quarta-feira, 19 de maio de 2021

GALATEIA

 

(Jean-Léon Gerôme)

 

comédia musical

 

ISAIAS EDSON SIDNEY

 

2002

 

SBAT - 2589 (16.9.2002)

FBN - 169.326, LIVRO 483, FOLHA 486



LEITURA DRAMÁTICA NA MOSTRA DO SEMDA

 – SEMINÁRIO DE DRAMATURGIA DO ARENA –

EM 27 DE MAIO DE 2003

- Teatro de Arena Eugênio Kusnet –

Rua Teodoro Baima, São Paulo/SP

 

 DIREÇÃO

CHICO DE ASSIS

 MÚSICAS

CHICO DE ASSIS.

 ELENCO

MÔNICA RAPHAEL

WALTER BREDA

 MÚSICOS

CHICO DE ASSIS (teclados)

EDU DA VIOLA (violão e viola)

BRUNO BOARO (guitarra)

 ILUMINAÇÃO

MANINHO

 

PERSONAGENS

MARIANA: jovem interiorana, recém-chegada à capital. No começo da peça, sua fala (que está parcialmente reproduzida) é tipicamente caipira.

AMARO: na casa dos 50 anos. Músico e jornalista, tem por profissão, no entanto, agenciar artistas.

 CENÁRIO

 Sala do apartamento de Amaro, um tanto bagunçado no começo, com móveis e objetos fora de lugar e muitos livros e discos espalhados.


  

CENA 1:

 

Amaro vai colocando aleatoriamente objetos e caixas no apartamento, enquanto canta a “Canção do espelho”.

 

 AMARO:- “É muito louca a vida

Que sempre nós sonhamos:

No espelho, a face invertida

De tudo que tentamos.

 

Sonho ou fantasia,

Buscar um ideal

Na beleza de uma mulher

Sonho ou fantasia

É sempre, sempre o mal

Nas mãos do criador.

 

Esperança e amizade

Não pensa se quer

Só planta a vaidade

Solidão e dor

Fatal o abandono

Cão sem dono

A chorar de amor.”

 

 Enquanto terminam os últimos acordes, pega um livro – A DIVINA COMÉDIA – e, à luz de um abajur, começa a lê-lo, enquanto ouve, bem baixinha, alguma obra de Chopin. De repente, toca a campainha, estridentemente. Ele corre a abrir a porta, já desesperado pela insistência, e depara-se com uma jovem em trajes simples, portando uma mala, olhar assustado. É Mariana.

  

AMARO:- Pois, não... O que você deseja?

 MARIANA:- Vim da parte do seu Víto... O sinhô é o seu Amaro?

 AMARO:- Do Vítor... Sim, meu irmão... Ele...

  

Toca o telefone. Amaro pede a Mariana que entre, fecha a porta e vai atender. Suas frases são truncadas, mostrando que ele não está muito à vontade com a presença da moça, que permanece de pé, observando o ambiente, sem atender aos gestos de Amaro para que se sente.

  

AMARO:- Sim, sou eu... ah! O que você... Está bem... Estou ouvindo... Não, pode falar... Bem, já lhe disse: estou me virando... Não, não é esse o problema... Claro, claro... Às vezes um ovo, um bife... Mas já disse: não é esse o problema... Claro... Claro... Já lhe disse que eu me acostumo... Foi minha a opção, você sabe: cansei, cansei de você, cansei de nossa vida, cansei de mim... Por quê? Ora, minha cara, não vê que eu digo tudo isso para esconder uma verdade terrível? Que eu fracassei... Fracassei... Basta olhar para mim: está estampado na minha cara o fracasso que eu sou... Não, não... Não adianta mais... Acabou... Você era... Era... (olha meio descorçoado para Mariana) a minha aposta maior de vida... Vinte anos, minha cara, eu tentei... E você agora pode enfrentar o mundo que te espera... Você tem tudo: é bonita, culta, conhece os caminhos... Pode, pode sim... Você pode tudo... Não, não tenho nada mais com isso e se um dia tive a pretensão, morreu, acabou... Eu sou livre... Você é livre... Sim, livre de mim... Você tem razão... Não, não posso dizer...

 

Mariana pega um objeto qualquer e, ao revirá-lo nas mãos, com admiração, deixa-o cair.

  

AMARO:- Não, não tem ninguém, não... Foi... Foi o gato... É, eu odiava gatos, mas comprei um para me fazer companhia... Já disse, foi o ga... ga... to... Por que estou ga-ga-ga-guejando? EU NÃO ESTOU GAGUEJANDO! Droga... Não, pode estar certa de uma coisa: nunca mais quero ter alguém em minha vida, ouviu? Você pode orgulhar-se disto: você foi a última! Acabou! Chega! (Mais calmo). Está bem, preciso desligar... Eu passo aí para ver os filhotes e... Está bem... Até logo...

  

Bate o telefone, fica um instante pensativo, depois se volta para Mariana.

  

AMARO:- Você... Você não quer sentar-se?

 MARIANA:- bem assim... Discurpe pelo...

 AMARO:- Deixa pra lá! Humm... Deixe-me ver: você nasceu em Ijaci, perto de Lavras, não é mesmo? Espere: tem mais: mudou-se muito jovem para Belo Horizonte e, depois de alguma coisa muito grave que lhe aconteceu, voltou para Ijaci, já mocinha... Calma: ainda posso dizer que você é órfã e foi criada por uma pessoa bem mais velha, uma avó, talvez...

 MARIANA:- Como... Como o sinhô...  sabe tudo isso... se...

 AMARO:- Uma coisa que eu aprendi na vida, mocinha, foi observar as pessoas... Um detalhe na roupa... Um jeito de pentear os cabelos... Um gesto... Uma palavra... O jeito de olhar... Tudo me revela... Bom, não interessa: não sei se isso é um dom ou uma maldição... Você não me disse seu nome...

 MARIANA:- Não, não disse...

 AMARO:- Então...

 MARIANA:- Vim da parte do Víto... Discurpe... Do seu Vítor... Ele...

 AMARO:- É... Você já disse... Meu irmão. Ele está bem?

 MARIANA:- Com a graça de Deus...

 AMARO:- A que devo...

 MARIANA:- Seu Vítor disse que o sinhô tá percisando de uma pessoa pra lavá, passá, arrumá... E acho que mesmo...

  

Amaro tenta ajeitar alguma coisa, meio sem graça.

