quinta-feira, 20 de maio de 2021

ABAETÉ, SUA FILHA E SEU GENRO

 

(Capa do livro "Brasileirinho" de Ofélia e Narbal Fontes)


 MUSICAL PARA CRIANÇAS

 

iSAIAS eDSON sIDNEY

 

 

2002


 

 

ABAETÉ, SUA FILHA E SEU GENRO

 

Musical para crianças, em um ato de 11 cenas.

 

 

PERSONAGENS

 

  1. ÍNDIOS

 

    • Abaeté, chefe da tribo
    • Cotira, filha de Abaeté
    • Kumandaí, noivo e, depois, esposo de Cotira

 

  1. MADEIREIRO

 

  1. OUTRAS PERSONAGENS

 

  • Usuários de madeira
  • Vendedores de madeira
  • Cortadores de madeira
  • Cidadãos
  • Bandidos
  • Índios

 

resumo

 

O chefe de uma tribo indígena vende um pedaço da floresta, para livrar a tribo da miséria e não consegue mais sair das mãos dos madeireiros, acabando por destruir a mata sem conseguir manter a falsa prosperidade obtida.

 

 

autor

 

ISAIAS EDSON SIDNEY

 

Rua dos buritis, 251 – jabaquara – São paulo, SP

cep. 04321-001

 

tel. 5011-9628

 

 

 

SBAT-8089

 

9.3.2006

 

 

 

 

 

 

 

Cena 1:

 

Entram os usuários de madeira e cantam a “canção dos usuários de madeira”:

 

 

ATOR 1:- “Vejam que berço lindo

O meu filho mereceu:

Foi ele muito bem-vindo

Quando aqui nasceu.”

 

Coro:-Berço lindo, feito de madeira:

Serra, serra, serra, serra,

Serra a mata inteira!”

 

ATOR 2:- “Vejam que mesa linda

Nossa família tem:

Aqui a festa não finda,

Convidados todos vêm...”

 

Coro:-Mesa linda, feita de madeira:

Serra, serra, serra, serra,

Serra a mata inteira!”

 

ATOR 3:- “Casa linda, fui eu que fiz:

Pra ficar perto da terra:

A família toda feliz

Lá no alto daquela serra.”

 

Coro:-Casa linda, feita de madeira:

Serra, serra, serra, serra,

Serra a pátria inteira!”

 

 

Entram os vendedores de madeira e cantam “a canção dos vendedores de madeira”:

 

 

VENDEDOR:- “Eu vendo madeira,

Tudo muito baratinho,

E não dou bobeira,

Pra ganhar um dinheirinho...”

 

CORO:- “Vende, vende, vende

Vende toda a madeira.

Pra gente aqui da terra,

E pra gente estrangeira...”

 

 

Entram os cortadores de madeira e cantam “a canção dos cortadores de madeira”:

 

 

CORTADOR:- “Lá na mata tem madeira

Que eu corto com minha serra,

Comigo também não tem bobeira,

Cada árvore que eu vejo,

Vai logo assim pra terra...”

 

CORO:- “Corta, corta, corta,

Corta todo o arvoredo:

Depois que a mata é morta,

Vou vender sem medo.”

 

TODOS:- “Corta, serra, corta, serra,

Vamos todos cortar madeira,

Corta, corta, serra, serra,

Bem barata é a madeira.” (bis)

 

 

 

COTIRA:- Meu nome é Cotira. Sou índia. Quando nasci, minha mãe morreu. Dizem que virou uma estrela no céu. Mas antes de morrer, minha mãe disse que um dia nossa tribo iria passar uma grande necessidade, nos tempos de lua negra. E agora, há muitos meses que chove sem parar. A lua não aparece. É tempo de lua negra. Chove tanto, que mandioca não cresce, que o milho vira água no pé, que os peixes não são vistos no meio da lama da floresta. Há muita fome na tribo. Meu pai, o chefe Abaeté(1), é o mais sábio de todos os índios de minha tribo. Mas mesmo sendo tão sábio, meu pai um dia tem  de tomar decisões importantes e não sei se o caminho que ele vai escolher será o melhor. Aí está meu pai, pensando, pensando muito em como resolver o problema da fome da tribo...

 

 

Cena 2:

 

 

Abaeté sentado perto de uma fogueira. Tem nas mãos algumas penas coloridas. Está com cara de preocupado e vai tirando uma a uma as penas e jogando para o alto.

 

 

ABAETÉ:- Vendo... não vendo... corto... não corto... vendo... não corto... Droga! Pajé disse que essa pajelança de pena ia dar certo... Deu nada... Abaeté não consegue decidir... Abaeté tem muitas dúvidas... Cabeça até dói, de tanto pensar... Tem muito índio morrendo... tem até curumim morrendo... e quando morre um curumim, Abaeté fica com o coração pequenininho assim... que Abaeté não gosta de ver criança morrendo, principalmente de fome...

 

COTIRA:- Ai, meu pai... estou com fome... com muita fome... A colheita do milho, do nosso milho está perdida, meu pai... a chuva estragou tudo. O que nós vamos fazer, meu pai?

 

ABAETÉ:- Vem... Vem aqui, Cotira, minha querida filha... Nós temos que achar solução... Vamos rezar para Tupã, nosso pai lá do alto, para que ajude a gente...

