domingo, 2 de maio de 2021

A MORTE DE UM CERTO D.J., EM PARIS

  

(Camille Pissarro - Boulevard Montmartre - afternoon in the rain-1897)

Peça em um ato.

 

Isaias Edson Sidney

 

 

1998

 

 

NOTA: Esta peça é inspirada no livro A MORTE DE DJ EM PARIS, de Roberto Drummond. Quando de seu término, entrei em contato com o autor de HILDA FURACÃO, mas não houve acordo, porque ele me disse não mais lhe pertencer os direitos sobre A MORTE DE DJ EM PARIS. Portanto, o texto aqui publicado tem por objetivo prestar uma homenagem ao escritor, a quem admiro e com quem tive a grata satisfação de conviver por dois breves e emocionantes momentos de minha vida, e servir de estudo ou modelo – bom ou ruim, que o julguem os que o lerem – de adaptação de um texto literário para o texto teatral.

 

 

JORNALEIRO:- Extra! Extra! Novas revelações sobre o misterioso caso de d.j.! extra! extra! vai um jornal, cavalheiro?

 

Encostado a um poste, fumando de forma afetada e elegantemente vestido, está D.J.

  

D.J.:- Garçon, s’il vous plais, um jornal!

 

 O rapaz vende-lhe um jornal – DIÁRIO DE MINAS – que traz a manchete: “O MISTERIOSO CASO DE D.J.”  D.J. senta-se a um banco de praça e, ao desdobrá-lo, surge um novo título: ‘PARIS MATCH” e a manchete “LE DERNIER CRI DE LA MODE DE PRINTEMPS”. Entram o juiz, o promotor e uma testemunha – um homem magro de óculos que, com mãos trêmulas, fuma o tempo todo quase um maço de Hollywood sem filtro.

  

PROMOTOR:- O senhor está deturpando os fatos por amizade a D.J.

 JUIZ:- A testemunha está avisada de que perjúrio é crime... E dá cadeia. Neste tribunal, o advogado de defesa, que não está presente, não pode mentir nunca; o promotor, às vezes e o juiz... bem, o juiz só ouve. E o réu paga todas as custas...

 PROMOTOR:- E o nosso réu já está morto!

 JUIZ:- D.J.: isso não é nome, não identifica o cidadão. Qual era o nome dele?

 TESTEMUNHA:- Era assim mesmo que a gente chamava D.J.: le brésilien D.J....

 PROMOTOR:- Meritíssimo, pergunte à testemunha sobre o bar, o famoso bar...

 JUIZ:- Você ouviu: fale sobre aquele antro de bêbados que o réu freqüentava, junto com todo o bando de... Vamos, fale!

 TESTEMUNHA:- Ficávamos até não sei que horas batendo papo no bar  “Flor de Minas”... lembro que os trens apitavam lá na estação Central do Brasil, uns apitos chorados e roucos e mui tristes... doía como uma faca furando uma coisa que a gente nem tinha mais... mão ou perna amputada...

 JUIZ:- Então o tal D.J. era mesmo um beberrão..

 TESTEMUNHA:- E D.J. nem bebia... só tomava sua água tônica... e falava... e falava...

  

D.J. está sentado a uma mesa de bar.

 

 D.J.:- Odete... la bouteille et la verre, s’il vous plais...

 PROMOTOR:- Que raio de língua é essa? Algum código de traidores?

 TESTEMUNHA:- D.J. era professor de francês... e até para pedir sua água tônica à garconete Odete, ele falava em “la bouteille et la verre”.... (Gargalha). La bouteille et la verre... imagine... num bar escroto de Belo Horizonte... Mas D.J. era... era... um gentleman... não, ele odiaria isso... ele era “un homme très gentil et très élégant”... E nós esvaziávamos uma fila de Brahmas...

 

 Odete entra com uma garrafa de água tônica e um copo, numa bandeja. Está com avental comprido de garçonete e cabelo preso. Serve D.J. e, com gestos afetados, despe o avental deixando à vista uma minissaia curtíssima,  solta os cabelos e sensualmente senta-se nos joelhos de D.J. Beija-o.

 

 D.J.:- Marimá... Marimá... É você, minha irmã... é você? O que você está fazendo aqui? Você odeia Paris!

 MARIMÁ:- Paris! Paris é a capital do pecado... mas quem acha isso é Maria Mariana, D.J.!

 D.J.:- Quem é você, Marimá? Quem é você?

 MARIMÁ:- Não fale, D.J., não fale... Apenas curta o ar de primavera de Paris... não é uma delícia? Me lembra frei Xisto falando: “Jesus é alegria, Marimá” e, sabe, me deu uma vontade de bater um fio pra Lu e eu liguei, sabe, a Lu é genial... o tipo de mulher genial... e eu falei no telefone com a Lu e sabe o que ela me disse? : Oi neguinha?  E eu: onde cês vão?  E ela: vem pra cá, a gente te espera... Aquela voz linda da Lu...

 D.J.:- Voz de frevo tocando... Voz de frevo tocando...

 MARIMÁ:- E eu vim... Não sou eu a tua femme bleu, D.J.?

 D.J.:- Você não tem sardas nas costas, Marimá!

 PROMOTOR:- Positivamente, esse cara é um bêbado! Não diz coisa com coisa!

 TESTEMUNHA:- Faço questão de não deixar dúvida, meritíssimo: D.J. só bebia água tônica, quando muito tomava uma Coca-Cola...

