Drama
Isaias Edson Sidney
Telefone
(11)5011-9628
SBAT-8091 |
9.3.2006 |
2003
- RESUMO:
Drama épico
fantasioso ou fantástico. A partir de um comentário de Nietzsche, de que o
filho de Alexandre VI, César Bórgia, inspirador de O Príncipe, de Maquiavel, se
tivesse sido papa, poderia ter destruído o cristianismo, constrói-se a trama
dessa peça. César Bórgia torna-se efetivamente papa. Surge, entretanto, uma
figura emblemática, na efetivação de seu papado e na reunificação da România
(Itália): o Mulo, que leva tanto o papa quanto sua irmã Lucrécia à loucura e à
ruína. E, numa total liberdade histórica, Nietzsche e Maquiavel interferem na
história.
·
ÉPOCA: século XVI
·
LOCAL: Itália (Vaticano e Florença)
·
PERSONAGENS:
BOBO
PAPA ALEXANDRE VI
LUCRÉCIA BÓRGIA
CÉSAR BÓRGIA
NICOLAU MAQUIAVEL
FRIDRICH NIETZSCHE
MULO
SAVONAROLA
JUAN BÓRGIA
TIRÉSIAS
FRADE
OUTRO FRADE
CIDADÃO
OUTRO CIDADÃO
INQUISIDOR
CARDEAL
MENDIGO
GENERAL 1
GENERAL 2
CORO / ACÓLITOS
POVO
GUARDA PAPAL / COMANDANTE
CORO DOS MENDIGOS
·
MONTAGEM: no mínimo, 12 atores.
- O AUTOR:
Isaias Edson Sidney – Rua dos Buritis, 251 – Jabaquara, São Paulo, SP –
cep. 04321-001 – telefone: 5011-9628.
“Vejo diante de mim a possibilidade
de um encantamento
supraterreno: – parece-me que cintila com todas vibrações de uma beleza sutil e
refinada, dentro da qual há uma arte tão divina, tão diabolicamente divina, que
em vão se procuraria através dos milênios por semelhante possibilidade; vejo um
espetáculo tão rico em significância e ao mesmo tempo tão maravilhosamente
paradoxal que daria a todas as divindades do Olimpo o ensejo de irromper numa
imortal gargalhada – César Bórgia como Papa!... Compreendem-me?... Pois bem, essa teria sido a
espécie de vitória que hoje somente eu desejo –: com ela o
cristianismo teria sido abolido!”
Friedrich Nietzsche, O Anticristo
Prólogo
O bobo (1)
se apresenta ao público. Traz nas mãos uma garrafa de vinho e uma taça.
BOBO:- Senhoras e senhores, não vos ofereço uma taça desse
delicioso vinho, porque, embora seja o bobo da corte do papa, não sou idiota
para desperdiçar convosco o que me deu tanto trabalho de surrupiar da adega de
sua santidade... Escolher aquela – ou esta – garrafa que não contivesse a marca
fatal do veneno, então, os senhores nem imaginam o grau de dificuldade para
alguém, como eu, que tem das letras e dos números o conhecimento básico, mais
do que básico... Humm, bom, muito bom... este vinho. Bobos também apreciam o
que é bom. Mas não vim aqui para falar do vinho do papa... Vim para lhes dizer
que este espetáculo oferecerá a quem o acompanhar uma rara possibilidade de
conhecer papas, reis e filósofos... principalmente filósofos. Tanto que
convidamos um cara do século XIX, um tal de... será que esqueci o nome do
infeliz?... Ni... Nivaldo, não... Ni... ah! achei: Nietzsche (espirra)... Frederico Nietzsche... e um
outro filósofo e historiador do meu tempo, cheguei mesmo a filar um rango na
casa dele um vez por outra, o meu amigo Nicolau... Nicolau Maquivel... o
maquiavélico! Estranho, não? Pois é! Isso é um teatro que, como os senhores
devem estar carecas de saber, permite que o autor cometa essas heresias, de
misturar épocas e personagens, reis, guerreiros, papas, profetas e povo e
colocar tudo num liquidificador, misturar, misturar, misturar, e... bom, nem
liquidificador tinha na minha época... Vamos lá, vamos ver o que prepararam
para nós hoje. Atenção! Terceiro sinal, por favor, senhor maquinista... e...
hmm... esse vinho!
Cena 1
Ano: 1493. Aposentos íntimos do Papa Alexandre VI, no
Vaticano. Uma grande cama em forma de dossel e um trono, no qual se assenta o
Papa, que parece rezar. Faz o sinal da cruz e toca uma campainha. Entra uma ama
com enorme bacia e outra com jarros de água. Colocam tudo aos pés do Papa.
Saem. Alexandre VI benze as águas dos jarros e bate palmas. Entram César e
Lucrécia. Ele tem 18 anos e ela, 13, embora pareça adulta. Vestem longas
túnicas brancas.
PAPA:-
Dominus vobiscum, fillii mei...
CÉSAR:-
... et cum espirutu tuum...
LUCRÉCIA:-
... amem...
PAPA:-
Sabeis bem o que vos traz aqui, meus filhos César e Lucrécia...
AMBOS:-
Sim, meu pai.
PAPA:-
Já tendes idade para casar, minha filha... Acabastes de completar os treze...
LUCRÉCIA:-
Pretendentes não faltam, meu pai... Ordenai e, em breve, vereis correr pelos
salões do Vaticano vasta prole, meu pai...
PAPA:- E
vós, meu filho, César, sentis em vós o chamado do Senhor?
CÉSAR:-
Sim, meu pai...
PAPA:-
Estais pronto para envergardes com amor e sabedoria a veste cardinalícia?
CÉSAR:-
Não aspiro à mitra, meu pai... mas sou o servo de vossos desejos...
PAPA:-
Muito bem... Antes que se concretizem os vossos anseios, necessário que passeis
pela santa cerimônia de iniciação...
Cena 2
O Papa faz um sinal a ambos. Lucrécia entra na bacia e
César despe-a totalmente. Pega um jarro de água e entorna sobre sua cabeça,
dizendo palavas inaudíveis em latim. Enxuga-a lentamente. Em seguida, Lucrécia
procede da mesma maneira com o irmão. Terminada a cerimônia, o Papa afasta as
cortinas do grande dossel da cama e leva-os até lá. Eles sobem na cama e
começam a beijar-se e a acariciar-se. Alexandre VI começa, lentamente, a
masturbar-se.
LUCRÉCIA:- Pai, o que
vamos fazer... esse amor, não é errado?
PAPA:- O amor está
sempre acima de tudo, minha filha... Vede: causa-me prazer...
LUCRÉCIA:- Prazer,
papai, prazer? Não será pecaminoso esse... esse prazer?...
PAPA:- O vosso
gozo será o gozo do Papa... E o gozo do Papa não ofende a Deus, pelo contrário:
será o meu esperma o rio de fogo que nos trará vida e longevidade. Corpo e
alma, força e fé, Deus e homem, o homem e o leão... tudo se funde nesse
colóquio amoroso... Tu e teu irmão sereis abençoados com essa força e nada
poderá separar-vos ou vencer-vos!
LUCRÉCIA:- Meu querido irmão, não há no mundo amor maior que o meu por ti... Vem,
possui-me com teu fogo... Assim somos nós, os Bórgias... Assim somos nós...
PAPA:- Assim somos nós, meus queridos filhos! Deus nos abençoe a todos per
omnia secula seculorum...
O casal recomeça as carícias até completar o ato sexual,
enquanto Alexandre VI, como um louco, dizendo mil imprecações em latim,
masturba-se, chegando mesmo a subir na cama, quase participando do ato dos
filhos. Exaustos, os dois jovens adormecem.
PAPA:- Não há mais inocência... não há mais
inocência! Sereis, filhos meus, de agora em diante, um do outro para sempre,
mesmo que a vida vos separe... Vosso amor celebra a união e o poder de nossa
família, per omnnia secula seculorum, per omnia secula seculorum, amem...
Cena 3
O Papa, cerimoniosamente, pega uma jarra de vinho e
serve-se. Antes de beber, chama o bobo e faz com que ele experimente o vinho. O
bobo faz algumas gracinhas, cai no chão estrebuchando e depois levanta-se
lépido e sai correndo a gargalhar. O papa, então, sorve-o, também, com grande
prazer. Olha-se ao espelho e pavoneia-se.
PAPA:-
Toca de novo o sinete. Acólitos entram, cantando glórias
em latim, e acordam os jovens amantes. Vestem-nos com vestes luxuosas e saem.
CORO:- Gloria Patri, et Fili, et
Spiritui Sancto. /Sicut erat in principio, /et nunc et semper, /et in saeccula
saeculorum, /amen.
PAPA:- César, meu filho, já tendes 18 anos: a
Igreja vos chama...
CÉSAR:- Já vos disse, meu pai, sou um
guerreiro, não um sacerdote.
PAPA:- Quem vos convoca não é o Pai, mas o
Papa, senhor supremo de todas as almas. As vestes cardinalícias não sufocarão o
guerreiro que há em vós, porque para a guerra da perpetuação de nossa Santa
Madre Igreja necessito de homens como vós. Ajoelhai e recebei o chamado da fé!
Cena 4
Enquanto o Papa paramenta
César com as vestes cardinalícias, o bobo vai até Friedrich Nietzche e Maquiavel e os toma pela
mão, trazendo-os para a cena.. Maquiavel senta-se a uma escrivaninha, tomando
notas, desesperadamente, enquanto Nietzsche manipula o espelho de modo a
refletir a cena do Papa sendo paramentado. O bobo sai, sob a ameaça de
Maquiavel em dar-lhe um cascudo, diante de algumas gracinhas que ele faz.
MAQUIAVEL:- Espelho meu, salve César
Bórgia, senhor de todas as vidas e de todas as mortes! Sobre vós construirei
minha mais perfeita obra!
NIETZSCHE:- Como te enganas! Como te
enganas, Maquiavel!
MAQUIAVEL:- Acaso vos conheço? Quem
sois vós, para interromperdes meu raciocínio político e minhas anotações?
NIETZSCHE:- Tu não me conheces, mas
conheço-te eu muito bem: das tuas veleidades e das tuas falsidades.
Maquiavel leva a mão à
espada.
MAQUIAVEL:- Ousais desafiar meu
espírito ou minha espada?
NIETZSCHE:- O desafio a história já o
lançou... Apresento-me: Friedrich Nietzsche, filósofo, século XIX... o mais
anticristão de todos os homens.
MAQUIAVEL:- Blasfemais!... Blasfemais
contra a Santa Madre Igreja! Vede: há ali um homem forte prestes a iniciar sua
trajetória gloriosa...
NIETZSCHE:- O homem forte é como réprobo, como degredado entre os
homens. O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo e
fracassado; forjou seu ideal a partir da oposição
a todos os instintos de preservação da vida saudável; corrompeu até
mesmo as faculdades daquelas naturezas intelectualmente mais vigorosas,
ensinando que os valores intelectuais elevados são apenas pecados, descaminhos,
tentações. (1)
MAQUIAVEL:- A vitória do Príncipe enterrará vossas palavras no lixo
da História! Os Bórgias... César Bórgia... esse o nome exato... o exato nome da
nova era cristã... da nova Igreja, senhor... senhor... senhor seja lá o que
sejais...
NIETZSCHE:- Friedrich Nietzsche, filósofo... Ouve: para suportar minha seriedade,
minha paixão, é necessário possuir uma integridade intelectual levada aos
limites extremos...
MAQUIAVEL:- Acusai-me de desonestidade
intelectual, senhor... senhor Friedrich Nietzsche? Acaso...
NIETZSCHE:-
Não há acaso nessa história, senhor Maquiavel... Pela tua cartilha, os
fins justificam todos os meios...
MAQUIAVEL:- Jamais saiu de minha pena tal
heresia... Mostrai-me em qual de meus escritos tenha eu registrado que os fins
justificam todos os meios... Aleivosias! Aleivosias!...
NIETZSCHE:-
Inútil tal discussão, senhor Maquiavel... Tudo quanto admiras está
simbolizado no recém-nomeado cardeal César Bórgia... Olha com teus próprios
olhos e verás o processo histórico ser claramente demonstrado, meu caro
Maquiavel. E tuas idéias... ah! As tuas idéias...
O bobo
volta à cena, trazendo uma mensagem.
BOBO:- Se eu não
estivesse com pressa para entregar essa mensagem ao papa, dava uns cascudos
nesses sujeitos... Que caras mais complicados!...
Sai
correndo e entrega o rolo de mensagem ao Papa, que a desdobra e lê,
contrariado.
Cena 5
Na
sala do trono, o papa Alexandre VI entrega a César Bórgia a mensagem que
acabara de receber.
PAPA:- Vede... vede as notícias
de Florença, meu filho... Não são nada animadoras...
CÉSAR:-
De novo esse celerado? Temos de tomar uma atitude rápida, meu pai.
PAPA:-
Contra um sacerdote da Igreja, um dignitário de tal importância? E o povo que
está a seu lado? Não te esqueças que sua vida tem sido irrepreensível até
agora... Recusou-se, mesmo, à mitra que lhe ofereci... Já estou farto desse
herege! Farto!
CÉSAR:-
Disseste-o bem, meu pai... Uma vida irrepreensível... até agora. Bastam, porém,
algumas aleivosias aqui e ali que tudo se ajeita... Ele tem inimigos, meu pai:
os arrabiatti, antigos defensores dos Médicis, têm-lhe verdadeiro ódio...
PAPA:-
E o povo, meu filho?
CÉSAR:-
Desde há muito que esse padre... esse celerado... prega a vinda de um
conquistador estrangeiro... Também pregou a queda de Lourenço Médici... Está aí
a oportunidade para jogá-lo contra o povo... O povo, meu pai, está acostumado à
tirania e à opressão. Embora não goste de tiranos, teme, acima de tudo, um
tirano estrangeiro, que além de o oprimir, o destruirá, queimando suas casas,
tomando suas propriedades e violando suas mulheres... Os florentinos que hoje o
toleram, por seu governo republicano, se voltarão contra ele, se ele for
desmistificado em público...
PAPA:-
Tens razão, meu filho. É preciso cortar o mal pela raiz.
Intervenção
do bobo.
BOBO:- Quando
alguém diz que é preciso cortar o mal pela raiz... ai, ai, ai... já levo a mão
a... a... os senhores sabem aonde... Ao pescoço, é claro... Pensou o quê?...
Cabeças vão rolar... ou queimar! Sugiro a quem tem estômago fraco que feche os
olhos, tape os ouvidos e espere a cena seguinte...
Cena 6
Praça
de Florença. Savonarola prega, recebendo vaias e aplausos do povo.
SAVONAROLA:-
Meus amados irmãos florentinos! Eu tive uma visão... uma visão espantosa... Eu,
Jerônimo Savonarola, tive de Deus a certeza de que os pecados daquele que ocupa
hoje a cadeira de São Pedro levarão a todos nós para as chamas do inferno...
Tentaram calar minha voz, mas Deus, em minha visão terrível, exortou-me a não
me submeter a um tribunal corrupto...
Do
meio do povo, encoberto pelo manto, um frade dominicano interrompe-o.
FRADE:- Eu vos
desafio, Savonarola! Vede a fogueira que esses homens erguem? Aquele que por
entre suas chamas passar incólume contará com a aprovação de Deus!
SAVONAROLA:-
Quem sois vós para desafiardes assim a palavra única do Senhor?
FRADE:- Temeis?
Onde vossa coragem? E como pode o Senhor aprovar quem contra o povo conspira?
SAVONAROLA:-
Enviado do demônio! Colocai-vos sobre vossos calcanhares e voltai ao Vaticano!
Dizei a Alexandre VI que Jerônimo Savonarola repudia tanto sua vida dissoluta
de pecado e luxúria quanto qualquer desafio proveniente do demo!
FRADE:- De fonte
segura, meus concidadãos, tenho a informação de que Savonarola, esse mesmo que
teme o meu desafio do fogo, não repudia as forças estrangeiras... de França,
principalmente... para as quais prepara terreno depois de com elas ter-se
acordado. As tropas de Carlos VIII, que passaram adiante por nosso território,
por um acordo espúrio com Savonarola, agora esperam dele apenas um sinal, um
pequeno sinal, para se atirarem sobre vós... sobre todos nós...
OUTRO FRADE:-
Meus irmãos... Eu, frade Domênico Buovincino, aceito o desafio em nome de nosso
mestre... Eu passarei pelas chamas da fogueira incólume... Esta cruz me
protegerá!.
