(Camille Pissarro - Boulevard Montmartre - afternoon in the rain-1897)
Peça em um ato.
Isaias Edson Sidney
1998
NOTA: Esta
peça é inspirada no livro A MORTE DE DJ EM PARIS, de Roberto Drummond. Quando
de seu término, entrei em contato com o autor de HILDA FURACÃO, mas não houve
acordo, porque ele me disse não mais lhe pertencer os direitos sobre A MORTE DE
DJ EM PARIS. Portanto, o texto aqui publicado tem por objetivo prestar uma
homenagem ao escritor, a quem admiro e com quem tive a grata satisfação de
conviver por dois breves e emocionantes momentos de minha vida, e servir de estudo
ou modelo – bom ou ruim, que o julguem os que o lerem – de adaptação de um
texto literário para o texto teatral.
JORNALEIRO:- Extra!
Extra! Novas revelações sobre o misterioso caso de d.j.! extra! extra! vai um jornal, cavalheiro?
Encostado a um poste, fumando de forma
afetada e elegantemente vestido, está D.J.
D.J.:- Garçon, s’il vous plais, um jornal!
O rapaz vende-lhe um jornal – DIÁRIO DE MINAS – que traz a
manchete: “O MISTERIOSO CASO DE D.J.”
D.J. senta-se a um banco de praça e, ao desdobrá-lo, surge um novo
título: ‘PARIS MATCH” e a manchete “LE DERNIER CRI DE LA MODE DE PRINTEMPS”.
Entram o juiz, o promotor e uma testemunha – um homem magro de óculos que, com
mãos trêmulas, fuma o tempo todo quase um maço de Hollywood sem filtro.
PROMOTOR:- O senhor está deturpando os fatos por amizade
a D.J.
JUIZ:- A testemunha está avisada de que perjúrio é
crime... E dá cadeia. Neste tribunal, o advogado de defesa, que não está presente,
não pode mentir nunca; o promotor, às vezes e o juiz... bem, o juiz só ouve. E
o réu paga todas as custas...
PROMOTOR:- E o nosso réu já está morto!
JUIZ:- D.J.: isso não é nome, não identifica o cidadão.
Qual era o nome dele?
TESTEMUNHA:- Era assim mesmo que a gente chamava D.J.: le
brésilien D.J....
PROMOTOR:- Meritíssimo, pergunte à testemunha sobre o
bar, o famoso bar...
JUIZ:- Você ouviu: fale sobre aquele antro de bêbados que
o réu freqüentava, junto com todo o bando de... Vamos, fale!
TESTEMUNHA:- Ficávamos até não sei que horas batendo papo
no bar “Flor de Minas”... lembro que os
trens apitavam lá na estação Central do Brasil, uns apitos chorados e roucos e
mui tristes... doía como uma faca furando uma coisa que a gente nem tinha mais...
mão ou perna amputada...
JUIZ:- Então o tal D.J. era mesmo um beberrão..
TESTEMUNHA:- E D.J. nem bebia... só tomava sua água
tônica... e falava... e falava...
D.J. está sentado a uma mesa de bar.
D.J.:- Odete... la bouteille et
la verre, s’il vous plais...
PROMOTOR:- Que raio de língua é essa? Algum código de
traidores?
TESTEMUNHA:- D.J. era professor de francês... e até para
pedir sua água tônica à garconete Odete, ele falava em “la bouteille et la
verre”.... (Gargalha). La bouteille et la verre... imagine... num bar escroto
de Belo Horizonte... Mas D.J. era... era... um gentleman... não, ele odiaria
isso... ele era “un homme très gentil et très élégant”... E nós esvaziávamos
uma fila de Brahmas...
Odete
entra com uma garrafa de água tônica e um copo, numa bandeja. Está com avental
comprido de garçonete e cabelo preso. Serve D.J. e, com gestos afetados, despe
o avental deixando à vista uma minissaia curtíssima, solta os cabelos e sensualmente senta-se nos
joelhos de D.J. Beija-o.
D.J.:- Marimá... Marimá... É você, minha irmã... é você?
O que você está fazendo aqui? Você odeia Paris!
MARIMÁ:- Paris! Paris é a capital do pecado... mas quem
acha isso é Maria Mariana, D.J.!
D.J.:- Quem é você, Marimá? Quem é você?
MARIMÁ:- Não fale, D.J., não fale... Apenas curta o ar de
primavera de Paris... não é uma delícia? Me lembra frei Xisto falando: “Jesus é
alegria, Marimá” e, sabe, me deu uma vontade de bater um fio pra Lu e eu
liguei, sabe, a Lu é genial... o tipo de mulher genial... e eu falei no
telefone com a Lu e sabe o que ela me disse? : Oi neguinha? E eu: onde cês vão? E ela: vem pra cá, a gente te espera...
Aquela voz linda da Lu...
D.J.:- Voz de frevo tocando... Voz de frevo tocando...
MARIMÁ:- E eu vim... Não sou eu a tua femme bleu, D.J.?
D.J.:- Você não tem sardas nas costas, Marimá!
PROMOTOR:- Positivamente, esse cara é um bêbado! Não diz
coisa com coisa!
TESTEMUNHA:- Faço questão de não deixar dúvida,
meritíssimo: D.J. só bebia água tônica, quando muito tomava uma Coca-Cola...
JUIZ:- Coca-cola? Mas isso todo mundo toma...
TESTEMUNHA:- E ficávamos ouvindo D.J....
Odete/Marimá
retira-se, dengosa, mandando beijos para D.J., enquanto a testemunha senta-se à
mesa com D.J., juntamente com dois outros amigos, todos com copos e garrafas de
cerveja, já meio bêbados, rindo muito.
D.J.:- As mulheres azuis.... as mulheres azuis! Elas
falam com voz de frevo cantando... elas vão muito, sabem onde, sabem? Elas vão
muito à Île de St. Louis... Se você tiver sorte, pode ver as sardas nas costas
delas... sardas feitas pelo sol de algum mar... Olha... olha o meu
passaporte... Eu vou para Paris... no mês que vem... EU VOU PARA PARIS...
