... dançando... falando muito palavrão, eles não nos dão algum dinheiro e nos mandam de volta pra nossa terra?

 

 

Caminham e cantam “Ti... ti..tiri...ti...ti.. /Tirei, olhei, usei, chacoalhei, guardei no mesmo lugar.../ Tornei tirar, olhar, usar, chacoalhar, guardar no mesmo lugar...”. Voltam ao mesmo ponto da placa. Desta vez é Zeno quem tateia.

 

 

ZENO:- Eu leio mió que ocê, Crono... aqui tá dizeno que nóis pode ir adiante...

 

XANA:- Você é um ignorante, Zeno... Nem sabe ler direito.

 

ZENO:- Meus óios, não... mas minhas mão sabe lê quarquer coisa, ouviu? Sabe até os caminho de seus peito murcho...

 

CRONO:- Silêncio! Abram depressa os ouvidos!

 

 

Ouve-se uma música distante.

 

 

ZENO:- Agora sim! Música! Música da Grande Cidade! Eu conheço... (Dança, grotescamente, em círculos, até quase cair).

 

XANA:-  Você está doido! E tão idiota quanto o Crono! É música que eu conheço... que em nossa terra se toca nas feiras... nos bailes de roça...

 

CRONO:- Vou dizer a vocês a verdade. É musica de boas-vindas... os habitantes da Grande Cidade souberam que nós estávamos chegando e mandaram tocar essa maravilha em nossa honra... Vejam só!

 

OS TRÊS (dançando e cantando a música):- La-la... la... bing... bong... (Gritando). Tocai, músicos benditos! Tocai para os que vêm de longe! Aqui estamos! Viva a Grande Cidade e suas mil possibilidades! Viva!

 

CRONO:- Como dói ouvir, em terra estranha, as músicas de nossa velha terra!

 

XANA:-  Até parece o som dos mugidos de bois da roça onde nasci.

 

ZENO:- Ou mais mió ainda, os ronco... ronc... ronc... dos porco da pocilga onde minha mãe me fez o sor pela premera veiz...

 

XANA (imitando a risada de Zeno):- Oh! Oh! Oh! Essa é boa... “me fez vê o sor pela premera veiz...” Oh! Oh! O desgraçado já nasceu assim... ó... que nem morcego...

 

ZENO:- Um dia eu inda te mato... mardita... eu inda te mato...

 

CRONO:- Escutem! Sonhem comigo! Vamos… É tal e qual o som da minha cidade, onde eu vi a luz do dia... é tal e qual o som da infância… da infância de cada um de nós…

 

 

Choram os três sem nenhuma harmonia.

 

 

A VOZ (ao longe, rindo às gargalhadas):- Ah! Ah! Ah! Ah!

 

 

XANA:-  Escutem! Estão rindo no horizonte! Que cidade maravilhosa essa! Enquanto choramos, os ecos riem para os anjos. (Riem).

 

CRONO:- Esse humor é que é admirável! Contemplem estas altas montanhas de belas florestas! Logo veremos as cúpulas das igrejas, o alto dos arranha-céus, as luzes, as luzes e o brilho de suas casas, de seus bancos, de seus teatros e lojas!... É a Grande Cidade, meus amigos... é a Grande Cidade! ,

 

ZENO:- Sei, não... sei, não... tô sintindo um chêro istranho... uma catinga de merda de porco... Sei, não...

 

XANA:- Ei... ei... olha lá o sol... que maravilha... Ele nos diz que já é tempo de caminhar!... Vamos... Caminhemos e cantemos. Quem vai à frente? Eu! Quero ser a primeira a entrar na Grande Cidade!

 

ZENO:- Serei eu! Nisso vejo mió  qu’ocês!

 

CRONO:- A ordem tem de ser mantida! Aqui, quem enxerga mais sou eu... por isso eu mando! Ou querem levar mais bordoadas? Meu cajado é o mais longo e o mais duro...

 

ZENO:- bom! bom! Nóis vai... onde ocê nos guiá... Mas que ocê num inxerga mais que eu, num inxerga mesmo...

 

 

Crono dá umas cajadadas a esmo, que não acertam ninguém.

