comédia musical
ISAIAS EDSON SIDNEY
2002
SBAT - 2589 (16.9.2002)
FBN -
169.326, LIVRO 483, FOLHA 486
LEITURA
DRAMÁTICA NA MOSTRA DO SEMDA
– SEMINÁRIO DE DRAMATURGIA DO ARENA –
EM
27 DE MAIO DE 2003
-
Teatro de Arena Eugênio Kusnet –
Rua
Teodoro Baima, São Paulo/SP
MÔNICA RAPHAEL
WALTER BREDA
EDU DA VIOLA (violão e viola)
BRUNO BOARO (guitarra)
MANINHO
PERSONAGENS
MARIANA: jovem interiorana, recém-chegada à capital. No começo da peça, sua fala (que está parcialmente reproduzida) é tipicamente caipira.
AMARO: na casa dos 50
anos. Músico e jornalista, tem por profissão, no entanto, agenciar artistas.
Sala do apartamento de Amaro, um tanto bagunçado no começo, com móveis e objetos fora de lugar e muitos livros e discos espalhados.
CENA 1:
Amaro vai
colocando aleatoriamente objetos e caixas no apartamento, enquanto canta a
“Canção do espelho”.
Que sempre nós sonhamos:
No espelho, a face invertida
De tudo que tentamos.
Sonho ou fantasia,
Buscar um ideal
Na beleza de uma mulher
Sonho ou fantasia
É sempre, sempre o mal
Nas mãos do criador.
Esperança e amizade
Não pensa se quer
Só planta a vaidade
Solidão e dor
Fatal o abandono
Cão sem dono
A chorar de amor.”
AMARO:- Pois,
não... O que você deseja?
Toca o
telefone. Amaro pede a Mariana que entre, fecha a porta e vai atender. Suas
frases são truncadas, mostrando que ele não está muito à vontade com a presença
da moça, que permanece de pé, observando o ambiente, sem atender aos gestos de
Amaro para que se sente.
AMARO:- Sim, sou eu... ah! O que você... Está bem... Estou
ouvindo... Não, pode falar... Bem, já lhe disse: estou me virando... Não, não é
esse o problema... Claro, claro... Às vezes um ovo, um bife... Mas já disse:
não é esse o problema... Claro... Claro... Já lhe disse que eu me acostumo...
Foi minha a opção, você sabe: cansei, cansei de você, cansei de nossa vida,
cansei de mim... Por quê? Ora, minha cara, não vê que eu digo tudo isso para
esconder uma verdade terrível? Que eu fracassei... Fracassei... Basta olhar
para mim: está estampado na minha cara o fracasso que eu sou... Não, não... Não
adianta mais... Acabou... Você era... Era... (olha meio descorçoado para
Mariana) a minha aposta maior de vida... Vinte anos, minha cara, eu
tentei... E você agora pode enfrentar o mundo que te espera... Você tem tudo: é
bonita, culta, conhece os caminhos... Pode, pode sim... Você pode tudo... Não,
não tenho nada mais com isso e se um dia tive a pretensão, morreu, acabou... Eu
sou livre... Você é livre... Sim, livre de mim... Você tem razão... Não, não
posso dizer...
Mariana pega um objeto qualquer e, ao revirá-lo nas mãos, com admiração, deixa-o cair.
AMARO:- Não, não tem ninguém, não... Foi... Foi o gato... É, eu
odiava gatos, mas comprei um para me fazer companhia... Já disse, foi o ga...
ga... to... Por que estou ga-ga-ga-guejando? EU NÃO ESTOU GAGUEJANDO! Droga...
Não, pode estar certa de uma coisa: nunca mais quero ter alguém em minha vida,
ouviu? Você pode orgulhar-se disto: você foi a última! Acabou! Chega! (Mais
calmo). Está bem, preciso desligar... Eu passo aí para ver os filhotes e...
Está bem... Até logo...
Bate o telefone, fica um instante pensativo, depois se
volta para Mariana.
AMARO:- Você...
Você não quer sentar-se?
Amaro tenta ajeitar alguma coisa, meio sem graça.
AMARO:- Desculpe...
É que... ando meio atarefado... Mas, você não veio para...
MARIANA:- “Por tudo que eu
passei
sofri chorei,
mas não mardisse a vida.
uma coisa eu sei
me ensinou a vovó querida
minha vovozinha
dizia a sussurá
que nesta vida a gente
tem mais é que sonhá
que nesta vida o sonho
a gente tem de teimá
por isso eu segui
os conselhos da vovó querida
tenho um sonho forte
que vai se realizá.”