AMIGO:- Escute... escute uma coisa, D.J. ... O que a
gente sente quando vê uma mulher azul?
D.J.:- A gente fica como se uma lua tivesse entrado
dentro da gente. Mas é preciso estar em estado de graça para ver uma femme
bleue...
OUTRO AMIGO:- E no
Brasil, D.J. ... e no Brasil.... não tem mulheres azuis no Brasil?
D.J.:- A safra de femmes bleues no Brasil é muito
pequena... cada vez menor... não dá pra todos...
OUTRO AMIGO:- E então, D.J.? E então?...
D.J.:- O jeito é mesmo ir para Paris no mês que vem...
D.J.
mostra de novo o passaporte. Olha para cima, para a Lua.
D.J.:- A Lua... a Lua mais desperdiçada do mundo...
D.J. cantarola.
D.J.:- “É, você que é feita de azul
me deixa morar neste azul
você que é bonita demais...”
O
amigo que era testemunha retoma seu lugar na frente do Juiz.
TESTEMUNHA:- Era na hora em que os trens apitavam que
dava aquilo em todos... e D.J. lembrava da mulheres azuis... Foi a última vez
que eu o vi. Ele ia para Paris no mês que vem... Custo a acreditar que D.J.
morreu... mas se o jornal diz que ele tá morto, deve ser verdade... Para mim,
no entanto, le brésilien D.J. está vivo, está aqui... Ele tinha uma cicatriz...
PROMOTOR:- Protesto, meritíssimo, protesto... A
testemunha está tergiversando... Nós queremos fatos...
JUIZ:- Senhor Promotor... o senhor está esquecendo que
julgar é como... como bisbilhotar a vida alheia... escarafunchar cada
detalhe... descobrir pecadilhos escondidos em cada canto... e tranformá-los, à
luz do direito, em pena... em castigo... Assim funciona o sistema! Por favor, a
testemunha pode continuar.
TESTEMUNHA:- Como eu estava dizendo... le brésilien D.J.
tinha uma cicatriz no supercílio esquerdo... um mistério... eu nunca soube como
surgiu aquela cicatriz; ele era magro, louro como um inglês, mais ou menos 1
metro e 75 de altura... Segundo mistério: tinha hora que D.J. parecia ter 45
anos, outras horas ficava com 29 anos. Era solteiro por amor: terceiro
mistério. As mulheres feias achavam D.J. horrível, mas as belas gostavam
dele... e D.J. teve quantas quis... até o dia em que descobriu que só as
mulheres azuis faziam os homens felizes...
JUIZ:- Tragam a próxima testemunha! A próxima testemunha!
Entra Maria Mariana, irmã de D.J. Veste-se como uma
beata.
JUIZ:- O que a senhora traz nas mãos?
MARIA MARIANA:- As cartas, meritíssimo... as cartas de
D.J....
JUIZ:- Ah! Cartas! Cartas revelam muito, se é o que o
senhor Promotor me entende...
PROMOTOR:- Estou aqui numa grande angústia,
Meritíssimo... os jurados! Os jurados ainda não chegaram!...
JUIZ:- Eles virão... eles virão... talvez. O Sistema, meu
jovem, o Sistema é sábio.
PROMOTOR:- E o advogado de defesa, Meritíssimo... E o
advogado de defesa?!
JUIZ:- Aprecio a sua sensibilidade... o senhor é um
poeta... Isso é muito importante num promotor... Mas, sem o advogado de defesa
– que é sempre um chato, um insensível, que não entende muito bem os divinos
meandros do Sistema – o senhor terá oportunidade de ser brilhante, aliás como
sempre, sem que lhe façam qualquer tipo de sombra!...
PROMOTOR:- Envaidecem-me suas palavras, Meritíssimo...
Mas uma contenda necessita de adversário à altura...
JUIZ:- Não se preocupe, não se preocupe... daremos conta
do recado. Já fizemos isso tantas vezes, não é mesmo? O Sistema cumprirá seu
destino...
PROMOTOR:- ... de dar mais poder aos poderosos...
O Juiz dá-se conta, afinal, da testemunha.
JUIZ:- Se a senhorita tem as cartas de D.J., então
confessa que serviu de pombo-correio para seu irmão D.J. e os amigos
brasileiros do réu!
PROMOTOR:- Meritíssimo...a testemunha vai invocar o nome
do santo padre Carlos para fugir de sua responsabilidade... tenho certeza...
MARIA MARIANA:- Cedi à tentação, o santo padre Carlos
sabe, aceito a acusação, como vontade divina...
PROMOTOR:- Não disse?
MARIA MARIANA:- O santo padre Carlos, meu confessor e
conselheiro, sabe que sou a primeira a reconhecer: devo pagar meus pecados
perante a Justiça de Deus e a Justiça dos Homens, se bem que lutei, agarrei com
São Judas Tadeu, fiz novenas, rezei ajoelhada em milho, tudo para que São Judas
Tadeu e a minha boa Nossa Senhora Aparecida não me deixassem cair em tentação e
me livrassem de todo mal, amém.
PROMOTOR:- Protesto, Meritíssimo... Isso está virando uma
ladainha muito chata. A testemunha é chata... esse processo é chato... e até o
réu que, apesar de morto, teve uma vida muito chata... Até agora, não
conseguimos arrancar um só escândalo, um só adultério, nada! Isso tudo é um
teatro... um teatro de muito mau gosto!
JUIZ:- Protesto negado... (Em voz mais baixa, para o
Promotor). Acho que essa beata está escondendo o jogo... Vamos dar mais um
pouco de corda para ela... Espere, acho que vou pegá-la... (Voltando-se para
Maria Mariana). Senhorita, responda-me com a verdade e somente com a verdade: a
senhorita, por acaso, é virgem?