  

AMARO:- Desculpe... É que... ando meio atarefado... Mas, você não veio para...

 MARIANA:- Sei lavá, passá, cozinhá, sim sinhô...

 AMARO:- Você pode saber “lavá, passá, cozinhá” e mais o que o diabo lhe ensinou, mas...

 MARIANA:- Eu num posso vortá...

 AMARO:- Como?

 MARIANA:- Eu vim pra ficá!

 AMARO:- Olha aqui... Acho que temos um problema: quando eu pedi a meu irmão que me achasse alguém para... para...

 MARIANA:- Lavá, passá, cozinhá... É o que eu sei fazê!

 AMARO:- Eu já sei o que você sabe fazer!

 MARIANA:- Tamém sei outras coisa...

 AMARO:- Quer me ouvir, criatura?

 MARIANA:- Meu nome num é criatura, é Mariana! Mariana Aparecida Ferreira, com muito orgulho!

 AMARO:- Pensei que você não tinha nome... Não, fica quieta! Me escuta: eu pedi a meu irmão que, se ele tivesse alguém de... de mais idade... Uma senhora, entende?

 MARIANA:- Ocê quiria uma véia, por que é véio? Eu num acho...

 AMARO:- Que pô... Desculpe... Que droga! Olha: eu não sou velho, entendeu? Eu não sou velho! Eu só queria uma pessoa mais velha, mais responsável... Você é muito nova... e... e...

 MARIANA:- O sinhô acha que eu feia...

 AMARO:- Olha aqui, dona Mariana Aparecida Pereira...

 MARIANA:- Ferreira...

 AMARO:- Isso, Ferreira... Você não é feia, dona Mariana Aparecida Ferreira... mas com esses trajos... com esse cabelo... esse jeito de falar... esses gestos estabanados... Puxa, você me lembra minha mulher, isto é, minha ex-mulher: ela era assim, também... Não era bonita... Nem feia... Mas ficou, como poderia dizer, ficou linda, maravilhosa, depois que... Mas que droga... Isso não interessa. Antes que eu perca a paciência, quero saber uma coisa: você disse que não pode voltar. Que história é essa?

 MARIANA:- Num tem história nenhuma: eu num posso vortá, porque eu num quero vortá!

 AMARO:- bem... Não quer voltar. E... posso saber por quê?

 MARIANA:- Ah! Seu Amaro, eu venho buscá o meu sonho...

 

 Mariana canta a “Canção do sonho”:

 

MARIANA:-Por tudo que eu passei

sofri chorei,

mas não mardisse a vida.

uma coisa eu sei

me ensinou a vovó querida

 

minha vovozinha

dizia a sussurá

que nesta vida a gente

tem mais é que sonhá

que nesta vida o sonho

a gente tem de teimá

 

por isso eu segui

os conselhos da vovó querida

tenho um sonho forte

que vai se realizá.”

 

 MARIANA:- Sabe, seu Amaro, dispois que meus pais morrero, fiquei só eu e minha vozinha... E ela me ensinô do pouco que sei... Mas dizia sempre que devia buscá o meu sonho... E meu sonho está aqui, e pronto... Não interessa pro sinhô... Só posso dizê que não quero vortá e num vô vortá...

 AMARO:- Mas, criatura...

 MARIANA:- Meu nome é Mariana!

 AMARO:- Você não pode ficar aqui, Mariana... Sou um homem solteiro, quer dizer, separado... Acabo de mudar para esse apartamento... O que a vizinhança vai dizer? O que vão dizer meus amigos? E meus filhos? Eu tenho filhos, sabia? Três! Todos adolescentes... complicados... Não aceitam a minha separação da mãe deles... Imaginem quando virem que estou morando com uma moça... assim...

 MARIANA:- Primeiro, se eu num ligo, pur que o sinhô vai ligá? Segundo, eu num vim pra morá com o sinhô... Eu vô sê somente sua criada... O que os óio num vê, o coração num sente... E o sinhô só vai me como criada, e nada mais...

 AMARO:- Além de teimosa, é uma filósofa! Só me faltava essa!

 MARIANA:- E tem mais uma coisa, uma coisa só: aqui a carta de recomendação de seu irmão... Ele agarantiu que, dispois de lê ela, o sinhô num ia me recusá...

  

Amaro pega a carta e lê. Vai ficando furioso. Ao final, olha para Mariana com raiva.

  

AMARO:- Meu irmão me paga! Realmente não posso recusar! Droga! Droga! Mas tem uma coisa, mocinha: você vai ter de trabalhar direitinho, hem! Se não, eu esqueço o meu irmão, esqueço tudo... e rua!

 MARIANA:- Quero carteira assinada e tudo muito direitinho, tamém... E o salário, o que aí na carta...

 AMARO:- Até o salário o desgraçado já deixou acertado! Até o salário!

  

Desalentado, Amaro dobra cuidadosamente a carta, guarda-a no bolso, pega a mala de Mariana e a conduz para dentro. Mariana sai e Amaro volta para cantar a “Canção da dúvida”:

 

 AMARO:-Cruel desdita,

Parece maldição,

Não posso, não,

Com a maldita...

 

A bola da vez

 

 

Tive um dia em minha mão

Seu destino, seu caminho

Tudo isso ao meu dispor

 

A bola da vez

Quis mudar a sua sorte

Trazer o sul pro norte

fazer da pedra flor

 

A bola da vez

Os sonhos já tenho

Não sei de onde venho

o amor já acabou

 

A bola da vez

 

Parece maldição

Cruel desdita.

 

 

CENA 2:

  

Amaro lê o jornal do dia, ainda de pijama e roupão. Entra Mariana, em uniforme de empregada, e começa a arrumar a sala.

  

AMARO:- Pára com isso, Mariana, e vamos às lições do dia, que o tempo urge!

 MARIANA:- Se ruge ou não ruge eu num sei... Só sei que eu perciso arrumá essa casa, qui virando uma bagunça danada... As lição fica pra depois...

 AMARO:- Nada disso, minha cara, acabo de ler aqui no jornal que vão abrir inscrição para novos talentos na tevê... E você ainda está muito crua... Precisamos trabalhar muito... Vamos lá... Deixa tudo isso e venha...

  

Amaro pega-a pelas mãos e a conduz até o centro da sala. Tira o avental e o chapeuzinho de empregada, não sem alguma resistência de Mariana.