UM CIDADÃO:-
Com semelhante proteção, até eu...
OUTRO CIDADÃO:-
Ele é um homem de Deus e pode portar a cruz...
UM CIDADÃO:-
Que ambos carreguem uma cruz ao passar pelas chamas...
OUTRO CIDADÃO:-
E ambos passarão incólumes... com a proteção da cruz... E nada se provará.
FRADE:- Senhores!
Inútil a discussão quando todos falam e todos têm razão. Assim, ficaremos aqui
a noite toda e uma tempestade se avizinha...
POVO:- Savonarola
covarde! Savonarola traidor!
SAVONAROLA:-
Meus irmãos! O julgamento de Deus não tarda! Somente a Ele devemos nos
submeter. Quero contar-vos minha visão... “Eu fui arrebatado em espírito no dia
do Senhor, e ouvi detrás de mim uma grande voz, como de trombeta, que dizia...”
(2)
POVO:- Covarde!
Covarde! Traidor! Traidor! Julguem-no! Enforquem-no!
FRADE:- Em nome do
Papa Alexandre VI, eu, frade Francisco de Apúlia, determino a prisão e o
julgamento de Jerônimo Savonarola. Soldados, amarrai-o.
Cena 7
Soldados
prendem e amarram Savonarola. Arma-se o seu julgamento. Enquanto transcorrem as
discussões, erguem-se um patíbulo (com uma forca) e uma fogueira. Acólitos
entram, cantando glórias em latim.
CORO:- Gloria Patri, et Fili, et
Spiritui Sancto. /Sicut erat in principio, /et nunc et semper, /et in saeccula
saeculorum, /amen.
INQUISIDOR:- Em
nome da Santa Madre Igreja, inicio o processo de julgamento de Jerônimo de
Savonarola, acusado de traição, perjúrio e heresia... O acusado deve orar e arrepender-se.
SAVONAROLA:-
Não pode o injusto acusar o justo... Não pode o demônio ofender ao servo de
Deus!
FRADE:-
Blasfema ainda o acusado: invoca o demônio e ofende ao Criador e à Santa Madre
Igreja!
POVO:- Enforcai-o!
Enforcai-o!
SAVONAROLA:-
Ouvi, meus irmãos: queimai na fogueira a vaidade de quem usurpa o trono de
Pedro! Mandai à forca quem ofende a dignidade do cargo, provendo-se de
prostitutas no altar de Deus... As trombetas já soaram e cabe a vós obedecer
aos desígnios do Senhor. Alguma vez já vos traí? Já ouvistes de meus lábios
injúrias que não fossem provadas e comprovadas pelos fatos? Pela minha boca,
pela minha palavra, pelos meus atos e pela minha honra, escutai o que vos fala
o anjo do Senhor: “a besta que vi era semelhante ao leopardo, e os seus pés
como os de urso, e a sua boca como a de leão; e o dragão deu-lhe o seu poder, e
o seu trono, e grande poderio” (3)...
POVO:-
Escutai-o! Escutai-o! Deus fala por sua boca!
FRADE:-
“São espíritos de demônios, que fazem prodígios”, porque o Senhor também
advertiu que “da boca do falso profeta vi sair três espíritos imundos,
semelhantes a rãs”, (4) que são a traição, o perjúrio e a blasfêmia!
POVO:-
Queimai o traidor! Queimai o falso profeta!
SAVONAROLA:-
Não vos peço clemência! Peço-vos justiça. Sobre vossos ombros recairá a
maldição de condenardes um inocente. Dediquei minha vida a orar por vós...
Minhas preces mantinham o demônio distante dos muros desta cidade! Mas eis que
agora já pressinto os seus passos, já vejo queimar o ar o bafejo de seus
impropérios! Sobre vós recairá a ira do Senhor! Nem mil dias se passarão antes
que vos arrependais de vossos atos!
POVO:-
Que viva o profeta! Que viva o profeta! Morra o profeta! Queimai-o! Enforcai-o!
INQUISIDOR:-
Basta! Profiro a sentença: que seja o réu injuriado de suas vestes sacerdotais
e enforcado como exemplo de traidor e seus restos queimados, para que não
restem sobre a terra vestígios de sua existência!
Enquanto o levam para o patíbulo, Savonarola recita
trechos da Bíblia.
SAVONAROLA:-
“Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas
transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. Lava-me completamente
da minha iniqüidade, e purifica-me do meu pecado... Os sacrifícios para Deus
são o espírito quebrantado; a um coração quebrantado e contrito não
desprezarás, ó Deus. Abençoa a Sião, segundo a tua boa vontade; edifica os
muros de Jerusalém. Então te agradarás de sacrifícios de justiça, dos
holocaustos e das ofertas queimadas; então se oferecerão novilhos sobre o teu
altar.” (5)
Savonarola é enforcado e seu corpo atirado à fogueira. O
povo a tudo acompanha aos gritos.
Intervenção do bobo.
BOBO:-
Arrgh! Esse cheiro de churrasco... vou ficar um bom tempo sem comer carne!
Ahaha! Escandalizaram-se com meu chiste meio grosso? Ou riram porque ele vos
provocou a moral escondida em vossas entranhas? Nós, os bobos, somos assim:
dizemos em alto e bom som aquilo que não ousam sequer pensar os moralistas.
Mas, quando o dizemos, são eles, os moralistas os primeiros a rir. Pensam que
riem de mim, que sou ridículo nestas vestes ridículas, mas na verdade riem de
si mesmos. E rir de si mesmos sem o saber é o riso mais debochado que podem
soltar os homens. Portanto, riam, riam do pobre Savonarola que virou churrasco
por ordem do papa... Porque era assim... ou melhor, é assim, que se resolvem as
coisas nesse meu tempo louco... E eu sei que em vosso tempo também... Enquanto
isso, vejam que cena comovente: o historiador dorme! Essa gente não tem
coração, mesmo!
Cena 8
Enquanto
apagam os últimos clarões da fogueira, em seus aposentos, Maquiavel está
adormecido sobre a escrivaninha. Nietzsche sacode-o violentamente, para
acordá-lo.
NIETZSCHE:- Que droga de historiador és tu! Acorda!
MAQUIAVEL:- Hã?... Como?... Quem ousa?...
NIETZSCHE:- Toma! Bebe um pouco de vinho...
MAQUIAVEL:- Não... não é vinho do Vaticano, pois não?...
NIETZSCHE:- Não. Não é “batizado”: não há motivo para que
queiram envenená-lo. Não, por enquanto.
MAQUIAVEL:- Que queres dizer?
NIETZSCHE:- Nada. Bebe o vinho e come um pouco desse pão, para
acordar. Não viste o espetáculo?
MAQUIAVEL:- Que espetáculo? Eu...
Nietzsche
aponta os homens apagando a fogueira.
NIETZSCHE:-
Cristão queimando cristão... Esse o espetáculo que tua cristandade nos oferece,
ó Nicolau! Que trágico fim para um homem que, apesar de seu fanatismo
apocalíptico, reergueu Florença, atraiu pintores, escultores, artistas e deu
voz ao povo...
Maquiavel
engasga um pouco com o pão e o vinho, limpa a boca e ergue-se da cadeira,
furioso.
MAQUIAVEL:-
Estais cego, ó pseudo-filósofo do século XIX! Há moralismo em vossas palavras!
Vede diante de vossos olhos a história acontecendo...
NIETZSCHE:-
Há história e história, meu caro Maquiavel... Sabes que no século XXI,
Savonarola pode tornar-se santo? O que vimos...
MAQUIAVEL:-
Santa ignorância! Olhastes para o homem errado. Savonarola podia ser, sim, um
sábio... ou um santo, apesar de seus desatinos, mas devíeis ter olhado para o
trono papal... não exatamente o trono... para o seu lado... um jovem de olhar
brilhante e uma grande, enorme cobiça... Esse o meu príncipe! Aquele que há de
unir os inúmeros reinos da Romanha sob uma só batuta – o filho de Alexandre VI!
NIETZSCHE:-
Até agora, só vi o teu herói pela lente da luxúria e da fortuna... a imensa
fortuna de seu pai... Vamos, bebe um pouco mais do vinho papal, desculpe, desse
bom vinho...
MAQUIAVEL:-
E tu? Não bebes também?
NIETZSCHE:-
Não. Não posso. No asilo de onde venho, dão-me fortes remédios para minha
doença... Não ouso misturar com vinho...
MAQUIAVEL:-
Doença? Que tendes?
NIETZSCHE:-
Nada... apenas uma indisposição... física e mental... Mas, como ias dizendo...
MAQUIAVEL:-
Olhai melhor, senhor Nietzsche, olhai com olhos de ver e enxergar: Savonarola
era uma pedra no tabuleiro de xadrez que é a Romanha... Itália, para entenderdes
melhor... uma simples pedra a ser removida... Além da fortuna, César Bórgia tem
o que chamo de virtú – o fogo e a
inteligência do homem, a astúcia da raposa e a coragem do leão... Vereis!
Vereis!
Cena 9
O frade Francisco de Apúlia dirige-se a César Bórgia,
ajoelha-se e beija seu anel.
FRADE:-
Fez-se justiça, meu Senhor... Minha missão está cumprida.
CÉSAR:- Não, meu prezado frade: não se fez justiça ou injustiça.
Fez-se aquilo que devia ter sido feito. Sou-vos grato. E Deus vos reservou
ainda mais uma graça: sois o último homem sobre a face da terra a beijar este
anel. Vou devolvê-lo ao Papa... a meu pai...
César serve uma taça de vinho ao frade. O bobo, num
canto, faz sinais desesperados para que ele não beba. Depois, sai desanimado.
CÉSAR:- Sou um soldado,
não um cardeal... Tomai o vinho! O sangue do Senhor na Santa Missa faz que o
homem se aproxime ainda mais de seu criador. Rezarei por vós, pela Romanha e
por mim...
O frade sorve com prazer o vinho. Dá alguns passos para
retirar-se e cai morto. César Bórgia ajoelha-se e reza, enquanto o Bobo arrasta
para fora o corpo.
CÉSAR:-
Pai, oh! Meu Pai! Iluminai-me,
Pai! Minha alma treme ante anseios que não ouso confessar, meu Pai. Todos os
meus sentidos se inflamam ante a vida que meus olhos descortinam para mim.
Iluminai, meu Pai, a minha juventude, para que eu possa cumprir os vossos
desígnios: há, lá fora, um mundo dividido à espera de união, uma nação
estraçalhada à espera de um condutor... E sei que posso, Senhor, ser esse condutor.
Angustiam-me as paredes do palácio; arrepiam-me o farfalhar de vestes pomposas
e o suave cicio das intrigas, meu Pai. Fazei de mim o vosso instrumento de
poder e força, para que a vossa glória aqui na terra seja eterna. Senhor! Fazei
de meu sexo a espada pela qual se erguerá o vosso reino e serei, meu Pai
Eterno, o vosso guardião... Limpai minha mente de qualquer comiseração! Que eu
não hesite na confiança do Vosso Poder...
Sejam vossos os meus inimigos. Fazei-os tremer, Senhor, diante da nossa
espada! Amém.
Entra Lucrécia e atira-se a seus braços, chorando.
CÉSAR:- Minha querida irmã... o que pode tê-la ferido, meu
amor?... Diga, não posso admitir que tão lindos olhos chorem por qualquer
motivo que seja...
LUCRÉCIA:- Tenho medo, meu irmão... muito medo...
CÉSAR:- Minha criança... medo de quê? Acaso não está feliz com o
casamento?
LUCRÉCIA:- Meu marido... meu futuro marido é muito velho, meu
irmão... Há uma vida que eu não conheço... não quero deixar você, não quero
deixar papai... o futuro...
CÉSAR:- O futuro só a Deus pertence, meu amor... Mas seja o que
for que ele lhe reserve, eu estou aqui para protegê-la. Sempre! Ninguém que
ouse fazer-lhe qualquer mal haverá de sobreviver... Isso eu juro... por mim,
por você, por nosso amor...
Beijam-se apaixonadamente.
Cena
10:
Sala
do trono. O Papa recebe Juan e nomeia-o gonfaloneiro dos exércitos papais.
César entra no meio da cerimônia.
PAPA:-
Ajoelhai-vos, meu primogênito! Com minha bênção, sois, agora, o comandante dos
exércitos de Deus, que vos delega a responsabilidade de multiplicar seus
territórios e derrotar nossos inimigos.
JUAN:- Juro, por
vós e por Deus, senhor meu pai, que cumprirei com juízo e perspicácia os
destinos de nossa Santa Madre Igreja...
CÉSAR:-
Juízo, meu irmão? Que juízo pode ter o braço que é frouxo ao erguer a espada?
Pai: a mim, que tenho a força do leão e a perspicácia da raposa e não o juízo
obscuro da coruja, devíeis confiar as tarefas do reino...
PAPA:-
Agrada-me e envaidece-me o vosso desejo de agradar-me. Sois jovem! Mas, a cada
um segundo o critério da tradição e da justiça. Pela tradição, a vós, meu filho
César, cabe o quinhão da fé. Tendes já o anel cardinalício e o poder sobre as
almas. Pela justiça, cabe o quinhão da força ao primogênito, a vosso irmão
Juan!
CÉSAR:-
Não contesto nem a tradição nem a justiça, meu pai, mas enganai-vos: não pode o
caçador levar à caça pombas em vez de falcões.
Os
dois irmãos se encaram com ódio. César dirige-se ao pai, tira o anel do dedo e
despe as vestes cardinalícias, depositando-as ao pé do trono.
CÉSAR:- A
vossos pés, meu pai, deposito todas as honras cardinalícias que me outorgastes.
Declaro-me livre para vos servir com o meu braço e com a minha espada!
JUAN:- Não te
servem menos o braço e a espada que a ambição e a língua comprida, meu caro
César...
CÉSAR:-
Desafias-me?
Cena
11:
A
cena toda apaga-se, exceto sobre César e Juan, que se encaram por alguns
segundos. Sacam as espadas e encetam uma dura luta, que deve durar o tempo do
diálogo entre Nietzsche e Maquiavel, que a acompanham de perto, às vezes se
desviando dos golpes dos contendores. O Bobo, usando um falo como se fosse um
microfone, segue os dois filósofos, numa espécie de coreografia em que eles
quase imitam os lutadores, na luta verbal que se estabelece.
NIETZSCHE:-
Por que olhas para o lado, como se nojo tivesses do que estamos vendo?
MAQUIAVEL:-
Preocupam-me as grandes questões da história, não sua mesquinha e trivial
realização. Não há nojo, nem júbilo: apenas a compaixão de quem vive sob as
leis do Senhor, e não deseja macular a fé no julgamento de ações que se
condenam no varejo, mas se justificam no atacado, senhor filósofo.
NIETZSCHE:-
Maquiavel, Maquiavel: não consegues disfarçar o teu entusiasmo pela ascendência
do príncipe, não é mesmo?
MAQUIAVEL:-
Vós também o admirais, senhor Nietzsche. Confessai-o.
NIETZSCHE:-
Não pelas mesmas razões que tu, meu caro. Sabes apenas de política e de
história.
MAQUIAVEL:-
E que mais importa a não ser a política e a história, para a grandeza do reino
de Deus aqui na terra e também no céu?
NIETZSCHE:-
Escuta, criatura: tens aqui, historicamente, um monstro. Espera: deixa-me
concluir. Tu vês apenas o homem político de Platão, ou, pior ainda, o servo de
um destino cristão que se cumprirá para glória de um Deus misericordioso, que
saberá prover o mais fraco com a justiça do mais forte. Mas enganas-te: não
pode o forte sentir misericórdia do mais fraco. Isso é degeneração! Isso é
força perniciosa e enfraquecedora do espírito humano. O cristianismo é isto: o
homem perde poder quando se compadece. Quando digo que César Bórgia é um
monstro, digo-o com a certeza de que, sem que ele mesmo o perceba, fazem-no
mover forças muito mais profundas que a simples necessidade histórica e
política de conquistas...
MAQUIAVEL:-
Um príncipe não conquista para si: ele é instrumento de uma razão superior que
o tornará poderoso. Mas esse poder só pode ser exercido para a redenção dos
homens que ele aparentemente oprime. Digo, aparentemente, porque não há
opressão quando ao príncipe são dadas a virtude e a ocasião. Moisés encontrou o
povo de Israel escravizado e oprimido pelos egípcios. Ciro encontrou os persas
descontentes com o império dos medas, que estavam amolecidos e efeminados pela
prolongada paz. Foram essas as circunstâncias que os levaram a tornar-se
líderes. Mas não o foram só pela sorte! Tinham valor, tinham virtudes. As
oportunidades apenas fizeram deles homens felizes, e sua excelente capacidade
fez com que sua pátria fosse nobilitada e se tornasse felicíssima.