 

 

XANA:- Cala a boca, estropício... Fica aí resmungando feito um velho cego e depois quem apanha sou eu... Vamos... Segura a ponta do meu casaco... que a gente não se perca mais em picuinha... Vamos... A Grande Cidade nos espera...

 

 

Caminham e cantam “Ti... ti..tiri...ti...ti.. /Tirei, olhei, usei, chacoalhei, guardei no mesmo lugar.../ Tornei tirar, olhar, usar, chacoalhar, guardar no mesmo lugar...”. Voltam ao mesmo ponto da placa.

 

 

A VOZ:- “Um ceguinho incomoda muita gente... dois ceguinhos incomodam, incomodam muito mais... Três ceguinhos incomodam, inocomodam, incomodam muita gente...”

 

XANA:-  Ué! O eco mudou de voz!... E de onde ele vindo agora? Num tô entendendo esse eco!

 

XANA:- Vou ler a placa, já que vocês dois não deram conta do recado até agora...

 

 

Xana tateia a placa.

 

 

ZENO:- Fala logo, muxibenta... fala logo o que ocê viu...

 

XANA:- Ué, gente, que placa mais estranha... Aqui não está claro se é pro sul ou pro norte... Parece que apagaram umas letrinhas...

 

CRONO:- Será que, em vez de irmos pra frente, pra Grande Cidade, nós estamos voltando pra nossa terra? Serão os meus olhos traidores de nosso destino?

 

ZENO:- Que merda! Bem que eu disse qu’ocê é cego... além de cego, é burro... E num dianta querê me batê... só vai acertá mesmo a Xana, que gosta de apanhá... Oh! Oh! Oh!

 

XANA:- Se o Crono me acertar de novo, eu te mato, Zeno... eu te mato! Ai! Para, caralho! Só sabe dar cacetada! Que merda! Que porra de vida! Nascer cega já foi uma bosta, mas virar saco de pancada de um cego burro é o cu do mundo... Ai! Ai! Para, Crono! Bate no Zeno, que é boquirroto, queixo-duro e teimoso como uma mula...

 

ZENO:- Ocê para com essa ingresia, que eu vô preguntar pro eco se ele sabe o caminho... Ei, seu eco... seu eco... O excomungado num responde... Onde ocê tá, seu eco? Responde, caraio!

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Caraio! Aio... aio... aio. É isso o que você tem na boca, seu Zeno? Ah! Ah! Ah!

 

ZENO:- Ocê num me provoque, dianho... Onde ocê tá? Diga logo, pra qu’eu te encare ansim, ó... com esses óio que a terra há de comê...

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- A terra não vai comer o que as trevas já comeram, seu morcegão! Veja: eu estou bem aqui, na sua frente... Eu sou uma voz que tem pernas pra chegar até vocês e braço pra lhes dar uma surra, se preciso for...

 

XANA:-  É homem! É homem! Bem que eu sentia o cheiro... É homem!

 

ZENO:- no cio, cabra véia?

 

XANA:- E vai nos dar uma boa esmola... Estou vendo, ele tá chegando... é um grandão com chapéu redondo...

 

ZENO:- Num é não! Ele bem baixinho e usa um chapéu de aba caída.

 

CRONO:- Calem a boca, seus palermas idiotas! Eu é que estou vendo: ele é homem grande que ficou pequeno, porque é corcunda... nem mais nem menos... e o chapéu dele não passa de um chapéu de cangaceiro, cheio de medalhas!!!

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Aqui estou, seus bocós.

 

OS TRÊS (tomando ares de mendigos e salmodiando em falsete):- Bondoso cidadão, tem piedade de pobres ceguinhos, grandes pecadores! Piedade de necessitados peregrinos, peregrinando neste vale de lágrimas! Tem piedade de nós!

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Ah! Eu tenho, sim, tenho muita piedade de pobres ceguinhos, peregrinando seus pecados por esse vale de lágrimas! Pois, sim! (Ri).

 

ZENO:- Ocê tá rino de quê, dianho? Tá rino de quê? Nóis é pobre, sim... nóis é ceguinho, sim... sem rumo nesse mundão de Deus... (Furioso). Quem é ocê? Fala, fio do cão! Quem é ocê?