  

AMARO:- Primeira lição de hoje: caminhar!

  

Coloca um livro sobre a cabeça e caminha pela sala, com o corpo ereto, como se desfilasse em uma passarela. Canta a “Canção do orgulho”.

 

 AMARO:-Aponte-se o dedo

Escolhe-se o norte

Com um pouco de sorte

Pode não tropeçar

 

Andar é fácil

Se aprende desde cedo

É só perder o medo

 

Mas andar com porte

O mundo a provocar

Só se consegue

Ao desfilar.”


 

Depois da demonstração, faz Mariana repetir seus gestos.

  

AMARO:- Vamos lá... Mariana... Isso... Um pé na frente do outro... Vamos... Barriga pra dentro... Peito pra fora...

  

Mariana interrompe o exercício.

  

MARIANA:- Cê tá maluco, tá? Eu num vô mostrá meus peito... nem pro sinhô nem pra ninguém!

 AMARO:- Que é isso, Mariana... Volte aqui. Deixe de ser boba: quando a gente diz peito pra fora é... é... é só um jeito de dizer para as pessoas andarem assim, veja... com orgulho... como se... como se... como se andasse sobre pétalas de rosas... Isso, desfilar é caminhar sobre pétalas de rosas, esmagando corações apaixonados que vão ficando pelo caminho... Entendeu?

  

Ainda meio amuada, Mariana retoma o exercício, agora cantando, no começo meio indecisa, até conseguir desfilar como Amaro demonstrou.

  

AMARO:- Muito bem, Mariana... Agora, lição de etiqueta. Como arrumar uma mesa. Vamos lá... Eu mostro e você repete...

 

MARIANA:- Isso eu já sei, seu Amaro... Andei istudando nos livro qui o sinhô me arrumô... Olhei direitinho as figura e guardei tudo aqui, ó, no bestunto... Vô mostrá pru sinhô...

  

Mariana canta a “Canção da arte de servir” (com sotaque caipira) e arruma a mesa, colocando os talheres, pratos, copos, guardanapos etc.

  

MARIANA:-A mesa posta

Cenário à parte

Flores, linhos, prata

Cantemos nós a arte

De bem receber!”

 

AMARO:-O vinho a mesa

Cenário à parte

Aves,carnes peixe

E toda arte

De bem receber!”

 

AMBOS:- “A porcelana

Cenário à parte

Colheres facas garfos

Cantemos nós a arte

De bem receber!”

 

AMARO:- Muito bem, Mariana: você está cada dia melhor...

 MARIANA:- Mió, mió pra quê? Se ocê num me ensina o que eu quero... só o que ocê qué...

 AMARO:- Calma, Mariana... Calma! E fale direito: quantas vezes já lhe disse que não é “ocê”, mas você! Ouviu? Você!

 MARIANA:- bom, bom... intão eu repito: “você” num tá me ensinando o que eu quero...

 AMARO:- Escute, criatura...

 MARIANA:- Meu nome num é criatura...

 AMARO:- Eu sou teimoso, muito teimoso... Se não já... já... já...

 MARIANA:- Num dianta gaguejá... Eu num tenho medo...

 AMARO:- Você pensa que cantar e dançar é só abrir a boca e balançar o corpo... Você pode até cantar bem, dançar bem... Mas é preciso mais, Mariana... Se você quer realmente realizar o seu sonho, você tem de passar por muitos pesadelos: saber andar, saber falar direito, ter um porte de rainha...

 MARIANA:- Eu vô sê a rainha do rádio...

 AMARO:- Do rádio, não, Mariana: da televisão, do teatro... do mundo! Você vai ser a rainha do mundo! E eu vou te proteger... E eu vou te amar para sempre, Mariana! Você irá para o mundo, mas será sempre minha! Minha!

  

CENA 3



Titubeando, Mariana tenta ler para Amaro um texto de “A Divina Comédia”.

 

 AMARO:- Vamos, leia alto, agora...

 MARIANA:- “Vai-se por mim à cidade dolente,

Vai-se por mim à sempiterna dor,

Vai-se por mim entre a perdida gente...” (1)

 

Gagueja e repete a leitura.

 

 MARIANA:- Eu não entendo... Eu não consigo entender...

 AMARO:- Olha pra mim... Olha pra mim! Você é burra, é? Responde: você é burra?

 MARIANA:- Não!... Não!... Eu sei qui num sô burra...

 AMARO:- Repete: EU SEI QUE NÃO SOU BURRA!

  

Mariana repete várias vezes.

  

AMARO:- Então, lê... Lê de novo... Sem gaguejar!

  

Mariana tenta recomeçar a leitura. Gagueja. Não consegue.

  

MARIANA:- Pra quê? Pra quê... esse... esse poeta louco que eu não entendo?

 AMARO:- Paciência, meu Deus! Paciência! Vou explicar pra você mais uma vez... E que seja a última! Dante, o divino Dante, só alcançou o céu, o paraíso, depois de descer aos infernos...

 MARIANA:- Inferno... Inferno é você me obrigar a ler o que eu não entendo!... Eu só quero ser...

 AMARO:- Eu já sei o que você quer ser... Mas pra chegar lá, minha querida, você tem que pastar, tem que descer aos infernos!... Ou você quer ser mais uma garota estúpida a falar asneiras na televisão, a servir de chacota a entrevistadores idiotas metidos a intelectuais?... Ninguém vai rir de você, Mariana, isso eu prometo! Nem que seja preciso... Olha: na porta do inferno de Dante está escrito, assim, em letras garrafais, escuras: “DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS!” Na porta de seu inferno, Mariana, está escrita apenas a palavra ESPERANÇA... Você, Mariana, tem tudo pra chegar lá... Pra ver seu nome escrito em letreiros luminosos; sua fotografia em capas de revistas; sua vida, em manchetes de jornal... O sucesso, Mariana... O seu sucesso será o meu sucesso, Mariana... Eu brilharei em cada canção que você cantar... Em cada passo que você der... Em cada palavra que sair de sua boca, para encantar platéias ávidas de você... de mim! Eu sou o seu guia, Mariana... E vou levar você do inferno ao paraíso! Ao paraíso! (Pausa). Mas primeiro é preciso ler e entender... Ler e entender o que está lendo... Vamos, leia de novo... De novo... De novo!

  

Toca o telefone. Amaro faz um gesto para Mariana continuar a leitura. Atende.