NIETZSCHE:- Ah! Maquiavel, Maquiavel. Quanta moral
cristã escondem tuas palavras! Quanta vida sombria e dúbia sob argumentos de
sólida, mas totalmente inútil construção histórica! Falamos do mesmo fato com
objetivos diversos! Façamos o seguinte: tu vês o teu super-homem como uma força
de misericórdia divina para resgatar o homem; eu vejo o meu super-homem como
uma força de renovação da vida através da seleção natural. O teu super-homem
foi derrotado por circunstâncias históricas e ficaste com a imagem do devir, do
que poderia ter sido e não foi. Torçamos, então, a história. Estamos num
teatro! Somos nós os autores de toda essa farsa. Brinquemos um pouco de Deus e
façamos de César o vitorioso e não os seus inimigos e vamos ver o que acontece.
Topas?
César
fere Juan mortalmente. César, com o pé, desvira o corpo do irmão e certifica-se
de que ele está morto. Faz um gesto e alguns soldados aproximam-se, erguem Juan
e levam-no até o Papa, que o abençoa, e saem em cortejo fúnebre, entoando
cânticos em latim.
CORO:- “Agnus dei qui tollis peccata mundi, dona
miserere nobis
Agnus dei qui tollis peccata mundi, dona
miserere nobis
Agnus dei qui tollis peccata mundi, dona
pacem nobis” (6)
Intervenção
do bobo.
BOBO-: Deus me
livre e guarde...
Pai nosso que estais no céu...
Santa Maria, rogai por nós... Creio em Deus Padre e filho e Espírito Santo...
Só queria saber o que vai dizer o Maquiavel disso tudo... Fala aí, meu
historiador, fala... me dá, pelo menos, um motivo para eu não ir embora dessa
peça... Sou artista, meu amigo, minha alma é sensível... perder assim um
amigo... dois amigos... um assassinando o outro...
Leva
um safanão de Maquiavel e sai, chorando e fazendo micagens ao mesmo tempo.
MAQUIAVEL:- Nem mesmo em meus momentos mais delirantes
poderia sonhar a vitória de meu príncipe. Não! Não pode o homem brincar de
Deus: as conseqüências de tal fato são sempre desastrosas! Mas também não posso
fugir ao vosso desafio: por um instante apenas, neste teatro da vida,
demiurgos, sim, mas demiurgos de Deus e sob sua proteção, exercitemos nossas
teorias. Que César Bórgia se torne papa!
Cena
12:
Em
seguida à bênção do corpo do filho, cardeais entram e reúnem-se em torno do
Papa. Após beijar-lhe o anel, servem-se de vinho e entregam uma taça ao Papa,
que se mostra inconsolável. Todos erguem as taças, bebem o vinho, inclusive
Alexandre VI que, aos poucos vai fechando os olhos, amolecendo o corpo e cai
inerte aos pés do trono. Os cardeais se retiram em silêncio. Chega César, toma
o cadáver do pai e arrasta-o até o local onde serão feitas as exéquias do Papa.
CÉSAR:- Ontem mesmo, nesta
câmara... depositava aos pés de meu pai as vestes sacerdotais... O tempora! Oh!
Tempos! Ei-lo agora cadáver que carrego
e carregarei sobre os meus ombros, para cumprir um destino que seus assassinos
jamais suspeitariam. Eu, César Bórgia, sobre este corpo morto construirei o meu
império, um império de força e de grandeza para a glória da Igreja. Não
recuarei de meus intentos. Os inimigos de meu pai se tornarão meus servos e
comerão aqui, no fio de minha espada, ou terão a vida curta demais para
comemorar a sua morte...
Deposita
o corpo sobre uma mesa. Entram os acólitos, em procissão, seguidos dos
cardeais. Tomam o corpo do Papa e retiram-no. Voltam, em seguida, erguem a
César Bórgia e, aclamando-o como novo Papa, com cantos e hosanas, levam-no até
o trono. Ajoelham-se todos diante dele.
CORO:- Gloria Patri, et Fili, et
Spiritui Sancto. /Sicut erat in principio, /et nunc et semper, /et in saeccula
saeculorum, /amen.
CÉSAR:- Morto meu pai, não há
razão para que não volte atrás de minhas palavras e ocupe, segundo sua vontade,
o trono que ele dignificou. Serei, de agora em diante, o Papa Guerreiro e
Condutor de nossa Santa Madre Igreja ao destino de glória desenhado por Alexandre
VI! Sim, ungi-me, senhores cardeais. Ungi-me! Será o leão a minha insígnia e a
espada a minha cruz.
UM CARDEAL:- Um nome, Santidade... Um
nome para a história...
CÉSAR:- Apenas
César... Nada mais que César... Papa César... Serei o único!
CARDEAIS E ACÓLITOS:-
Oh! Impossível! Feres a tradição! Um Papa César?
CÉSAR:- Calai-vos
e ouvi! Serei apenas o Papa César, pois não há nome na tradição que se coadune
com meus princípios e com o longo pontificado que me espera... Se tenho apenas
vinte e dois anos de vida, tenho um século de sede de glória e poder!
Segue-se
a cerimônia de unção do Papa César: despem-lhe as roupas cardinalícias e,
entoando cânticos, vestem-lhe as túnicas papais. Por último, a mitra, colocada
por um cardeal mais antigo. Quando, porém, este ergue a mitra, a mão firme do
Papa detém o seu gesto. Há um instante de silêncio e consternação.
CÉSAR:- Há
um instante entre o gesto final e o passo sem retorno. Estais seguros de vossa
escolha? Quereis, realmente, César Bórgia como Papa? Não vos arrependereis logo
em seguida? Pensai: é vossa última oportunidade!
CARDEAL:- O processo
de vossa escolha transformou-se na fumaça branca que subiu pelas chaminés do
Vaticano. Não há outro caminho, César... Papa César... Não há retorno possível!
CARDEAIS:- Sim...
Sim... Não há retorno!
Um
grito – de Maquiavel – suspende e congela a cena.
MAQUIAVEL:- Esperai! Não posso... Não
podemos alterar os rumos da história!
NIETZSCHE:- Temes e tremes, senhor
Maquiavel! O desafio iniciou um processo inexorável: tivemos em nossas mãos o
destino e o usamos segundo nossas vontades. Deixa seguir a cerimônia: teu
modelo de príncipe traçará uma nova trajetória para tua Igreja, quiçá de fogo e
destruição!
César desvencilha-se dos cardeais, que permanecem
estáticos, e dirige-se a Maquiavel.
CÉSAR:- Nicolò...
Nicolò Machiavelli... Maquiavel... Meu filósofo... Viestes à minha coroação
para dar o testemunho à história!
MAQUIAVEL:-
Sim... Isto é, não... Meu senhor... Na verdade...
CÉSAR:- Apresenta-me
teu amigo. Filósofo como tu?
NIETZSCHE:-
Friedrich Nietzsche... Apenas um observador da história...
César
apresenta a Nietzsche a mão, para que ele beije o anel papal. Nietzsche, polidamente,
recusa o gesto.
CÉSAR:- Vens de terras da
Germânia, creio...
NIETZSCHE:- Da Prússia, senhor
Papa... E busco apenas navegar nas águas calmas do meu amigo Maquiavel para...
CÉSAR:- Stille Wasser sind tief... Stille Wasser sind tief!
NIETZSCHE:- Sim, águas claras são
profundas... Então, praticais o alemão?
CÉSAR:- O Espírito Santo fala
através de mim... em todas as línguas...
O Papa entra numa espécie
de delírio e, falando em várias línguas de forma quase ininteligível, volta à
posição anterior, para dar continuidade à coroação, ignorando os filósofos.
CÉSAR:- Mein Vater hat ein Haus... It is a very beautifull
house... O mio Dio, la mia casa é la
vostra casa... Dio mio... Je suis fidèle, mon Dieu, je suis votre servant...
comme le diable... comme le diable... Deus, qui corda fidelium Sancti Spiritus ilustratione
docuisti, da nobis in eodem Spiritu recta sapere et de ejus semper consolatione
gaudere. Per Christum Dominum Nostrum. (7)
CARDEAIS (retomando a cena):-
Per Christum Dominum Nostrum. Amem.
O Cardeal coloca a mitra na cabeça de César.
Há um instante de silêncio e todos se ajoelham diante do Papa.
CARDEAIS:- Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto.
UM CARDEAL:- Sicut erat in principio, et nunc, et semper
et in saecula saeculorum.
CARDEAIS:- Amem.
Serviçais entram com jarras e taças e servem
vinho a todos os cardeais, que brindam a César. Entram dançarinas quase nuas e
arma-se uma grande orgia, que se torna silenciosa quando Maquiavel se aproxima de Nietzsche e ambos
batem taças, num brinde, mas só Maquiavel bebe..
MAQUIAVEL:- A sorte está lançada... Atravessamos o nosso
Rubicão, senhor Nietzsche. Atravessamos o nosso Rubicão...
NIETZSCHE:- Não sejas trágico. Tudo isso é apenas o
nosso teatro. O nosso teatro de ilusões, saído de nossas mentes para nos provar
teses que nem mesmo sabemos se podem ser provadas.
MAQUIAVEL:- Podemos, então, manipular os acontecimentos
com nossas vontades...
NIETZSCHE:- Não. Não podemos. São fruto de nossa vontade
as personagens que tomam a cena, mas estão todas elas sob as leis da história e
da lógica histórica. Nós, seus criadores, não temos mais nenhum poder sobre o
seu destino. Quando as criamos, colocamos em seus interiores certas
características que as tornam ao mesmo tempo únicas e indômitas...
MAQUIAVEL:- O Criador, quando nos fez, também nos deu o
livre arbítrio.
NIETZSCHE:- Somos nós os criadores de nós mesmos,
Maquiavel.
MAQUIAVEL:- Vossas blasfêmias ainda vos levarão à
fogueira. Vamos, bebei o vinho e aproveitai a festa... Vamos dançar um pouco,
pegar umas mulheres...
NIETZSCHE:- Escuta, Maquiavel, meu amigo... Posso
chamá-lo assim, não posso? Ouve o que te digo: “à vista de uma cachoeira,
acreditamos ver nas suas inúmeras curvas, serpenteios, quebras de ondas, o
arbítrio da vontade e do gosto; mas tudo é necessário, cada movimento é
matematicamente calculável. Assim também com as ações humanas; como as águas de
uma cachoeira, deveríamos poder calcular previamente cada ação isolada, se
fôssemos oniscientes, e do mesmo modo cada avanço do conhecimento, cada erro,
cada maldade. É certo que mesmo aquele que age se prende à ilusão do
livre-arbítrio; se, num instante, a roda do mundo parasse, a cachoeira parasse
e pudéssemos enxergar uma inteligência onisciente, calculadora, a fim de
aproveitar essa pausa, ela poderia relatar o futuro de cada ser até as mais
remotas eras vindouras, indicando cada trilha por onde essa roda passará. A
ilusão acerca de si mesmo daquele que age, a suposição do livre-arbítrio, é
parte desse mecanismo que seria calculado.” (8) Portanto, meu caro,
deixemos a roda girar! Deixemos a cachoeira correr e tiremos nossas
conclusões... E sem fogueiras, por favor, sem fogueiras... Já me bastou o
triste espetáculo de Savonarola. Agora, mesmo que eu não possa beber do vinho
papal, vamos às mulheres!
O bobo deixa os convivas, toma a mão dos dois
filósofos e os conduz para a festa, que se torna, de novo, barulhenta, com
música, risos e tinir de taças.
Cena
13:
Sala de banquetes do Vaticano. Com pompa,
acólitos trazem o Papa, colocado sobre um andor. Cardeais o esperam. Depois de
ocupar o lugar de honra à mesa, convida os cardeais e faz um gesto para que
Maquiavel e Nietzsche também participem e os apresenta.
PAPA:-
Senhores, aqui estão o meu historiador oficial, senhor Maquiavel, e seu
secretário... filósofo... sei lá o quê...
NIETZSCHE:- Frederico Guilherme Nietzsche, senhor...
PAPA:-
Isso... Isso, mesmo... Veio lá da Germânia... Um bárbaro, talvez... Um bárbaro
que se diz filósofo...
Todos riem. O bobo ri com todos, num riso
forçado.
PAPA:- Sim,
meus caros cardeais, o momento é de alegria! Trago-vos boas novas de nossas
conquistas. Caiu o último reino! Florença está aos pés do Vaticano. A lembrança
de Savonarola está definitivamente enterrada... Aliás, queimada e muito bem
queimada!
Gargalhada dos cardeais. O Papa faz um sinal
e um serviçal entra com uma jarra de vinho e coloca-a sobre a mesa, sob os
olhares de todos.
PAPA:-
Sabeis, senhores, o que aconteceu com o último nobre florentino? Pois bem,
vou-lhes contar, em detalhes, que é chiste de primeira. Não lhes posso negar a
bravura do povo florentino. A luta foi encarniçada. Nossos exércitos
conquistaram casa a casa, até o último reduto: o palácio do governador. Quando
nos preparávamos, no entanto, para uma batalha renhida, eis que uma bandeira
branca, lá do alto da última janela, timidamente, a princípio, e depois assim,
de forma agitada e trêmula, como das mãos de quem estivesse possuído da doença
de São Guido...
O Papa, a essa altura, já sobre a mesa, imita
caricatamente o gesto de agitar a bandeira, para gozo dos presentes, e passa a
narrar em forma de pantomima. O bobo imita muitos dos gestos do papa.
PAPA:- E
então, adentramos o palácio, subimos as escadarias de mármore... Havia um
silêncio sepulcral... Parecia que o espírito de Savonarola flutuava no ar...
Arrebentamos portas a pontapé e o estrondo irrompia pelo espaço... Às vezes,
ouvia-se apenas o respirar dos soldados e o bater das botas sobre as alcatifas
e sobre o piso liso de mármore... E fomos subindo... Andar por andar... Até o
último, onde presumíamos que estivesse o braço que tão freneticamente agitava a
bandeira branca... Pelo longo corredor, caminhávamos em silêncio... Armas em
riste... Prontos para uma cilada... uma última tentativa desesperada de
reação...
O Papa faz uma pequena pausa, toma a jarra de
vinho e enche algumas taças.
PAPA:-
Chegamos à porta onde devia estar o indivíduo e sua bandeira branca...
Preparamo-nos... em silêncio... E com toda a força, enfiamos ombros, pés... e
derrubamos a porta... Estacamos... Silêncio absoluto... Parecia vazio o aposento...
um quarto enorme com uma enorme cama perto da janela... Um cheiro nauseabundo
nos fez tapar o nariz... Alguém fez um sinal: saindo de sob a cama, um pedaço
de pano branco, amarrado a um pau... Caminhei pé ante pé... Todos prontos para
cair em cima de quem quer que fosse que estivesse ali... Agachei-me... Peguei o
pau da bandeira devagar... e puxei... com toda a força... E veio, agarrado
àquele pau, o governador de Florença em pessoa... De ceroulas, senhores, de
ceroulas e touca de mulher... todo vermelho e... borrado... Borrado como um
bebê!
Todos riem e gargalham. O bobo imita-os. O
Papa enche mais algumas taças de vinho, enquanto espera que terminem de rir.
PAPA:- Isso
não é nada, ainda. Diante daquela cena patética, alguém deu a idéia e pusemos
logo em prática: atamos uma corda ao pescoço do governador, despejamos-lhe mel
sobre o corpo e, desfazendo alguns travesseiros, cobrimo-lo de penas... E
saímos com ele pelas ruas de Florença... Uma galinha... uma enorme e assustada
galinha... a cacarejar... assim... có-có-có...
Os cardeais riem e gargalham e rolam pelo
chão. O Papa diverte-se com eles e, enquanto espera que a calma volte, termina
de encher todas as taças com o vinho. Aos poucos, todos acabam se voltando para
as taças cheias sobre a mesa, olhando-as com desconfiança, embora alguns ainda
riem um pouco e outros até chorem de tanto rir.
PAPA:- Muito
bem, senhores... A Itália está unificada. Há um só governo. Há um só senhor. E
Deus é o soberano maior de todas as almas. Gratiae plena.
CARDEAIS:- Gratiae plena!
PAPA:- A
espada e a cruz estão definitivamente unidas para a glória de Deus!