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Sou Nandrique, o Sábio, presidente do país dos brejos! Sou um homem tão sábio,  que fico na minha, aqui no meu querido brejão, sentado em minha cadeira presidencial, tomando uísque, curtindo a paz e a tranqüilidade de meu país... que não tem furacão, não tem terremoto... Fico na minha, em vez de caminhar como três idiotas para uma Grande Cidade... aonde vocês jamais chegarão. Estão pedindo esmola? Vou lhes dar um pouco de arroz, feijão, carne seca e farinha.

 

ZENO:- Carne seca e farinha!?? Que bosta! Se fosse ao meno uma cachacinha!...

 

CRONO:- Nada disso! Queremos dinheiro!

 

XANA:- E nada de cheque, dinheiro vivo! Aqui, na nossa mão! Que eu tenho um anjo em meu ombro...

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- ... e eu um diabo em meu bolso! Querem tutu? Grana? Arame? Bufunfa? Dinheiro vivo? Não aceitam cartão de crédito, pois não? Pois dinheiro é o que não terão! Posso lhes dar conselhos – sou muito bom nisso! Posso lhes dar a minha ajuda – também sei como ajudar os amigos e os amigos dos amigos! É disso que vocês precisam, com certeza!

 

XANA:- Olha aqui, seu... seu Nandrique... A gente é tudo cego, isso é fato, mas os três juntos enxergamos muito bem, ouviu? Não precisamos nem de ajuda nem de conselhos!

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Orgulhosos! Sabem em que lugar estão?

 

XANA:- Mas é claro que sabemos! Estamos nas altas montanhas, na periferia da Grande Cidade!

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Pois, sim! Então escutem!

 

ZENO:- Sim, sim... Nóis é cego, mas nóis escuta muito bem... É as musiquinha da Grande Cidade... onde todos vivem felizes... cantano e dançano...

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Imbecis! Vocês estão no país dos brejos. Vocês têm de acreditar em mim. Está certo, eu sou meio vesgo! É... é...  o que dizem... Mas, mesmo sendo vesgo, vendo tudo meio esquisito, eu ainda  tenho a vantagem de tudo ver... e isso é o que basta. Há muitos cegos no país dos brejos, onde sou o líder, o presidente! Eu, o vesgo que tudo vê!

 

OS TRÊS:- Hii! Hii! Um aleijado! Há! Há! E diz vê tudo!  Hi! Hi! Idiota! E acha que não estamos perto da Grande Cidade!

 

ZENO:- Vai embora, seu vesguinho besta! Nóis num qué nada de gente de sua laia! Ocê é um paiaço mentiroso... e esse seu país dos brejo num ixiste... País qui num tem furacão nem terremoto, num ixiste... Óia... óia bem pros nossos cajado... Eles são cumprido e têm os óio que nóis num tem... são eles que nos guia pelas floresta e pelas montanha... Sai daqui ou nóis vamo te dar uma sova qu’ocê num vai esquecê nunca mais!

 

OS DOIS OUTROS:- Vamos dar nele, sim! Vamos! Pau nele! Pau nele!

 

 

Os três dão cajadadas em todas as direções.

 

 

CRONO:- Ai! Ai! Quem me bate?

 

ZENO:- Assassino! Desgraçado! Ocê tá é bateno ni mim!

 

XANA:-  Ai, ui! Estão me batendo! Socorro! Socorro!

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Batam! Batam à vontade, meus ceguinhos! (Canta: “um ceguinho incomoda muita gente... dois ceguinhos incomodam, incomodam muito mais...”). Isso, mesmo... pau no lombo de cego é refresco no país dos brejos... Seus orgulhosos! Mas... o quê? Pararam? Querem a paz, não é mesmo?  Agora escutem! Vou fazer-lhes uma caridade.

 

OS TRÊS (em coro):- Tem piedade, piedade dos pobres ceguinhos condenados a peregrinar pelos seus pecados.