  

AMARO:- Você?! Co... co... como vai? Não... não... eu... eu... não... es...es...tou ga...ga...gaguejando! Que porra! Desculpe. Conversemos, sim... Como gente civilizada. Eu? Eu estou... Estou bem... É... No inferno... Quero, dizer, no Inferno de Dante... É... Estou relendo... É, eu sei que você odiava Dante... Eu sei... Talvez... Você sabe o que eu penso... Você sabe o que eu sinto... Sim, vamos sim... Quando? Hoje? Agora?!... Mas... Está bem...

  

Desliga o telefone. Anda de um lado a outro, por um instante.

  

AMARO:- Vou... vou... sair... Preciso re... re... resolver um ne...negócio... urgente. O diretor do teatro, você sabe... É... aquele... Ele... o diretor... quer que eu... que eu assine uns papéis...

 MARIANA:- Está bem, Amaro... Vai... me deixa suzinha aqui... Eu... eu bem... vô continuá lendo... isso...

 AMARO:- Você... você... me perdoa, Mariana? Me perdoa? Eu... eu volto, eu sempre volto...

 MARIANA:- Volta... Você sempre volta...

  

Amaro pega um agasalho e sai.

 

 MARIANA:- Ele sempre volta... Pra quem? Pra mim ou...

  

Canta a “Canção da esperança”.

  

MARIANA:- “Chorar pelo passado

Temer pelo futuro

Se olho para frente

Só vejo tudo escuro

 

Se gasto o meu suor

Num livro tão pesado

Ganho só a solidão

De chorar pelo passado

 

Se quero ir em frente

Não vejo a escuridão

Não sei qual o caminho

Perdi a direção

 

Não quero o passado

O futuro está ao léu

Esqueço o meu presente

A esperar o céu

A esperar o céu.”

 

MARIANA:- Eu sei aonde ele foi... Eu sei! Ele pensa que me engana! Ele pensa que me engana! Covarde!

   

CENA 4:

 

Amaro, de forma alucinada, procura coisas: revira gavetas (numa das quais encontra um revólver, que joga de volta ao mesmo lugar), folheia livros, abre pastas de arquivos, joga partituras para cima, enfim, faz uma grande bagunça.

  

AMARO:- Tudo vale a pena... Tudo vale a pena... E dessa vez valerá ainda mais!

  

Canta a “Canção do tesouro”.

  

AMARO:- “Nas mãos um tesouro

Que vale mais que o ouro

Que um mortal pode ganhar

 

Nas mãos um brilhante

Um belo diamante

Para lapidar

 

A pérola mais rara criei

Para mim, feliz é o meu amor

Sem ela seja o que for

Meu coração não sobrevive

 

Nas mãos um tesouro

Que vale mais que o ouro

Que um mortal pode ganhar.”

 

 Entra Mariana, com uma mala nas mãos, vestida como na primeira cena.

  

AMARO:- Mariana! O que... o que... o que... é isso?

 MARIANA:- Não vê que é uma mala?

 AMARO:- Mas... mas... mas...

 MARIANA:- Sua gagueira precede sua intuição, Amaro. Sim, vou partir.

 AMARO:- Não, Mariana. Você não pode me deixar. Eu prometo...

 MARIANA:-...amar e respeitar o amor! Ah! Amaro, quantas vezes você já prometeu e, assim que o telefone toca, você corre para ela ou para seus filhos... E me deixa aqui, sozinha, a imaginar se você vai voltar ou não... Eu não agüento mais, Amaro. Você sabe o quanto eu sou possessiva: não admito dividir o que é meu com ninguém, ouviu? Com ninguém!

  

Canta a “Canção da traição”.

 

 MARIANA:- Como eu seria feliz,

Feliz seria eu

Sonhando um amor

Assim: somente meu,

Inteiramente meu!

 

Como eu seria feliz,

Feliz seria eu

Com o amor que eu sempre quis

Assim somente meu!

 

Como eu seria feliz,

Feliz seria eu

Então, ingênua, pensei

Que era sempre meu.

 

Mas eu fiquei infeliz

Tão infeliz fiquei eu

Pela tua traição

O meu amor você não mereceu

O meu canto você não mereceu

O meu prato você não mereceu.”

 

Amaro abraça Mariana.

  

AMARO:- Queria o poder de transformar cada lágrima que rola de seus olhos em punhais que abrissem o meu peito. Assim, talvez, você pudesse ver um coração que se arrepende, um coração que somente pulsa porque você, Mariana, existe.

  

Larga-a e, desesperado, corre até a gaveta, pega o revólver e entrega-lhe.

 

 AMARO:- Vamos, atire! Assim, acabamos de vez com tudo e você poderá seguir em paz!

 MARIANA:- Isso está virando um dramalhão de quinta categoria, Amaro! Não precisamos chegar a tanto. Eu sei que você me ama, eu sei que você me trai... às vezes... com... com... bem, você sabe... e eu também sei... sua ex-família... seus filhos...

 AMARO:- Minha mulher...

 MARIANA:- Ex-mulher, Amaro! Ex-mulher!

 AMARO:- Sim, meu amor, você é que é a MINHA mulher...

 MARIANA:- Meu... minha.... Acho que nesses... nesses...

 AMARO:- Pronomes possessivos, minha querida, pronomes possessivos...

 MARIANA:- Se são pronomes, eu já não me lembro... Mas que são possessivos, isto eu sei muito bem, Amaro... E como são possessivos!... São eles que estragam nossa relação: tudo entre nós tem que ser assim: possessivo! Possessivo! Eu tenho que ser sua e você tem que ser meu! Só meu! É uma droga, Amaro! Estraga tudo! Mas é assim que eu sou e é assim que você é. E você me sufoca, Amaro! Ao mesmo tempo em que você me prepara para o mundo, você não quer que o mundo me admire!

 AMARO:- Eu quero que o mundo venha se ajoelhar a seus pés, Mariana!

 MARIANA:- ... ... Eu até entendo você, mas não posso continuar te amando com uma arma nas mãos. Toma: guarda isso!

 AMARO:- Você... Você teria coragem, Mariana?

 MARIANA:- De atirar em você? Quem sabe, um dia, talvez?

  

Amaro guarda o revólver e volta, feliz, para Mariana.

  

AMARO:- Pronto, meu amor. Venha. Venha ver o que preparei para a lição de hoje...