MARIA MARIANA:- Meritíssimo! Além do meu irmão D.J., que
Deus o tenha, os únicos homens que de mim se aproximaram foram o santo padre
Carlos, meu confessor, e frei Xisto...
JUIZ:- Ambos acima de qualquer suspeita, não é mesmo?...
Mas continue... continue o que a senhorita estava dizendo...
MARIA MARIANA:- Nossa Senhora Aparecida houve por bem
resolver que eu devia capitular diante do demônio que vestiu a pele do cordeiro
do Senhor que era meu irmão D.J., que Deus o tenha, na Sua infinita
misericórdia.
JUIZ:- A testemunha confirma: foi cúmplice das loucuras
de D.J.
PROMOTOR:- E a loucura maior desse... desse... famigerado
era fugir para Paris. O que ele foi fazer em Paris? Diga! Não precisa nem
dizer: cair na esbórnia, na farra, na bandalheira... e na traição! Na traição
dos mais profundos valores éticos, religiosos e morais da sagrada família
mineira... E a senhora, uma beata, uma virgem, foi o instrumento dessa
insanidade!
MARIA MARIANA:- Fui fraca, concordei e ajudei os planos
de meu irmão D.J. de ir para Paris, mesmo sabendo que lá é a capital do Pecado;
meu irmão D.J. sempre foi um rebelde...
JUIZ:- Bêbado... e agora, rebelde. Vamos, fale mais das
rebeldias desse facínora!
MARIA MARIANA:- ... minha santa mãe, que Deus a tenha e
guarde, contava...
Luz sobre a mãe de D.J., toda de negro, sentada num
banquinho, rezando num terço, cabeça coberta com um véu também negro, com uma
barriga enorme.
MÃE DE D.J.:- Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós,
pobres pecadores... Protege este meu
filho... este meu filho... que tanto chuta dentro de mim... O que será dele,
minha Santa mãezinha... assim, já tão rebelde... o que será?...
MARIA MARIANA:- ... rebelde... ele sempre foi rebelde...
e eu só concordei em colaborar com ele, depois que consultei meu guia
espiritual, o bom santo padre Carlos... Só queria... atrair uma ovelha
desgarrada ao rebanho do Senhor... minha boa Nossa Senhora Aparecida é
testemunha... nunca aprovei as ligações clandestinas do meu irmão D.J. com a
pobre Lu.
PROMOTOR:- Protesto, Meritíssimo! Protesto! A testemunha,
mais uma vez, está querendo confundir esta corte... Não existe nos anais desse
processo nenhuma Lu... Só falta ela dizer que essa Lu é a mulher azul!
JUIZ:- Protesto negado... Senhor Promotor: o senhor que
reclamava que estava tudo chato, agora que aparece uma esperança de escândalo
com essa Lu... vai querer perder essa oportunidade? Pois eu quero ir fundo... bisbilhotar tudo... e quero
muito saber quem é essa Lu...
PROMOTOR:- Data venia, Meritíssimo, essa Lu não tem nada
com a acusação a D.J.... E a testemunha já confessou que fingia...
JUIZ:- Se o senhor Promotor continuar com esse tipo de
protesto, eu suspendo o julgamento... A testemunha pode continuar...
MARIA MARIANA:- Bela e pobre Lu... De tanto pensar nela e
no escândalo aqui no Brasil, eu dizia a mim mesma que devia ir a Paris pra
evitar o mal... Fingi, eu fingi, sim, que ajudava... e quando eu fraquejava, eu
repetia vezes sem fim a meditação aconselhada pelo caríssimo padre Tiago e
dormia repetindo estas palavras: “...tenho que lutar fortemente contra minha
rebelde natureza... tenho que lutar fortemente contra minha rebelde
natureza...”
Enquanto repete várias vezes essas palavras, Maria
Mariana vai-se transformando em Marimá: encurta a saia, baixa o decote da
blusa, solta os cabelos, pinta os lábios de batom vermelho e acende um cigarro.
Juiz e promotor ficam boquiabertos. Passa, de novo, o jornaleiro.
JORNALEIRO:- Extra! Extra! Reviravolta no caso D.J.
Extra! Extra! Correspondência maldita do indesejável “monsieur” D.J. revela
fatos estarrecedores! Extra! Extra!
MARIMÁ:- ... aí eu abria os olhos e sabe onde eu estava?
Sabe? Em Paris! No meu quarto na Maison du Brésil! O livro que caía de minhas mãos
não era esse... esse livro de um tal padre Tiago Koch... era um livrinho de
capa vermelha chamado “Paris sem Gastar”, de Jacqueline Boursin que a Air
France editou em português... e aí eu falava comigo: tirando onda de sonâmbula,
hein? e via que tudo era um pesadelo: não estava no Brasil coisa nenhuma...
estava em Paris! E aí eu me lembrava de frei Xisto falando: “Jesus é alegria,
Marimá”... e eu pegava o telefone e batia um fio pra Lu... Como não gostar da
Lu? É o tipo de mulher genial... e eu falei no telefone com a Lu e sabe o que
ela me disse? : Oi neguinha? E eu: onde
cês vão? E ela: vem pra cá, a gente te
espera... Aquela voz linda da Lu...
Luz sobre D.J. e a Lu e mais alguns amigos no bar Les
Deux Magots, cujo luminoso encima a cena. Marimá junta-se ao grupo.
D.J.:- ... voz de frevo tocando... voz de frevo
tocando... A sua voz, Lu, a mais bela desse bar... a mais bela de Paris...
AMIGO 1:- ...cheguei ontem, D.J., e já tô com uma baita
vontade de comer um queijinho mineiro, uai...
eu quero um queijo mineiro, sô...
AMIGO 2:- Lingüiça... hum... uma lingüicinha frita...
AMIGO 3:- Feijão... feijão tropeiro, gente...
AMIGO 4:- ... frango a molho pardo! Eu quero um frango a
molho pardo!...