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Nem um vintém! Nem um tostão furado! Ih... que cheiro... bafo de pinga pura... bafo de onça velha! De pinga vagabunda! Ouçam! Como sou um cara legal, vou evitar que vocês façam a maior besteira de suas vidas... Estão ouvindo? (Silêncio. Os três escutam boquiabertos). Já é tarde... olhem: a primeira estrela já está surgindo no céu... Olhem mais: lá... lá ao longe... Estão vendo? São os gases podres do país dos brejos que começam a subir! Aqui, do meu trono, quer dizer, da minha cadeira presidencial, tenho visto vocês passarem... e passarem... e passarem... sempre por esses mesmos caminhos... que não levam a lugar nenhum... muito menos à Grande Cidade. Vocês não deixaram o país dos brejos... A música que ouvem são as mesmas de sua infância... Os cheiros que sentem são os mesmos de toda a sua vida... Olhando assim bem de lado, avisto daqui os campos enormes, a terra plana, os brejos... brejos e mais brejos... onde chafurdam os porcos do Zeno... onde pululam as feiras fedorentas da Xana...

 

ZENO:- Ocê tá caçoano de nóis... isso não se faz, seu... seu... Nandrique... é sacanage... gozá ansim de três ceguinho tão bonzinho... tem piedade!

 

XANA:- Mentiroso! Muitas vezes mentiroso! Não é noite, ainda... e nós estamos longe, muito longe do país dos brejos!...  Está mentindo para nós. Eu estou vendo o topo dos edifícios da Grande Cidade, não é, Crono?... Diga que você está vendo também... diga! É nossa vida que está em jogo, Crono... nossos sonhos... nosso futuro... Vamos, Crono, olhe e veja, uma vez na vida, Crono! Nosso passado foi só humilhação e dor, Crono... então,  deixe que seus olhos vejam e teçam nosso futuro, um futuro com... com... dignidade, Crono... por favor...

 

CRONO:- Tenho dó, muito dó, mesmo,  de quem é vesgo e nem assim enxerga como um cego. Você é mau, Nandrique, muito mau. Vamos entregar você para a polícia... não deve ficar impune quem achincalha assim três pobres cegos... Se a justiça dos homens não o alcançar, que Deus tenha piedade de sua alma... Fique quieto em seu canto, facínora!...  Xana, Zeno, cuidado! Ele deve ser um seqüestrador de estrada, tentando nos prender pra pedir resgate...

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Pela última vez lhes digo: estão no país dos brejos e a estrada é toda cheia de pântanos e prados inundados. Um passo em falso e... puf! desaparecerão! Dentro em pouco  descerão as trevas. Vou tomá-los pela mão e conduzi-los a um albergue público, onde passarão a noite. Temos muitos albergues no país dos brejos... E posso lhes arranjar também alguns vales para refeições... No país dos brejos, somos especialistas em vales – vale-transporte, vale-médico, vale-remédio, até mesmo vale-puta, pra sair com as prostitutas do país dos brejos... Eis uma oportuna caridade, e a única que posso fazer.

 

XANA:- Vamos acabar logo com essa lenga-lenga! Pra frente é que se anda, meus amigos! Só faltava essa: acreditar nesse idiota com seus disparates! Onde já se viu: vale! Não somos gente de viver de vale, seu Nandrique... Temos o nosso orgulho em pedir esmola... pode enfiar os seus vales...

 

CRONO:- A Xana tem razão!  Acha que vamos aceitar auxílio de um vesgo? Vamos entrar na Grande Cidade ainda esta noite!

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Ah! é? Então, vão... andem... vão para a Grande Cidade, seus cabeças duras... seus orgulhosos...! Desprezam um conselho amigo por vir de um vesgo... mas quem avisa... vocês sabem...

 

ZENO:- Esse cara é um pentelho... um chato... não enxerga um parmo na frente do narigão dele... sai, narigudo... vai cheirá os fedô dos pântano donde ocê veio... e donde nunca devera de ter saído... vai...

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- ... eu estou avisando: se não me ouvirem, que Deus tenha piedade de suas almas... que o inferno não os tente... Eu, Nandrique, o sábio, presidente do país dos brejos, decreto: cem vezes cegos são aqueles que não querem acreditar em quem enxerga, mesmo que meio torto...