 MARIANA:- Pela bagunça, parece que teremos novidades...

 AMARO:- Você está cada dia melhor, Mariana... Estive observando enquanto você falava, enquanto você cantava... Quase não mais se nota aquele sotaque caipira...

  

Mariana ri, feliz, imitando o velho sotaque.

  

MARIANA:- Se ocê num cuidá de mim, posso uma recaída, num é não?

 AMARO:- Vou cuidar, Mariana, vou cuidar muito de você... Agora veja: estava procurando a coreografia que havia criado para você... Vamos ensaiar.

  

Amaro coloca um disco e ensaiam uma coreografia. Ao final, cantam e dançam a “Canção da vida”.

  

MARIANA:- “Viver, cantar, dançar, amar!

A vida é breve para tanto!”

 AMARO:-Viver, cantar, dançar, amar!

A vida é bela com seu canto!”

 MARIANA:- Vamos cantar, vamos dançar...

 AMARO:- “Vamos cantar, vamos dançar...”

 AMBOS:- “Somos felizes, sim!


Cantando, dançando, amando!

Destino quis assim:

Felizes, cantando, dançando,

Ali, na esquina, espera a vida,

Ali, na esquina, espera o prazer,

A nossa meta é bem definida:

Sucesso! Muito sucesso vamos ter!”

 

 Ao final do número, Mariana leva a mão à testa e tem um pequeno desmaio. Amaro corre a acudi-la.

 

 AMARO:- Mariana! Mariana! O que houve, Mariana? Você está bem?

  

Recosta-a um pouco. Mariana abre os olhos.

  

MARIANA:- Não... não... foi... nada... Acho que... exagerei um pouco...

 AMARO:- Não fale, não fale, meu amor... Descanse... Vou buscar um médico.

 MARIANA:- Não... não é... preciso... Estou bem...

 AMARO:- Que susto, minha querida...

 MARIANA:- Você... você... gosta... um pouco... de mim, Amaro?

 AMARO:- Gostar de você? Gostar de você, Mariana? Eu sou louco por você... Você não imagina o quanto meu coração bate por você, Mariana! Eu te amo, ouviu, eu te amo!

  

Beijam-se apaixonadamente.

 

 AMARO:- Fique aí um instante... Vou buscar um copo d’água pra você...

  

Sai.

  

MARIANA:- Ele... ele me ama! Como sou feliz! Se ele me ama de verdade... sou a mulher mais feliz do mundo! Mas... será verdadeiro esse amor? Será? Eu devo acreditar... eu devo acreditar que ele me ama tanto quanto eu o amo...

  

Sai, atrás de Amaro.

  

MARIANA:- Amaro, meu amor... Amaro! Eu estou bem, meu querido... Eu estou bem! Porque eu sei que você me ama!...

  

 

CENA 5:

 

 Madrugada de chuva forte, com raios e trovões. Somente um foco em Mariana, completamente desalentada. Um relógio bate lentamente as horas.

 

 MARIANA:- Quatro horas e ele não chega!... E se eu ligasse para casa da ex-mulher dele?... Não... não... Corro o risco de encontrá-lo lá... Maldito! E mil vezes eu... mil vezes desgraçada!...

  

Canta a “Canção da mulher e menina”.

  

MARIANA:-  Eu sou apenas a mulher

Um copo de cristal

Presente de natal

Deleite a quem quiser

Pagar a purpurina

 

Eu sou apenas a mulher

Em leitos de brocal

Alegre concubina

Pra quem quiser

Pagar a purpurina

 

Eu sou apenas a menina

Num corpo de mulher

Ao pobre que sonhar

Chamar-me de meu bem

Pagar a concubina

 

Se a noite não vier

Diz tudo quanto sente, mente.

Sou apenas a menina

Em corpo de mulher.”

 

Mariana enxuga uma lágrima. Ruído de passos e de chaves na porta. Amaro entra. Está desalinhado e bêbado. Acende as luzes e dá de cara com Mariana. Fica sem saber o que fazer, estático, numa pose ridícula.

  

MARIANA:- Você... você está bem, Amaro?

 AMARO:- Só... só... só com... com... com... um po... po... pouco de dor de cabeça... Que... que... que... você... tá... tá... tá... fazendo aí?

 MARIANA:- Nada... Lia um livro, estudava... Perdi o sono.

 AMARO:- Ah! Bem... Pensei que estava me esperando... Me controlando...

 MARIANA:- Você não presta, Amaro. Você é uma fraude. Como profissional e como homem.

  

Amaro faz algumas micagens de bêbado.

  

MARIANA:- Minha mala esteve sempre pronta, Amaro. E, desta vez, não há mais desculpas. O mundo lá fora me espera. Eu também já estou pronta. Não preciso mais implorar migalhas de seu amor. Vou conseguir viver sem você... Mesmo que, para isso, eu tenha que me violentar. Conseguirei arrancar de mim essa dependência... essa possessão...

  

Mariana, em gestos lentos, veste uma capa, pega a mala e começa a sair. Amaro tenta recuperar-se da bebedeira.

  

AMARO:- Você... você... não pode... não pode me deixar! Eu sou... eu sou... seu... seu...

 MARIANA:- Não, Amaro! Você não me criou. Você apenas me transformou... E isso não lhe dá o direito de propriedade...

 AMARO:- Eu... eu... não... não... sou... a melhor pessoa do mundo. Eu sei. Eu bebo...

 MARIANA:- Se meus problemas fossem apenas suas bebedeiras...

 AMARO:- Eu... eu... ronco de noite...

 MARIANA:- Pára com isso, Amaro... Você parece idiota! Não percebe que não podemos continuar juntos?

 AMARO:- Eu... eu... sou... infiel... às vezes... Mas eu te amo, Mariana... Do meu jeito louco e estúpido, eu te amo...

 MARIANA:- Você não me ama, Amaro. Pra você, eu sou apenas a sua última possibilidade de alcançar aquilo que você não conseguiu antes: domínio... posse... posse total de alguém que se torne poderoso... que ganhe a mídia e o mundo... Por que será que sua mulher... sua ex-mulher fracassou? Hem, Amaro? Por quê? Porque você é possessivo, você domina, você alucina as pessoas... Você joga o tempo todo... Quem ama deve, acima de tudo, respeitar o ser amado... E você nunca respeitou ninguém, Amaro...