CARDEAIS:- Gloria! Glória a Deus nas alturas!
PAPA:- Nossos
exércitos deram provas de coragem... de dedicação a Deus e ao Papa... E agora,
senhores, o Papa vos pede, também, uma prova de coragem: erguei as vossas taças
e bebei do vinho que há nelas! Para um brinde ao triunfo de nossa Santa Madre
Igreja!
Há um silêncio constrangedor. Todos erguem as
taças e olham para elas com terror. O Papa solta uma grande gargalhada.
PAPA:- Bando
de covardes! Depois de mil batalhas, em que meu braço direito ergueu a pesada
espada da união e meu braço esquerdo, o mais caro símbolo de fé, a cruz do
Senhor, para derrotar mil inimigos, vós temeis e tremeis diante de uma taça de
vinho! Senhores, olhai para mim... Alexandre VI – meu santo e glorioso pai –
não mais se encontra entre nós... Sim, sou seu filho... Mas o tempo do veneno,
das poções terríveis que acabaram levando meu santo pai, esse tempo acabou...
Nada de veneno... Tomai em paz o vosso vinho... Vede... Tomo-o eu, primeiro...
Toma a taça de alguns cardeais e prova o
vinho. O bobo faz os mesmos gestos, mas não bebe o
vinho.
PAPA:-
Vistes? Nada. Estou são. E sóbrio! Não tendes em vosso corpo mel e penas de
galinha, não é mesmo?
Todos riem muito, com o chiste do Papa.
Erguem as taças e bebem. Abraçam-se, felizes e sentam-se à mesa a uma ordem do
Papa.
PAPA:- Muito
bem, senhores! Vejo que rides e estais felizes... Melhor assim... O riso pode
ser o melhor bálsamo para curar todas as feridas do caminho rugoso que leva ao
paraíso... Guardas! Entrai!
O bobo sai correndo e desaparece. Avança a
guarda papal, de armas em riste.
PAPA:- Matai-os!
Matai-os todos! Degolai os covardes... Degolai-os!
Os guardas passam a fio de espada todos os
cardeais.
PAPA:-
Morreram sorrindo... com meus ditos... com meus chistes. O caminho para o
paraíso será mais suave para eles, com certeza!
Cena
14:
O Papa retira-se. Enquanto os guardas
carregam os corpos degolados, Maquiavel e Nietzsche aproximam-se de um ou outro
cadáver.
MAQUIAVEL:- Este... este era o Cardeal Palermo, grande
latinista... E este, conheci-o muito, grande envenenador e estrategista. Teve
onze filhos homens, todos soldados do exército de César... E aquele ali, morreu
esperando a nomeação para a Secretaria Geral do Vaticano. Era o braço direito
de Alexandre VI... Não estão aqui todos os cardeais: César trucidou apenas os
que podiam fazer-lhe alguma oposição, aqueles em que ele não confiava...
NIETZSCHE:- Teu herói uniu o Estado e, agora, coloca sua
última pedra nesse edifício medonho. Ele acha que o seu deus irá se rejubilar,
mas, na verdade, está César servindo a um deus muito mais cruel e estúpido: o
Estado. Ele, sim, o estado totalitário será a besta capaz de levar o homem a
uma situação de barbárie muito além do paganismo. (9)
MAQUIAVEL:- São blasfemas, ainda uma vez, as vossas
palavras, senhor Nietzsche. Não pode o Papa destruir o que lhe dá sustentação.
Não mata o lavrador a galinha que lhe dá os ovos, mesmo não sendo de ouro esses
ovos.
NIETZSCHE:- E tu estás, novamente, possuído pelo
espírito do historiador, que só vê os fatos e os analisa à luz de crenças, de
movimentos de causa e efeito, de transformações e intenções conduzidas pela mão
do destino, por uma divindade que puxa os cordéis da solidão humana. O homem,
senhor, Maquiavel...
MAQUIAVEL:- Calai-vos, por Deus, calai-vos! Não vedes a
história a desenrolar-se sob o vosso nariz e vindes falar de solidão? Quem sois
vós, ó pretenso filósofo de uma era de pecados! Quem sois vós, para falar de
Deus?
NIETZSCHE:- Tu, como todos de tua espécie, esperas que
eu decrete a morte de Deus, para, então, injuriar-me e, quem sabe, pendurar-me
num madeiro em cima de uma fogueira, como um Savonarola estúpido e ateu? Não,
senhor Maquiavel, não decretarei jamais a morte de teu deus. Os seguidores
dele, sim, chorarão sobre os seus escombros e sobre o seu cadáver. Não eu,
senhor Maquiavel, não eu!
Intervenção do bobo.
BOBO:- Parece que o filósofo de nome esquisito não gostava de Deus!... Cruz,
credo... Mas o meu amigo Maquiavel também não é lá flor que se cheire... Enfim,
eles são o que são e que se entendam... Vamos ver o que se passa com César...
com o papa... O Vaticano está a seus pés, mas não são os arroubos de
puxa-saquismo explícito dos cardeais que o papa deseja... Seu corpo ferve...
seu desejo, ah! E que desejo desesperado é esse, que faz levantar para a luta o
pequeno papa que ele trazia meio adormecido entre as vestes? Devo estar a
postos para ajudá-lo... embora saiba que em negócios de paixão, cada um sabe
como lhe apertam os culhões...
Cena
15:
Sala do trono. César anda de um lado a outro,
preocupado e ansioso. Ajoelha-se diante de uma cruz e parece rezar por um instante.
Depois, procura um manto e cobre a cruz.
PAPA:- Ah, o
momento sublime se aproxima. O momento do encontro tão desejado por meu corpo,
por meu espírito. Pai, ó meu pai, santo Alexandre, que um dia nos uniu para
sempre! Freme o meu peito em pensar nela, meu santo pai... Angustiam-me os
pensamentos de quantos dias e meses fiquei sem sua presença! E ela, sem mim. Em
outros braços, meu pai, que jamais poderão lhe dar o mesmo aconchego e a mesma
proteção que os meus... Mas, agora, nada há que ameace o nosso amor!
Entra o bobo. Procura fazer-se de sério.
SERVIÇAL:- Santidade, a guarda anunciou a presença...
PAPA:- Se não
for ela, se não for a minha Lucrécia, não estou!
BOBO:- Uma senhora... belíssima. Perdão, Santidade. Diz ser importante vê-lo!
PAPA:- Uma
senhora? Jovem? Belíssima?
BOBO:- Envolta em longos e belos trajes negros.
PAPA:- É ela!
O que fazes aí parado, miserável! Vai buscá-la... Faze-a entrar imediatamente!
Sai o bobo e, logo depois, entra uma mulher
toda de negro. Um véu cobre-lhe o rosto. César fica extático por um segundo e
lança-se a seus pés.
PAPA:- És tu,
minha amada? És tu? Ninguém mais teria esse porte de rainha, de deusa!
Lucrécia levanta o véu e sorri, feliz.
LUCRÉCIA:- Sim,
meu irmão... meu amante querido. Impossível enganar-te, não é mesmo?
PAPA:- Teu
cheiro... tua pele macia... teu andar... tudo te denuncia, Lucrécia. Vem, vem
para os meus braços... Seremos felizes, agora, para sempre.
LUCRÉCIA:- Há
mentes sujas no Vaticano que não permitirão, mais uma vez, a nossa felicidade,
meu querido... Não achas...
PAPA:-
Cala-te! Nada sabes. Nosso caminho está livre. Eu venci a todos.
LUCRÉCIA:- As
leis de Deus, meu irmão, as leis de Deus condenam nosso amor...
PAPA:- Deus?
Oh! Minha bela! Já nosso pai o proscrevera há tempos desses corredores, dessas
salas imensas, desse palácio! E eu? Eu o fiz correr para longe, para bem longe
daqui. Minha espada expulsou-o definitivamente de nossas vidas... Agora, o
único deus aqui sou eu! Veja!
O papa, num gesto brusco, despe a longa
túnica branca e, nu, apresenta-se a Lucrécia.
PAPA:- Vê!
Há, sim, algumas cicatrizes sobre meu corpo... Inimigos terríveis ousaram
tocar-me... Mas estou inteiro, Lucrécia, minha amada. Inteiro! Para ti. E ainda
belo, não vês? Não há mais nada que possa se interpor entre mim e ti. Eu sou o
teu deus e tu, minha irmã, serás a rainha... Não: serás a deusa suprema de uma
nova era! Vem! Ama-me com todo o teu calor!
LUCRÉCIA:-
Quero-te muito, César, quero-te como o bem mais supremo da vida. E sei o que
digo depois de tudo que passei... longe de ti. Mas...
PAPA:- As
vicissitudes por que passaste, minha bela, não apagaram a lembrança de nosso
pai, não é mesmo? Não te esqueceste de suas palavras quando nos uniu...
LUCRÉCIA:- “Assim
somos nós, os Bórgias”! Assim somos nós...
PAPA:- E não
há pecado que recaia sobre nós... Porque nós somos assim!
Lucrécia e César abraçam-se e beijam-se
apaixonadamente. Enquanto ela se despe, lentamente as luzes se apagam.
Cena
16:
Foco sobre os amantes, num leito, depois do
amor. Acariciam-se. Entram Nietzsche e Maquiavel, que se esmera em salamaleques
ao Papa. Tenta, mesmo, beijar-lhe o anel, mas o Papa o repele.
MAQUIAVEL:- Vós nos chamastes, Santidade, e aqui estamos
para vos servir.
PAPA:- Deixa
de cerimônias, Maquiavel. Aqui, na minha câmara nupcial, no meu leito de amor
com minha Lucrécia, não precisas te esmerar em salamaleques que cabem na corte
dos fracos senhores que se deixam levar pelas bajulações de seus servos. Sim,
mandei chamar a ambos. Quero um conselho.
O papa levanta-se e veste a longa túnica
branca, enquanto Lucrécia se ajeita preguiçosamente no leito, deixando entrever
um pouco de sua beleza aos olhos espantados de Maquiavel. O papa percebe e
sorri, para desconforto do historiador, que baixa a cabeça e tenta disfarçar.
PAPA:- Tenho
um problema de foro íntimo e de ordem prática. E vou direto ao assunto. Há, lá
fora, uma multidão de miseráveis – leprosos, aleijados, cegos, mancos,
deformados, enfim, homens, mulheres e crianças de toda espécie... Ouvi!
O papa abre uma janela e um alarido de vozes
e lamentos toma conta do aposento. Fecha-a com força.
PAPA:- Correu
sobre a Itália a força de minha espada, de meu poder. E esses miseráveis
acreditam que, se eu sou tão forte e poderoso a ponto de me tornar o senhor do
céu e da terra, posso também curar-lhes as mazelas... Com minha bênção! O que
devo fazer? Podeis vós, meus caros senhores, dizer-me o que fazer?
Há um instante de estupefação. Maquiavel e
Nietzsche se entreolham.
MAQUIAVEL:-:-
Santidade... (tosse um pouco,
desconfortável). Santidade... Sei... sei... que...
PAPA:-
Desembucha, homem de Deus! Onde o tribuno de palavra fácil, cuja fama atravessou
os muros de Roma?
MAQUIAVEL:- É que...
NIETZSCHE:- Não te conformas, não é Maquiavel? Não te
conformas que teu amado príncipe esteja à tua frente com todo o seu poder, a
realizar tudo quanto teu desejo desesperado de historiador impunha à tua mente estreita.
Vamos, aplica, agora, os teus conhecimentos, as tuas teorias administrativas e
defende o poder absoluto! Ou irás tomar o partido da seita que prega um mundo
governado pelos humildes, pelos fracos, pelos pobres de espírito?
MAQUIAVEL:- Santidade: nas minhas...
nas minhas observações... nas minhas anotações... um principado eclesiástico...
digo, um estado...
Entra o bobo com uma jarra de vinho e quatro taças.
O papa toma a jarra, enche as taças e oferece uma a Maquiavel, que sorve
inteiro o seu conteúdo, num só gole.
PAPA:-
Tendes coragem, não há dúvida, meu caro historiador... Nenhum de meus cardeais
ousaria beber, com tanta sede, o vinho do papa...
Enquanto
Maquiavel se recupera do susto, Nietzsche toma também de uma taça e leva-a até
Lucrécia. Volta-se para o papa e propõe-lhe um brinde.
NIETZSCHE:- Não manda o teu deus que bebamos o seu sangue? Então, brindemos a ele e
aos miseráveis que ousam interromper o belo idílio papal!
Tocam
as taças, num brinde. O papa esvazia a taça, feliz, enquanto Nietzsche não toca
no vinho e coloca sua taça sobre a mesa.
PAPA:- Já que Maquiavel se engasgou com a dúvida, passo-a a vós, meu caro
filósofo cujo nome nunca me lembro... O que me dizeis?
NIETZSCHE:- Tens a cruz e a espada, César. A cruz fornece-te milhares, talvez
milhões, de desesperados, de gente fraca e humilde que, segundo o deus que
defendes e que morreu nessa mesma cruz, herdará a terra. E eu te digo, César,
que a terra será, então, o próprio inferno.
PAPA:-
Não entendo vossas palavras...
MAQUIAVEL:- Não lhe deis ouvidos, Santidade. Não serão dos filósofos as últimas
palavras, mas sim daqueles que perscrutam a história e buscam no homem a
centelha de Deus...
NIETZSCHE:- Estás diante de um deus, senhor Maquiavel... Ainda agora o viste
declarar que correu com essa divindade a que tanto te apegas para longe, muito
longe de seus domínios... O homem, senhor Maquiavel, o homem é o seu próprio
deus!
Maquiavel
descobre com ímpeto a cruz e ajoelha-se diante dela.
MAQUIAVEL:- Perdão, meu Senhor, perdão por permitirdes que meus ouvidos ouçam
tamanha heresia...
PAPA:-
Divertem-me as vossas picuinhas, senhores. Mas, de nada me servem dois
conselheiros que, por se atracarem em defesa de idéias contrárias, não trazem
luz às dúvidas ordinárias que vos proponho... Continua lá fora a horda de
deserdados a encher meus ouvidos com suas lamentações...
Maquiavel
tenta recompor-se, servindo-se de um pouco mais de vinho.
PAPA:-
Pelo que vejo, nosso Maquiavel perdeu de todo o medo de mim...
MAQUIAVEL:- Santidade: há muito venho estudando como um príncipe pode conquistar e
manter o poder. Nas minhas observações, contudo, poucas vezes me deparei com
uma situação tão... tão... privilegiada. Vós tendes em vossas mãos o poder
espiritual, que emana de Deus, e o poder temporal, que conquistastes com vossa
espada. Veneza, Florença e todas as demais cidades onde encontrastes alguma
resistência, vós as destruístes e subjugastes. O poder dos Orsini e dos
Colonna, que entre si terçavam armas e, por isso, enfraquecia o vosso poder,
vós anulastes, com a morte ou o exílio dos contendores. Um outro ponto fraco,
nessa conjunção, seria – perdoai minha franqueza – a brevidade da vida do
pontífice, algo em torno de dez anos, tempo insuficiente para apenas
enfraquecer uma das facções, quando há disputa pelo favor do papa. Mas vós sois
jovem e tendes um longo pontificado pela frente. Dentre os poucos e possíveis
inimigos, vós soubestes nomear vossos cardeais, calando os barões que são
obrigados a sustentá-los e defendê-los, deixando, assim, que a ambição cause
discórdia e tumultos entre eles, enfraquecendo-os. Portanto, Vossa Santidade
tendes um pontificado potentíssimo e espera-se que, se vós o fizestes pelas
armas, ainda maior e mais venerado vos tornareis se também o fizerdes pela
vossa bondade e por outras infinitas virtudes.(10)
PAPA:-
De toda essa vossa arenga, devo concluir que o meu poder se renda à bondade e
acolha os miseráveis, conforme a santa doutrina...
MAQUIAVEL:- Assim o ouvistes, Santidade. Para a glória de Deus Pai, Filho e
Espírito Santo, amém.
PAPA:-
E vós, filósofo da Germânia? Calai-vos?
NIETZSCHE:- O cristianismo, César, ouve bem: o cristianismo baseia sua fé num deus
vingador, na pecaminose universal, na predestinação e no perigo da danação
eterna. Um cristão, portanto, seria imbecil se não se tornasse padre, apóstolo
ou eremita e trabalhasse com temor e tremor unicamente pela própria salvação,
porque seria absurdo perder o benefício eterno em troca da comodidade temporal.