 

CRONO:- E eu, Crono, líder de todos os cegos asseguro: quem é vesgo em país de cegos, boas intenções não deve ter!

 

A VOZ DE NANDRIQUE:-  Tolos, malditos tolos: todos os caminhos levam à morte!

 

XANA:- Você é que está morto...

 

ZENO:- E esqueceu de deitá...

 

A VOZ DE NANDRIQUE:- Vocês têm razão: idiota, mil vezes idiota... eu... eu, por  querer bem ao próximo! Vamos! Continuem caminhando, atrás desse sonho louco... (Canta). “Um cego incomoda muita gente... dois cegos são mais cegos do que um... três cegos...”

 

OS TRÊS:-  Chega! Pára! Vamos em frente.... vamos para a Grande Cidade!

 

ZENO:- Quem vai na frente?

 

CRONO:- Eu vou na frente... como sempre... eu guio, vocês me seguem...

 

XANA:- Segura a ponta do meu casaco, estropício!...

 

ZENO:- Já segurei... já segurei... quem vai na frente? Quem vai na frente?

 

CRONO:- Para o alto... para as montanhas!

 

NANDRIQUE (aparecendo; é tão cego quanto os outros):- Vocês estão indo para o brejo... direitinho para o brejo... para a lama fétida, para o nada! Isso mesmo.... vão em frente!

 

OS TRÊS:- Nossos cajados são nossos olhos... e três cajados enxergam mais que um vesgo, que vê tudo torto!

 

 

Avançam, afastando-se, e o canto ressoa alegremente: “Tin... tin... tin... tin.. tiriritintin… Tirei, olhei, chacoalhei, usei, guardei no mesmo lugar... Tornei tirar, olhar, chacoalhar, usar, guardar no mesmo lugar...Voltam ao mesmo ponto, por outro caminho. Crono tropeça no cajado de Nandrique e os três caem, interrompendo o canto.

 

 

OS TRÊS:- Socorro! Não me empurrem! Ai minha cabeça! Que diabo, machuquei a mão. O que está acontecendo?

 

 

NANDRIQUE:- Eu não disse que era perigoso? Sem minha ajuda, não há como sair do país dos brejos...

 

XANA:- Você nos deu uma rasteira, desgraçado! Vou quebrar o seu pescoço...

 

ZENO:- Deixa comigo... xa comigo! Eu é que vou acertá as conta com esse mardito...

 

CRONO:- Calma, amigos, vocês se esqueceram de que ele enxerga, e nós não? Vamos pedir uma trégua... ele pode nos ajudar a sair dessa enrascada...

 

 

Depois de se levantarem e se ajeitarem de acordo como possível, os três confabulam um instante.

 

 

CRONO:- E então, concordam com uma trégua?

 

ZENO:- Sei, não... sei, não... esse cretino é mitido a esperto... ele vai querê nos passá a perna de novo...

 

XANA:- Por mim, tudo bem... eu até que gosto da voz dele...

 

ZENO:- Ocê é muito das assanhada, não é Xana?

 

CRONO:- Então está resolvido... vamos dar uma chance pra ele... Ei, seu Nandrique... fale alguma coisa pra que eu possa chegar até você...

 

NANDRIQUE:- Estou aqui... isso... isso, mesmo...

 

 

Crono e depois os outros chegam até Nandrique e apalpam-no, tentando reconhecê-lo.

 

 

CRONO:- Ué, cadê a corcunda?

 

XANA:- E o chapéu?... Você não tem chapéu?

 

ZENO:- Eu pensei que ocê era mais baixinho, !

 

CRONO:- E esse cajado???

 

ZENO:- O disgracento também usa cajado?

 

NANDRIQUE:- Não é um cajado de cegos, como o de vocês, meus amigos... Posso chamá-los assim, não é mesmo?... É o cajado símbolo do meu poder no país dos brejos!