 AMARO:- Me diz... Me diz... Ao menos uma vez... Você gosta de mim? Um pouquinho, assim, pelo menos? Gosta? Eu preciso tanto de você, Mariana... Eu preciso tanto de você... 

  

Mariana sai. Amaro fica alguns instantes em silêncio. Depois canta a “Canção do joalheiro”.

  

AMARO:-   “Transformar o ouro impuro

No colar mais belo e raro

 

Eu sou o joalheiro

Criei a jóia destinada

A jóia cobiçada

O ouro em suas mãos

A prata em seu olhar

 

Mas eis que eu

O joalheiro

Notei bem em um relance

Na jóia uma imperfeição

Que só ao meu olhar

Podia ser revelada

 

Transformar o ouro impuro

No colar mais belo e raro

 

Então eu, o joalheiro.

Sem dó nem piedade

Tornei o colar querido

De novo ouro derretido

 

Transformar o ouro impuro

                 No colar mais belo e raro.”

  

 

CENA 6:

 

Amaro entra com uma pilha de jornais e revistas. Folheia-os e joga cada página para o alto.

  

AMARO:- Mariana... Mariana... Só se fala em Mariana... Mariana, não... MARY FAIR! Como eu a batizei... MARY FAIR! A grande cantora... A mais bela voz dos últimos tempos...

  

Liga o rádio e ouve a voz de Mariana, cantando uma canção. Desliga-o com raiva. Volta aos jornais.

  

AMARO:- “Mary Fair se casa com famoso diretor de novelas! Depois da festa, partem para uma longa turnê ao redor do mundo...”

  

Liga a televisão e vê Mariana cantando. Desliga-a com raiva. Bebe. Volta aos jornais.

 

 AMARO:- “Mary Fair recebe o Grammy...”

  

Bebe e tenta ouvir uma música, mas o disco que ele coloca no aparelho de som reproduz a voz de Mariana. Volta aos jornais.

  

AMARO:- “Mary Fair se casa pela terceira vez!”

  

Joga tudo para o alto, com raiva.

 

 

CENA 7


Amaro anda de um lado para o outro, desesperado, pelo apartamento de novo todo desorganizado. Senta-se ao computador, tenta tocar uma música nos teclados, abre o livro “A divina comédia” e joga-o de lado, procura alguma coisa em todas as gavetas.

  

AMARO:- Estava aqui, eu sempre a guardo aqui... Droga! Um homem não pode nem se matar, se não encontra a própria arma... Com certeza, ela guardou em outro lugar, e eu nunca mais vou achar... Droga. Onde? Onde está? Onde está você, Mariana?

  

Desanimado e desalinhado, chora um pouco. Como vindos de muito longe, começam os acordes da “Canção do espelho”. Amaro canta.

  

AMARO:- “É muito louca a vida

Que sempre nós sonhamos:

No espelho, a face invertida

De tudo que tentamos.

 

Sonho ou fantasia,

Buscar um ideal

Na beleza de uma mulher

Sonho ou fantasia

É sempre, sempre o mal

Nas mãos do criador.

 

Esperança e amizade

Não pensa se quer

Só planta a vaidade

Solidão e dor

Fatal o abandono

Cão sem dono

A chorar de amor.”

 

AMARO:- Que idiota eu fui, mais uma vez... E mais uma vez quebrei a cara... E mais uma vez estou sozinho. Maldita carta! Por que você fez isso comigo, meu irmão? Por que você brincou mais uma vez comigo, ó destino cruel! Que droga. Agora, só me resta cantar um tango argentino... para que ela não sapateie um samba em cima da minha sepultura! Oh! O que digo? Não sei mais o que diga... A carta... Onde estará aquela maldita carta...

  

Procura, durante algum tempo, nas gavetas e armários. Desiste.

  

AMARO:- Também, não sei por que devo achar aquela maldita carta... Se foi ela a razão de toda a minha desgraça. Não, não! Estou falando asneira de novo: a razão de minha desgraça foi ela... Foi ela, sim!... Mariana, maldita! Mil vezes maldita! Agora está lá, se refestelando no sucesso... Ganhando milhões... Tendo mil aventuras... Sendo cortejada por todos os homens... E eu, miserável, aqui neste pardieiro a cantar um tango argentino... Que merda!

  

Canta o refrão da “Canção do espelho” em ritmo de tango.

 

 AMARO:- “É muito louca a vida

Que sempre nós sonhamos:

No espelho, a face invertida

De tudo que tentamos.”

 

 Tenta controlar-se.

  

AMARO:- E mais uma vez, falo besteira: ela, a culpada de tudo? Claro que não! Eu, eu fui o único culpado: com minha teimosia... com minha arrogância... Pensei que podia fazer de novo e que não erraria dessa vez... Doce delírio... Doce delírio! Mulheres! Bah! São todas iguais e eu sempre soube disso... Eu sempre soube!

  

CENA 8:

 

 Toca a campainha, estridentemente, com insistência. Amaro assusta-se e pragueja.

  

AMARO:- Que droga! Já vou! Não pode um homem sofrer e chorar em paz os seus fracassos!?... A chave, onde está a chave?... Ah! Aqui está. Já vou, droga!

 

 Amaro abre a porta. Num facho de luz, Mariana, deslumbrante.

  

MARIANA:- Um cavalheiro, um verdadeiro cavalheiro não deixa a dama esperando... Não vai convidar-me a entrar?

 AMARO:- Mariana! En... en... entre... por... por... fa... fa... vor!

 MARIANA:- Gaguejando, Amaro? Que vergonha!

 AMARO:- Eu não estou ga...ga...ga...guejando! Droga! Desculpe, não sei se devo...

 MARIANA:- Convidar-me a entrar? É claro que deve, meu querido.

  

Mariana faz uma leve carícia no rosto de Amaro e entra com desenvoltura. Ele fecha a porta e mostra-se intimidado diante da mulher.

  

MARIANA:- Que bagunça, Amaro! Você precisa arrumar outra secretária... Um homem como você não pode viver assim... Precisa sempre de alguém para... para dar um jeito nisso tudo... Não sei se você sabe, mas sinto ainda uma pontinha de saudade desse apartamento... Você se lembra de quando cheguei aqui, vinda do interior?...

 AMARO:- Um diamante bruto... hoje, uma pedra de mil quilates!

 MARIANA:- Menos, Amaro, menos... Eu era apenas uma jovem com um sonho no coração e nada na cabeça...