TODOS (cantando e batucando):- “Quando eu morrer,
não quero choro nem vela:
quero uma fita amarela,
gravada com o nome dela...
Quando eu morrer...”
Entra um francês. Faz charme para a Lu e tenta cantá-la.
FRANCÊS:- Je veux parler avec vous... vous êtes très
belle... très belle... Je suis... je suis le regisseur de cinéma... Jean
Louis... Jean Louis Godard... savez vous?... Vous seras très fameuse... comme
Ana Karina... Brigitte Bardot... vous êtes la plus belle...
D.J.:- Esse cara tá engrossando...
FRANCÊS:- ... vous sera la plus belle étoile du cinéma...
D.J. levanta-se.
D.J.:- Seu filho da puta... seu Godard de porra
nenhuma... seu bosta...
AMIGO 1:- ...corno...
AMIGO 2:- ... lambedor de cu...
AMIGO 3:- ... veadão...
D.J. repete todos os palavrões dos amigos, acrescenta
outros, todos rindo muito.
D.J.:- ...seu
merda... chupador do caralho do De Gaulle...
O francês não entende nada, mas acaba partindo para a
briga e tudo vira uma grande confusão. Foco no Juiz e no Promotor, para onde
volta Marimá. Abalado pela minissaia de Marimá, o Juiz prossegue o
interrogatório.
JUIZ:- A senhorita nega ou confirma que tenha servido de
pombo-correio para seu irmão D.J. e os amigos brasileiros do réu?
PROMOTOR:- Meritíssimo... se me permite...
JUIZ:- Espero que...
Juiz e Promotor param boquiabertos e decepcionados,
enquanto Marimá volta a ser Maria Mariana: desce a saia e sobe o decote, prende
o cabelo e limpa a boca, jogando fora,
assustada, o cigarro que tinha nas mãos.
MARIA MARIANA:- Cedi à tentação, o santo padre Carlos
sabe, aceito a acusação, como vontade divina...
O Juiz tenta parecer natural.
JUIZ:- Minha jovem: alguém lia as cartas de D.J., além
dos destinatários?
MARIA MARIANA:- O santo padre Carlos lia...
JUIZ:- Existem 48 cartas arroladas no processo: o padre
Carlos leu todas?
MARIA MARIANA:- Não, quando o santo padre Carlos viajava,
eu procurava frei Xisto, no Convento dos Dominicanos...
JUIZ:- E esse frei Xisto, lia as cartas?
MARIA MARIANA:- Lia, lia todas... é um cearense muito
curioso... lia todas as cartas... Me falava: “É seu dever entregar as cartas
dos que confiarem em você”.
JUIZ:- O padre Carlos também dizia a mesma coisa?
MARIA MARIANA:- O santo padre Carlos aconselhava-me a
queimar algumas missivas... algumas eu guardei... tenho uma em meu poder...
PROMOTOR:- Protesto, meritíssimo...
JUIZ:- O senhor não protesta coisa nenhuma...
PROMOTOR:- Desculpe, meritíssimo... não é um protesto...
JUIZ:- Que saco! Fala!
PROMOTOR:- Uma pergunta para a testemunha...
JUIZ (recompondo-se):- O senhor promotor pode argüir a
testemunha.
PROMOTOR:- A senhorita, uma beata pombo-correio, uma
virgem, sabe de que o réu é acusado?
JUIZ:- Mas que pergunta idiota... não é preciso haver
crime para haver julgamento...
PROMOTOR:- Meritíssimo... fui seu aluno mais atento...
mais entusiasta...
JUIZ:- ... e mais pegajoso...
PROMOTOR:- Sempre segui à risca suas teorias, mas o
senhor, Meritíssimo, me surpreende a cada julgamento que fazemos...
JUIZ:- O que o senhor está querendo dizer?
PROMOTOR:- Isso é brilhante! Brilhante! “Não é preciso
haver crime para haver julgamento!” Isso merece entrar para os anais do
Sistema... é um passo gigantesco para as ciências jurídicas de nosso país!
JUIZ:- O senhor continua pegajoso...
Durante a
conversa entre Juiz e Promotor, Maria Mariana transforma-se em Marimá
MARIMÁ:- Eu não matei D.J. ... em Paris... Eu não
matei... D.J. em Paris...
PROMOTOR (boquiaberto com a transformação):- Repito a
pergunta: a senhorita sabe de que o réu é acusado?
MARIMÁ:- Sei de que o acusam e só tenho a dizer: D.J.
estava na dele...
PROMOTOR:- Meritíssimo, essa história...
JUIZ:- Nem sei se temos uma história... (Assanhado com a
transformação e tentando conter-se). E a carta... A senhorita podia ler a
carta?
MARIMÁ:- Sim, meritíssimo...
Marimá lê a carta de D.J. alternando essa leitura com a
cena de D.J. em Paris.
Marimá:- “Paris, coeur du monde, 21 de junho de 1969”
D.J. (olhando-se ao espelho):- Por que será que estou
remoçando?
MARIMÁ:- “Meus amigos Antônio, Osvaldo, Geraldo, Luís,
Ângelo, Jesus, Mon Bonhome e Fernando Paulo...”
D.J.: Só de pisar no aeroporto de Orly, fiquei com cinco
anos a menos... E a cada manhã... meus cabelos louros ficam mais rebeldes...
MARIMÁ:- “... pediria que vocês explicassem, a quem
perguntar, que minha pátria é azul e tem sardas nas costas...”
D.J.:- É a febre da primavera... todos os estrangeiros
pegam a Febre da Primavera... é ela que está me fazendo remoçar...”
MARIMÁ:- “... e uma pequena cicatriz no joelho esquerdo,
e eu sei tudo dela...”
D.J. canta e dança pelas ruas de Paris.
D.J.:- “É, você que é feita de azul
me deixa morar neste azul
você que é bonita demais...”