MARIANA:- Sabe, seu Amaro, dispois que meus pais morrero, fiquei só eu e minha vozinha... E ela me ensinô do pouco que sei... Mas dizia sempre que devia buscá o meu sonho... E meu sonho está aqui, e pronto... Não interessa pro sinhô... Só posso dizê que não quero vortá e num vô vortá...
Amaro pega a carta e lê. Vai ficando furioso. Ao final,
olha para Mariana com raiva.
AMARO:- Meu irmão me paga! Realmente não posso recusar! Droga!
Droga! Mas tem uma coisa, mocinha: você vai ter de trabalhar direitinho, hem!
Se não, eu esqueço o meu irmão, esqueço tudo... e rua!
Desalentado,
Amaro dobra cuidadosamente a carta, guarda-a no bolso, pega a mala de Mariana e
a conduz para dentro. Mariana sai e Amaro volta para cantar a “Canção da
dúvida”:
Parece
maldição,
Não
posso, não,
Com
a maldita...
A
bola da vez
Tive um dia em minha mão
Seu destino, seu caminho
Tudo isso ao meu dispor
A bola da vez
Quis mudar a sua sorte
Trazer o sul pro norte
fazer da pedra flor
A bola da vez
Os sonhos já tenho
Não sei de onde venho
o amor já acabou
A bola da vez
Parece maldição
Cruel desdita.
CENA 2:
Amaro lê o
jornal do dia, ainda de pijama e roupão. Entra Mariana, em uniforme de
empregada, e começa a arrumar a sala.
AMARO:- Pára com isso, Mariana, e vamos às lições do dia, que o
tempo urge!
Amaro pega-a
pelas mãos e a conduz até o centro da sala. Tira o avental e o chapeuzinho de
empregada, não sem alguma resistência de Mariana.
AMARO:- Primeira lição de hoje: caminhar!
Coloca um
livro sobre a cabeça e caminha pela sala, com o corpo ereto, como se desfilasse
em uma passarela. Canta a “Canção do orgulho”.
Escolhe-se o norte
Com um pouco de sorte
Pode não tropeçar
Andar é fácil
Se aprende desde cedo
É só perder o medo
Mas andar com porte
O mundo a provocar
Só se consegue
Ao desfilar.”
Depois da
demonstração, faz Mariana repetir seus gestos.
AMARO:- Vamos lá... Mariana... Isso... Um pé na frente do
outro... Vamos... Barriga pra dentro... Peito pra fora...
Mariana
interrompe o exercício.
MARIANA:- Cê tá maluco, tá? Eu num vô mostrá meus peito... nem pro
sinhô nem pra ninguém!
Ainda meio
amuada, Mariana retoma o exercício, agora cantando, no começo meio indecisa,
até conseguir desfilar como Amaro demonstrou.
AMARO:- Muito bem, Mariana...
Agora, lição de etiqueta. Como arrumar uma mesa. Vamos lá... Eu mostro e você
repete...
MARIANA:- Isso eu já sei, seu
Amaro... Andei istudando nos livro qui o sinhô me arrumô... Olhei direitinho as
figura e guardei tudo aqui, ó, no bestunto... Vô mostrá pru sinhô...
Mariana
canta a “Canção da arte de servir” (com sotaque caipira) e arruma a mesa,
colocando os talheres, pratos, copos, guardanapos etc.
MARIANA:- “A mesa posta
Cenário à parte
Flores, linhos, prata
Cantemos nós a arte
De bem receber!”
AMARO:- “O vinho a mesa
Cenário à parte
Aves,carnes peixe
E toda arte
De bem receber!”
AMBOS:- “A porcelana
Cenário à parte
Colheres facas garfos
Cantemos nós a arte
De bem receber!”
AMARO:- Muito bem, Mariana: você está cada dia melhor...
CENA 3
Titubeando, Mariana tenta ler para Amaro um texto de “A Divina
Comédia”.
Vai-se por mim à sempiterna dor,
Vai-se por mim entre a perdida gente...” (1)
Gagueja e repete a leitura.
Mariana repete várias vezes.
AMARO:- Então, lê... Lê de novo... Sem gaguejar!
Mariana
tenta recomeçar a leitura. Gagueja. Não consegue.