 AMARO:- E uma mala ridícula nas mãos...

 MARIANA:- Não é para lembrar o passado que estou aqui...

 AMARO:- Você voltou, Mariana, você voltou... E isso é tudo o que importa... Nós podemos...

 MARIANA:- Nada de “nós podemos”, meu caro amigo...

 AMARO:- Não se chama de amigo a quem se ama...

 MARIANA:- Não se insiste num amor, quando esse amor só prenuncia constrangimento e submissão...

 AMARO:- Tudo quanto sai de sua boca, assim, de forma tão elegante e bela, minha querida...

 MARIANA:- Foi você quem colocou em meus lábios palavras que eu não conhecia. Foi você quem colocou em minha cabeça sonhos que eu, só muito no fundo de meu pensamento, ousava sonhar. E foi você quem deu vida à minha voz, colorido ao meu andar, leveza aos meus gestos e me tornou o que eu sou hoje...

 AMARO:- Mariana Aparecida Ferreira... Mary Fair, a cantora das Américas!

 MARIANA:- Sim, a cantora das Américas, que seduz plateias em todos os países por onde passa... Que arrebata corações... Que carrega o peso de uma dívida, Amaro... uma dívida que eu não posso mais carregar.

 AMARO:- Que gracinha! A grande diva reconhece o trabalho de seu humilde servidor...

 MARIANA:- Mary Fair é só a embalagem colorida de um presente tosco... Você não sabe o que você fez...

 AMARO:- Eu sei muito bem o que eu fiz, dona Mariana Aparecida Ferreira... Eu sei muito bem... Você chegou aqui com uma mão na frente e outra atrás... falando errado... vestindo errado... andando errado... e acima de tudo, sendo errada na vida... Você era torta, Mariana Aparecida Ferreira, um zero à esquerda. E eu fiz de você uma mulher, entendeu? Uma mulher capaz de enfrentar o mundo e derrotá-lo...

 MARIANA:- E o preço, senhor Amaro, e o preço?...

 AMARO:- Não tem preço nenhum, pelo menos para você. Eu não só a transformei em Mary Fair, como joguei a seus pés a minha vida, o meu coração, o meu sonho...

 MARIANA:- A sua vida, o seu coração, o seu sonho, Amaro, tudo isso é pouco diante do que você fez de mim... Eu sou, sim, famosa, cortejada, admirada... Mas, você sabe quem sou eu? Você sabe? Não sou mais a Mariana que um dia tocou essa campainha e disse que tinha um sonho e não mais voltaria para o interior de onde nunca deveria ter saído... Também não sou a criatura que você pensa que criou e de quem exigiu e está exigindo agora a contrapartida de uma vida, de um coração, de um sonho... que são apenas seus, Amaro, apenas seus... que nunca foram meus os sonhos que você colocou na minha cabeça... Eu era ambiciosa, sim... Eu era ignorante, sim... Mas eu era eu... E agora, o que eu sou, me diz, o que eu sou?

 

AMARO:- O que você quer de mim? Por que você voltou? Por quê?

  

Mariana canta a “Canção da mulher e menina”.

 

MARIANA:-  Eu sou apenas a mulher

Um copo de cristal

Presente de natal

Deleite a quem quiser

Pagar a purpurina

 

Eu sou apenas a mulher

Em leitos de brocal

Alegre concubina

Pra quem quiser

Pagar a purpurina

 

Eu sou apenas a menina

Num corpo de mulher

Ao pobre que sonhar

Chamar-me de meu bem

Pagar a concubina

 

Se a noite não vier

Diz tudo quanto sente, mente.

Sou apenas a menina

Em corpo de mulher.”

 

AMARO:- Quando você partiu daqui com aquele cantorzinho de nada, eu pensei: ela vai, mas voltará, pois vai descobrir o que é a verdadeira arte. Quando você o deixou por aquele diretor de novelas de televisão, eu pensei: ela vai descobrir a vida e voltará mais sábia; quando você se divorciou do diretor de novelas e casou com aquele empresário, eu desculpei: voltará mais prática, mais pé no chão; quando o banqueiro a levou para Mônaco, e anunciou que você era a mulher da vida dele, eu ponderei: voltará ainda mais bela, bafejada pelos ares da Europa; e assim, fui seguindo sua vida, apresentando a mim mesmo desculpas e esperanças, sonhando não os meus sonhos, que você acha que eu incuti em sua cabeça, mas as minhas ilusões... E você, pensa que eu sou o quê? Que não sofri, que não chorei?

  

Mariana e Amaro cantam a “Canção da volta”.

  

MARIANA:- “Voltei! voltei!

Você não quer saber por que?

Voltei, voltei.

Você pensa o que quiser

Voltei, voltei.

Porque você me fez viver,

Voltei, voltei.

Porque você me fez mulher.”

 

AMARO:- “Voltar! voltar!

É estar comigo outra vez

Voltar, voltar.

É ser feliz junto de mim

Voltar, voltar.

Então me diga se eu minto

Voltar, voltar.

E eu te direi tudo que sinto.”

 MARIANA:-  Meu amor.

A sua criatura voltou,

Contra o criador ela se rebelou

Mas quem você criou voltou.”

 MARIANA:- “Te amo e te odeio.”

 AMARO:- “Te odeio e te amo.”

 AMBOS:- “Mas não consigo viver

Sem o seu amor

Dói o meu peito em dizer

Que sem você não sei viver.”

 MARIANA:- “Voltei!”

 AMARO:- “Voltou!”

 MARIANA:- “Pra você!”

 AMARO:- “Pra mim!”

 AMBOS:- “Voltei, voltou!

Tudo bem assim

Este amor não vai mais ter fim.”

  

MARIANA:- Não, Amaro. Você não me ama. Você pensa que me ama. Você se ilude, criando um amor por uma mulher que não existe, que é a Mariana que você imagina ter criado. Você ama a sua pretensa criação, Amaro, não a mim, Mariana Aparecida Ferreira; nem a mim, Mary Fair, a cantora das Américas, talvez a mulher mais desejada do Brasil e, com certeza, a mulher mais infeliz do Brasil...

 AMARO:- Infeliz, Mariana? Infeliz? Você tem tudo: o mundo a seus pés e, principalmente, o meu amor, o meu eterno amor, Mariana!

  

Mariana canta a “Canção da verdade”.