 JUIZ:- Coca-cola? Mas isso todo mundo toma...

 TESTEMUNHA:- E ficávamos ouvindo D.J....

  

Odete/Marimá retira-se, dengosa, mandando beijos para D.J., enquanto a testemunha senta-se à mesa com D.J., juntamente com dois outros amigos, todos com copos e garrafas de cerveja, já meio bêbados, rindo muito.

  

D.J.:- As mulheres azuis.... as mulheres azuis! Elas falam com voz de frevo cantando... elas vão muito, sabem onde, sabem? Elas vão muito à Île de St. Louis... Se você tiver sorte, pode ver as sardas nas costas delas... sardas feitas pelo sol de algum mar... Olha... olha o meu passaporte... Eu vou para Paris... no mês que vem... EU VOU PARA PARIS...

 AMIGO:- Escute... escute uma coisa, D.J. ... O que a gente sente quando vê uma mulher azul?

 D.J.:- A gente fica como se uma lua tivesse entrado dentro da gente. Mas é preciso estar em estado de graça para ver uma femme bleue...

 OUTRO AMIGO:- E no Brasil, D.J. ... e no Brasil.... não tem mulheres azuis no Brasil?

 D.J.:- A safra de femmes bleues no Brasil é muito pequena... cada vez menor... não dá pra todos...

 OUTRO AMIGO:- E então, D.J.? E então?...

 D.J.:- O jeito é mesmo ir para Paris no mês que vem...

  

D.J. mostra de novo o passaporte. Olha para cima, para a Lua.

 

D.J.:- A Lua... a Lua mais desperdiçada do mundo...

  

D.J. cantarola.

   

D.J.:- “É, você que é feita de azul

me deixa morar neste azul

me deixa encontrar minha paz

você que é bonita demais...”

  

O amigo que era testemunha retoma seu lugar na frente do Juiz.

  

TESTEMUNHA:- Era na hora em que os trens apitavam que dava aquilo em todos... e D.J. lembrava da mulheres azuis... Foi a última vez que eu o vi. Ele ia para Paris no mês que vem... Custo a acreditar que D.J. morreu... mas se o jornal diz que ele tá morto, deve ser verdade... Para mim, no entanto, le brésilien D.J. está vivo, está aqui... Ele tinha uma cicatriz...

 PROMOTOR:- Protesto, meritíssimo, protesto... A testemunha está tergiversando... Nós queremos fatos...

 JUIZ:- Senhor Promotor... o senhor está esquecendo que julgar é como... como bisbilhotar a vida alheia... escarafunchar cada detalhe... descobrir pecadilhos escondidos em cada canto... e tranformá-los, à luz do direito, em pena... em castigo... Assim funciona o sistema! Por favor, a testemunha pode continuar.

 TESTEMUNHA:- Como eu estava dizendo... le brésilien D.J. tinha uma cicatriz no supercílio esquerdo... um mistério... eu nunca soube como surgiu aquela cicatriz; ele era magro, louro como um inglês, mais ou menos 1 metro e 75 de altura... Segundo mistério: tinha hora que D.J. parecia ter 45 anos, outras horas ficava com 29 anos. Era solteiro por amor: terceiro mistério. As mulheres feias achavam D.J. horrível, mas as belas gostavam dele... e D.J. teve quantas quis... até o dia em que descobriu que só as mulheres azuis faziam os homens felizes...

 JORNALEIRO:- Extra! Extra! Testemunha acusada de perjúrio no julgamento de D.J.! Extra! Extra! Tudo sobre a mulher azul! Extra! Extra!

 JUIZ:- Tragam a próxima testemunha! A próxima testemunha!

 

 

Entra Maria Mariana, irmã de D.J. Veste-se como uma beata.

 

  

JUIZ:- O que a senhora traz nas mãos?

 MARIA MARIANA:- As cartas, meritíssimo... as cartas de D.J....

 JUIZ:- Ah! Cartas! Cartas revelam muito, se é o que o senhor Promotor me entende...

 PROMOTOR:- Estou aqui numa grande angústia, Meritíssimo... os jurados! Os jurados ainda não chegaram!...

 JUIZ:- Eles virão... eles virão... talvez. O Sistema, meu jovem, o Sistema é sábio.

 PROMOTOR:- E o advogado de defesa, Meritíssimo... E o advogado de defesa?!

 JUIZ:- Aprecio a sua sensibilidade... o senhor é um poeta... Isso é muito importante num promotor... Mas, sem o advogado de defesa – que é sempre um chato, um insensível, que não entende muito bem os divinos meandros do Sistema – o senhor terá oportunidade de ser brilhante, aliás como sempre, sem que lhe façam qualquer tipo de sombra!...

 PROMOTOR:- Envaidecem-me suas palavras, Meritíssimo... Mas uma contenda necessita de adversário à altura...

 JUIZ:- Não se preocupe, não se preocupe... daremos conta do recado. Já fizemos isso tantas vezes, não é mesmo? O Sistema cumprirá seu destino...

 PROMOTOR:- ... de dar mais poder aos poderosos...

  

O Juiz dá-se conta, afinal, da testemunha.

 

 JUIZ:- Se a senhorita tem as cartas de D.J., então confessa que serviu de pombo-correio para seu irmão D.J. e os amigos brasileiros do réu!

 PROMOTOR:- Meritíssimo...a testemunha vai invocar o nome do santo padre Carlos para fugir de sua responsabilidade... tenho certeza...