No entanto, o cristão comum é um ser deplorável, que constrói um mundo de
fracos e infamantes, um ser que não sabe contar até três e que, justamente por
sua incapacidade mental, não mereceria ser punido tão duramente por sua
estupidez em não aceitar as mazelas que um deus colocou a seu alcance para
atingir a salvação.(11) No entanto, César, somente atingirá o homem
a sua verdadeira condição, quando superar os medos e as superstições, quando
não mais se deixar escravizar a regras e leis ditadas por costumes
embrutecedores que só o enfraquecem e o jogam num mundo de fracos e oprimidos
de um deus também fraco, preso a um madeiro.
O
papa sorve um pouco do vinho, olha por instantes para um e outro, dirige-se até
o leito e toma pela mão a Lucrécia, que se levanta envolta num lençol, e
coloca-a entre os dois contendores.
PAPA:-
Minha amada irmã, ouviste as longas algaravias históricas e filosóficas desses
ilustres homens. No entanto, nem toda a sabedoria, nem toda a verve de suas
palavras me permitiram chegar a uma conclusão que decidirá o destino de meu
pontificado e de meu governo: abro os meus palácios e os meus braços para os
pobres e oprimidos ou, ignorando seus lamentos, reúno um exército de homens
fortes e poderosos para conquistar o mundo?
Anjo ou demônio? Como me vês tu, irmã adorada?
LUCRÉCIA:- Ambos teceram fortes ponderações, meu amado, e tem cada um a sua dose
de razão. Como esse vinho que tanto apreciamos: a um, poderá parecer frutoso e
suave; a outro, avinagrado e seco. No entanto, a despeito de suas qualidades, o
vinho embriagará a ambos, porque é da natureza do vinho embaçar a mente e
alegrar os sentidos. Tu, meu querido irmão, és o vinho que se renova e renova a
história e, como o provaste há pouco em nosso leito nupcial, tens a alma e o
apetite do leão. Tua decisão já está tomada em tua cabeça. A mim caberá seguir-te,
apenas.
O
papa volta-se para Maquiavel e coloca Lucrécia diante dele.
PAPA:-
Há pouco, quando entraste, meu querido Maquiavel, não pudeste deixar de
perceber um naco do corpo desnudo de Lucrécia. Baixaste os olhos. Não sei se
por medo de mim ou por medo de ti mesmo. Não foste capaz de encarar a verdade
nua que se escondia sob os lençóis de meu leito. Abra bem os teus olhos, agora,
e contempla-a, porque pode ser que outra beleza igual nunca tenhas a
oportunidade de ver.
O
papa despe Lucrécia, por alguns instantes, diante do olhar arregalado de
Maquiavel e da indiferença de Nietzsche.
PAPA:-
Chega desse teatro ridículo. Cubra-te, meu amor. GUARDAS! GUARDAS! Onde diabo
está essa minha guarda?
Entra
a guarda papal.
COMANDANTE:- Às vossas ordens, Santidade!
PAPA:-
Expulsai essa multidão que aí está. Aos renitentes, que não quiserem sair,
prendei-os ou degolai-os, o que for mais fácil. Agora ide.
Volta-se para Maquiavel e Nietzsche. Pega
a taça que Nietzsche havia deixado cheia. Sorve-a com prazer, olhando
zombeteiramente para o filósofo.
PAPA:-
Como vedes, assim somos nós, os Bórgias!
Intervenção
do bobo.
BOBO:- Ai de mim, que vejo luxúria e gozo... e não posso gozar!
Ai de mim, que sirvo vinhos preciosos e olorosos... e
não posso beber! Que fiquem cegos os meus olhos, para não ver a beleza de minha
ama! Que se feche a minha boca, para não provar o néctar das adegas do papa!...
Epa! Que estou dizendo? Se me ouvem, me cortam a língua e me fazem beber
daquelas garrafas marcadas com... com... a caveira... a caveira da morte...
Deus me livre e guarde... Creio em Deus padre!
Mas... mas... o que faz a minha ama naquele beco escuro? Vai arrumar
encrenca... Ama! Ama! Dona Lucrécia!
Cena
17:
Beco sombrio de Roma. Noite. Lucrécia,
envolta num manto, acorda com o pé um mendigo - o Mulo - que dorme enrolado em
trapos.
MULO:- Quem... quem... me acorda, assim? Maldição! Não pode um miserável
expulso por César dormir em paz nesta cidade maldita? Mil vezes maldição!
LUCRÉCIA:-
Calai-vos! Ou quereis atrair toda a guarda de César para este buraco imundo!
Calai-vos! E ouvi o que vos proponho.
MULO:- Não quero comida, dona...
Nem panos novos para me cobrir... Estou bem assim e quero apenas dormir...
LUCRÉCIA:- Não vos trago esmolas, mas um bom dinheiro... Se fizerdes o que eu vos
pedir...
MULO:-
Dinheiro? A dona falou em dinheiro? Ah... mas eu prefiro ouro... O dinheiro que
corre em Roma é sujo, é dinheiro de César...
LUCRÉCIA:- Ouro, o que vos trago... Mais do que merecereis por toda a vossa vida
miserável. Escutai: sei que tendes sobre os demais mendigos e miseráveis grande
poder. Então, tomai desse ouro e ide... E dizei a todos que uma nova santa está
a protegê-los e a defendê-los... Que é preciso erguer altares e preces a ela...
e queimar incenso... E fazei que todos acreditem em vossas palavras e nos
milagres que esta nova santa deverá fazer pelos miseráveis... E de onde saiu
este ouro, muito mais poderá correr para vossas mãos... para o culto... e para
os milagres!
MULO:- Beijo vossas mãos... Vós é que já sois a santa de minha devoção, acima
de todas que estão nos altares do Vaticano... Mas... que santa é esta a que
devemos todos nós, mendigos e miseráveis, prestar tanta homenagem?
LUCRÉCIA:- Santa... Santa Lucrécia... Apenas isto: Santa Lucrécia!
Cena
18:
Vaticano. César, diante de mapas, discute
estratégias com seus generais, acompanhados de Maquiavel e Nietzsche.
PAPA:- Se
atacarmos imediatamente, teremos o elemento surpresa a nosso favor.
GENERAL 1:- Mas contaremos com menos soldados, Santidade. Precisamos
aumentar nossos efetivos...
GENERAL 2:- E motivá-los... Um soldado com o soldo em dia vale por
cinco outros que tenham a barriga vazia e o bolso furado!
PAPA:-
Dinheiro, senhores, não é o problema. Chegou aos meus ouvidos que foi pouco o
que liberei da última vez, quando, segundo os cálculos de meus tesoureiros,
daria para pagar a três exércitos e meio!
O papa oferece duas taças de vinho aos
generais. Eles erguem-nas, num brinde a César, mas não bebem.
PAPA:- O que
me dizeis, senhores? Devo confiar nos cálculos de meus tesoureiros ou nas
informações de meus generais?
GENERAL 1:- Tivemos de contratar mercenários, Santidade.
GENERAL 2:- E mandar forjar mais espadas e escudos, Santidade.
GENERAL 1:- E comprar mais alimentos...
GENERAL 2:- E providenciar alojamentos...
PAPA:- Tudo o
que vós dizeis foi devidamente calculado e acrescentado como gastos... Mas as
contas não fecham, senhores... Ainda assim, faltou o valor de mais de um
exército! Vamos, bebei o vinho... Foi a melhor safra de meus vinhedos.
Os generais levam as taças aos lábios, mas se
detêm.
GENERAL 1:- Há uma conta oculta, Santidade...
GENERAL 2:- Que não devemos falar na... frente... de... estranhos...
PAPA:- Ora,
Maquiavel e o filósofo germânico nada podem revelar do que aqui se passa,
senhores... Eles prezam, acima de tudo, as suas cabeças privilegiadas.
GENERAL 1:- Tivemos de dar propinas a fornecedores, dada a urgência
de pedidos...
GENERAL 2:- E calar a boca de nobres que tiveram desapropriadas suas
chácaras e vilas para alojamento das tropas...
PAPA:- Muito bem,
mesmo assim, ainda falta quase meio exército em nossos cálculos... O que é uma
quantia considerável!
GENERAL 1:- Santidade!
GENERAL 2:- Nossa lealdade...
O papa solta uma gargalhada, toma a taça de
cada um deles e prova um pouco do vinho.
PAPA:- Agora,
bebei... Sei que tive sempre a vossa lealdade... E a terei ainda por muitos
anos... enquanto as burras do Vaticano verterem ouro para vossos bolsos!
Os dois generais sorvem gostosamente o vinho,
beijam o anel papal e dão alguns passos para retirar-se, quando um deles cai
morto.
PAPA:- Meu
caro general, vós mereceis a minha confiança... Na vossa taça, o vinho
misturado ao antídoto... Na outra, não preciso dizer-vos: sobrevivestes. Agora,
ide e trazei-me os planos detalhados da próxima campanha! O mundo começará a
sentir o poder da espada de César.
NIETZSCHE:- Ouvi, meu caro Maquiavel:
em determinadas circunstâncias, quase todo político tem necessidade de um homem
honesto que , como um lobo faminto, irrompe num redil: não para devorar o
cordeiro que rapta, mas para se esconder atrás de seu dorso lanoso.(12)
MAQUIAVEL:- Delirais, de novo,
filósofo. Não alcanço o significado de vossas palavras...
NIETZSCHE:- Não te apoquentes...
Apenas me ajuda a arrastar para fora de nosso insensato palco mais esta vítima
de teu amado príncipe...
Intervenção do bobo.
BOBO:- Para meu amo César, não há dois pesos e
duas medidas: escreveu, não leu, o pau comeu... Ou melhor, o vinho fodeu!
Cardeais, generais... todos gemem em distintos ais... Mas todos comem – uns menos,
outros mais – aqui... aqui, não... ali, nas mãos papais... Eu disse: na mão do
papa e não mamão papaia... Que não se enganem vossos ouvidos... que devem estar
atentos à cena seguinte, quando Lucrécia usará de todo o seu poder de
sedução... Vejam!
Cena
19:
César fica só. Entra Lucrécia.
LUCRÉCIA:- Vim
para tirar-te dos horrores da guerra para os prazeres de meus braços. Vamos,
beija-me. Quero-te tanto... Posso pedir-te um favor? Jura que faz o que eu te
pedir? Jura?
PAPA:- Se
existe o paraíso, está em teus braços, minha irmã... Queres a Germânia? Minhas
tropas arrastarão para ti cada bárbaro que encontrar... Queres a França? Serás
aclamada rainha na corte dos luíses...
LUCRÉCIA:- Não...
Quero algo simples... Bem simples... Uma capela...
PAPA:-
Capela? Não te entendo... Construirei para ti uma catedral...
LUCRÉCIA:- Não.
Uma capela bem simples, mas muito bela, César... No alto de uma colina... nos
arredores de Roma. Lá erguerei um altar para a santa de minha devoção.
PAPA:- Oh!
Lucrécia, não me interessa nem que santa colocarás lá... A mim me basta que
queiras...
O papa toca uma sineta e entra o bobo.
PAPA:- Ide
imediatamente à sala do meu secretário... Que ele traga aqui, ainda hoje, o
mestre Leonardo da Vinci. Pronto, meu amor, está resolvido: Leonardo construirá
para a tua santa a mais bela capela do mundo. Agora vem, dá-me o prazer de teus
beijos, de teu corpo, de teu sexo. Tu és a minha santa...
Cena
20:
Aposentos de Lucrécia, que reza
fervorosamente, ajoelhada diante de um altar. Batidas à porta. Mais uma vez, o
bobo tenta fazer-se de sério.
BOBO:- Desculpe, senhora, há alguém que deseja ver-vos... Não me permitiu
dizer o nome...
LUCRÉCIA:- Manda-o entrar, imediatamente, e não permitas que nos
interrompam...
Entra um mendigo, cabeça coberta, beija a mão
de Lucrécia.
LUCRÉCIA:- És aquele a quem chamam o Mulo, não é mesmo? Por que
queres me ver, se os teus seguidores parecem ser contra mim, não permitem a
construção da capela de minha santa e fazem procissões e protestos?...
O mendigo descobre-se, para susto de
Lucrécia.
LUCRÉCIA:- Mas és o rei dos mendigos, a quem dei o meu ouro para...
MULO:- Sou eu mesmo, minha senhora... minha santa. Não vos assusteis. Vosso
ouro está bem empregado...
LUCRÉCIA:- Como,
bem empregado?! Contra mim?
MULO:- Sei o que faço, senhora... E não vim pedir-vos mais ouro, mas
prestar-vos conta do que já realizamos... Calai-vos e ouvi. Uma santa precisa
de milagres para ter apoio do povo. Quando lancei a idéia de vossa capela, os
mendigos não me quiseram dar ouvidos, embora fosse eu o seu rei. Para
chamar-lhes a atenção, contratei homens que fizessem procissões e protestos
contra a construção. Assim, eles se dividiram: uns a favor, outros contra, sem
nem saber muito bem contra quem ou o quê. Com isso, plantei em suas almas, em
suas mentes, a idéia da nova santa. Agora, preciso dar um passo mais audacioso.
E por isso estou aqui...
LUCRÉCIA:- Muito
astuta a tua estratégia, sem dúvida, mas até agora está empacada a construção
da capela... Mestre Leonardo já tem o projeto e os homens para dar início, mas
teus seguidores o têm impedido...
MULO:- Preciso de um milagre, senhora...
LUCRÉCIA:-
Milagre? Não basta o ouro?
MULO:- Ele é importante, senhora, mas não é tudo. Um milagre de grande
repercussão traria para nossa empreitada o apoio e o entusiasmo de toda a
gente... E poderíamos, então, levar o povo para o caminho que escolhermos.
LUCRÉCIA:- E o
que eu devo fazer, para tal milagre? Aparecer nua, de repente, no meio dos
mendigos e distribuir entre eles a minha beleza e os meus favores?
MULO:- Basta uma audiência com o Papa, senhora, uma audiência de grande
repercussão... Aqui estão, detalhados, todos os meus planos...
Estende-lhe um pergaminho meio sujo, que
Lucrécia toma com as pontas dos dedos e guarda.
LUCRÉCIA:- Quando
tudo estiver decidido, mando avisar-te. Agora vai e aguarda minhas ordens...
Toma, leva mais um pouco de ouro, para não teres a tentação de trair-me.
Intervenção do bobo.
BOBO:- Quanto mais rezo, mais sombração me aparece... Esse tal de Mulo... isso
tem cheiro de enxofre... Aposto que tem rabo, o desgraçado, escondido debaixo
daqueles panos... E rabo bifurcado, assim, ó... Eu sinto... Isso aí é o cão...
Deus me livre e guarde! Creio em Deus Padre... e no filho... e no espírito
Santo, amém! Não vai prestar... Não vai prestar essa amizade de minha ama dona
Lucrécia com esse daí... Pode escrever o que estou dizendo...
Cena
21:
Sala do trono papal. César, Nietzsche e
Maquiavel. O papa abre uma janela e um grande alarido de vozes irrompe o
aposento.
PAPA:- Ouvi!
É o representante desse populacho que minha querida irmã deseja que eu receba.
O que achais? Sigo o meu coração e abro as portas de meu palácio ao povo ou
renego o amor de Lucrécia, sigo meus instintos e considero mau tudo o que não
me traz felicidade e mais poder? Não. Calai-vos. Sei o que direis. Vós,
Maquiavel, me fareis lembrar Savonarola... E o ruído do povo lá fora vos fará
dizer: Savonarola fracassou porque o povo, a multidão, essa mesma que se ergue
lá fora, começou a não mais acreditar nele... E vós, meu filósofo,
perguntareis: o que é mau? E direis que é mau tudo o que gera fraqueza... e
traz infelicidade! E o povo, meu filósofo, por vós, deverá continuar gritando
lá fora. E então, Maquiavel, o historiador, dirá: nada pode temer contra o
populacho quem dispõe de todos os recursos militares e de convencimento, não é
mesmo? Ah! Quanta ingenuidade, responderá, por sua vez, o filósofo! Que estoure
de gritar o populacho, que só traz a fraqueza, a fraqueza moral dos cristãos,
dos oprimidos! Que serei feliz se tiver a vontade do poder... Não! Não faleis
nada, Maquiavel, porque me direis que meu poder aumentará com a bondade, que o
povo que agora berra por milagres me agradecerá... Oh! Dúvida! E vos divertis,
não é mesmo, meu filósofo? Vosso pensamento pesa em meus ouvidos como o grito
lancinante do povo lá fora: César, ó Cesar, teu poder será contaminado pela
fraqueza do populacho e teu palácio... Ah! o meu palácio, senhores, os meus
palácios... Nada valem diante de meu amor por Lucrécia... Afastai-vos de mim.