MARIMÁ:- “... sei de quando ela fala com voz de frevo
tocando, sei das sardas que ela tem nas costas banhadas pelo oceano
Atlântico...”
D.J. está ofegante. Pára, acende um Gauloises e passa a
caminhar lentamente.
D.J.:- Chega... minhas pernas... esta maldita febre da
Primavera... Alguma coisa queima dentro de mim...
MARIMÁ:- “... sei de certos recôncavos secretos, de uma
cidade do interior nos olhos dela, e basta ela encostar em mim um fio de
cabelo...”
D.J. encontra um velho de óculos.
D.J.:- Mon vieux bonhome, o senhor viu alguma mulher azul
por aí?
VELHO:- Perto do Sena costumava haver mulheres azuis...
D.J.:- Mas... o senhor viu alguma por lá?
VELHO:- Não, hoje eu não vi. Uma vez vi uma na Île de St.
Louis, mas logo a perdi de vista: ela atravessou a Pont Sully e foi andando
pelo Quai Saint Bernard: o salto do sapato dela tocava música...
D.J.:- E quando foi isso?
VELHO:- Faz uns catorze ou quinze anos...
MARIMÁ:- “... um fio de cabelo, o pé, a mão, pra eu
sentir o cansaço mais descansado do mundo e enfiar os dedos nos cabelos dela e
saber que, por ela, vale viver, vale morrer: pela minha pátria azul de sardas
nas costas... Do sempre amigo, D.J.”
Aplausos do Juiz e do Promotor, enquanto a cena volta-se
para D.J., que senta num banco e adormece. Sonha. A mulher do sonho é Lu.
D.J.:- Femme bleue... ar de nuvem... voz de frevo
tocando...
LU:- Sabe, D.J., aquele filme do John Ford que combinamos
assistir juntos aqui em Paris? Já saiu de cartaz há catorze anos...
D.J.:- Fala mais... quero ouvir sua voz de frevo
tocando...
LU:- Sua mão tá quente, amor, e sua testa também: deve
ser a Febre da Primavera, mas passa logo, já curei a minha...
D.J.:- Lembra daquela gripe que você me pegou uma vez?
Você foi ao Rio de Janeiro e trouxe a gripe de lá...
LU:- E você demorou um tempão pra sarar da gripe, tomava
conhaque Dreher um depois do outro...
D.J.:- E você fez aquela limonada pra mim, lembro do sumo
do limão nos seus dedos...
LU:- E você tava sem cigarro nesse dia...
D.J.:- Foi mesmo. Sabe?... eu gostava daquela gripe.
Olha: eu amava aquela gripe, porque aquela gripe era sua...
A cena volta-se para o Promotor, Juiz e Marimá.
JUIZ:- Acho que já ouvimos demais... Suas testemunhas,
até agora, só confirmaram o óbvio, óbvio ululante...
PROMOTOR:- Óbvio pululante, Meritíssimo?...
JUIZ:- Ululante... ululante...
PROMOTOR:- ... e o que significa isso?
JUIZ:- Li outro dia no jornal, um cronista aí do Rio de
Janeiro... Também não sei o que é...
PROMOTOR:- Como fugir desse... desse óbvio ululante?
JUIZ:- Chamando outra testemunha... (Para Marimá, que se
retira). A senhorita está dispensada...
PROMOTOR:- Meritíssimo, tenho agora uma testemunha que
vai... desmontar... a pretensa virgindade dessa aí...
JUIZ:- Senhor Promotor... Suas testemunhas andam muito
fracas... Espero que melhore o nível, dessa vez... Eu quero fatos... fatos
escabrosos... escândalo... Se não, vamos acabar absolvendo o morto, digo, o
réu!
PROMOTOR:- Que entre o Jornalista!
JUIZ:- Jornalista? Senhor Promotor, a responsabilidade é
sua... o senhor sabe da ojeriza que tem o Sistema a essa... a essa raça... Só
faltava essa!
JORNALEIRO:- Extra! Extra! Testemunha traz fatos novos à
morte de D.J. Extra! Extra! Testemunha internada em hospício após depoimento.
Entra o jornalista.
PROMOTOR:- O senhor jura dizer...
JUIZ:- Pode parar, senhor Promotor... deixa isso pra
lá... Além de chamar um jornalista, o senhor ainda pretende que ele diga a
verdade? E sob juramento? O senhor, que se vangloriou tanto de ter sido o meu
aluno mais atento...
PROMOTOR:- ... então... então... passemos de imediato...
a ... a ... interrogar...
JUIZ:- Deixa comigo... Interrogar jornalista é a minha
especialidade! Senhor Jornalista: o réu deixou um manuscrito – “Diário de
Paris”. Como o senhor ficou sabendo do conteúdo desse manuscrito?
JORNALISTA:- Prefiro não revelar minhas fontes de
informação.
JUIZ:- “Prefiro não revelar minhas fontes de informação!”
Como se isso fosse possível! Eu não lhe disse, senhor Promotor, que trazer
jornalista para testemunhar era o mesmo que chover no molhado? Que não ia
acrescentar nada ao processo? Que jornalista e professor é tudo uma cambada só?
Guardas! Levem esse louco...
PROMOTOR:- Meritíssimo... antes de chamar a próxima
testemunha... aquela que realmente vai desmascarar a beata... é preciso
analisar os autos... a vida de D.J. ... bisbilhotar cada detalhe, em busca da
verdade...
Foco em D.J., que se levanta de uma cama, desce uma
escada e senta-se à mesa para tomar café da manhã.
D.J.:- Maria Mariana... Maria Mariana! Meu café!
Maria Mariana entra com uma bandeja de café e sonhos.
D.J.:- O que é isso?
Maria Mariana:- Sonhos, meu irmão... que você
gosta...
D.J.:- Sonhos? De novo? Eu não quero mais comer sonhos,
minha irmã... Eu quero vivê-los... Eu quero viver os meus sonhos!