 MARIA MARIANA:- Cedi à tentação, o santo padre Carlos sabe, aceito a acusação, como vontade divina...

 PROMOTOR:- Não disse?

 MARIA MARIANA:- O santo padre Carlos, meu confessor e conselheiro, sabe que sou a primeira a reconhecer: devo pagar meus pecados perante a Justiça de Deus e a Justiça dos Homens, se bem que lutei, agarrei com São Judas Tadeu, fiz novenas, rezei ajoelhada em milho, tudo para que São Judas Tadeu e a minha boa Nossa Senhora Aparecida não me deixassem cair em tentação e me livrassem de todo mal, amém.

 PROMOTOR:- Protesto, Meritíssimo... Isso está virando uma ladainha muito chata. A testemunha é chata... esse processo é chato... e até o réu que, apesar de morto, teve uma vida muito chata... Até agora, não conseguimos arrancar um só escândalo, um só adultério, nada! Isso tudo é um teatro... um teatro de muito mau gosto!

 JUIZ:- Protesto negado... (Em voz mais baixa, para o Promotor). Acho que essa beata está escondendo o jogo... Vamos dar mais um pouco de corda para ela... Espere, acho que vou pegá-la... (Voltando-se para Maria Mariana). Senhorita, responda-me com a verdade e somente com a verdade: a senhorita, por acaso, é virgem?

 MARIA MARIANA:- Meritíssimo! Além do meu irmão D.J., que Deus o tenha, os únicos homens que de mim se aproximaram foram o santo padre Carlos, meu confessor, e frei Xisto...

 JUIZ:- Ambos acima de qualquer suspeita, não é mesmo?... Mas continue... continue o que a senhorita estava dizendo...

 MARIA MARIANA:- Nossa Senhora Aparecida houve por bem resolver que eu devia capitular diante do demônio que vestiu a pele do cordeiro do Senhor que era meu irmão D.J., que Deus o tenha, na Sua infinita misericórdia.

 JUIZ:- A testemunha confirma: foi cúmplice das loucuras de D.J.

 PROMOTOR:- E a loucura maior desse... desse... famigerado era fugir para Paris. O que ele foi fazer em Paris? Diga! Não precisa nem dizer: cair na esbórnia, na farra, na bandalheira... e na traição! Na traição dos mais profundos valores éticos, religiosos e morais da sagrada família mineira... E a senhora, uma beata, uma virgem, foi o instrumento dessa insanidade!

 MARIA MARIANA:- Fui fraca, concordei e ajudei os planos de meu irmão D.J. de ir para Paris, mesmo sabendo que lá é a capital do Pecado; meu irmão D.J. sempre foi um rebelde...

 JUIZ:- Bêbado... e agora, rebelde. Vamos, fale mais das rebeldias desse facínora!

 MARIA MARIANA:- ... minha santa mãe, que Deus a tenha e guarde, contava...

 

 Luz sobre a mãe de D.J., toda de negro, sentada num banquinho, rezando num terço, cabeça coberta com um véu também negro, com uma barriga enorme.

 

 MÃE DE D.J.:- Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pobres pecadores...  Protege este meu filho... este meu filho... que tanto chuta dentro de mim... O que será dele, minha Santa mãezinha... assim, já tão rebelde... o que será?...

 MARIA MARIANA:- ... rebelde... ele sempre foi rebelde... e eu só concordei em colaborar com ele, depois que consultei meu guia espiritual, o bom santo padre Carlos... Só queria... atrair uma ovelha desgarrada ao rebanho do Senhor... minha boa Nossa Senhora Aparecida é testemunha... nunca aprovei as ligações clandestinas do meu irmão D.J. com a pobre Lu.

 PROMOTOR:- Protesto, Meritíssimo! Protesto! A testemunha, mais uma vez, está querendo confundir esta corte... Não existe nos anais desse processo nenhuma Lu... Só falta ela dizer que essa Lu é a mulher azul!

 JUIZ:- Protesto negado... Senhor Promotor: o senhor que reclamava que estava tudo chato, agora que aparece uma esperança de escândalo com essa Lu... vai querer perder essa oportunidade? Pois eu  quero ir fundo... bisbilhotar tudo... e quero muito saber quem é essa Lu...

 PROMOTOR:- Data venia, Meritíssimo, essa Lu não tem nada com a acusação a D.J.... E a testemunha já confessou que fingia...

 JUIZ:- Se o senhor Promotor continuar com esse tipo de protesto, eu suspendo o julgamento... A testemunha pode continuar...

 MARIA MARIANA:- Bela e pobre Lu... De tanto pensar nela e no escândalo aqui no Brasil, eu dizia a mim mesma que devia ir a Paris pra evitar o mal... Fingi, eu fingi, sim, que ajudava... e quando eu fraquejava, eu repetia vezes sem fim a meditação aconselhada pelo caríssimo padre Tiago e dormia repetindo estas palavras: “...tenho que lutar fortemente contra minha rebelde natureza... tenho que lutar fortemente contra minha rebelde natureza...”

  

Enquanto repete várias vezes essas palavras, Maria Mariana vai-se transformando em Marimá: encurta a saia, baixa o decote da blusa, solta os cabelos, pinta os lábios de batom vermelho e acende um cigarro. Juiz e promotor ficam boquiabertos. Passa, de novo, o jornaleiro.

 

JORNALEIRO:- Extra! Extra! Reviravolta no caso D.J. Extra! Extra! Correspondência maldita do indesejável “monsieur” D.J. revela fatos estarrecedores! Extra! Extra!