 

 

Os dois dançam e cantam “a canção para Tupã ajudar o índio”:

 

 

ABAETÉ:- “Tem dó de índio, senhor Tupã,

Que índio planta, planta, planta

Esperando sempre o amanhã,

Mas vende o almoço pra ganhar a janta...”

 

COTIRA:- “Senhor Tupã, tem dó de índia também

Que a gente pesca e faz cauim,

Tece rede, e faz catucaém(3),

Mas está num miserê assim...”

 

OS DOIS:-  Senhor Tupã,

Chora a tribo inteira,

A morte dos pequenos curumins

E a floresta inteira

Tem madeira, tem madeira

A dar com pau...

Senhor Tupã,

Índio não é mau, não é mau:

Na terra o índio planta

Milho e mandioca

Mas a água é tanta,

Fica rala a tapioca

Fica podre o milho

Chora com fome o filho,

Na floresta só tem anta,

Foge o peixe e o jaguar,

Só resta vender a janta

Pra, quem sabe, almoçar!”

 

ABAETÉ:- Se Tupã não der uma solução para essa encrenca de índio, não vai ter casório, minha filha, não vai ter casório...

 

COTIRA:- Ah! Meu pai, não diga isso... Cotira ama tanto o índio Kumandaí (2), que Cotira vai chorar muito... muito... Cotira quer casar logo, meu pai, com índio Kumandaí...

 

 

Entra o madeireiro. Cotira se retira para um canto, chorando.

 

 

MADEIREIRO:- Meu amigo Abaeté, estava passando por aqui... vendo as árvores, sabe? Eu adoro contemplar as árvores de sua reserva... Tem jacarandá, tem mogno, tem... Mas o que houve com sua filha, nossa querida Cotira, que está tão amuada, coitadinha...

 

ABAETÉ:- Índia está triste, senhor madeireiro, índia está triste... E Abaeté também está triste...

 

MADEIREIRO:- Mas que tristeza é essa? Comigo não tem tristeza, não! Olhe: o velho amigo Madeireiro trouxe aqui uns presentinhos que vão deixar todo mundo alegre...

 

 

Tira de um embornal alguns presentes: pentes, espelhos, panelas etc., sob o olhar espantado de Abaeté.

 

 

ABAETÉ:- O senhor Madeireiro assim ofende tristeza de índio...

 

MADEIREIRO:- Que nada, que nada... De onde eu venho tem mais uma porção disso... e tudo por um e noventa e nove...

 

ABAETÉ:- Senhor Madeireiro, respeita a dor de índio... Nossos curumins estão morrendo... nossas filhas não podem casar… nossos pajés não mais fazem pajelança… nossos mortos não podem ter cerimônia de kuarup... e senhor vem me trazer essas tralhas! Tenha a santa paciência!

 

 

O Madeireiro recolhe apressadamente os objetos.

 

 

MADEIREIRO:- Desculpe... desculpe... não está mais aqui quem trouxe esses presentinhos... tão bonitinhos... Eu tenho, sim, eu tenho uma santa paciência... Pode o meu querido amigo me contar o que está acontecendo? Deve ser coisa grave... muito grave...

 

ABAETÉ:- Bom... bom... é que... não sei se devo confiar no senhor...

 

MADEIREIRO:- Mas meu amigo Abaeté, agora quem ficou ofendido fui eu! Não tenho sempre vindo aqui para trazer o meu conforto, a minha palavra amiga? Gosto tanto de sua tribo, de suas árvores...

 

ABAETÉ:- Abaeté já sabe... já sabe tudo isso, que amigo Madeireiro gosta de tribo, gosta de árvore de tribo... Abaeté pede desculpa... É que Abaeté não suporta ver Cotira chorando... e Cotira está chorando porque... porque... porque está todo mundo passando fome... e se tribo está com fome, não vai haver casório de Cotira com índio Kumandaí... Entendeu?

 

MADEIREIRO:- Mas, então é isso? Olha aqui, no meu bolso, senhor Abaeté... Sabe o que é isso? É dólar... dólar! Dinheiro de gringo... e vale ouro, senhor Abaeté... vale ouro! Uma só dessas verdinhas aqui dá pra comprar um monte de verde de sua mata... Quero dizer, com uma só dessa verdinha aqui, dá pra Abaeté comprar milho na cidade, comprar feijão, fazer casamento da filha e até fazer a cerimônia de homenagem aos mortos... um belo kuarup, com muita cachaça...

 

ABAETÉ:- Abaeté não bebe cachaça... e não deixa entrar esse veneno em sua tribo...

 

MADEIREIRO:- Desculpe... força do hábito, sabe como é! Eu queria dizer muito cauim(4)...

 

Abaeté:- E como é que Abaeté pode ganhar uma verdinha dessas, me diga senhor Madeireiro, que a nossa situação está tão feia que Abaeté já está matando jacaré a beliscão...

 

MADEIREIRO:- É fácil, senhor Abaeté, é muito fácil... O senhor sabe, não é? que ninguém mais do que eu admira a mata, a floresta em torno de sua taba... São árvores maravilhosas, plantadas por Tupã há muito tempo, frondosas, fortes, de troncos enormes...

 

ABAETÉ:- Não estou entendendo onde senhor Madeireiro quer chegar...