Maria Mariana:- Não tem Lu, D.J., não tem
Paris... é tudo sonho, tentação, pecado... é invenção... D.J., não existem
mulheres azuis!...
D.J.:- Olha o meu sapato... nem dinheiro para uma meia
sola... Eu sou o único professor naquele colégio que ainda não tem carro...
Maria Mariana:- Andar a pé é bom para o coração,
D.J.... Se você continuar nesta Paris de papel é que é a morte, D.J. ... Ainda
há tempo pra ocê se salvá, D.J. ... Ocê quer ser um morto vivo, D.J.?
D.J. (acendendo um Minister):- Gauloises, Maria
Mariana... Gauloises... E vou pedir aumento, te prometo... De hoje não passa...
E vou para Paris, no mês que vem... Vou chegar pro Diretor...
D.J. passa a dialogar com o Diretor, fazendo ele mesmo os
dois papéis. Emposta a voz, como de locutor, para imitar o Diretor.
D.J.:- “Sabe o que eu quero, Senhor Diretor?”
DIRETOR:- “Suponho que sim, mas...”
D.J.?- “Não tem mas... nem menos... Quero um aumento...
quase todos ganharam, só eu e mais dois que não. Exijo um aumento!
DIRETOR:- “Calma, D.J., você se esquece que está
substituindo o professor Valle na cadeira de geografia... esquece que está ganhando
o salário dele...”
D.J.:- “Perdão, Senhor Diretor, mas o professor Valle foi
a Guarujá e daqui a cinco ou seis dias está de volta... Exijo o aumento, senão
vou para Paris e...”
DIRETOR:- “Paris, Paris é ilusão, D.J., um pedaço de
papel colorido, puro pedaço de papel...”
D.J. pega seus livros e sai, repetindo que vai pedir
aumento. Maria Mariana acompanha-o com os olhos, como se ele já estivesse
longe, caminhando pelas ruas de Belo Horizonte. Grita, para se fazer ouvir.
Maria Mariana:- Te enganaram, D.J.... te
enganaram... Esse rio não é o Sena, D.J. ... e essa ponte, D.J., não é a Pont
Neuf nem a Pont de l’Alma... isso é B.H., D.J... não é Paris, meu irmão... não
é Paris...
D.J. chega ao colégio, sempre repetindo “Hoje eu vou
pedir aumento”. Entra no gabinete do Diretor, onde já estão vários professores.
D.J.:- Bom dia, Senhor Diretor... Olá pessoal... (Para si
mesmo). “Vou tomar coragem e exigir o meu aumento”. (Para o grupo). E então,
pessoal, de que falavam?
PROFESSOR 1:- De futebol, é claro...
D.J.:- Aposto que falavam sobre os altos salários dos
jogadores...
PROFESSOR 2:- Não, dizíamos que um novo rei está
nascendo...
D.J:- Um novo rei? Com certeza, ganhando como um
professor! Me diz, quem é o novo rei?
PROFESSOR 1:- Ora, ainda pergunta, D.J.? O Tostão, é
claro...
D.J.:- Deixa de sonho, professor Rui, deixa de sonho:
igual ao Pelé não nasce outro em cem anos... Mas isso não é importante...
precisamos reivindicar do Senhor Diretor...
PROFESSOR 2:- E o Garrincha? Garrincha foi melhor que o
Pelé...
PROFESSORA:- Pelé é o único... o rei dos reis!
PROFESSOR 1:- Espera pra ver, Vera Sílvia... o Tostão vai
fazer 90 milhões de brasileiros esquecerem o Pelé!
D.J.:- Duvido, só vendo: o Pelé é um gênio! Mas gênios,
mesmo, no duro, somos nós, que vivemos na cidade mais cara do Brasil com um...
PROFESSOR 1:- E o Tostão? Não é gênio? Não ouviu o que o
Saldanha falou na TV?
PROFESSORA:- Viva o Tostão!
D.J.:- Gente, preste atenção... olha aqui... estou
falando sério... A opinião do Saldanha sobre o Tostão ou sobre quem quer se
seja não enche panela de ninguém...
PROFESSOR 1:- Mas vai encher o gol dos adversários... e o
coração dos brasileiros de orgulho...
PROFESSORA:- D.J. tem razão... é preciso deixá-lo
falar... defender nossos...
PROFESSOR 2:- Sssss... o Senhor Diretor parece que vai
falar... Silêncio... ssss...
A voz do Diretor deve ser empostada tal qual a que D.J.
imitava.
DIRETOR:- Vocês discutem sobre Pelé e Tostão porque não
viram El Tigre jogar.
PROFESSORA:- Quem era El Tigre?
DIRETOR:- Quem era El Tigre? Lastimo, professora Vera
Sílvia, que a senhora não saiba: El Tigre era Friedenreich, filho de um alemão
e de uma mulata brasileira, o soberbo, melhor que Pelé e Tostão...
PROFESSOR 2:- Senhor Diretor, Friedenreich é aquele que
matou um goleiro com um chute? Quando eu era menino contavam a história...
DIRETOR:- Ele mesmo, professor, ele mesmo... El Tigre, o
soberbo...
PROFESSOR 1:- É mesmo...
D.J.:- Senhor Diretor, eu acho que é importante sabermos
que El Tigre era... soberbo... mas...
DIRETOR:- Mas o senhor acha que ele não era tão grande
quanto Pelé, não é mesmo?
DJ.:- Na verdade... é... que... bem...
DIRETOR.:- Ora, D.J., vivemos numa democracia... o senhor
pode até mesmo discordar de mim, que sou seu Diretor... que é isso, meu
rapaz... Da divergência nasce a convergência, não é mesmo? Da divergência nasce
a convergência!
PROFESSOR 1:- Sábias palavras, senhor Diretor...
PROFESSOR 2:- Aprenda com o Diretor, D.J....
PROFESSORA:- Igual a El Tigre, nunca mais...