 

 MARIMÁ:- ... aí eu abria os olhos e sabe onde eu estava? Sabe? Em Paris! No meu quarto na Maison du Brésil! O livro que caía de minhas mãos não era esse... esse livro de um tal padre Tiago Koch... era um livrinho de capa vermelha chamado “Paris sem Gastar”, de Jacqueline Boursin que a Air France editou em português... e aí eu falava comigo: tirando onda de sonâmbula, hein? e via que tudo era um pesadelo: não estava no Brasil coisa nenhuma... estava em Paris! E aí eu me lembrava de frei Xisto falando: “Jesus é alegria, Marimá”... e eu pegava o telefone e batia um fio pra Lu... Como não gostar da Lu? É o tipo de mulher genial... e eu falei no telefone com a Lu e sabe o que ela me disse? : Oi neguinha?  E eu: onde cês vão?  E ela: vem pra cá, a gente te espera... Aquela voz linda da Lu...

 

 

Luz sobre D.J. e a Lu e mais alguns amigos no bar Les Deux Magots, cujo luminoso encima a cena. Marimá junta-se ao grupo.

 

 

D.J.:- ... voz de frevo tocando... voz de frevo tocando... A sua voz, Lu, a mais bela desse bar... a mais bela de Paris...

 AMIGO 1:- ...cheguei ontem, D.J., e já tô com uma baita vontade de comer um queijinho mineiro, uai...  eu quero um queijo mineiro, sô...

 AMIGO 2:- Lingüiça... hum... uma lingüicinha frita...

 AMIGO 3:- Feijão... feijão tropeiro, gente...

 AMIGO 4:- ... frango a molho pardo! Eu quero um frango a molho pardo!...

 TODOS (cantando e batucando):- “Quando eu morrer,

não quero choro nem vela:

quero uma fita amarela,

gravada com o nome dela...

 

Quando eu morrer...”

 

 

Entra um francês. Faz charme para a Lu e tenta cantá-la.

 

 

FRANCÊS:- Je veux parler avec vous... vous êtes très belle... très belle... Je suis... je suis le regisseur de cinéma... Jean Louis... Jean Louis Godard... savez vous?... Vous seras très fameuse... comme Ana Karina... Brigitte Bardot... vous êtes la plus belle...

 D.J.:- Esse cara tá engrossando...

 FRANCÊS:- ... vous sera la plus belle étoile du cinéma... 

  

D.J. levanta-se.

 

 D.J.:- Seu filho da puta... seu Godard de porra nenhuma... seu bosta...

 AMIGO 1:- ...corno...

 AMIGO 2:- ... lambedor de cu...

 AMIGO 3:- ... veadão...

  

D.J. repete todos os palavrões dos amigos, acrescenta outros, todos rindo muito.

 

 D.J.:-  ...seu merda... chupador do caralho do De Gaulle...

  

O francês não entende nada, mas acaba partindo para a briga e tudo vira uma grande confusão. Foco no Juiz e no Promotor, para onde volta Marimá. Abalado pela minissaia de Marimá, o Juiz prossegue o interrogatório.

 

 

JUIZ:- A senhorita nega ou confirma que tenha servido de pombo-correio para seu irmão D.J. e os amigos brasileiros do réu?

 PROMOTOR:- Meritíssimo... se me permite...

 JUIZ:- Espero que...

  

Juiz e Promotor param boquiabertos e decepcionados, enquanto Marimá volta a ser Maria Mariana: desce a saia e sobe o decote, prende o cabelo e limpa a  boca, jogando fora, assustada, o cigarro que tinha nas mãos.

 

 MARIA MARIANA:- Cedi à tentação, o santo padre Carlos sabe, aceito a acusação, como vontade divina...

  

O Juiz tenta parecer natural.

 

 JUIZ:- Minha jovem: alguém lia as cartas de D.J., além dos destinatários?

 MARIA MARIANA:- O santo padre Carlos lia...

 JUIZ:- Existem 48 cartas arroladas no processo: o padre Carlos leu todas?

 

MARIA MARIANA:- Não, quando o santo padre Carlos viajava, eu procurava frei Xisto, no Convento dos Dominicanos...

 JUIZ:- E esse frei Xisto, lia as cartas?

 MARIA MARIANA:- Lia, lia todas... é um cearense muito curioso... lia todas as cartas... Me falava: “É seu dever entregar as cartas dos que confiarem em você”.

 JUIZ:- O padre Carlos também dizia a mesma coisa?

 MARIA MARIANA:- O santo padre Carlos aconselhava-me a queimar algumas missivas... algumas eu guardei... tenho uma em meu poder...

 PROMOTOR:- Protesto, meritíssimo...

 JUIZ:- O senhor não protesta coisa nenhuma...

 PROMOTOR:- Desculpe, meritíssimo... não é um protesto...

 JUIZ:- Que saco! Fala!

 PROMOTOR:- Uma pergunta para a testemunha...

 JUIZ (recompondo-se):- O senhor promotor pode argüir a testemunha.

 PROMOTOR:- A senhorita, uma beata pombo-correio, uma virgem, sabe de que o réu é acusado?

 JUIZ:- Mas que pergunta idiota... não é preciso haver crime para haver julgamento...

 PROMOTOR:- Meritíssimo... fui seu aluno mais atento... mais entusiasta...

 JUIZ:- ... e mais pegajoso...