 

MADEIREIRO:- Vou ser curto e grosso, senhor Abaeté, com o perdão da má palavra... Entre amigos o que vale é ser sincero um com o outro, não é verdade? Pois, me escute bem, senhor Abaeté: se o senhor deixar que eu corte algumas, só algumas dessas maravilhosas árvores de sua floresta, eu lhe dou algumas dessas verdinhas aqui... Um verde pelo outro...

 

ABAETÉ:- Algumas árvores... da minha floresta! Mas... algumas, quantas? Duas?... Três?...

 

MADEIREIRO:- Mais... mais...

 

ABAETÉ:- Mais de dez?

 

MADEIREIRO:- Mais... mais...

 

 

Abaeté está um tanto desconfiado, mas parece interessado na proposta. Cotira sai de seu canto e interrompe tudo.

 

 

COTIRA:- Que vergonha, meu pai! Negociando a floresta que jurou ao seu pai conservar... E o seu pai ao pai dele... até o início dos tempos, quando Tupã jogou a primeira semente... Que vergonha! Prefiro não casar com índio Kumandaí... prefiro pedir esmola na cidade grande... prefiro morrer...

 

ABAETÉ:- Cotira, minha filha! Você não deve falar assim com seu pai...

 

COTIRA:- Ah! Meu pai, Cotira não quer ouvir mais nada... Cotira só quer chorar em paz, bem longe...

 

 

Cotira sai. Um breve silêncio de constrangimento.

 

 

MADEIREIRO:- Você não deve ouvir sua filha, Abaeté... os jovens de hoje...

 

ABAETÉ:- Minha filha tem razão, senhor Madeireiro! Vai embora com suas notas verdinhas... que o verde de nossa floresta não vale o que o senhor está me propondo... Vai embora!

 

 

CENA 3:

 

 

Enquanto o Madeireiro sai, Cotira reassume a narração, com um jornal nas mãos.

 

 

COTIRA:-  Meu pai ficou mesmo muito bravo com o madeireiro... Coitado! Mal sabia ele do que estava para acontecer. Mas, sabem o que é isso? Um jornal! Um jornal da capital federal! E sabem o que diz aqui, no jornal da capital federal? Sabem? Diz assim: “ÍNDIOS PASSAM FOME! VERGONHA NACIONAL!” Pois é: a notícia de que a tribo de meu pai, o bravo e honrado Abaeté, estava passando fome chegou ao povo da capital. E sabem o que aconteceu? Todos ficaram muito comovidos e resolveram arrecadar dinheiro e comida para os índios.

 

 

Atores-cidadãos fazem passeata pela platéia “arrecadando doações” para os índios (interagem com as crianças, incentivando-as a fingir que colocam nas sacolas – que já contêm “dinheiro” e “alimentos” – suas “doações”. Terminada a “coleta”, sobem ao palco).

 

 

CIDADÃO 1 (contando o “dinheiro”):- Até que foi uma boa grana... Vai ajudar bastante os nossos irmãos índios...

 

CIDADÃO 2:- Ainda temos os mantimentos que arrecadamos ontem...

 

CIDADÃO 1:- Ajudar nossos semelhantes é o lema de minha organização!

 

CIDADÃO 2:- Dar alimento a quem tem fome é o lema de minha organização!

 

 

Os cidadãos cantam “a canção da fome”.

 

 

TODOS:- “Não pode, não pode ter fome

O povo que vive na mata!

Onde um povo come,

Não pode haver vira-lata!

 

Não pode, não pode ter fome

O povo que vive em favela!

Onde um povo come,

Não pode haver um banguela!

 

Não pode, não pode ter fome

O povo que vive na praça!

Onde um povo come,

Não pode haver tal desgraça!

 

Não! Não pode haver fome,

Quando existe um povo que sente,

Um povo que bota a boca no trombone,

Que grita pra todos ouvir

Que onde um povo come,

Pode comer muita gente!”

 

 

CENA 4:

 

 

COTIRA:- Índia Cotira nunca tinha visto tanta bondade de branco. Eles se organizaram, mesmo. Como vocês chamam isso? Cidadania, não é? Pessoas se ajudando, sendo amigas umas das outras! Não é bonito isso? Ajudar minha tribo, uma tribo perdida lá na grande floresta... puxa! Isso dá orgulho em índia e dá orgulho em branco também. Mas...

 

 

Pára de repente e faz cara de tristeza.

 

 

COTIRA:- ... mas, o que é bom dura pouco. A pessoas têm boa intenção... trabalham... ajudam... juntam dinheiro, mantimentos... e sabem o que acontece, sabem? É muito triste, mas eu tenho que contar para vocês o que aconteceu... Não! Se eu contar, vocês não vão acreditar... Então, olhem...

 

 

Num acampamento no meio da selva, o  senhor Madeireiro se reúne com bandidos.

 

 

MADEIREIRO:- Senhores! Eu sei que são os mais ferozes malfeitores dessas matas... Mas o que eu quero que vocês façam é uma maldade ainda maior, que vai fazer com que vocês se tornem ainda mais mal afamados do que já são... Vocês serão considerados os bandidos mais bandidos de toda a região!

 

BANDIDOS:- Oba! É isso aí! Nossos somos maus e queremos ficar ainda piores... O que a gente tem de fazer? Conta! Conta logo!

 

MADEIREIRO:- O povo da capital está enviando uma caravana com muito dinheiro e muito mantimento para a tribo do chefe Abaeté... Então, o que eu quero que vocês façam é o seguinte...