MARIANA:- Pra quê? Pra quê... esse... esse poeta louco que eu não
entendo?
Toca o telefone. Amaro faz um gesto para Mariana continuar a
leitura. Atende.
AMARO:- Você?! Co... co... como vai? Não... não... eu... eu...
não... es...es...tou ga...ga...gaguejando! Que porra! Desculpe. Conversemos,
sim... Como gente civilizada. Eu? Eu estou... Estou bem... É... No inferno...
Quero, dizer, no Inferno de Dante... É... Estou relendo... É, eu sei que você
odiava Dante... Eu sei... Talvez... Você sabe o que eu penso... Você sabe o que
eu sinto... Sim, vamos sim... Quando? Hoje? Agora?!... Mas... Está bem...
Desliga o telefone. Anda de um lado a outro, por um instante.
AMARO:- Vou... vou... sair... Preciso re... re... resolver um
ne...negócio... urgente. O diretor do teatro, você sabe... É... aquele...
Ele... o diretor... quer que eu... que eu assine uns papéis...
Amaro pega um agasalho e sai.
Canta a “Canção da esperança”.
MARIANA:- “Chorar pelo passado
Temer pelo futuro
Se olho para frente
Só vejo tudo escuro
Se gasto o meu suor
Num livro tão pesado
Ganho só a solidão
De chorar pelo passado
Se quero ir em frente
Não vejo a escuridão
Não sei qual o caminho
Perdi a direção
Não quero o passado
O futuro está ao léu
Esqueço o meu presente
A esperar o céu
A esperar o céu.”
MARIANA:- Eu sei aonde ele foi... Eu sei! Ele pensa que me engana! Ele pensa que me engana! Covarde!
CENA
4:
Amaro, de
forma alucinada, procura coisas: revira gavetas (numa das quais encontra um
revólver, que joga de volta ao mesmo lugar), folheia livros, abre pastas de
arquivos, joga partituras para cima, enfim, faz uma grande bagunça.
AMARO:- Tudo vale a pena... Tudo vale a pena... E dessa vez
valerá ainda mais!
Canta a
“Canção do tesouro”.
AMARO:- “Nas
mãos um tesouro
Que vale mais que o ouro
Que um mortal pode ganhar
Nas mãos um brilhante
Um belo diamante
Para lapidar
A pérola mais rara criei
Para mim, feliz é o meu amor
Sem ela seja o que for
Meu coração não sobrevive
Nas mãos um tesouro
Que vale mais que o ouro
Que um mortal pode ganhar.”
AMARO:- Mariana! O que... o que... o que... é isso?
Canta a
“Canção da traição”.
Sonhando um amor
Assim: somente meu,
Inteiramente meu!
Como eu seria feliz,
Feliz seria eu
Com o amor que eu sempre quis
Assim somente meu!
Como eu seria feliz,
Feliz seria eu
Então, ingênua, pensei
Que era sempre meu.
Mas eu fiquei infeliz
Tão infeliz fiquei eu
Pela tua traição
O meu amor você não mereceu
O meu canto você não mereceu
O meu prato você não mereceu.”
Amaro abraça
Mariana.
AMARO:- Queria o poder de transformar cada lágrima que rola de
seus olhos em punhais que abrissem o meu peito. Assim, talvez, você pudesse ver
um coração que se arrepende, um coração que somente pulsa porque você, Mariana,
existe.
Larga-a e,
desesperado, corre até a gaveta, pega o revólver e entrega-lhe.
Amaro guarda
o revólver e volta, feliz, para Mariana.
AMARO:- Pronto, meu amor. Venha. Venha ver o que preparei para a
lição de hoje...
Mariana ri,
feliz, imitando o velho sotaque.
MARIANA:- Se ocê num cuidá de mim, posso tê uma
recaída, num é não?
Amaro coloca
um disco e ensaiam uma coreografia. Ao final, cantam e dançam a “Canção da
vida”.
MARIANA:- “Viver, cantar, dançar, amar!
A vida é breve para tanto!”
A vida é bela com seu canto!”
Cantando, dançando, amando!
Destino quis assim:
Felizes, cantando, dançando,
Ali, na esquina, espera a vida,
Ali, na esquina, espera o prazer,
A nossa meta é bem definida:
Sucesso! Muito sucesso vamos ter!”
Recosta-a um pouco. Mariana abre os olhos.
MARIANA:- Não... não... foi... nada... Acho que... exagerei um
pouco...