 PROMOTOR:- Sempre segui à risca suas teorias, mas o senhor, Meritíssimo, me surpreende a cada julgamento que fazemos...

 JUIZ:- O que o senhor está querendo dizer?

 PROMOTOR:- Isso é brilhante! Brilhante! “Não é preciso haver crime para haver julgamento!” Isso merece entrar para os anais do Sistema... é um passo gigantesco para as ciências jurídicas de nosso país!

 JUIZ:- O senhor continua pegajoso...

  

Durante a conversa entre Juiz e Promotor, Maria Mariana transforma-se em Marimá

 

 MARIMÁ:- Eu não matei D.J. ... em Paris... Eu não matei... D.J. em Paris...

 PROMOTOR (boquiaberto com a transformação):- Repito a pergunta: a senhorita sabe de que o réu é acusado?

 MARIMÁ:- Sei de que o acusam e só tenho a dizer: D.J. estava na dele...

 PROMOTOR:- Meritíssimo, essa história...

 JUIZ:- Nem sei se temos uma história... (Assanhado com a transformação e tentando conter-se). E a carta... A senhorita podia ler a carta?

 MARIMÁ:- Sim, meritíssimo...

  

Marimá lê a carta de D.J. alternando essa leitura com a cena de D.J. em Paris.

  

Marimá:- “Paris, coeur du monde, 21 de junho de 1969”

 D.J. (olhando-se ao espelho):- Por que será que estou remoçando?

 MARIMÁ:- “Meus amigos Antônio, Osvaldo, Geraldo, Luís, Ângelo, Jesus, Mon Bonhome e Fernando Paulo...”

 D.J.: Só de pisar no aeroporto de Orly, fiquei com cinco anos a menos... E a cada manhã... meus cabelos louros ficam mais rebeldes...

 MARIMÁ:- “... pediria que vocês explicassem, a quem perguntar, que minha pátria é azul e tem sardas nas costas...”

 D.J.:- É a febre da primavera... todos os estrangeiros pegam a Febre da Primavera... é ela que está me fazendo remoçar...”

 MARIMÁ:- “... e uma pequena cicatriz no joelho esquerdo, e eu sei tudo dela...”

  

D.J. canta e dança pelas ruas de Paris.

  

D.J.:- “É, você que é feita de azul

me deixa morar neste azul

me deixa encontrar minha paz

você que é bonita demais...”


MARIMÁ:- “... sei de quando ela fala com voz de frevo tocando, sei das sardas que ela tem nas costas banhadas pelo oceano Atlântico...”

 D.J. está ofegante. Pára, acende um Gauloises e passa a caminhar lentamente.

 D.J.:- Chega... minhas pernas... esta maldita febre da Primavera... Alguma coisa queima dentro de mim...

 MARIMÁ:- “... sei de certos recôncavos secretos, de uma cidade do interior nos olhos dela, e basta ela encostar em mim um fio de cabelo...”

 D.J. encontra um velho de óculos.

 D.J.:- Mon vieux bonhome, o senhor viu alguma mulher azul por aí?

 VELHO:- Perto do Sena costumava haver mulheres azuis...

 D.J.:- Mas... o senhor viu alguma por lá?

 VELHO:- Não, hoje eu não vi. Uma vez vi uma na Île de St. Louis, mas logo a perdi de vista: ela atravessou a Pont Sully e foi andando pelo Quai Saint Bernard: o salto do sapato dela tocava música...

 D.J.:- E quando foi isso?

 VELHO:- Faz uns catorze ou quinze anos...

 MARIMÁ:- “... um fio de cabelo, o pé, a mão, pra eu sentir o cansaço mais descansado do mundo e enfiar os dedos nos cabelos dela e saber que, por ela, vale viver, vale morrer: pela minha pátria azul de sardas nas costas... Do sempre amigo, D.J.”

  

Aplausos do Juiz e do Promotor, enquanto a cena volta-se para D.J., que senta num banco e adormece. Sonha. A mulher do sonho é Lu.

 

 D.J.:- Femme bleue... ar de nuvem... voz de frevo tocando...

 LU:- Sabe, D.J., aquele filme do John Ford que combinamos assistir juntos aqui em Paris? Já saiu de cartaz há catorze anos...

 D.J.:- Fala mais... quero ouvir sua voz de frevo tocando...

 LU:- Sua mão tá quente, amor, e sua testa também: deve ser a Febre da Primavera, mas passa logo, já curei a minha...

 D.J.:- Lembra daquela gripe que você me pegou uma vez? Você foi ao Rio de Janeiro e trouxe a gripe de lá...

 LU:- E você demorou um tempão pra sarar da gripe, tomava conhaque Dreher um depois do outro...

 D.J.:- E você fez aquela limonada pra mim, lembro do sumo do limão nos seus dedos...

 LU:- E você tava sem cigarro nesse dia...

 D.J.:- Foi mesmo. Sabe?... eu gostava daquela gripe. Olha: eu amava aquela gripe, porque aquela gripe era sua...

   

A cena volta-se para o Promotor, Juiz e Marimá.

 

 JUIZ:- Acho que já ouvimos demais... Suas testemunhas, até agora, só confirmaram o óbvio, óbvio ululante...

 PROMOTOR:- Óbvio pululante, Meritíssimo?...

 JUIZ:- Ululante... ululante...

 PROMOTOR:- ... e o que significa isso?

 JUIZ:- Li outro dia no jornal, um cronista aí do Rio de Janeiro... Também não sei o que é...