 

 

O Madeireiro abraça os bandidos e cochicha para eles o seu plano. Sai o Madeireiro e os bandidos tomam posição de tocaia. Vem vindo a caravana, toda feliz, cantando um trecho da “canção da fome”. Os bandidos atacam e destroem tudo e roubam o dinheiro.

 

 

BANDIDOS:- Joga tudo no rio... para os jacarés... para as piranhas... Joga! Arrebenta! Estraçalha! Pega o dinheiro!

 

 

Riem e botam a caravana para correr. Depois se reúnem, dividem o dinheiro, além de ainda receberem mais dólares do Madeireiro que volta para cumprimentá-los e abraçá-los pelo feito.

 

 

Cena 5

 

 

Abaeté e sua filha cantam e dançam ao redor da fogueira. Cotira assa uma pequena coxa de ave. Mostra panelas vazias. Há um ar de desolação. Abaeté canta “a canção do índio”.

 

 

ABAETÉ:- “Sou índio, sou forte,

Enfrento a mata,

Enfrento a onça,

Se me falam da morte,

Dou muita risada...

Sou chefe, sou bom,

Canto o meu canto,

Sem sair do tom...

Brinco com curumim,

Espanto os macacos,

Se riem de mim,

Eu pulo no rio,

Se o rio tem jacaré,

Não nado nem corro,

Lhe pego um bom pontapé;

Ajudo as mulheres,

Fazendo tapioca,

Mastigando mandioca

Pra fazer cauim;

Se alguém fica bravo

Com um curumim,

Eu chego com jeito

E separo o sujeito:

Não gosto de briga,

Mas luto o que posso,

Quando ronca a barriga,

Eu fico mais triste

Que a triste araponga;

Mas... não há quem me diga,

Não há quem me responda

Se índio tem mata,

Por que tudo some?

Se a terra ele trata,

Por que índio tem fome?”

 

 

Entra Kumandaí, o noivo de Cotira. Tem um ar desanimado, de quem está há muitos dias sem comer.

 

 

KUMANDAÍ:- Abaeté chamou, Kumandaí obedece. Aqui estou, meu pai. Desculpe meu jeito, mas barriga ronca e dói. Faz dias que Kumandaí não sabe o que é o gosto de uma tapioca com banana, ou de um osso de jacutinga com um pouco de cauim. Kumandaí tem vontade de comer a si mesmo, já que meu nome – acho que foi gozação de meu pai – significa feijão...

 

ABAETÉ:- Ainda bem que seu nome significa feijão... é a única coisa que lembra comida nessa tribo... Toma cuidado, que alguém pode querer te colocar na panela, Kumandaí... Mas eu te chamei aqui porque tenho uma missão para alguém de confiança... alguém que vai ser meu filho quando casar com Cotira... e só vai ter casório se Kumandaí se sair bem da missão...

 

COTIRA:- Oh! Meu pai: não seja duro com meu noivo! Não vê que o coitado anda arretado de fome que nem todo mundo?

 

ABAETÉ:- Toma tento, Kumandaí e faz o que eu mando: vai, vai lá no acampamento do Madeireiro e diga a ele para vir aqui... que Abaeté quer fazer negócio com ele... Ele sabe do que se trata... Vai... e leva essa perna de curiango pra matar sua fome...

 

KUMANDAÍ:- Cotira já comeu, meu pai?

 

ABAETÉ:- Não se preocupe com sua noiva, Kumandaí... ela ainda vai comer muito feijão, se você trouxer aqui o Madeireiro... Agora, vai... o mais rápido possível...

 

 

COTIRA:- Gente, vocês viram o que o Abaeté vai fazer? Será que ele... Não! Não pode ser! Acho que ele vai... Vai! Ele vai, sim! Ele vai vender um pedaço da floresta para o  Madeireiro! Ei! Psiu! Meu pai,  Abaeté... meu pai! Não... não faça isso! Ele... ele não me escuta, Abaeté, o mais sábio de todos, estava nas mãos dos madeireiros, que ele julgava que eram seus amigos... Abaeté, meu pai, não acreditava na maldade do homem... Era muito bom o meu pai Abaeté... Ele só via, naquele momento, índio passando fome, curumim morrendo... não podia pensar mais nada a não ser nisso... Vejam: ele conseguiu fazer negócio... está recebendo dólares... está comprando comida!... Vejam: está todo mundo contente: há uma festa na taba... É a festa de meu casamento... agora que ninguém mais passa fome...

 

 

CENA 6:

 

 

Festa na taba: casamento de Cotira e Kumandaí. Estão todos felizes e cheios de vida. Abaeté distribui dinheiro e alegria.

 

 

ABAETÉ:- Vamos celebrar, meus irmãos, o casamento de minha filha e a volta da comida às panelas da taba...

 

KUMANDAÍ:- Viva meu pai Abaeté...

 

TODOS:- Viva! Viva!

 

KUMANDAÍ (dando um beijo em Abaeté):- De que valem umas tantas árvores, não é, senhor meu pai? Umas poucas árvores... e a panela da tribo está cheia... Você é um gênio, meu pai! Salvou a vida de muitos curumins... salvou minha barriga do ronco... salvou meu amor por Cotira!

 

COTIRA:- Senhor meu marido Kumandaí... bravo guerreiro que cumpriu com coragem a missão que meu pai lhe confiou... que soube trazer de longe o salvador de nossa gente... Viva Kumandaí!