 

XANA:- Ah bom! Mas já que você enxerga... apesar de vesgo... onde eu devo ficar pra você me ver melhor? À direita? À esquerda? E então, como eu estou... estou bonita... minha maquiagem está direita? E meus vestidos, não estão muito amassados, não... não é mesmo? Quer que mostre os meus peitos pra você ver se são bonitos? (Levanta a blusa) E então, não são lindos os meus seios, Nandrique?

 

ZENO:- Ô cachorrona... que é isso? Ocê num pode mostrá os peitos ansim,  pra quarquer um, não...

 

XANA:- Ora, Zeno, não seja bobo... Ele só tá olhando... Eu deixo você passar as mãos neles, porque você só enxerga com as mãos, não é mesmo? Mas o Nandrique aqui não precisa tocar neles, não... E então, Nandrique? O que você me diz? Fala?

 

NANDRIQUE:- É... é... eles... os seus peitos... eles... são bonitos, sim... empinados...

 

ZENO:- Que conversa é essa, seu Nandrique? Ocê tá querendo agradá a Xana? ? Oh! Oh! Oh! Os peito dela pode de tudo... menos impinado... Oh! Oh! Oh!

 

XANA:- Cala a boca, cretino... Que sabe você da beleza de uns seios como os meus? Eles são empinados, sim... E fim de papo!

 

CRONO:- Vamos parar com essa leréia?!!! Nós precisamos de ajuda para chegar à Grande Cidade e não ficar discutindo... discutindo... isso aí! Nós concordamos em aceitar sua ajuda, porque achamos que... Bem, não importa o que achamos... Você nos indica o caminho e eu guio todo mundo até o nosso destino...

 

NANDRIQUE:- Perderam o orgulho, não é mesmo? Pois, bem... Eu ajudo... Mas eu serei o guia até a Grande Cidade!

 

CRONO:- O quê? Você, o guia?

 

ZENO:- Mas ocê num é o presidente do país dos brejo?

 

NANDRIQUE:- Calem-se! E ouçam minha proposta. Eu enxergo...

 

XANA:- Mas é vesgo!

 

NANDRIQUE:- Eu enxergo e vocês, não! Portanto, estou apto a comandá-los na longa caminhada até a Grande Cidade!

 

CRONO:- E você deixa de ser presidente do país dos brejos?

 

NANDRIQUE:- Quem é rei nunca perde a majestade.

 

ZENO:- Conversa fiada... conversa fiada... O quê ocê tá querendo, hem, seu Nandrique?

 

NANDRIQUE:- Só quero o prazer de ajudar uns amigos...

 

ZENO:- Amigo? Nóis nem se conhece!

 

NANDRIQUE:- Apesar de tão pouco tempo, sinto-os como meus irmãos... Posso confiar em vocês...

 

CRONO:- Olha, aqui... seu Nandrique... Na minha tropa mando eu... E não vou deixar que um estranho venha tomar o meu lugar!

 

XANA:- É isso, mesmo... Crono sempre nos guiou e deve continuar nos guiando.

 

ZENO:- Sei, não... sei, não... Só aceita o Crono como guia quem gosta de apanhá... e eu não gosto!

 

XANA:- Tapa de amor não dói...

 

ZENO:- Não dói o caraio!... Vem cá, pr’ocê vê se a minha porrada nas tuas fuça vai doê ou não!...

 

CRONO:- Vamos fazer uma votação... Eu voto não... A Xana também vota não... Pronto, ganhei... Eu continuo no comando.

 

ZENO:- Ei... péra aí... ocê é parte interessada... Ocê num vota...

 

CRONO:- Mas eu sou o voto de minerva...

 

ZENO:- Que merda é essa?

 

CRONO:- A Xana está comigo. Você está contra. Um a um. É preciso desempatar. O comandante dá o voto final. E eu sou o comandante.

 

NANDRIQUE:- Esperem... vamos decidir de outra forma... Quem oferecer mais vantagens ganha... Eu, por exemplo, ofereço a vantagem de meus olhos...

 

CRONO:- E eu a vantagem da minha experiência de longos anos por esses caminhos...

 

NANDRIQUE:- Eu ofereço a vantagem de ser um líder no meu país e, portanto, sei lidar com as pessoas...