Não vos seguirei, Maquiavel, porque sou todo bondade... e não vos seguirei a
vós, filósofo, por temer a força dos fracos no rugido do populacho lá fora(13)...
Só Lucrécia importa. Guardas! Mandai entrar o assim chamado rei dos mendigos...
Mandai entrar... como é mesmo o nome dele?... Ah! aqui está... o Mulo!
César acomoda-se com pompa ao trono, enquanto
a guarda traz diante de si o Mulo, envolto em seus trapos. De forma, ao mesmo
tempo, afetada e caricatural, ajoelha-se, beija o anel do papa e é abençoado
por ele.
PAPA:- As
portas da Igreja e os braços do Papa estão abertos para aqueles que seguem a
doutrina do Cristo e a pregam entre os miseráveis, porque deles será o reino
dos céus. O que tu desejas tanto, pobre homem, que precisaste da intervenção de
minha irmã para chegares até mim?
MULO:- Santidade, em vossas sagradas mãos deponho o pleito dos miseráveis, em
nome de vossa santa irmã... que Deus a proteja sempre, amém.
PAPA:- Amém.
Sejam breves tuas palavras, senhor... senhor Mulo... Não é assim que te chamam
teus seguidores?
MULO:- Em cima de um burrico entrou nosso Salvador em Jerusalém... e através
de minha carcaça entram seus ensinamentos na mente de meus seguidores, os
miseráveis que desejam o céu para onde a palavra de Deus, por intermédio desse
pobre animal prostrado diante de vós, promete levá-los. Santidade, sou eu o Mulo, com a graça de
Deus.
PAPA:- O
pleito dos miseráveis está em tua palavra. Fala: o que desejas?
MULO:- Há uma santa... uma santa que só os miseráveis veneram... de há muito necessita de vossa bênção para
alçar ao lado de Deus como os demais
beatos de nossa santa madre Igreja... Não a conheceis, tem origem
humilde, mas leva o mesmo nome de vossa irmã e por vossa santa irmã tem-se
manifestado a nossos pobres, através de milagres e proteção.
PAPA:- O
processo de beatificação exige mais do que um nome, mesmo que seja Lucrécia
esse nome... Vai e dize aos seguidores de tua santa que o Papa irá acompanhar e
anotar com carinho os milagres que ela possa realizar e, quem sabe, daqui a uns
duzentos anos outro santo papa a eleve ao altar de Deus nosso Senhor. In nomine
patrem, filius et...
MULO:- Esperai, Santidade! Tenho a vos oferecer, aqui mesmo, diante de vossos
olhos, um milagre de Santa Lucrécia... Conheceis, como toda a Roma, o cego
Tirésias, assim chamado por andar pelas ruas a pedir esmolas declamando versos
gregos, que ninguém entende, supostamente de uma tragédia antiga... Pois bem,
eu me proponho a curá-lo, aqui e agora, se vossa Santidade permitir...
PAPA:-
Pretendes curar o velho Tirésias aqui? Diante de mim? Como milagre de uma santa
que... Ora, tua pretensão é maior que tua língua! Pois bem, se não o curares,
mandarei enforcar-te e a todos que se recusarem a abjurar a crença em ti.
Guardas, tragam o velho Tirésias!
Alguns guardas, juntamente com o bobo, entram
arrastando o velho cego e jogam-no no salão, não sem antes lhe darem alguns
tapas e pontapés, com alguma zombaria, que logo refreiam ao olharem para o
papa. Tirésias levanta-se meio tonto, apoiando-se em seu cajado, completamente
sem rumo. O bobo faz algumas micagens e os guardas ainda riem um pouco da cena
e se retiram. O Mulo vai até ele e o conduz diante do papa que, colocando uma
vela acesa bem próxima de seus olhos, certifica-se de que ele realmente não
enxerga. Durante toda a cena a seguir, o bobo participa com algumas
brincadeiras mudas, sem interferir muito, no entanto.
TIRÉSIAS:- Malditos filhos de podres prostitutas! Que os vossos
filhos nasçam mais cegos ainda do que eu, seus bundas sujas, seus cagões de
merda fedorenta!
MULO:- Cala-te, infeliz! Tu não enxergas, mas os meus olhos vêem por ti e
minha boca te diz que estás diante de sua Santidade, o Papa. Ajoelha-te e beija
o anel, Tirésias... e pede perdão pelas tuas grosserias!
O Mulo obriga o cego a ajoelhar-se e a beijar
a mão do Papa, que se mostra divertido com a situação.
TIRÉSIAS:- Perdão, majestade... perdão, Santidade... perdão. Minha
boca não sabe o que diz... perdão... quisera ser também mudo para não ter dito
diante vós tantas injúrias...
O Mulo dá-lhe um cachaço, para que se cale,
quase derrubando o infeliz.
MULO:- Com vossa permissão, irei proceder ao milagre que vos prometi... Em
nome de Santa Lucrécia... Vede, aqui tenho eu uma poção feita com... com
líquidos do corpo da Santa, recolhidos e guardados há muito tempo... Vou molhar
este pano com a santa poção e envolver os olhos desse pecador... Em nome de Deus e de Santa Lucrécia, seja eu,
aqui presente, humilde seguidor da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica,
Romana, obediente às leis da Santa Bíblia e do Santo Padre, o mediador da fé na
Santa Lucrécia, para que este homem, cego desde
que nasceu, possa voltar a enxergar e glorificar, assim, o santo nome do
Senhor.
O Mulo faz alguns salamaleques e depois
retira, cuidadosamente, o pano que envolvera a cabeça e os olhos do cego.
MULO:- Vamos, abre os olhos, bem devagar... Primeiro um, depois o outro... A
luz repentina pode cegar-te de novo... Vamos... Abre o olho esquerdo, um
pouco... O que vês?
TIRÉSIAS:- Vejo... vejo sombras...
MULO:- Mais um pouco... só o esquerdo... o que vês?...
TIRÉSIAS:- Vejo... eu vejo... um ponto... um ponto de luz...
MULO:- Abre, agora, todo o olho esquerdo... O que vês?
TIRÉSIAS:- Uma... uma luz... uma luz que dança... (Toca a vela diante de si). Isso... é
isso uma vela? Estou vendo uma vela?
MULO:- Sim, isto é uma vela acesa... Agora fecha o olho esquerdo, para não
cansares, e abre o direito, bem devagar... O que vês?
TIRÉSIAS:- Vejo... vejo... vejo outra vela!
MULO:- Idiota! Vês a mesma vela! Agora, com cuidado... olha para frente... O
que vês?
TIRÉSIAS:- Um... um urso... Um urso vestido de vermelho!
MULO:- Imbecil! Estás vendo o Santo Padre!
TIRÉSIAS:- Milagre! Milagre! O urso virou papa! O urso virou papa!
Recebe um cachaço do Mulo.
MULO:- Cala-te, senão ficarás cego de novo, de tanta pancada... Agora, abre
ambos os olhos, devagar... Vamos! O que vês?
Tirésias arregala os olhos e olha para as
suas próprias mãos, estendidas, depois para o papa e, ainda condicionado pela
cegueira, apalpa o rosto de César, as roupas, o trono e tudo quanto encontra,
procurando descrevê-las. Pula como macaco, beija o chão, faz mil piruetas,
tocando os móveis, subindo no trono etc.
TIRÉSIAS:- Misericórdia, Senhor... estou enxergando... minhas
mãos... O papa não é um urso vermelho... Tudo... tudo tem cor... aqui, roxo...
ali, azul... a madeira, que cor é esta? E isso aqui, é prata? Isso é prata?
Milagre de Santa Brígida, não, de Santa Lucrécia... Milagre... Estou
enxergando...
O Mulo, depois de alguma luta, consegue
subjugar Tirésias e, tapando-lhe a boca, chama os guardas para retirá-lo.
Carregado, ele sai gritando.
TIRÉSIAS:- Milagre! Milagre de Santa Lucrécia... Estou
enxergando... eu estou enxergando! Já posso achar o caminho e ir embora para
minha terra... Eu enxergo...
PAPA:- Se não
tivesse visto com meus próprios olhos... Porém, mandam os sagrados cânones da
Igreja que se proceda com muito cuidado, antes da beatificação... Vamos abrir o
processo... Enquanto isso, que se erga a capela em homenagem à santa e que o
povo reze muito pela sua alma... Retira-te!
MULO:- Sois, então, o primeiro devoto de Santa Lucrécia?
PAPA:-
Não!... Sim... Sim... talvez... Lucrécia, minha irmã... Devoto de santa
Lucrécia... Sim...
MULO:- A santidade de Lucrécia está em vossas mãos, Santo Padre... E em vosso
ouro, vós sabeis... Uma santa se faz com milagres e ouro... Para os pobres e
miseráveis, evidentemente.
O papa abre uma gaveta e atira-lhe um pequeno
saco de ouro.
PAPA:- Para
os miseráveis... Evidentemente...
O Mulo se retira, enquanto se ouvem ao longe
os gritos e os cantos da multidão. Maquiavel aproxima-se de Nietzsche.
MAQUIAVEL:- Estranho... muito estranho esse milagre, meu
caro filósofo. De minhas andanças pelas ruas de Roma, conheci muito o cego
Tirésias e posso afirmar-vos que eu o vi aqui, de carne, osso e trapos, mas,
que eu me lembre, nunca soube que ele não tenha nascido e crescido em Roma...
Intervenção do bobo.
BOBO:- O que será que o meu amigo maquiavélico viu de estranho
no milagre? Eu conheço o velho Tirésias e posso jurar que ele foi curado, aqui,
diante de todos! Aleluia, meu Deus! Aleluia! Ih! Acho que isso não é muito
certo de dizer, não. O papa, se me ouve dizer aleluia, me dá umas bolachas...
na cara! Sabe, o papa? Ele herdou do pai dele a mania de São Tomé... Só
acredita, vendo... Mas o milagre acho que balançou a cabeça dele... Se
balançou! Mas que é isso? Os dois doidos ali, bem no meio das ruas fedorentas
de Roma... Esses dois! Ainda vão acabar se perdendo...
Cena
22:
Beco escuro de Roma. Nietzsche e Maquiavel
procuram algo, com lanternas de velas nas mãos.
NIETZSCHE:- Tens certeza de que era aqui mesmo? Não te
enganaram os teus informantes?
MAQUIAVEL:- Espero que não, embora nunca pudesse
imaginar que aquele que se diz rei dos mendigos vivesse e morasse num beco tão
escuro e tão nojento.
Tropeçam
em algo e quase caem. Percebem que se trata de uma pessoa adormecida no chão e
tentam acordá-la.
MAQUIAVEL:- Acorda, senhor... Acorda! És, por acaso o Mulo?
MULO:- Quem ousa perturbar meu sono? Ah! O filósofo e o
historiador, os borra-botas do papa!... O que quereis?
NIETZSCHE:- Podes levantar-te para que conversemos?
MULO:- Estou cansado... e nada tenho a conversar com tais
ilustres figuras... Ide embora...
MAQUIAVEL:- Uma informação, apenas, senhor Mulo.
MULO:- Já disse, fora!
MAQUIAVEL:- Nós só queremos saber
onde encontrar o cego Tirésias...
O Mulo ergue-se um pouco e solta uma gargalhada.
MULO:- Qual dos dois idiotas? O
verdadeiro ou o falso? O falso, aquele que se apresentou diante do Papa, era
apenas um sósia, um atorzinho inglês barato que eu contratei para aquela
pantomima toda... Já deve estar bem longe de Roma, a caminho de
Stratford-upon-Avon, cioso de manter sobre o pescoço a sua cabeça piolhenta...
NIETZSCHE:- E o verdadeiro?
MULO:- Perguntai aos peixes do
rio Tibre. Agora, deixai-me em paz... que tenho muito a dormir e sonhar... Se
insistirdes, mandarei que meus seguidores vos dêem uma surra de virar bicho...
O Mulo volta a dormir em seus trapos, enquanto
Nietzsche e Maquiavel se afastam bem depressa.
Cena
23:
Nietzsche
e Maquiavel estão perdidos nas ruas de Roma.
NIETZSCHE:- Disseste conhecer as ruas e estamos andando em
círculos...
MAQUIAVEL:- Não sinto o cheiro das águas do Tibre. Só ele pode
nos orientar até o Vaticano.
NIETZSCHE:- Perguntemos àquele mendigo.
MAQUIAVEL:- Caro senhor, estamos perdidos... pode nos indicar
o caminho que conduza ao Vaticano?
MENDIGO:- Também não sei chegar lá sozinho, meus senhores,
mas aguardai aqui... já está amanhecendo e uma turba logo vem a caminho da
praça do Vaticano e os senhores poderão se juntar a eles...
O
mendigo rodeia-os com curiosidade, tocando-lhes as vestes limpas e diferentes.
Maquiavel leva a mão à espada.
MENDIGO:- Não vou assaltar-vos... sois dois e eu, apenas
um... Mas, com essas roupas, não dou um tostão por vossas vidas, quando aqui
passar o cortejo...
O
mendigo se afasta.
MAQUIAVEL:- Esperai, aqui... Já volto...
Desaparece
por alguns instantes, enquanto Nietzsche anda de um lado a outro, nervosamente.
Ao voltar, traz nas mãos algumas mantas sujas, como a dos mendigos.
NIETZSCHE:- Como arrumaste isto?
MAQUIAVEL:- Tomei-as de um mendigo que dormia ali no beco...
NIETZSCHE:- Mataste-o?
MAQUIAVEL:- Não... não sei. Dei-lhe com o punho da espada na
cabeça, antes que acordasse... Vamos, ponha isso... Já ouço o vozerio da turba
que se aproxima...
Um
grupo de mendigos se aproxima, cantando.
CORO DOS MENDIGOS:- “Não temos nada,
Jogamos tudo...
Não temos luto
Não temos medo
Somos do Mulo
Servos fiéis
Não temos nada
Jogamos tudo
Vamos em frente
Seguindo o Mulo
Somos contentes
Não temos nada
Jogamos tudo!”
Depois
de algum tempo caminhando com os mendigos, Maquiavel puxa Nietzsche pelo braço.
MAQUIAVEL:- Já me encontrei... Vamos
por um atalho, para chegar ao Vaticano antes deles...
Depois que a turba se afasta, retiram os disfarces.
Nietzsche, cansado, senta para descansar um pouco.
MAQUIAVEL:- Vamos! Não temos tempo a
perder... Não sabemos o que querem esses mendigos... Talvez assaltar o
Vaticano, matar o papa...
NIETZSCHE:- Não te assustes,
Maquiavel. César não quis a aproximação do populacho, agora eles buscam no Mulo
uma nova forma de niilismo, de sacrifício. Mas os famintos só farão a
revolução, quando lhes aguçarem o apetite, dando-lhes de comer. Enquanto
permanecerem famintos, são inofensivos...(14) Vamos, a história nos
espera.
Cena
24:
Vaticano.
Quarto de Lucrécia Bórgia. Ela reza em voz alta, diante de uma espécie de
imagem, totalmente coberta por um manto branco.
LUCRÉCIA:-
Pai Eterno, que julgais os
pecados do mundo, perdoai, ó Pai, todos os meus ímpetos... Iluminai o meu
caminho para que eu possa, ó meu Pai, trazer de volta à vossa fé o meu amado...
o meu amado irmão. Não permiti que ele trilhe os mesmos caminhos da descrença
que trilhou meu pai. Fazei que ele recupere a fé e todos os dias do Vaticano
serão usados, meu Pai, para difundir a Vossa presença... Fazei de mim um instrumento
de fé, de luz para a humanidade e para meu irmão... Ó meu Pai, que estais no
céu, santificado seja o vosso nome...
O Bobo interrompe.
BOBO:-
Perdoai, perdoai, senhora dona Lucrécia... mas insiste em ser recebido por
vós... aquele que... o que faz milagre, Senhora... o Mulo!
LUCRÉCIA:-
Já o esperava. Mandai-o entrar...
Enquanto Lucrécia
persigna-se e levanta-se, já está diante dela o Mulo.
MULO:-
Ouvi vozes... não estais sozinha?
LUCRÉCIA:- Orava. Rezava ao Pai pela salvação de César.
MULO:-
César não crê em preces nem em salvação...
LUCRÉCIA:- César impressionou-se com o vosso milagre. Como o conseguistes?