 

TODOS:- Viva! Viva! E viva Cotira, a mais bela de todas as índias!

 

KUMANDAÍ:- Senhor meu pai Abaeté... agora que sou seu filho, como marido de Cotira e futuro chefe dessa tribo... senhor meu pai, me permite uma sugestão...

 

ABAETÉ:- Hoje tudo é permitido, Kumandaí... Hoje tudo é permitido...

 

KUMANDAÍ:- Para tão feliz data e tão maravilhosa cerimônia de casamento, não basta um cauim feito de mandioca comprada... sei lá... no mercado do branco... Se compramos do branco o milho e tudo o mais que matou a fome de nosso povo, com o dinheiro verde do Madeireiro... Viva o Madeireiro!

 

TODOS:- Viva! Viva o madeireiro!

 

KUMANDAÍ:- Então, se o dinheiro do senhor Madeireiro pode comprar o que há de bom e de melhor...

 

UM ÍNDIO:- Nós merecemos o melhor! Nós merecemos o melhor!

 

TODOS:- O melhor! O melhor!

 

KUMANDAÍ:- Meus irmãos... e meu sogro... meu pai... Por que nos contentarmos com o cauim de sempre... sempre a mesma mandioca... sempre o mesmo gosto... Vamos provar o que o branco tem de melhor!

 

TODOS:- O melhor! O melhor!

 

KUMANDAÍ:- Ouve o povo, como sempre você ouviu, senhor meu pai Abaeté: permite que compremos o que o branco tem de melhor para comemorar – o uísque!

 

ABAETÉ:- Uísque? Mas uísque é cachaça metida a besta... e eu não permito que meu povo tome cachaça!

 

KUMANDAÍ:- Mas é só hoje, senhor meu pai Abaeté... para comemorar a vitória sobre a fome... e meu casamento com Cotira, é claro...

 

ABAETÉ:- Está bem! Só hoje... só hoje... como foi só um pedaço da floresta que eu vendi... Só hoje!

 

 

Abaeté dá dólares para todos e todos compram uísque e bebem e ficam muito alegres. Mas depois caem pelos cantos, babando, dormindo e roncando como porcos.

 

 

CENA 7:

 

 

Na taba, Abaeté saboreia uma lauta refeição, servida por sua filha.

 

 

COTIRA:-  Foi um festão, meninos e meninas... Mas, vocês acham certo o que o Feijão... o Kumandaí, meu esposo... fez? Encher a cara de uísque! Que coisa feia, não foi? Se os índios sempre beberam cauim e viviam muito bem... pra que, agora, essa coisa de novo rico de querer tomar uísque! Quem sou eu pra ficar pondo reparo... Vejam: o chefe Abaeté não tinha outra saída: a lavoura da tribo não dava mais nada, os alimentos que o povo da capital mandou não chegaram, os curumins estavam morrendo... Então, ele vendeu... vendeu algumas poucas árvores da floresta por um bom punhado de dólares... Um negócio da China, não é mesmo? Afinal, a floresta era enorme! Imensa! Com milhões de árvores com troncos enormes... que podiam virar mesa... que podiam virar berço... que podiam virar um monte de coisa, não é mesmo? Umas poucas árvores... só umas poucas árvores... não iam fazer falta, vocês não acham?

 

 

Entra Kumandaí, que também se banqueteia, enquanto conta ao sogro as últimas novidades.

 

 

ABAETÉ:- Puxa! Estava muito boa essa coxa de... de que era mesmo, minha filha?

 

COTIRA:- De peru, meu pai... de peru da Sadia...

 

KUMANDAÍ:- Trago novidades, senhor meu sogro Abaeté... A tribo quer mais dólares...

 

ABAETÉ:- Quer o quê?

 

KUMANDAÍ:- Mais dólares... aquelas verdinhas que o senhor recebeu em troca de algum verde de nossas matas... o senhor sabe.

 

ABAETÉ:- Isso é um absurdo! Eu vendi algumas árvores num momento de emergência... quando havia risco de todos morrerem de fome... Que plantem mais mandioca! Que plantem mais milho! Só assim poderão...

 

KUMANDAÍ:- Desculpe, meu sogro Abaeté, a língua desse vosso filho... mas ninguém quer plantar mais milho... ninguém quer plantar mais mandioca... Todos acham que Abaeté pode fazer mais um milagre: vender árvore e ganhar dinheiro verde. Com dinheirinho verde, comprar milho do branco... comprar mandioca do branco... comprar feijão, não, feijão não... comprar uísque do branco...

 

ABAETÉ:- Uísque? De novo essa história? Eu já não disse que não admito cachaça em minha tribo?

 

COTIRA:- Ouve meu marido Kumandaí, meu pai... Ele traz a verdade do povo. E o povo não quer mais plantar... não quer mais fazer cauim... que dá um trabalhão danado! O povo agora só quer saber de rádio de pilha, de parabólica, de camisa de seda... Quem provou o melhor, não se contenta com o bom...

 

ABAETÉ:- Só me falta alguém chegar aqui e pedir um computador!...

 

KUMANDAÍ:- Não duvide, meu sogro... não duvide!

 

ABAETÉ:- Então, o que eles querem que eu faça? Diga você, meu caro genro Kumandaí... o que eu posso fazer?

 

KUMANDAÍ:- Até logo, meu sogro. Vou buscar o Madeireiro!