 

CRONO:- E eu ofereço a vantagem de já conhecer os meus comandados e saber exatamente o que cada um deles quer!

 

CRONO E NANDRIQUE:- E então? O que decidem?

 

XANA:- Eu fico com o Nandrique!

 

ZENO:- Eu fico com o Crono!

 

CRONO:- Empatou de novo. Eu decido.

 

NANDRIQUE:- Nesse caso, como presidente do país dos brejos, eu também tenho o direito de decidir!

 

CRONO:- Se eu decido para um lado e você decide pelo outro, fica tudo empatado de novo. E quem é que vai decidir?

 

NANDRIQUE:- Proponho uma disputa entre nós dois... Quem acertar uma maçã a quinze metros com um tiro, ganha...

 

CRONO:- E na bundinha, não vai nada? Vai se foder, Nandrique... Já sei muito bem de suas intenções... Você é um falso: está querendo o meu lugar para alguma coisa de muito ruim... Pra sacanear os meus amigos, aqui... E isso eu não vou permitir... Eu sou cego, mas sou muito capaz de lhe dar uma boa surra... E não vai ter ninguém que vai impedir...

 

 

Crono dá cajadadas a esmo e acerta Zeno e Xana, sem logra atingir Nandrique.

 

 

XANA E ZENO:- Ai! Ui! Quem me bate? Quem me bate?

 

CRONO:- Se vocês apanharam, foi o Nandrique quem bateu... Eu só bati no Nandrique e ele, para se vingar, bateu em vocês... Querem um líder assim? Querem?

 

XANA E ZENO:- Não! Não! Você é nosso líder!

 

NANDRIQUE:- Como? Eu não bati em ninguém... eu não bati em ninguém... Que aconteceu?  Que aconteceu?

 

CRONO:- Acho que o vesguinho estava olhando pro outro lado... ou então as porradas que lhe dei lhe tiraram o juízo...

 

ZENO:- Eu bem que tava disconfiado das artimanha desse dianho...

 

XANA:- Eu nunca confiei nele...

 

CRONO:- Chega de lenga-lenga. Vamos embora! Eu guio. Vocês me seguem.

 

XANA:- Segura em mim, estropício...

 

CRONO:- Adeus, vesguinho! E obrigado pela ajuda!

 

ZENO:- Adeus, rei dos brejo... e  rei das e dos batráquio!

 

XANA:- Adeus, eco asneirento! Fica aí em sua cadeira de presidente e prega seu desejo em mandar em nós no cu de cada um que mora no país dos brejos! É a nossa vez, amigos. Para diante! E segura meu casaco, Zeno!...

 

 

Avançam, afastando-se, e o canto ressoa alegremente: “Tin... tin... tin... tin.. tiriritintin… Tirei, olhei, chacoalhei, usei, guardei no mesmo lugar... Tornei tirar, olhar, chacoalhar, usar, guardar no mesmo lugar...

 

 

NANDRIQUE:- Pra onde eles foram? Pra onde eles foram? Já sei... sem mim, eles vão direitinho para o brejo... Ouçam!

 

 

O canto se interrompe.

 

 

OS TRÊS-: Socorro!Não me puxem! Nandrique! Socorro! É a água! Misericórdia! Cadê a terra! Estamos afundando... Eu me afogo! Jesus, salvai-me!

 

 

Gritos ainda ofegos, e as vozes se extinguem.

 

 

NANDRIQUE:-  Nada posso fazer por eles! Os brejos são tão profundos! Não cantarão mais os cegos! Acabou-se o seu caminho... Descansem em paz, meus irmãos, no velho barro de que todo mortal é formado! A noite avança. Vou para meu trono, isto é, para minha cadeira de presidente... de onde colecionarei mais conselhos... sou mesmo um incorrigível... colecionarei mil conselhos para outros mil ceguinhos que buscam a sorte na Grande Cidade! Adeus... adeus... rezarei por vossas almas cegas, pobres ceguinhos. Adeus!

 

 

Nandrique tateia a placa e sai na mesma direção em que foram os cegos.

 

 

FIM

 

 

26 de setembro de 2001

Isaias Edson Sidney

 

 

 

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