MULO:-
Sou o instrumento de forças maiores do que eu, Senhora. O que está feito está feito.
Não cabe a nós explicar aquilo que os olhos de todos testemunharam. Nosso
encontro tem outro objetivo: sua capela está pronta. O povo já se convenceu de
que Santa Lucrécia é poderosa. Vim cobrar o quinhão que me cabe nessa
história...
LUCRÉCIA:- Aqui tendes, senhor Mulo... Acho que bastam para pagar o vosso
serviço... E ainda acrescentei um terço do combinado, para que não restem
dúvidas quanto ao valor do que fizestes e do valor do vosso silêncio.
MULO:-
Guardai o vosso ouro, Senhora. Tendes como ouro o meu silêncio, mas não podeis
transformar em valor aquilo que vos cobro...
LUCRÉCIA:- Não vos compreendo, senhor Mulo...
MULO:-
Por quem rezáveis há pouco?
LUCRÉCIA:- Já vos disse: pela salvação de César.
MULO:-
Não. Vós não estais preocupada com a alma de César, mas com o seu coração. Anda
arredio o vosso irmão... Já não comunga com a vossa fé, já não freqüenta com
tanta disposição o vosso leito... Há as campanhas, eu sei. Há os deveres de
estado, também o sei. E há, lá fora, multidões que urram pelas bênçãos do Papa.
No entanto, nada justifica que ele não esteja mais tão próximo de ti... Temeis
por vosso amor, Senhora...
LUCRÉCIA:- Desespera-me, realmente, senhor Mulo, que muitas de vossas palavras
estejam carregadas de razão. O que não vejo como motivo para que não aceiteis o
meu ouro e me deixeis em paz com meus problemas, que são afeitos apenas a mim e
a meu irmão... Retirai-vos, por favor...
MULO:-
Embora pudesse, não quero disputar convosco o amor de César, porque não me
interessa o homem e, além de tudo, preciso de vós...
LUCRÉCIA:- O que dizeis? Disputar comigo o amor de César?! Enlouquecestes. César
é homem para muitas mulheres, nunca para outro homem!
MULO:-
Vede... Tocai aqui... assim, vamos... não vos assusteis... São seios, sim... e
muito belos... capazes de... Isso não importa... Há mais ainda: tenho entre
minhas pernas o que vos pode satisfazer, Senhora, como nenhum outro homem que
tenhais tido ou que venhais a ter... e tenho também aquilo que em vós
enlouquece todo aquele que um dia teve a suprema ventura de provar. Sou homem,
sim... mas também sou mulher. E posso seduzir o vosso amado César com armas
muito mais poderosas do que as vossas... como podeis constatar.
LUCRÉCIA:- Vós... vós... vós sois um monstro... Homem e mulher, ao mesmo tempo...
Não! Deus não pôde fazer nunca tal criatura... Sois fruto da mente insana de
Satanás, aqui enviado para confundir-me... para provocar-me... Ide embora...
Não quero ver-vos... Ide... Guardas!
MULO:- Calai-vos, Senhora. O meu segredo, agora, é vosso... E são meus os
vossos segredos... Como todas as artimanhas que fizestes para manter César a
vossos pés... como a farsa da igreja de Santa Lucrécia... até mesmo o milagre
que comprastes... Calai-vos! Nada tenho a perder, a não ser a vida... Vós,
não... Vós tendes o mundo... e perdereis tudo, se não me ouvirdes... César
acreditou no milagre que fiz. Sua descrença ficou abalada. Ainda não é o
suficiente, entretanto. Preciso conquistar sua confiança. Preciso me aproximar
dele. Expulsar de seu convívio aqueles idiotas, o filósofo e o historiador.
Tornar-me o seu conselheiro. Assim, farei que de novo acredite em Deus, farei
que de novo se lance a vossos pés, como um cãozinho faminto, a implorar o vosso
amor. E então... e então...
LUCRÉCIA:- Prometeis devolver-me César? Prometeis? Não! Não posso aceitar... o
preço! Qual o preço, senhor Mulo?
MULO:-
Tenho o meu povo, Senhora... o meu povo...
LUCRÉCIA:- Os miseráveis... os famintos... que vós conduzis...
MULO:-
O meu povo não é miserável, Senhora... Não queremos a comida que sobra do
banquete dos poderosos... Não é essa a nossa fome, Senhora.
LUCRÉCIA:- O que desejais? Dizei-me: ouro? Prata? Um reino em que fôsseis rei?
Terras para vossos... para vosso povo?
MULO:-
Meu povo nada tem e nada pede, Senhora!
LUCRÉCIA:- Em toda negociação, há trocas e favores, senhor Mulo. Se não quereis
nada agora, significa que exigireis tudo depois.
MULO:-
Ouvi: vós quereis o vosso amado atrelado a vossos pés. Eu quero apenas um pouco
do poder que ele tem... ao lado dele... Serei apenas a sua vontade de poder,
para maior glória da Igreja e da Romanha... Depois, o mundo, quem sabe?
LUCRÉCIA:- César... somente César me interessa. O que fareis com ele?
MULO:-
Nada, já vos disse. César é ele mesmo um símbolo maior de tudo quanto
conquistou. Com um símbolo vivo, como César, à frente dos empreendimentos, não
há limites para o futuro. Não sou louco de me livrar dele...
LUCRÉCIA:- Este o acordo que propondes? E se eu não concordar?
MULO:-
Vossa igreja dedicada a Santa Lucrécia é um estratagema interessante, mas
inútil. César considera tudo isso como capricho, uma brincadeira da amante, um
sonho de algumas dracmas que não farão falta ao tesouro do Reino Unido do
Vaticano e da Romanha... E como todo sonho, pode desfazer-se assim... num
piscar de olhos...
LUCRÉCIA:- Dai-me tempo para pensar... Voltai dentro de três dias.
MULO:-
O tempo urge, princesa. A história está batendo nos muros e nas portas do
Vaticano. Ouvi. Não é o meu povo, mas sim os vossos miseráveis a gritar,
inflamados, agora sim, pelos meus... É pegar ou largar... e agora, sem mais
delongas!
LUCRÉCIA:- O que eu preciso fazer para dizer que aceito?
MULO:-
Por enquanto, nada, princesa... Deveis apenas aceitar-me como verdadeiramente
eu sou!
O
Mulo aproxima-se de Lucrécia e beija-a.
Cena
25:
Fortes
pancadas à porta do palácio. O Bobo, com um lume, vai atender.
BOBO:-
Raios me partam... a esta hora da noite... um cristão nem pode dormir
sossegado... Já vou... Já vou...
Pára
um instante e urina em um urinol.
BOBO:-
Quando batem assim à porta, de madrugada, mau sinal deve ser. São as batidas do
destino ou as batidas de uma nova era? O vento lá fora cicia coisas que o mundo
nunca viu... batalhas que podem mudar a história... traições e felanias... Ah!
Já vou... Há problemas demais neste
palácio... Que novas personagens podem se intrometer e ditar o rumo da
história?... Já vou... Quem assim bate deve estar desesperado... – terá sido
assaltado? Há em Roma dezenas de malfeitores, arruaceiros... E, agora, a gente
daquele que se denomina o Mulo... Mas pode ser, também, que tragam novas para o
Papa, talvez a vitória de algum inimigo... sei lá... devo estar delirando... É
madrugada... e abusei do vinho... Já vou... Já vou... Raios!
Abre
a porta e ilumina o rosto de Nietzsche e Maquiavel, sujos e cansados.
BOBO:-
Hom’essa que sois vós... e parece que fostes atropelados por dez touros em
fúria!
MAQUIAVEL:- Onde... onde está ele?
BOBO:-
Atropelados e embaralhados! Onde está quem, criatura dos infernos?
NIETZSCHE:- O Mulo! Onde está o Mulo?
BOBO:-
Dentro de minha camisola de dormir é que não se encontra tal horrenda figura,
como podeis muito apropriadamente ver com vossos próprios olhos...
MAQUIAVEL:- Corre perigo nossa história... Temos de interromper essa peça absurda
e resgatar nossos personagens... Há uma variável que fugiu ao controle de
nossos cordéis... Diga, ó criatura estúpida, em que desvão escuro desse palácio
se escondeu aquele que deseja ver nossas teorias políticas colocadas em
zombaria pública?
NIETZSCHE:- Também não é para tanto, meu caro historiador. O homem precisa colocar
em risco algo que tem como precioso, para dar valor a esse bem. E o que é mais
precioso para César, no momento?
BOBO:-
Lucrécia! O Mulo veio vê-la... esteve com ela... Oh! Minha santinha das
diabruras de todos os bobos... Minha senhora corre perigo... Minha senhora
corre perigo!
MAQUIAVEL:- O que tu dizes, criatura? O Mulo esteve com Lucrécia?
BOBO:-
Minha nossa senhora de todas as desgraças... não permiti que a senhora dona
Lucrécia...
O
Bobo recebe um safanão de Maquiavel e revida, jogando-lhe em cima o urinol
cheio.
MAQUIAVEL:- Mato esse desgraçado!
Corre
atrás do Bobo, mas é contido por Nietzsche.
NIETZSCHE:- Deixa esse infeliz... Puxa! Que mau cheiro! Fedes como a moral que
julgo combater. Espera: não sabemos se o Mulo se aproximou de Lucrécia com
ressentimento ou não. Se ele pretende usar contra ela todo o ódio da classe que
ele lidera, não devemos nos preocupar, pois será apenas a revolução dos
ressentidos e isso o exército de César pode muito bem sufocar... No entanto, se
essa revolta começa a gerar novos valores, criando uma nova moral, não sei se
haverá recursos para contê-la. Vamos, temos muito a observar e, talvez,
tenhamos que interferir no rumo de nossa história... se bem que ela começa a
ficar interessante... E tu, criatura estranha e ridícula, fala: está ainda o
Mulo dentro do palácio?
BOBO:-
Ficais aí a falar de maneira empolada, que nenhum cristão entende, e quereis
que vos responda se o Mulo foi embora? Não sei... não sei... ai, minha nossa
senhora de todos os flagelos! Se o vi entrar, não o vi sair...
NIETZSCHE:- Vamos... Tu precisas livrar-te desse mijo de bobo... E deixemos que
nossos personagens ajam. Só assim teremos a certeza de nossas teses... E ao
contrário do que disseste, é preciso que siga o teatro, para que a ação do
drama liberte o homem de si mesmo...
Cena
26:
Aposentos
do Papa. Na semi-escuridão da noite, cansado e sujo de batalhas, César entra e
começa a despir-se para se levar. De um canto escuro, uma voz o interrompe. É o
Mulo.
MULO:- Estás ferido, Santidade?
CÉSAR-: Quem está aí? Quem ousou profanar meus aposentos?
MULO:- Guarda a espada, César... Não represento para ti
qualquer perigo físico... Tens a proteção de Lucrécia...
CÉSAR:- Minha irmã? O que tem minha irmã com o intruso que
a estas horas invade meus aposentos? Apresenta-te, antes que eu chame a
guarda...
MULO:- Aqui me tens... Lucrécia ensinou-me os caminhos
secretos de teu refúgio... Sei que chegaste cansado de mais uma batalha, da
qual saíste vencedor, é claro... Mas há outras batalhas que precisas vencer,
aqui mesmo, neste aposento, entre a glória que pode ser maior do que a de
Alexandre e a tua consciência...
CÉSAR:- Mulo! Não podes...
MULO:- Posso, César, posso sim, qualquer coisa que
queiras...
O
Mulo está muito próximo de César, quase acariciando-o, sensualmente, enquanto
fala. César deixa-se enredar, entre espantado e divertido.
MULO:- Tens em mim a força que buscas com teu corpo...
com teus músculos... com teus exércitos... e eu valho mais, muito mais, César,
do que todos os teus homens juntos... Eu sou a raposa, César... (Pega o
escudo papal, com o símbolo do leão) a inteligência que falta a este leão,
para que o mundo, e não estou falando apenas da Europa, César, estou falando do
mundo, do antigo e do novo, em cujas terras brotam ouro, pedras preciosas e
tesouros incontáveis... o mundo todo esteja a teus pés e tu sejas, César, o
imperador único e absoluto desse globo... (Pega um globo que estava em uma
mesa e joga-o para cima, divertido). Teu pai, Alexandre VI, dividiu o mundo
entre Portugal e Espanha, mas tu o unirás de novo... como fizeste com a
Romanha...
CÉSAR:- Deliras... e teus delírios te levam muito além do
que sonha este pobre papa, que não deseja mais do que unir a cristandade sob a
vontade do Pai...
MULO:- Já há muito esqueceste a
cristandade, César. Dos cristãos, tens apenas a força bruta de um exército
leal, leal mas escravo... pronto a morrer por ti, como se tu fosses o novo
Cristo... Quanto ao Pai, vejo apenas referência a Alexandre e não ao Pai Eterno,
em cuja existência tu não mais crês...
CÉSAR:- Teus delírios me
atraem... Continua... Creio estarmos no meio de uma negociação... e como em
todo negócio, há trocas...
MULO:- Nada tenho e nada
desejo, César.
CÉSAR:- Mentes! Desejas
riquezas, melhores dias para teu povo... Um reino, talvez?
MULO:- Por que riqueza, se
apenas desgraça é o que ela atrai? Por que poder, se apenas responsabilidade e
cobranças é o que ele traz? Por que uma nova pátria para meu povo, se ele já
tem tudo de que precisa, nada possuindo? Olha bem em meus olhos: vê! Há neles
apenas um desejo, e cabe a ti, César, sonhar o sonho que há neles...
Entra Lucrécia, que corre a abraçar e beijar o
irmão.
LUCRÉCIA:- Deixa-me ver-te, bem,
meu amado... deixa-me sentir teu corpo... Não, não estás ferido... Graças a
Deus! A cada batalha, meu coração parece partir-se de dor e receio... Amo-te
tanto, César... mais que a mim mesma.
CÉSAR:- Sossega, irmã e amada...
Aqui me tens... Sabes que volto sempre para ti...
LUCRÉCIA:- Mulo! Fizeste o que te pedi? Aconselhaste meu
irmão? Vem, abraça-o, também... Que sejamos uma família...
CÉSAR:- Não te entendo, irmã...
Tu e o Mulo?
O Mulo se aproxima do casal e os três se abraçam,
apesar de uma certa resistência inicial de César.
LUCRÉCIA:- Sim, César... descobri um outro irmão...
Aceita-o, também, que tudo quanto ele te disse é verdade... Há pureza em seu
coração e tu não te arrependerás... Quero tanto a tua felicidade, meu irmão,
que não podes julgar-me uma leviana em confiar num estranho... O Mulo não é
estranho, ele conquistou meu coração com a pureza de intenções, com a sabedoria
que está em cada palavra que ele diz... Aceita-o, meu irmão... E estaremos
cumprindo o desejo de nosso pai, sendo corpo e alma, força e fé, Deus e homem, homem e leão... e agora, também,
a raposa, tudo se fundindo num único
colóquio amoroso... Sim, tu te lembras de nosso batismo... Renovemos, agora, as
mesmas promessas... Com o Mulo... Aceita-o: eu terei um outro homem e tu, meu
irmão, terás uma nova mulher... mas seremos, os três, únicos e unos como a
trindade...
O Bobo entra com um frasco de vinho e três taças. César,
Lucrécia e o Mulo se servem, tocam as taças num brinde efusivo, bebem,
abraçam-se e beijam-se.
Intervenção
do bobo:
BOBO:- Eu ainda não entendi uma coisa: por que me puseram
nesta história! Estava lá, no meu canto, fazendo as minhas palhaçadas, ganhando
honestamente o meu sustento... e, de repente, me vejo aqui... no meio dessa
confusão. O tal do... (espirra) Nietzsche não se entende com o Nicolau
cara de pau Maquiavel... O papa, de repente, é César Bórgia... que não queria
ser papa, vocês se lembram. Agora, aparece esse tal de Mulo... que não é
homem... não é mulher... e é homem e mulher ao mesmo tempo... E crau na
Lucrécia... e crau no papa... e todo mundo está feliz da vida! Uma bagunça do
caralho e eu, aqui, feito um bobo... como se já não fosse bobo. E agora,
preparam uma grande festa... sabem para quem? Para o bobo aqui que não seria...
Para o Mulo! Pode uma coisa dessas? Só bebendo mais vinho... ic... que não seja
do Papa, é claro!
Cena
27:
Sala
do trono. César está sozinho.Sentado à escrivaninha, despacha alguns papéis.
Depois de algum tempo, pára, escuta e percebe que há um grande silêncio no ar.