 

 

CENA 8:

 

 

Abaeté e o Madeireiro.

 

 

ABAETÉ:- Se achegue mais, amigo Madeireiro. Casa de Abaeté é de pobre, mas está sempre aberta aos amigos.

 

MADEIREIRO:- Estou com um pouco de pressa, caro Abaeté. Que assunto era tão urgente, que eu tinha que vir assim, como o vento...

 

ABAETÉ:- Pressa nenhuma, amigo Madeireiro... Pressa nenhuma. Sente. Tome um cauim... ou um uísque, se preferir... E vamos deixar que o papo alimente a noite, como sempre fizemos nos velhos tempos...

 

MADEIREIRO:- Velhos tempos? Que é isso, amigo Abaeté? Tenho mais o que fazer do que ficar jogando conversa fora.

 

ABAETÉ:- Não reconheço em suas palavras o amigo que admirava a floresta... as árvores de nossa taba... e respeitava e aceitava nossos costumes...

 

MADEIREIRO:- Já sei: o senhor Abaeté quer vender mais algumas árvores de sua amada floresta! Mas já vou lhe dizendo que o dólar subiu, nosso dinheiro não está valendo nada e que está difícil negociar com os gringos...

 

ABAETÉ:- Abaeté não entende esse negócio de valor de dinheiro. Abaeté sempre confiou na palavra do amigo... só precisamos de alguns poucos dólares... por algumas poucas árvores... e nada mais!

 

MADEIREIRO:- Parece que amigo Abaeté não entendeu! Vou explicar: agora, não tem esse negócio de uns poucos dólares por umas poucas árvores, não! Se você quiser fazer negócio comigo, tem de ser assim: um montão de árvores por uns poucos dólares e, assim mesmo, se o amigo me pedir em nome da velha amizade...

 

 

Cotira, que estivera escutando toda a conversa, entra de repente.

 

 

COTIRA:- O senhor, meu pai, está ficando velho demais para entender que entrou na conversa desse aí... Ele nunca foi seu amigo, meu pai... Ele só quer a nossa floresta, as nossas árvores... que o senhor jurou a seu pai que ia proteger, assim como...

 

MADEIREIRO:- ... assim como seu avô e seu bisavô... até o início dos tempos, quando Tupã jogou aqui a primeira semente, não é mesmo? Ora, Cotira, não me venha com essa conversa fiada de tradição, de antepassados! Quando todos estavam morrendo de fome, quem ajudou fui eu, comprando por muitos dólares uma floresta que não valia nada... que não vale nada, se não for transformada em madeira que vira mesa, que vira berço, que vira um monte de coisa que os brancos lá das estranjas gostam muito... Agora você vem com esse papo de... Ora, bolas! Estou fora, entendeu? Estou fora! Porque quem dá as cartas agora sou eu! Passe bem!

 

 

O Madeireiro sai. Cotira canta “a canção do desalento”.

 

 

COTIRA:- “Meu sonho era um dia poder

Deixar para meu filho uma terra linda...

Meu sonho era um dia não sofrer,

Não chorar tanto como não chorei ainda...

Não existe terra no mundo como esta,

Não existe povo igual a este no mundo,

Esses rios que dão peixe, essa floresta

Que parece mais o mar profundo...

Meu sonho era um dia olhar meu filho

E dizer que não há nada mais bonito

Que o cabelo de uma espiga de milho,

Que em nenhum taba, em nenhuma outra oca

Pode ter mais amigos e mais amor

Espalhados bem no mais profundo chão

Como espalha a raiz a planta da mandioca...

Meu sonho era um dia ver meu filho

Pescar o peixe e colher o milho...

Meu sonho era um dia ver meu filho

Pescar o peixe e colher o milho...

O verde milho...”

 

 

COTIRA:- Pois é, meus amiguinhos e amiguinhas... estou chorando de novo. Desculpem. Mas é que eu não sei se essa história vai acabar bem. O Madeireiro falou grosso com meu pai Abaeté, um homem tão honrado... Honesto até no nome!... Abaeté bem que tentou... tentou... mas não conseguiu vencer o duro coração do Madeireiro... Sabem o que ele queria? Vender só mais um pouco da floresta, para... para ver se conseguia um tempo e convencer sua tribo de que todos deviam voltar a plantar o milho, a mandioca... que aquilo tudo fora somente um momento ruim, que devia passar. Mas quem disse que ele conseguiu?

 

 

CENA 9:

 

 

Abaeté e  Cotira em torno da fogueira.

 

 

ABAETÉ:- Você está feliz, minha filha Cotira? Kumandaí tem sido bom esposo?

 

COTIRA:- Sim, meu pai, Kumandaí tem sido bom para mim, mas...

 

ABAETÉ:- Vejo uma sombra em seu rosto, minha filha Cotira... Pode falar. Seu pai Abaeté escuta.

 

COTIRA:- É que... sabe?... estou preocupada com Kumandaí...

 

ABAETÉ:- Kumandaí tem outra mulher? Eu pego aquele desgraçado...

 

COTIRA:- Não, meu pai... é que Kumandaí está muito envolvido com os problemas da tribo... e não acho que as coisas andam correndo muito bem para o nosso povo...

 

 

Entra Kumandaí.