Beijam-se apaixonadamente.
Sai.
MARIANA:- Ele... ele me ama! Como sou feliz! Se ele me ama de
verdade... sou a mulher mais feliz do mundo! Mas... será verdadeiro esse amor? Será?
Eu devo acreditar... eu devo acreditar que ele me ama tanto quanto eu o amo...
Sai, atrás de Amaro.
MARIANA:- Amaro, meu amor... Amaro! Eu estou bem, meu querido...
Eu estou bem! Porque eu sei que você me ama!...
CENA 5:
Canta a
“Canção da mulher e menina”.
MARIANA:- “Eu sou apenas a mulher
Um copo de
cristal
Presente de
natal
Deleite a
quem quiser
Pagar a
purpurina
Eu sou
apenas a mulher
Em leitos de
brocal
Alegre
concubina
Pra quem
quiser
Pagar a
purpurina
Eu sou
apenas a menina
Num corpo de
mulher
Ao pobre que
sonhar
Chamar-me de
meu bem
Pagar a
concubina
Se a noite
não vier
Diz tudo
quanto sente, mente.
Sou apenas a
menina
Em corpo de
mulher.”
Mariana
enxuga uma lágrima. Ruído de passos e de chaves na porta. Amaro entra. Está
desalinhado e bêbado. Acende as luzes e dá de cara com Mariana. Fica sem saber
o que fazer, estático, numa pose ridícula.
MARIANA:- Você... você está bem,
Amaro?
Amaro faz
algumas micagens de bêbado.
MARIANA:- Minha mala esteve sempre
pronta, Amaro. E, desta vez, não há mais desculpas. O mundo lá fora me espera.
Eu também já estou pronta. Não preciso mais implorar migalhas de seu amor. Vou
conseguir viver sem você... Mesmo que, para isso, eu tenha que me violentar.
Conseguirei arrancar de mim essa dependência... essa possessão...
Mariana, em
gestos lentos, veste uma capa, pega a mala e começa a sair. Amaro tenta
recuperar-se da bebedeira.
AMARO:- Você... você... não
pode... não pode me deixar! Eu sou... eu sou... seu... seu...
Mariana sai.
Amaro fica alguns instantes em silêncio. Depois canta a “Canção do joalheiro”.
AMARO:-
“Transformar o ouro impuro
No colar mais belo e raro
Eu sou o joalheiro
Criei a jóia destinada
A jóia cobiçada
O ouro em suas mãos
A prata em seu olhar
Mas eis que eu
O joalheiro
Notei bem em um relance
Na jóia uma imperfeição
Que só ao meu olhar
Podia ser revelada
Transformar o ouro impuro
No colar mais belo e raro
Então eu, o joalheiro.
Sem dó nem piedade
Tornei o colar querido
De novo ouro derretido
Transformar o ouro impuro
No
colar mais belo e raro.”
CENA 6:
Amaro entra
com uma pilha de jornais e revistas. Folheia-os e joga cada página para o alto.
AMARO:- Mariana... Mariana... Só
se fala em Mariana... Mariana, não... MARY FAIR! Como eu a batizei... MARY
FAIR! A grande cantora... A mais bela voz dos últimos tempos...
Liga o rádio
e ouve a voz de Mariana, cantando uma canção. Desliga-o com raiva. Volta aos
jornais.
AMARO:- “Mary Fair se casa com
famoso diretor de novelas! Depois da festa, partem para uma longa turnê ao
redor do mundo...”
Liga a
televisão e vê Mariana cantando. Desliga-a com raiva. Bebe. Volta aos jornais.
Bebe e tenta
ouvir uma música, mas o disco que ele coloca no aparelho de som reproduz a voz
de Mariana. Volta aos jornais.
AMARO:- “Mary Fair se casa pela
terceira vez!”
Joga tudo
para o alto, com raiva.
CENA 7
Amaro anda
de um lado para o outro, desesperado, pelo apartamento de novo todo
desorganizado. Senta-se ao computador, tenta tocar uma música nos teclados,
abre o livro “A divina comédia” e
joga-o de lado, procura alguma coisa em todas as gavetas.
AMARO:- Estava aqui, eu sempre a
guardo aqui... Droga! Um homem não pode nem se matar, se não encontra a própria
arma... Com certeza, ela guardou em outro lugar, e eu nunca mais vou achar...
Droga. Onde? Onde está? Onde está você, Mariana?