CÉSAR:- Que silêncio é este? Não!
Não está tudo assim tão quieto... ouço passos... um arranhar de patas... (Aproxima-se
do trono e pisa numa barata atrás dele). Se posso ouvir o arranhar das
patas de uma barata... O silêncio... O mundo está aqui neste silêncio... Aperta-me
o coração esse silêncio dos grandes salões... O silêncio que corrói nosso
pensamento e leva nossa imaginação a penetrar por essas paredes e tentar ouvir
os conluios, as conversas truncadas das pequenas intrigas palacianas. Esse
silêncio pontuado de estalidos de madeira, de cicios de vozes, de passos que se
afastam para dar lugar a outros passos macios, tudo muito miúdo, tudo muito
corrosivo, esse o silêncio que me aperta o coração, que me destrói por dentro,
ao revelar a meus olhos as pequenas mazelas humanas que provocam grandes
tragédias: o ódio, a inveja, o ciúme, a ganância. Bate mais rápido o meu peito
ao ouvir esse silêncio entrecortado que gira como um redemoinho de abutres em
torno de meu trono... Não bastam os feitos militares, as armadilhas aos
inimigos, a conquista dos amigos: é preciso preencher esse silêncio, o silêncio
de um poder que atrai os gananciosos como a carcaça abandonada do inimigo morto
no campo de batalha atrai os corvos e as hienas... Esse silêncio convida ao
sono, mas o poder que se ilude com os sonhos de noites bem dormidas não é digno
da história que ele constrói nas chagas dos inimigos que pisa... Esse silêncio
me esmaga... não os inimigos... deve haver inimigos... nesse silêncio...
ANTOINE! ANTOINE! SEU DESGRAÇADO! ANTOINE!
Entra o Bobo.
BOBO:- Santidade! Matais-me do
coração! Morro com vossos gritos!
Cai espetacularmente para trás, fazendo um grande
estrondo..
CÉSAR:- Não será com tais ardis
que me farás rir... E eu preciso... preciso muito. Vamos, diga algo engraçado.
BOBO:- Hm... hm... sinto um
cheiro de podre no ar... Peidastes, Santidade?
O Papa esboça um sorriso.
CÉSAR:- Bela tentativa... Mas,
sentiste mesmo um cheiro de podre?
BOBO:- E de carneiro,
Santidade...
CÉSAR:- Não dizes coisa com
coisa...
BOBO:- Carneiro podre não é...
pois o cheiro que sinto é cheiro de chifre queimado e enxofre...
CÉSAR:- Impressionas-me, mas não
acho nenhuma graça no que dizes...
BOBO:- O poder, Santidade, o
poder só serve para fazer com que a pessoa que o detenha se sente no trono com
o cu mais alto do que os outros...
CÉSAR:- Agora, sim... disseste
algo engraçado... Vamos, continua...
BOBO:- O que eu quero dizer,
Santidade, é que lá do alto de vossa santíssima e santésima santidade, não
percebeis que vossas novas amizades cobrem-se de mantos de carneiro para
ocultar sob as vestes o tridente do demo e o cheiro do enxofre... Pronto. Eu
disse.
CÉSAR:- E falais de...
BOBO:- Maquiavel e... daquele
filósofo... (espirra) Nietzsche!
CÉSAR:- Não. Por mais que não gosteis
deles, são inofensivos, meu caro Antoine... Quereis dizer-me algo mais... E
esse joguinho não é nada engraçado de tua parte...
BOBO:- Mas se enfiardes um
clister de água benta no rabo de um eqüino, sabereis se há demônios escondidos
em seu ventre...
CÉSAR:- Falas agora por
enigmas... Que bobo me arranjaram... Em vez de alegrar os meus momentos de
ócio, traz-me apenas feias palavras de advertências contra aqueles a quem
amo... Vai, some-te de minhas vistas e vai conferir se todas as providências
para a grande festa estão em conformidade com minhas ordens... Antes, sirva-me
um pouco de vinho. Preciso descansar... Pensar.
Após servir o Papa, o Bobo sai, imitando uma mula e
relinchando, tirando grandes risadas do Papa.
BOBO:- Sou uma mula... sou uma mula...
Ao ficar só, o Papa vira a cadeira para frente do
grande trono, contempla-o, pensativo, sorvendo o vinho.
CÉSAR:- Não temo o louco tinir de
espadas e escudos, os gritos dos feridos, os gemidos dos moribundos, as ordens
loucas dos comandantes durante as batalhas, mas as artimanhas que se escondem
com passos ciciantes atrás do trono... Ah! Esses conluios escondidos atrás das
paredes... em olhos... em mil olhos... que se aproximam... e me vigiam... Um
bom vinho... Ah! um bom vinho afasta os maus pensamentos... Ao Mulo, à minha
amada Lucrécia e ao futuro do mundo... sob o meu cetro, é claro!
O papa adormece, segurando a taça de vinho.
Cena
28:
Sala do trono. César adormecido. Entra o Mulo,
toma-lhe a taça das mãos, sorve o resto do vinho, ajeita o papa na cadeira,
acariciando com ternura o seu rosto, vai até a escrivaninha e lê atentamente os
papéis espalhados sobre a mesa. Senta-se no grande trono e fica por alguns
instantes imóvel, contemplando o papa, silenciosamente. Chega Lucrécia e o Mulo
lhe faz um sinal de silêncio, apontando-lhe o irmão. Ela aproxima-se de César,
beija carinhosamente sua testa, vai até o Mulo, senta-se em seus joelhos,
abraça-o e, em silêncio, entrega-se a ele. Black-out.
Cena
29::
Sala do trono. César e Lucrécia em trajes de gala.
Aguardam. Toca um clarim. Anuncia-se o Mulo. Este, envolto num longo e rico
manto, aproxima-se do papa e da irmã. Abraçam-se, efusivamente.
CÉSAR:- Chegaste cedo, como
combinamos. Logo, aqui estarão nossos convidados. E tu, meu caro Mulo, serás o
homenageado...
LUCRÉCIA:- Nossa aliança
fortalecerá o poder de Deus...
MULO:- Sim, minha irmã... posso
chamá-la assim, não? O poder de Deus será fortalecido, mas não o poder do
Vaticano.
CÉSAR:- Não entendo vossas
palavras, senhor Mulo...
MULO:- Talvez eu seja um anjo
do Senhor... talvez seja apenas Belzebu... No entanto, trago a ambos o sonho
que nunca outro conquistador terá sonhado: unir, sob um único cetro, as terras
antigas e as terras novas que, dizem, têm montanhas de ouro e rios de pérolas.
O Mulo abre o manto e mostra dois enormes seios.
Pega uma taça e, espremendo o seio esquerdo, preenche-a com água até o meio.
Espreme o direito e completa-a com vinho.
MULO:- Não há mais o sangue do
deus do madeiro, mas a água que vem direta da fonte de Deus e o sangue que
corre em minhas veias... Bebei, bebei e tereis o poder de uma nova era, de uma
nova crença...
LUCRÉCIA:- Esperai. Falais de uma
nova crença... O Vaticano...
MULO:- O Vaticano será
destruído...
LUCRÉCIA:- O papa...
MULO:- Não haverá mais papa...
LUCRÉCIA:- César...
MULO:- César será o comandante
de um novo exército de crentes, sem Cristo, sem pompas, mas o mais poderoso de
todos...
LUCRÉCIA:- Não pode haver poder sem
Cristo...
MULO:- Deus falará diretamente
a seu rebanho.
LUCRÉCIA:- Que Deus é este, que
renuncia ao sacrifício do próprio filho?
MULO:- O cristianismo
enfraqueceu os homens, e Deus é força, é poder.
LUCRÉCIA:- Os santos, os anjos, os
beatos...
MULO:- São todos soldados de
Deus, como teu irmão será o comandante aqui na terra. E tu, Lucrécia, trarás
para esse exército o poder criador da mulher... Tornar-se-ão todos iguais na fé
que venho revelar e da qual serei eu o único profeta...
CÉSAR:- Tu propões que eu, o
Santo Padre, destrua o cristianismo?
MULO:- Destruirás, sim, o
cristianismo, mas não só o cristianismo, como todas as demais crenças que têm
profetas e sacerdotes entre Deus e os seus seguidores. Deus não deseja mais que
o homem se perca em descaminhos que levam à idolatria, à divisão... A
humanidade deve marchar sob um único e absoluto senhor... Vamos, bebei... Essa
mistura de vinho e água selará nosso compromisso.
LUCRÉCIA:- Não. Não posso suportar
a idéia de matar de novo aquele que deu a vida para nos salvar.
MULO:- Há muito que os
sacerdotes do deus morto desviaram a fé em Deus para outros poderes terrenos. O
Cristo que julgas ter dado a vida para salvar o homem, na verdade, morreu
naquele dia mesmo em que o mataram. Os cristãos cultivam apenas um Cristo
imaginado e recriado por falsos profetas e sacerdotes, que impuseram uma visão
falsa de seus ensinamentos e distorceram suas palavras através dos séculos. O
cristianismo nunca existiu, Lucrécia.
CÉSAR:- Nosso pai estava certo,
Lucrécia...
MULO:- Vosso pai não acreditava
nem em Deus, César...
CÉSAR:- Ele acreditava que o
homem não precisa de Deus.
MULO:- Mas Deus precisa do
homem. Deus não existe sem o homem. Sem teus exércitos, César, sem a minha
palavra e sem a fé de Lucrécia, não há Deus, não há nada. Nós uniremos a
humanidade sob o seu único olho, o olho de Deus que tudo vê através de nossos
olhos, e o seu reino existirá para sempre.
CÉSAR:- E o homem, o que ganha o
homem com esse teu Deus único e poderoso?
MULO-: A vida, César, a vida!
Agora, tomai e bebei, que nossa aliança estará para sempre selada! Bebei: não
há veneno em meu sangue, apenas em minhas palavras.
César e Lucrécia bebem o conteúdo da taça. Um grito
de Maquiavel.
MAQUIAVEL:- Não! Não! Esperai!
MULO:- Tarde demais, senhor
Maquiavel. Tarde demais.
Soam clarins. Os pobres e miseráveis invadem a sala
do trono e erguem César, o Mulo e Lucrécia, cantando e dançando, enquanto matam
os sacerdotes e cardeais que se aproximavam para a festa e destroem a cruz e
derrubam ao chão a imagem de santa Lucrécia, que se achava sob um manto.
CORO DOS
MENDIGOS:- Aleluia! Aleluia!
Somos pobres,
somos povo
Somos ricos,
somos livres!
Aleluia! Aleluia!
No mundo novo
Queremos Deus,
Ó nosso pai
Dos filhos teus
Um só iluminai
Seremos todos
Livres em Deus,
Seremos todos
Ricos com Deus
Aleluia! Aleluia!
Somos pobres,
Somos povo
Somos ricos,
Somos livres
Aleluia ao mundo novo!...
Saem todos em cortejo. Maquiavel, sentado no chão,
chora abraçado ao Bobo. Nietzsche aproxima-se.
MAQUIAVEL:- Matamos o Cristo, senhor
Nietzsche, matamos o Cristo mais uma vez!
NIETZSCHE:- Não te amofines,
historiador. Tu te esqueces de que tudo isso, infelizmente, é apenas teatro?
Volto para o asilo a sofrer meus padecimentos, a enlouquecer e morrer triste e
só, enquanto o fim do cristianismo talvez seja apenas um grande sonho que
sonhei um dia... Embora não descreia de todo da capacidade criativa do homem
para se livrar de todas as formas de escravidão.
BOBO:- Vão embora, vão todos
embora, não vêem que acabou, que tudo acabou?... Vamos... saiam todos... sem
choradeira, por favor, que eu vou tomar o resto do vinho do papa e ficar bêbado
para sempre... Vão! Vão embora! Chega desse teatro absurdo! Que coisa...
FIM
NOTAS:
(1) MINOIS,
George. História do Riso e do Escárnio, trad. Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. – São Paulo: Editora UESP, 2003, página 228, assim descreve o bobo:
“... veste uma casaca matizada, com bordas em pontas e losangos amarelos e
verde. O verde é cor da ruína e da desonra; o amarelo, cor do açafrão – que tem
influências maléficas e atua sobre o sistema nervoso, provocando riso
incontrolado – , é a cor dos lacaios, das classes inferiores, dos judeus. Às
vezes aparece o vermelho, como no traje de Hainselain Coq, bobo de Carlos VI.
Isso também é símbolo de fantasia, idéia reforçada pela bexiga de porco
inflada, contendo ervilhas secas, que evoca a cabeça vazia do bobo. Sobre sua
roupa, costuram-se pequenos sinos cujo tilintar incessante faz pensar no caos
primitivo, na matéria inorgânica. O bobo carrega um bastão encimado por uma
cabeça de bufão com guizos: é seu cetro derrisório, que para alguns evoca
também um falo. Às vezes. o bobo é vestido magnificamente, como o próprio rei”.
(2)
Este discurso filosófico de Nietzsche está
baseado em sua obra O Anticristo.
(3) Apocalipse,
1, 10.
(4) Idem,
13, 2.
(5) Ibidem,
16, 13.
(6) Salmos,
51
(7) “Cordeiro
de Deus que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirais os pecados do
mundo, tende piedade de nós
Cordeiro de Deus que tirais os pecados do
mundo, dai-nos a Paz”
(8) Meu
pai tem uma casa... é uma casa muito bonita... ó meu Deus, a minha casa é a
vossa casa... Deus meu.. Eu sou fiel, meu Deus, eu sou vosso servo... como o
diabo... como o diabo... Deus, que instruístes os corações dos vossos fiéis com
a ilustração do Espírito Santo, fazei com que nos regulemos segundo o mesmo
Espírito e gozemos sempre de sua consolação. Por Cristo Nosso Senhor.
(9) Nietzsche,
Fridrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres.
Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. Página 81.
(10)
"Estamos
sofrendo as conseqüências das doutrinas pregadas ultimamente por todos os
lados, segundo as quais o estado é o mais alto fim do homem, e, assim, não há
mais elevado fim do que servi-lo. Considero tal fato não um retrocesso ao
paganismo mas um retrocesso à estupidez": Nietzche, Considerações Extemporâneas.
(11)
Discurso baseado no capítulo XI de O Príncipe: Dos principados eclesiásticos.
(12)
Nietzsche, Fridrich Wilhelm. Humano, demasiado humano:
um livro para espíritos livres. Obra citada. Página 95.
(13)
Nietzsche, Fridrich Wilhelm. Humano, demasiado humano:
um livro para espíritos livres. Obra citada. Página 251.
(14)
O discurso de César Bórgia está baseado nos
seguintes textos: 1) de Maquiavel (O príncipe - capítulo VI: dos principados
novos que se conquistam com as armas próprias e virtuosamente): “Moisés, Ciro,
Teseu e Rômulo não teriam conseguido fazer observar por longo tempo as suas
constituições se tivessem estado desarmados; como ocorreu nos nossos tempos a
Frei Girolamo Savonarola que fracassou nas suas reformas quando a multidão
começou a nele não mais acreditar, e ele não dispunha de meios para manter
firmes aqueles que haviam crido, nem para fazer com que os descrentes passassem
a crer. Por isso, têm grandes dificuldades no conduzir-se e todos os perigos
estão no seu caminho, convindo que os superem com o valor pessoal; mas superado
que os tenham, quando começam a ser venerados, extintos aqueles que tinham inveja
de sua condição, ficam poderosos, seguros, honrados, felizes.” 2) de Nietzsche
(O Anticristo): “O que é bom? – Tudo
que aumenta, no homem, a sensação de poder, a vontade de poder, o próprio
poder. O que é mau? – Tudo que se origina da fraqueza. O que é felicidade? – A
sensação de que o poder aumenta
– de que uma resistência foi
superada. Não o contentamento, mas mais poder; não a paz a qualquer custo, mas
a guerra; não a virtude, mas a eficiência (virtude no
sentido da Renascença, virtu(1), virtude desvinculada de moralismos). Os fracos e os malogrados devem
perecer: primeiro princípio de nossa
caridade. E realmente deve-se
ajudá-los nisso. O que é mais nocivo que qualquer vício? – A compaixão posta em
prática em nome dos malogrados e dos fracos – o cristianismo... “
(15) “Não é a fome
que engendra as revoluções, é o fato de que no povo o apetite vem quando
come...”: Nietzsche, Friedrich Wilhelm. Vontade de Potência. Ediouro.
Tradução de Mário D. Ferreira Santos. Página 157.
Nenhum comentário:
Postar um comentário