 

 

KUMANDAÍ:- Chefe Abaeté, meu caro sogro e pai... Kumandaí traz notícia da tribo. Tribo quer mais dólar! Tribo quer mais comida de branco! Tribo não quer mais pescar, nem plantar milho e mandioca... Tribo quer...

 

ABAETÉ:- Vocês estão loucos... Abaeté não pode concordar com tamanha bobagem... Manda tribo ir pescar e plantar... que está no tempo certo de guardar peixe e plantar milho e mandioca para os dias difíceis!

 

KUMANDAÍ:- Meu querido sogro... parece que senhor não entendeu. Tribo não mais quer saber de sua palavra... Todo mundo acha que senhor já está velho demais... e já ganhou dólar demais... Então, tribo quer que Kumandaí fique novo chefe!

 

 

Kumandaí avança para Abaeté e tira-lhe o cocar de chefe. Abaeté fica chorando num canto, enquanto Kumandaí obriga Cotira a colocar cocar em sua cabeça e servi-lo como a um chefe. Chega o Madeireiro. Fica um pouco desconfiado com a nova situação.

 

 

MADEIREIRO:- Senhor Kumandaí... vim tratar de negócios com senhor Abaeté, mas parece que...

 

KUMANDAÍ:- Parece, não, acontece: acontece que Kumandaí é novo chefe. Se quer tratar de negócio, agora é com o índio aqui...

 

MADEIREIRO (à parte):- Um feijão no comando... acho que agora será mais fácil, pois não? (Para Kumandaí). Minhas homenagens ao novo e grande chefe Kumandaí... Prevejo dias de muito dólar para tribo! Vamos negociar!

 

KUMANDAÍ:- Já vou avisando, senhor Madeireiro: Kumandaí é muito esperto. Não vai ser fácil levar Kumandaí no bico, como senhor levou Abaeté... Vamos negociar.

 

 

O Madeireiro e Kumandaí negociam, com gestos e palavras inaudíveis.

 

 

COTIRA:- Um longo processo de negociação começou naquele momento, entre Kumandaí, meu esposo, que se julgava mais esperto do que meu pai, e o Madeireiro. Conversaram durante muitos dias e muitas noites, durante as quais consumiram cinco perus Sadia, oito quilos de farofa, três quilos de arroz, muitas garrafas de uísque... Só não consumiram feijão porque Kumandaí não admitia ter o seu nome ligado a uma coisa que se comia... Mas, olhem, parece que chegaram a um resultado...

 

KUMANDAÍ:- Então, está certo... onde Kumandaí assina?

 

MADEIREIRO (tirando um papel do bolso):- Está aqui o nosso tratado, pelo qual o chefe Kumandaí reconhece o direito para sempre de exploração da madeira de sua tribo por minha empresa, pagando míseros, digo, alguns dólares por toda a floresta... Assine aqui, por favor!

 

 

Kumandaí coloca sua assinatura no documento e os dois se abraçam. Cotira e o pai, ao fundo, também se abraçam, chorando.

 

 

Entram os cortadores de madeira e cantam “a canção dos cortadores de madeira”:

 

 

CORTADOR:- “Lá na mata tem madeira

Que eu corto com minha serra,

Comigo também não tem bobeira,

Cada árvore que eu vejo,

Vai logo assim pra terra...”

 

CORO:-“Corta, corta, corta,

Corta todo o arvoredo

Depois que a mata é morta,

Vou vender sem medo.”

 

TODOS:- “Corta, serra, corta, serra,

Vamos todos cortar madeira,

Corta, corta, serra, serra,

Bem barata é a madeira.” (bis)

 

 

CENA 10

 

 

COTIRA:- E foi assim, meus meninos e meninas, que a tribo de meu pai Abaeté, agora a tribo de meu esposo Kumandaí, ficou de repente muito rica. E enquanto a tribo ficava rica, a floresta inteira foi embora. Dois anos se passaram. O dinheiro da tribo também foi embora, consumido por uma gastança sem igual! Compraram de tudo: brinquedos em lojas de um e noventa e nove, para todos os curumins que não morreram de fome no tempo da lua negra, mas curumim nem sabia brincar com aquilo; compraram geladeiras, para guardar o peixe que havia no rio e o rio ficou muito tempo sem peixe, de tanto que pescaram para encher as geladeiras; compraram até computadores, para índio navegar na internet, mas índio não precisava disso e todas essas coisas e muitas outras mais E tudo foi destruído pelo mato que tomou conta da aldeia! Sem dinheiro, sem floresta, sem terra para plantar e colher milho e mandioca, a tribo ficou pobre e triste.

 

 

A tribo cobra de Kumandaí o resultado de suas ações,  com a “canção da perda de identidade”.

 

 

TRIBO:- “Foi você quem comprou

O uísque podre do branco

E o uísque agora se acabou

Curumim pulava no rio

Com macaco brincava e ria

Mas você comprou do branco

Só brinquedo porcaria.

Foi você quem comprou

Branca máquina de congelar

Índio tirou do rio tanto peixe

Que não pode mais pescar

E agora, Kumandaí,

E agora, Kumandaí,

Tribo não tem mais rio

Tribo não tem mais floresta

Que tribo é esta?

Responde, Kumandaí:

Sem risada de curumim,

Tribo fica numa tristeza sem fim

Não tem rio e nem floresta

Responde, Kumandaí, responde:

Que tribo, que tribo é esta?”

 

 

Kumandaí responde à tribo com a “canção do arrependimento”.