DIRETOR:- É isso mesmo, meus caros... (Consulta o relógio
de bolso). A sirene já vai tocar... vou fazer uma rápida inspeção nos
corredores. (Sai).
Há um breve silêncio entre os professores. Todos se
voltam para D.J.
D.J.:- Vocês não sabem o que é ter estudado interno cinco
anos num colégio de padres jesuítas: chegava a Semana Santa e a gente se sentia
culpado pela morte de Jesus Cristo...
Toca a sirene. Todos se retiram, cabisbaixos. D.J. fica
um instante pensativo. Entra Maria Mariana, passa os dedos, carinhosamente,
entre os cabelos de D.J.
D.J.:- Eu prometo, minha irmã, eu prometo rezar cinco
Padres-nossos, cinco Ave-marias, quatro Salve-rainhas e um Creio em Deus Padre
toda noite, antes de dormir, logo que chegar a Paris.
D.J. sai. Maria Mariana, lentamente, sonhadoramente,
transforma-se em Marimá. Ouve-se uma voz em off, cantando.
VOZ:- “Nossas roupas comuns dependuradas,
nas cordas, qual bandeiras agitadas,
pareciam um estranho festival...”
MARIMÁ:- Serenata, para mim... Só mesmo em Paris... Frei Xisto
tem razão: Jesus Cristo é alegria, Marimá... Jesus Cristo é alegria!
VOZ:- “Tu pisavas nos astros distraída
sem saber que a ventura desta
vida...”
Entra um jovem. Marimá lança-se a seus braços.
MARIMÁ:- É você? Estava te esperando...
Enquanto o foco apaga em Marimá e muda para a corte, a
voz conclui a canção.
VOZ:- “... é a cabrocha, o luar e o violão...”
PROMOTOR:- Demagogia barata... encenação pura!
JUIZ:- Subversão, senhor Promotor! Subversão! Esse D.J.,
além de bêbado e louco, era um subversivo. Vou encerrar o julgamento e
promulgar a sentença!
PROMOTOR:- Meritíssimo... ainda não esclarecemos o
fundamental... a morte... a morte de D.J. em Paris!
JUIZ:- O senhor está entrando no jogo deles, dos
subversivos, senhor Promotor... Tenho certeza de que não há nenhuma Paris...
nem sei tampouco se houve morte!
PROMOTOR:- Nas suas aulas, Meritíssimo - lembra-se?
- o
senhor insistia: in dubio, pro reo! A dúvida favorece o réu!
JUIZ:- Outros tempos, senhor Promotor, outros tempos! Mas
já que insiste, vamos à última testemunha... Mas aviso-lhe: se for outra
testemunha inútil, sua carreira de promotor passa a correr sérios riscos...
Quero escândalos, ouviu? Detalhes escabrosos!
PROMOTOR:- Que entre a última testemunha!
JORNALEIRO:- Extra! Extra! Mais do que extra! Depoimento
da Mulher Azul abala o Governo! Extra! Extra! Depoimento da Mulher Azul! Não
deixe de...
O jornaleiro não termina a frase: é arrancado para fora
do palco por figuras encapuzada, por alguns segundos. Quando volta, tem outra
manchete.
JORNALEIRO:- Extra! Extra! Mulher Azul não existe! Extra!
Caso D.J.: uma farsa da oposição! Extra! Extra!
Entra a Mulher Azul: é Lu, num vestido azul. Juiz e
Promotor ficam extasiados por alguns segundos, diante de sua beleza.
JUIZ:- Tenho em mãos um telegrama da France Press dizendo
ser você a Greta Garbo. Você nega ou confirma?
LU:- Sou mais bela e mais jovem do que Greta Garbo quando
jovem... e mais esquiva também.
JUIZ:- Então, você é a Mulher Azul...
LU:- Meritíssimo, as sardas em minhas costas só aparecem
quando tomo sol...
JUIZ:- Sua voz...
LU:- ... ouvindo frevo, meritíssimo? São as ondas do mar
em minhas costas...
PROMOTOR (Á parte):- O Meritíssimo ficou gagá... (Para o
Juiz). Meritíssimo, é preciso ser duro com a testemunha!
JUIZ:- “Hay que endurecer, pero
sin perder la ternura jamás”! “Hay que endurecer...”
PROMOTOR (Esbofeteando o Juiz):- Perdão, Meritíssimo...
O Juiz recompõe-se aos poucos.
JUIZ:- É preciso ser duro... é preciso... ser... duro...
PROMOTOR (à parte):- Dura estava outra coisa.
JUIZ:- Senhor Promotor!
PROMOTOR:- Pronto, Meritíssimo!
JUIZ:- Leve a testemunha daqui! Leve a testemunha daqui!
PROMOTOR:- Meritíssimo: lembre-se de que a dúvida
favorece o réu...
JUIZ:- Que merda, senhor Promotor... que merda!
PROMOTOR:- O Sistema, Meritíssimo, o Sistema!
JUIZ:- Esse tribunal é meu! Está querendo ser mais do que
eu sou?
PROMOTOR:- A obrigação do aluno é ultrapassar o mestre,
Meritíssimo. Guardas! Levem o Meritíssimo: ele está doente... muito doente...
Guardas arrastam para
fora do tribunal o Juiz. O Promotor toma-lhe o lugar.
PROMOTOR:- O Sistema se aperfeiçoa: passo a ser, ao mesmo
tempo, Promotor e Juiz! Acusador e julgador numa só pessoa! (Para Lu). Agora é
comigo, mocinha. Pode contar tudo o que sabe sobre esse subversivo, louco e
bêbado D.J.!
Luz sobre D.J. sentado a uma mesinha rústica, escrevendo
furiosamente. Ao lado, uma cama bem simples.
D.J.:- Paris, coeur du monde, 29 de abril de 1969.
Antoine, mon cher: Vive Paris! Vive la vie! (Pausa). Paris, coeur du monde, 5
maio de 1969. Prezado amigo Jésus Rocha: femme bleue quae sera tamen. Abraços.