Desanimado e
desalinhado, chora um pouco. Como vindos de muito longe, começam os acordes da
“Canção do espelho”. Amaro canta.
AMARO:- “É muito louca a vida
Que sempre nós sonhamos:
No espelho, a face invertida
De tudo que tentamos.
Sonho ou fantasia,
Buscar um ideal
Na beleza de uma mulher
Sonho ou fantasia
É sempre, sempre o mal
Nas mãos do criador.
Esperança e amizade
Não pensa se quer
Só planta a vaidade
Solidão e dor
Fatal o abandono
Cão sem dono
A chorar de amor.”
AMARO:- Que idiota eu fui, mais uma vez... E mais uma vez quebrei
a cara... E mais uma vez estou sozinho. Maldita carta! Por que você fez isso
comigo, meu irmão? Por que você brincou mais uma vez comigo, ó destino cruel!
Que droga. Agora, só me resta cantar um tango argentino... para que ela não sapateie
um samba em cima da minha sepultura! Oh! O que digo? Não sei mais o que diga... A carta... Onde estará aquela
maldita carta...
Procura,
durante algum tempo, nas gavetas e armários. Desiste.
AMARO:- Também, não sei por que devo achar aquela maldita
carta... Se foi ela a razão de toda a minha desgraça. Não, não! Estou falando
asneira de novo: a razão de minha desgraça foi ela... Foi ela, sim!... Mariana,
maldita! Mil vezes maldita! Agora está lá, se refestelando no sucesso...
Ganhando milhões... Tendo mil aventuras... Sendo cortejada por todos os
homens... E eu, miserável, aqui neste pardieiro a cantar um tango argentino...
Que merda!
Canta o
refrão da “Canção do espelho” em ritmo de tango.
Que sempre nós sonhamos:
No espelho, a face invertida
De tudo que tentamos.”
AMARO:- E mais uma vez, falo besteira: ela, a culpada de tudo?
Claro que não! Eu, eu fui o único culpado: com minha teimosia... com minha
arrogância... Pensei que podia fazer de novo e que não erraria dessa vez...
Doce delírio... Doce delírio! Mulheres! Bah! São todas iguais e eu sempre soube
disso... Eu sempre soube!
CENA
8:
AMARO:- Que droga! Já vou! Não pode um homem sofrer e chorar em
paz os seus fracassos!?... A chave, onde está a chave?... Ah! Aqui está. Já
vou, droga!
MARIANA:- Um cavalheiro, um verdadeiro cavalheiro não deixa a dama
esperando... Não vai convidar-me a entrar?
Mariana faz uma leve carícia no rosto de
Amaro e entra com desenvoltura. Ele fecha a porta e mostra-se intimidado diante
da mulher.
MARIANA:- Que bagunça, Amaro! Você precisa arrumar outra secretária...
Um homem como você não pode viver assim... Precisa sempre de alguém para...
para dar um jeito nisso tudo... Não sei se você sabe, mas sinto ainda uma
pontinha de saudade desse apartamento... Você se lembra de quando cheguei aqui,
vinda do interior?...
AMARO:- O que você quer de mim? Por que você voltou? Por quê?
Mariana
canta a “Canção da mulher e menina”.
MARIANA:-
“Eu sou apenas a mulher
Um copo de cristal
Presente de natal
Deleite a quem quiser
Pagar a purpurina
Eu sou apenas a mulher
Em leitos de brocal
Alegre concubina
Pra quem quiser
Pagar a purpurina
Eu sou apenas a menina
Num corpo de mulher
Ao pobre que sonhar
Chamar-me de meu bem
Pagar a concubina
Se a noite não vier
Diz tudo quanto sente, mente.
Sou apenas a menina
Em corpo de mulher.”
AMARO:- Quando você partiu daqui com aquele cantorzinho de nada,
eu pensei: ela vai, mas voltará, pois vai descobrir o que é a verdadeira arte.
Quando você o deixou por aquele diretor de novelas de televisão, eu pensei: ela
vai descobrir a vida e voltará mais sábia; quando você se divorciou do diretor
de novelas e casou com aquele empresário, eu desculpei: voltará mais prática,
mais pé no chão; quando o banqueiro a levou para Mônaco, e anunciou que você
era a mulher da vida dele, eu ponderei: voltará ainda mais bela, bafejada pelos
ares da Europa; e assim, fui seguindo sua vida, apresentando a mim mesmo
desculpas e esperanças, sonhando não os meus sonhos, que você acha que eu
incuti em sua cabeça, mas as minhas ilusões... E você, pensa que eu sou o quê?