 PROMOTOR:- Como fugir desse... desse óbvio ululante?

 JUIZ:- Chamando outra testemunha... (Para Marimá, que se retira). A senhorita está dispensada...

 PROMOTOR:- Meritíssimo, tenho agora uma testemunha que vai... desmontar... a pretensa virgindade dessa aí...

 JUIZ:- Senhor Promotor... Suas testemunhas andam muito fracas... Espero que melhore o nível, dessa vez... Eu quero fatos... fatos escabrosos... escândalo... Se não, vamos acabar absolvendo o morto, digo, o réu!

 PROMOTOR:- Que entre o Jornalista!

 JUIZ:- Jornalista? Senhor Promotor, a responsabilidade é sua... o senhor sabe da ojeriza que tem o Sistema a essa... a essa raça... Só faltava essa!

 JORNALEIRO:- Extra! Extra! Testemunha traz fatos novos à morte de D.J. Extra! Extra! Testemunha internada em hospício após depoimento.

  

Entra o jornalista.

 

 PROMOTOR:- O senhor jura dizer...

 JUIZ:- Pode parar, senhor Promotor... deixa isso pra lá... Além de chamar um jornalista, o senhor ainda pretende que ele diga a verdade? E sob juramento? O senhor, que se vangloriou tanto de ter sido o meu aluno mais atento...

 PROMOTOR:- ... então... então... passemos de imediato... a ... a ... interrogar...

 JUIZ:- Deixa comigo... Interrogar jornalista é a minha especialidade! Senhor Jornalista: o réu deixou um manuscrito – “Diário de Paris”. Como o senhor ficou sabendo do conteúdo desse manuscrito?

 JORNALISTA:- Prefiro não revelar minhas fontes de informação.

 JUIZ:- “Prefiro não revelar minhas fontes de informação!” Como se isso fosse possível! Eu não lhe disse, senhor Promotor, que trazer jornalista para testemunhar era o mesmo que chover no molhado? Que não ia acrescentar nada ao processo? Que jornalista e professor é tudo uma cambada só? Guardas! Levem esse louco...

 PROMOTOR:- Meritíssimo... antes de chamar a próxima testemunha... aquela que realmente vai desmascarar a beata... é preciso analisar os autos... a vida de D.J. ... bisbilhotar cada detalhe, em busca da verdade...

  

Foco em D.J., que se levanta de uma cama, desce uma escada e senta-se à mesa para tomar café da manhã.

 

 D.J.:- Maria Mariana... Maria Mariana! Meu café!

 

 Maria Mariana entra com uma bandeja de café e sonhos.

  

D.J.:- O que é isso?

 Maria Mariana:- Sonhos, meu irmão... que você gosta...

 D.J.:- Sonhos? De novo? Eu não quero mais comer sonhos, minha irmã... Eu quero vivê-los... Eu quero viver os meus sonhos!

 Maria Mariana:- Não tem Lu, D.J., não tem Paris... é tudo sonho, tentação, pecado... é invenção... D.J., não existem mulheres azuis!...

 D.J.:- Olha o meu sapato... nem dinheiro para uma meia sola... Eu sou o único professor naquele colégio que ainda não tem carro...

 Maria Mariana:- Andar a pé é bom para o coração, D.J.... Se você continuar nesta Paris de papel é que é a morte, D.J. ... Ainda há tempo pra ocê se salvá, D.J. ... Ocê quer ser um morto vivo, D.J.?

 D.J. (acendendo um Minister):- Gauloises, Maria Mariana... Gauloises... E vou pedir aumento, te prometo... De hoje não passa... E vou para Paris, no mês que vem... Vou chegar pro Diretor...

 

D.J. passa a dialogar com o Diretor, fazendo ele mesmo os dois papéis. Emposta a voz, como de locutor, para imitar o Diretor.

 

 D.J.:- “Sabe o que eu quero, Senhor Diretor?”

 DIRETOR:- “Suponho que sim, mas...”

 D.J.?- “Não tem mas... nem menos... Quero um aumento... quase todos ganharam, só eu e mais dois que não. Exijo um aumento!

 DIRETOR:- “Calma, D.J., você se esquece que está substituindo o professor Valle na cadeira de geografia... esquece que está ganhando o salário dele...”

 D.J.:- “Perdão, Senhor Diretor, mas o professor Valle foi a Guarujá e daqui a cinco ou seis dias está de volta... Exijo o aumento, senão vou para Paris e...”

 DIRETOR:- “Paris, Paris é ilusão, D.J., um pedaço de papel colorido, puro pedaço de papel...”

  

D.J. pega seus livros e sai, repetindo que vai pedir aumento. Maria Mariana acompanha-o com os olhos, como se ele já estivesse longe, caminhando pelas ruas de Belo Horizonte. Grita, para se fazer ouvir.

 

 Maria Mariana:- Te enganaram, D.J.... te enganaram... Esse rio não é o Sena, D.J. ... e essa ponte, D.J., não é a Pont Neuf nem a Pont de l’Alma... isso é B.H., D.J... não é Paris, meu irmão... não é Paris...

  

D.J. chega ao colégio, sempre repetindo “Hoje eu vou pedir aumento”. Entra no gabinete do Diretor, onde já estão vários professores.

  

D.J.:- Bom dia, Senhor Diretor... Olá pessoal... (Para si mesmo). “Vou tomar coragem e exigir o meu aumento”. (Para o grupo). E então, pessoal, de que falavam?

 PROFESSOR 1:- De futebol, é claro...