D.J. (Pausa).Paris, 7 de maio de 1969. Luiz Gonzaga: l’amour est oiseau. Ponto.
Il lui faut ouvrir des cages. Ponto. Abraços. D.J. (Pausa). Paris, coeur du
monde, 11 de maio de 1969. Mon ami Gilu: Sabe de uma coisa? Pulei a cerca,
Gilu: Paris me libertou. E quero declarar solenemente que não fui eu quem matou
Jesus Cristo e não tenho nenhuma culpa se Madalena quis ser Madalena. Estou
livre! Um abraço. D.J. (Pausa). Paris, coração do mundo, 26 de maio de 1969.
Osvaldo: eu ia andando pelo Boulevard Saint Michel e sua carta era um pedaço do
Brasil que eu levava no bolso. Não me esqueci dos queijos franceses que te
prometi. Só que agora, me dá vontade de comer é queijo de Minas. Um forte
abraço. D.J. (Pausa). Paris, 27 de maio de 1969. Caro amigo Luís Gonzaga: o
Brasil é um nó na garganta. Ponto. Abraço. Ponto. D.J.
Pausa. D.J. levanta-se, deita-se na cama e enrola-se sob
uma coberta, tremendo. A luz, aos poucos, desvenda um painel às suas costas com
estampas, figuras, fotos de Paris. D.J. levanta-se, faz a barba, passa loção
Lacoste, de Jean Patou. Começa a ouvir uma voz e um violão.
VOZ:- “É, só eu sei
quanto amor eu guardei
sem saber que era só pra você...”
D.J. abre a porta do quarto e sai andando à procura da
voz, que o acompanha, até chegar à porta do quarto número 6.
VOZ:- “Senão não seria o amor
aquele em que a gente crê
amor que chegou para dar
o que ninguém deu pra você...”
D.J. bate à porta do quarto número 6: era ela, a Mulher
Azul. D.J. e Lu abraçam-se e dançam. Enlaçados, caem na velha cama do quarto de
D.J. Breve blackout. Lu, enrolada numa toalha, e D.J., só de calças jeans.
LU:- Lembra como eu era no Brasil, D.J.? Lembra? Não estudava,
não trabalhava: lembra da minha dor de cabeça às 8 da noite?
D.J.:- Só eu sei de seus recôncavos, minha pátria azul de
sardas nas costas...
LU:- Ai, D.J., assim você me arrepia toda... Estou
ficando gorda, D.J.? Preciso parar de comer tanto cuscuz naquele restaurante da
rue du Pot de Fer, D.J.... mas é tão gostoso, não é mesmo?
D.J.:- Por sua voz de frevo tocando, minha pátria azul de
sardas nas costas... por você, vale viver, vale morrer...
LU:- Fica aí, D.J., dorme um pouco... vou tomar um banho...
Lu sai. D.J. espreguiça-se, deita-se e adormece. Entra
Maria Mariana, toda de preto, com um véu sobre a cabeça, um terço numa mão e um
vidro em outra.
MARIA MARIANA:- “Tenho que lutar fortemente contra minha
rebelde natureza” (Repete várias vezes). Meu santo padre Carlos, me dá força,
meu santo padre Carlos... eu preciso jogar essa santa água benta brasileira que
você me deu, meu santo padre Carlos... jogar em todo o Quartier Latin... em
toda a Rive Gauche... no Boulevard St. Michel... no Jardin du Luxembourg... na
Sorbonne... (Aproxima-se de D.J. adormecido, enquanto fala, e faz que ele beba
o conteúdo do vidrinho). Minha Nossa Senhora Aparecida... Paris é um pedaço de
papel... rasga à toa... é frágil como o pecado... “Silêncio, minh’alma, nem queixa
nem pranto”. Minha Nossa Senhora Aparecida, faz que minha mão seja forte... faz
que eu salve do pecado o meu irmão pecador...
Lu, enrolada na toalha, voltando do banheiro, pára
estática. D.J. mexe-se na cama, tosse e depois acorda.
MARIA MARIANA:- Acorda, D.J., acorda!
D.J.:- Cadê a Lu? Onde foi a Lu?
MARIA MARIANA:- Lu? Não existe Lu, D.J., você está
delirando: se não sair daqui, se você não voltar, será considerado morto...
D.J.:- Onde foi a Lu? Luuuuuuuuuuuuuu!!!
MARIA MARIANA:- Não tem Lu, D.J., não tem Paris: é tudo
sonho, tentação, pecado; é invenção, D.J., não existem mulheres azuis!...
D.J. acende um cigarro, tosse.
MARIA MARIANA:- Se você continuar nesta Paris de papel,
D.J., é a morte: ainda há tempo para você se salvar... Lu é invenção... mulher
azul é invenção: te enganaram, D.J., você ainda pode se salvar... Você quer ser
um morto-vivo, D.J.?
Lu entra no quarto.
LU:- Quem é a senhora?
MARIA MARIANA:- Sou uma enviada de Nossa Senhora
Aparecida, padroeira do Brasil.
Maria Mariana, sob os olhos atônitos de Lu, começa a
despir suas vestes de beata e transforma-se me Marimá.
LU:- É você, Marimá?
MARIMÁ:- Era! Era eu, Lu!
Marimá alterna choro e riso convulsivo. Lu tenta
acalmá-la, até perceber que D.J. está morrendo.
D.J.: Morrer, Lu, é uma forma de viver...
Corre para ele, a tempo de fechar-lhe os olhos.
LU:- Vocês mataram D.J.... vocês querem matar D.J.! Tem
gente que quer que D.J. esteja vivo... tem gente que quer que D.J. esteja
morto... Quem quiser, pode matar D.J., mas ele voltará... ele voltará no
primeiro samba... ele voltará num frevo tocando... ele voltará num grito de
gol!
FIM
s.p.
04.11.1998
Nenhum comentário:
Postar um comentário