 

 

KUMANDAÍ:-  A culpa de tudo que foi errado

Vocês agora dão a mim?

Se comprei uísque foi porque

Não queriam mais cauim.

A culpa de tudo que foi errado

Fica agora só pra mim?

Se comprei brinquedo de plástico

Só queria ver feliz o curumim...

A culpa de tudo que foi errado

Só eu assumo para mim?

 

Ah! Se pudesse fazer nascer

De novo a mata de tanto bicho,

Encher de peixe novamente o rio,

Jogar na cara do branco tanto lixo...

 

Mas... é Cotira que tanto chora!

Oh! Tupã, cadê, cadê minha sorte?

Se agora toda tribo vai embora

Fugindo de mim e da própria morte...”(bis)

 

 

COTIRA:-  Os últimos a ir embora somos nós, a família de Abaeté, que tem um neto, meu filho e filho de  Kumandaí... Penso muito no futuro de meu filho...

 

 

CENA 11:

 

 

Kumandaí está sentado num canto, desanimado, com cocar de chefe meio torto na cabeça, enquanto Cotira, que  ajeita uma criança nas costas, e Abaeté juntam os teréns para irem embora.

 

 

ABAETÉ:- Tupã não tirou nossa saúde, minha filha Cotira... nós continuamos a viver...

 

COTIRA:- É muito duro provar a miséria de novo, meu pai Abaeté... depois de uma vida de fartura, de luxo... Não sei se vou agüentar, meu pai...

 

ABAETÉ:- Diz que na cidade grande tem emprego pra índio... mas chefe Abaeté só sabe ser chefe, não sabe fazer oca, não sabe pescar, não sabe plantar...

 

COTIRA:- Tupã não tirou beleza de Cotira, meu pai... Cotira pode trabalhar na televisão...

 

ABAETÉ:- E esse seu marido, que não fala nada, Cotira... Ei, ei, Kumandaí, ajuda aqui, um pouco, que Abaeté já está cansado... E joga fora esse cocar ridículo, que você não tem mais índio para ser chefe... Você não é mais chefe de ninguém, Kumandaí... Vamos logo... noite está caindo e Abaeté precisa descansar para a longa caminhada...

 

KUMANDAÍ:-  Pra que a pressa? Pra quê? Eu destruí nosso mundo com minha ignorância. Nós não temos futuro.

 

ABAETÉ:- Veja ali: nos braços de Cotira, o seu filho, Kumandaí. Ele é o futuro. Por ele nós devemos continuar. Sua ignorância apenas trouxe bem depressa aquilo que viria mais lentamente: não podíamos ficar esperando que o nosso paraíso durasse para sempre. Mas aprendemos a lição de que devemos saber como nos comportar de agora em diante. Não vamos para a cidade: vamos buscar novas terras e tentar honrar nosso passado.

 

KUMANDAÍ:- Você será de novo o chefe, Abaeté, meu sogro...

 

ABAETÉ:- Não, Kumandaí: nós pagamos muito caro para ter um chefe mais sábio... Você construirá um mundo novo para seu filho... Vamos, me ajude aqui...

 

 

Lentamente, Kumandaí começa a ajudar Abaeté e Cotira, enquanto Abaeté canta “a canção da esperança do índio”.

 

 

ABAETÉ:- “Tupã um dia colocou na terra

Os filhos do sol para serem felizes

Mas veio o branco e a motossera

E arrancou suas raízes...

 

Tupã um dia voltará à terra

E dará ao índio a esperança

De vencer a motossera

Com um sorriso de criança...

 

Sou índio, sou forte,

Enfrento a mata,

Enfrento a onça,

Se me falam da morte,

Dou muita risada...

Eu era o chefe,

Eu era bom...

Ainda sou!

Pois canto o meu canto

Sem sair do tom...

Lá na cidade grande,

Ou seja onde for,

Não vou deixar

Que alguém me mande,

Com trabalho e fervor

A minha tribo vou reencontrar,

E um dia ainda vou cantar

Sou índio, sou forte,

Enfrento a mata

Enfrento a onça,

Se me falam da morte

Dou muita risada...”

 

COTIRA:- Este é meu pai, senhor Abaeté, que nunca vai desanimar, que ainda vai enfrentar muitos dias de lua negra, mas não deixará nunca de lutar e de sonhar... Ele também pensa no futuro do neto, meu filho...

 

TODOS:- “Sou índio, sou forte,

Enfrento a mata

Enfrento a onça,

Se me falam da morte

Dou muita risada...”

 

FIM

 

 

NOTAS:

(1) Abaeté: do tupi, abá = homem e aeté = ótimo; homem ótimo, honrado.

(2) KUMANDAÍ, em tupi, feijão.

(3) CATUCAÉM, em tupi, carne seca.

(4) CAUIM, em tupi “ka’ wi”, bebida fermentada: espécie de bebida preparada com a mandioca cozida e fermentada. Também podia ser preparada com caju ou outras frutas, ou, ainda, com milho e mandioca mastigados.

 

Capa: ilustração do livro Brasileirinho (“Leitura para o 3º ano primário, de acordo com os programas de Ciências, de Linguagem e de Ciências Sociais”), da série Pindorama, de Ofélia e Narbal Fontes, 13ª edição, Livraria Francisco Alves, SP, 1952.

 

Isaias Edson Sidney

Quarta-feira, 27 de Novembro de 2002

 

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