 D.J.:- Aposto que falavam sobre os altos salários dos jogadores...

 PROFESSOR 2:- Não, dizíamos que um novo rei está nascendo...

 D.J:- Um novo rei? Com certeza, ganhando como um professor! Me diz, quem é o novo rei?

 PROFESSOR 1:- Ora, ainda pergunta, D.J.? O Tostão, é claro...

 D.J.:- Deixa de sonho, professor Rui, deixa de sonho: igual ao Pelé não nasce outro em cem anos... Mas isso não é importante... precisamos reivindicar do Senhor Diretor...

 PROFESSOR 2:- E o Garrincha? Garrincha foi melhor que o Pelé...

 PROFESSORA:- Pelé é o único... o rei dos reis!

 PROFESSOR 1:- Espera pra ver, Vera Sílvia... o Tostão vai fazer 90 milhões de brasileiros esquecerem o Pelé!

 D.J.:- Duvido, só vendo: o Pelé é um gênio! Mas gênios, mesmo, no duro, somos nós, que vivemos na cidade mais cara do Brasil com um...

 PROFESSOR 1:- E o Tostão? Não é gênio? Não ouviu o que o Saldanha falou na TV?

 PROFESSORA:- Viva o Tostão!

 D.J.:- Gente, preste atenção... olha aqui... estou falando sério... A opinião do Saldanha sobre o Tostão ou sobre quem quer se seja não enche panela de ninguém...

 PROFESSOR 1:- Mas vai encher o gol dos adversários... e o coração dos brasileiros de orgulho...

 PROFESSORA:- D.J. tem razão... é preciso deixá-lo falar... defender nossos...

 PROFESSOR 2:- Sssss... o Senhor Diretor parece que vai falar... Silêncio... ssss...

  

A voz do Diretor deve ser empostada tal qual a que D.J. imitava.

 

 DIRETOR:- Vocês discutem sobre Pelé e Tostão porque não viram El Tigre jogar.

 PROFESSORA:- Quem era El Tigre?

 DIRETOR:- Quem era El Tigre? Lastimo, professora Vera Sílvia, que a senhora não saiba: El Tigre era Friedenreich, filho de um alemão e de uma mulata brasileira, o soberbo, melhor que Pelé e Tostão...

 PROFESSOR 2:- Senhor Diretor, Friedenreich é aquele que matou um goleiro com um chute? Quando eu era menino contavam a história...

 DIRETOR:- Ele mesmo, professor, ele mesmo... El Tigre, o soberbo...

 PROFESSOR 1:- É mesmo...

 D.J.:- Senhor Diretor, eu acho que é importante sabermos que El Tigre era... soberbo... mas...

 DIRETOR:- Mas o senhor acha que ele não era tão grande quanto Pelé, não é mesmo?

 DJ.:- Na verdade... é... que... bem...

 DIRETOR.:- Ora, D.J., vivemos numa democracia... o senhor pode até mesmo discordar de mim, que sou seu Diretor... que é isso, meu rapaz... Da divergência nasce a convergência, não é mesmo? Da divergência nasce a convergência!

 PROFESSOR 1:- Sábias palavras, senhor Diretor...

 PROFESSOR 2:- Aprenda com o Diretor, D.J....

 PROFESSORA:- Igual a El Tigre, nunca mais...

 DIRETOR:- É isso mesmo, meus caros... (Consulta o relógio de bolso). A sirene já vai tocar... vou fazer uma rápida inspeção nos corredores. (Sai).

  

Há um breve silêncio entre os professores. Todos se voltam para D.J.

 

 D.J.:- Vocês não sabem o que é ter estudado interno cinco anos num colégio de padres jesuítas: chegava a Semana Santa e a gente se sentia culpado pela morte de Jesus Cristo...

  

Toca a sirene. Todos se retiram, cabisbaixos. D.J. fica um instante pensativo. Entra Maria Mariana, passa os dedos, carinhosamente, entre os cabelos de D.J.

 

 D.J.:- Eu prometo, minha irmã, eu prometo rezar cinco Padres-nossos, cinco Ave-marias, quatro Salve-rainhas e um Creio em Deus Padre toda noite, antes de dormir, logo que chegar a Paris.

  

D.J. sai. Maria Mariana, lentamente, sonhadoramente, transforma-se em Marimá. Ouve-se uma voz em off, cantando.

 

 VOZ:- “Nossas roupas comuns dependuradas,

nas cordas, qual bandeiras agitadas,

pareciam um estranho festival...”

MARIMÁ:- Serenata, para mim... Só mesmo em Paris... Frei Xisto tem razão: Jesus Cristo é alegria, Marimá... Jesus Cristo é alegria!

  VOZ:- “Tu pisavas nos astros distraída

sem saber que a ventura desta vida...”

 

 

Entra um jovem. Marimá lança-se a seus braços.

 

 

MARIMÁ:- É você? Estava te esperando...

 

 

Enquanto o foco apaga em Marimá e muda para a corte, a voz conclui a canção.

 

 

VOZ:- “... é a cabrocha, o luar e o violão...”

 PROMOTOR:- Demagogia barata... encenação pura!

 JUIZ:- Subversão, senhor Promotor! Subversão! Esse D.J., além de bêbado e louco, era um subversivo. Vou encerrar o julgamento e promulgar a sentença!

 PROMOTOR:- Meritíssimo... ainda não esclarecemos o fundamental... a morte... a morte de D.J. em Paris!