Que não sofri, que não chorei?
Mariana e
Amaro cantam a “Canção da volta”.
MARIANA:- “Voltei! voltei!
Você não quer saber por que?
Voltei, voltei.
Você pensa o que quiser
Voltei, voltei.
Porque você me fez viver,
Voltei, voltei.
Porque você me fez mulher.”
AMARO:- “Voltar! voltar!
É estar comigo outra vez
Voltar, voltar.
É ser feliz junto de mim
Voltar, voltar.
Então me diga se eu minto
Voltar, voltar.
E eu te direi tudo que sinto.”
MARIANA:- “Meu amor.
A sua criatura voltou,
Contra o criador ela se rebelou
Mas quem você criou voltou.”
MARIANA:- “Te amo e te odeio.”
AMBOS:- “Mas não consigo viver
Sem o seu amor
Dói o meu peito em dizer
Que sem você não sei viver.”
MARIANA:- “Voltei!”
AMBOS:- “Voltei, voltou!
Tudo bem assim
Este amor não vai mais ter fim.”
MARIANA:- Não, Amaro. Você não me ama. Você pensa que me ama. Você
se ilude, criando um amor por uma mulher que não existe, que é a Mariana que
você imagina ter criado. Você ama a sua pretensa criação, Amaro, não a mim,
Mariana Aparecida Ferreira; nem a mim, Mary Fair, a cantora das Américas,
talvez a mulher mais desejada do Brasil e, com certeza, a mulher mais infeliz
do Brasil...
Mariana canta a “Canção da verdade”.
Na hora da verdade
Nós nos amamos
Porém sem sinceridade
Você me usou
Esta é a verdade
Me moldou
Pela sua vaidade
Não respeitou
A minha liberdade
Me dominou
Impôs sua vontade
Mas só eu sei
Quem te usou fui eu
Aproveitei
Sem sinceridade
Eu te usei
Como apoio, como escada.
Eu te usei
Para a minha escalada
Aqui estamos
Na hora da verdade
Nós nos amamos
Porém sem sinceridade
A vida mudou
Porque você não vê
Você pensa que me usou
Mas fui eu quem usei você!”
AMARO:- E o que você é, se não o fruto da minha vontade,
Mariana? Eu te moldei porque te amo...
Mariana abre a bolsa, tira o revólver de Amaro e entrega-lhe.
MARIANA:- Queria matá-lo, sim... Mas no meu coração. Eu não posso
viver à sua sombra...
Que sempre nós
sonhamos...”
MARIANA:- “Chorar pelo passado
Temer pelo futuro
Se olho para frente
Só vejo tudo escuro...”
AMBOS:- “Viver, amar, canta, dançar...”
Cantando, dançando, amando!
Destino quis assim:
Felizes, cantando, dançando,
Ali, na esquina, espera a vida,
Ali, na esquina, espera o prazer,
A nossa meta é bem definida:
Sucesso! Muito sucesso vamos ter!
Mariana canta a segunda parte da “Canção da mulher e menina”,
enquanto se dirige lentamente para fora.
MARIANA:-
“Eu sou apenas a menina
Num corpo de mulher
Ao pobre que sonhar
Chamar-me de meu bem
Pagar a concubina
Se a noite não vier
Diz tudo quanto sente
Mente!
Sou apenas a menina
Em corpo de mulher.”
Ambos cantam a “Canção do fim”:
AMARO:- “Adeus, Mariana...”
Não voltaremos
A nos encontrar...”
Como uma boa lembrança,
Como um fantasma amigo
De um tempo de
esperança...”
Mariana beija Amaro, carinhosamente, e sai.
Enquanto as luzes vão baixando, Amaro pega a “ Divina Comédia”, senta-se e
começa a ler. Black-out.
FIM
Isaias Edson Sidney
4 de setembro de 2002
sexta-feira, 6 de junho de 2003
NOTA:
(1) Alighieri, Dante. A Divina Comédia: inferno.
Tradução e notas de Ítalo Eugenio Mauro. – São Paulo. Ed. 34, 1998. Canto III; p.37.
Ilustração:
Pigmalião e Galateia, de Jean-Leon Gerome
(1824-1904); The Bridgeman Art Library, London.
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