 

 MARIANA:-  “Aqui estamos

Na hora da verdade

Nós nos amamos

Porém sem sinceridade

 

Você me usou

Esta é a verdade

Me moldou

Pela sua vaidade

 

Não respeitou

A minha liberdade

Me dominou

Impôs sua vontade

 

Mas só eu sei

Quem te usou fui eu

Aproveitei

Sem sinceridade

 

Eu te usei

Como apoio, como escada.

Eu te usei

Para a minha escalada

 

Aqui estamos

Na hora da verdade

Nós nos amamos

Porém sem sinceridade

 

A vida mudou

Porque você não vê

Você pensa que me usou

Mas fui eu quem usei você!”

 

AMARO:- E o que você é, se não o fruto da minha vontade, Mariana? Eu te moldei porque te amo...

 MARIANA:- Não. Mil vezes, não! Você me ama porque me moldou... Você ama a criatura que você pensa ter criado, mas como eu não sou sua criatura, você ama uma ilusão, uma mentira...

 AMARO:- Subterfúgios, minha querida, subterfúgios! Agora há pouco você confessou que me ama...

 MARIANA:- Outra armadilha do sentimento, Amaro: eu não podia apaixonar-me por você. No entanto, nessa minha vida de... de... vamos dizer, de alguns amores...

 AMARO:- Muitos! Muitos amores!

 MARIANA:- Que sejam muitos amores... Eu descobri que não ficava com ninguém, porque estava presa a você, Amaro. E eu preciso libertar-me, eu preciso ficar livre de você...

 AMARO:- Só a entrega liberta o amor, Mariana...

 MARIANA:- Engano seu, meu caro... A desilusão também liberta...

 AMARO:- Desilusão? De que você está falando?

 MARIANA:- Onde está a carta de seu irmão? Lembra-se dela?

 AMARO:- A carta, a famigerada carta de meu irmão... Eu a procurei agora há pouco...

 MARIANA:-... e não a encontrou! Sabe por quê? Porque está comigo, Amaro. Eu a levei, quando parti. Guardei-a cuidadosamente durante esses anos todos... sem a ler!

 AMARO:- Você não a leu? Não a leu? Aleluia! Aleluia! Ainda há esperança para nós...

 MARIANA:- Não a li... até ontem, quando resolvi voltar para me livrar de você...

 AMARO:- Você não está querendo dizer que...

 MARIANA:- Aqui está ela: seus dizeres são claros. Ela diz exatamente quem é você, Amaro: uma pessoa fria e calculista, que arruinou a vida de sua família e pretendia fazer o mesmo comigo.

 AMARO:- É apenas uma brincadeira... Uma brincadeirinha entre mim e meu irmão... Não é verdade...

 MARIANA:- Tanto é verdade, que você fez exatamente o que está escrito aqui. Ele te desafiou e você aceitou o desafio, sem pensar em mim, sem pensar nos meus desejos e nos meus sonhos... Como já fizera com sua mulher e seus filhos...

 AMARO:- Mas você jogou o jogo comigo, Mariana...

 MARIANA:- O arrependimento mata, Amaro... Sabia que o arrependimento mata?

  

Mariana abre a bolsa, tira o revólver de Amaro e entrega-lhe.

  

MARIANA:- Queria matá-lo, sim... Mas no meu coração. Eu não posso viver à sua sombra...

 AMARO:- Você está-se tornando repetitiva, minha cara.

 MARIANA:- A simples possibilidade de vê-lo morto já acalmou minha alma, Amaro. Creio que nossa história termina aqui.

 AMARO:- “É muito louca a vida

Que sempre nós sonhamos...”


MARIANA:- “Chorar pelo passado

Temer pelo futuro

Se olho para frente

Só vejo tudo escuro...”

AMBOS:- “Viver, amar, canta, dançar...”

 MARIANA:- “Cantar...”

 AMARO:- “Dançar...”

 MARIANA:- “Amar...”

 AMBOS:- “Fomos felizes, sim!

Cantando, dançando, amando!

Destino quis assim:

Felizes, cantando, dançando,

Ali, na esquina, espera a vida,

Ali, na esquina, espera o prazer,

A nossa meta é bem definida:

                 Sucesso! Muito sucesso vamos ter!

 A nossa vida vai ser assim!”

 

 AMARO:- Não, a nossa vida não vai ser assim. Não há nenhuma possibilidade para nós dois, Mariana... ou Mary Fair. Já sofri tudo o que podia por você... Meu coração está seco, e só compreendi isso quando você me entregou essa arma... O meu destino, traçado por deuses irresponsáveis ou por meus genes incontrolados, é criar caminhos que outros trilhem... Eu... eu mesmo estou condenado a nunca sair do mesmo lugar... A jóia rara está pronta e acabada: não pode ser refeita!...

 MARIANA:- Agora posso dizer que vou te amar para sempre, Amaro... meu amigo... meu pai!

  

Mariana canta a segunda parte da “Canção da mulher e menina”, enquanto se dirige lentamente para fora.

  

MARIANA:- “Eu sou apenas a menina

Num corpo de mulher

Ao pobre que sonhar

Chamar-me de meu bem

Pagar a concubina

 

Se a noite não vier

Diz tudo quanto sente

Mente!

Sou apenas a menina

Em corpo de mulher.”

 

 AMARO:- Adeus, minha Galateia...

 MARIANA:- Adeus, meu querido...

  

Ambos cantam a “Canção do fim”:

  

 

AMARO:- “Adeus, Mariana...”

 MARIANA:- “Adeus, Amaro...

Não voltaremos

A nos encontrar...”

 AMARO:- “Mas ficarás comigo

Como uma boa lembrança,

Como um fantasma amigo

De um tempo de esperança...”

 

Mariana beija Amaro, carinhosamente, e sai. Enquanto as luzes vão baixando, Amaro pega a “ Divina Comédia”, senta-se e começa a ler. Black-out.

  

FIM

 

 

 

 

Isaias Edson Sidney

4 de setembro de 2002

sexta-feira, 6 de junho de 2003

 

 

 

NOTA:

(1)     Alighieri, Dante. A Divina Comédia: inferno. Tradução e notas de Ítalo Eugenio Mauro. – São Paulo. Ed. 34, 1998. Canto III; p.37.

 

 

Ilustração:

Pigmalião e Galateia, de Jean-Leon Gerome (1824-1904); The Bridgeman Art Library, London.

 

 

 

 

 

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