 JUIZ:- O senhor está entrando no jogo deles, dos subversivos, senhor Promotor... Tenho certeza de que não há nenhuma Paris... nem sei tampouco se houve morte!

 PROMOTOR:- Nas suas aulas, Meritíssimo - lembra-se? -  o  senhor insistia: in dubio, pro reo! A dúvida favorece o réu!

 JUIZ:- Outros tempos, senhor Promotor, outros tempos! Mas já que insiste, vamos à última testemunha... Mas aviso-lhe: se for outra testemunha inútil, sua carreira de promotor passa a correr sérios riscos... Quero escândalos, ouviu? Detalhes escabrosos!

 PROMOTOR:- Que entre a última testemunha!

 JORNALEIRO:- Extra! Extra! Mais do que extra! Depoimento da Mulher Azul abala o Governo! Extra! Extra! Depoimento da Mulher Azul! Não deixe de...

  

O jornaleiro não termina a frase: é arrancado para fora do palco por figuras encapuzada, por alguns segundos. Quando volta, tem outra manchete.

 

 JORNALEIRO:- Extra! Extra! Mulher Azul não existe! Extra! Caso D.J.: uma farsa da oposição! Extra! Extra!

  

Entra a Mulher Azul: é Lu, num vestido azul. Juiz e Promotor ficam extasiados por alguns segundos, diante de sua beleza.

 

 JUIZ:- Tenho em mãos um telegrama da France Press dizendo ser você a Greta Garbo. Você nega ou confirma?

 LU:- Sou mais bela e mais jovem do que Greta Garbo quando jovem... e mais esquiva também.

 JUIZ:- Então, você é a Mulher Azul...

 LU:- Meritíssimo, as sardas em minhas costas só aparecem quando tomo sol...

 JUIZ:- Sua voz...

 LU:- ... ouvindo frevo, meritíssimo? São as ondas do mar em minhas costas...

 PROMOTOR (Á parte):- O Meritíssimo ficou gagá... (Para o Juiz). Meritíssimo, é preciso ser duro com a testemunha!

 JUIZ:- “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”! “Hay que endurecer...”

 PROMOTOR (Esbofeteando o Juiz):- Perdão, Meritíssimo...

 

 O Juiz recompõe-se aos poucos.

  

JUIZ:- É preciso ser duro... é preciso... ser... duro...

 PROMOTOR (à parte):- Dura estava outra coisa.

 JUIZ:- Senhor Promotor!

 PROMOTOR:- Pronto, Meritíssimo!

 JUIZ:- Leve a testemunha daqui! Leve a testemunha daqui!

 PROMOTOR:- Meritíssimo: lembre-se de que a dúvida favorece o réu...

 JUIZ:- Que merda, senhor Promotor... que merda!

 PROMOTOR:- O Sistema, Meritíssimo, o Sistema!

 JUIZ:- Esse tribunal é meu! Está querendo ser mais do que eu sou?

 PROMOTOR:- A obrigação do aluno é ultrapassar o mestre, Meritíssimo. Guardas! Levem o Meritíssimo: ele está doente... muito doente...

  

Guardas arrastam para fora do tribunal o Juiz. O Promotor toma-lhe o lugar.

  

PROMOTOR:- O Sistema se aperfeiçoa: passo a ser, ao mesmo tempo, Promotor e Juiz! Acusador e julgador numa só pessoa! (Para Lu). Agora é comigo, mocinha. Pode contar tudo o que sabe sobre esse subversivo, louco e bêbado D.J.!

  

Luz sobre D.J. sentado a uma mesinha rústica, escrevendo furiosamente. Ao lado, uma cama bem simples.

 

 D.J.:- Paris, coeur du monde, 29 de abril de 1969. Antoine, mon cher: Vive Paris! Vive la vie! (Pausa). Paris, coeur du monde, 5 maio de 1969. Prezado amigo Jésus Rocha: femme bleue quae sera tamen. Abraços. D.J. (Pausa).Paris, 7 de maio de 1969. Luiz Gonzaga: l’amour est oiseau. Ponto. Il lui faut ouvrir des cages. Ponto. Abraços. D.J. (Pausa). Paris, coeur du monde, 11 de maio de 1969. Mon ami Gilu: Sabe de uma coisa? Pulei a cerca, Gilu: Paris me libertou. E quero declarar solenemente que não fui eu quem matou Jesus Cristo e não tenho nenhuma culpa se Madalena quis ser Madalena. Estou livre! Um abraço. D.J. (Pausa). Paris, coração do mundo, 26 de maio de 1969. Osvaldo: eu ia andando pelo Boulevard Saint Michel e sua carta era um pedaço do Brasil que eu levava no bolso. Não me esqueci dos queijos franceses que te prometi. Só que agora, me dá vontade de comer é queijo de Minas. Um forte abraço. D.J. (Pausa). Paris, 27 de maio de 1969. Caro amigo Luís Gonzaga: o Brasil é um nó na garganta. Ponto. Abraço. Ponto. D.J.

  

Pausa. D.J. levanta-se, deita-se na cama e enrola-se sob uma coberta, tremendo. A luz, aos poucos, desvenda um painel às suas costas com estampas, figuras, fotos de Paris. D.J. levanta-se, faz a barba, passa loção Lacoste, de Jean Patou. Começa a ouvir uma voz e um violão.

 

 VOZ:- “É, só eu sei

quanto amor eu guardei

sem saber que era só pra você...”

 

 D.J. abre a porta do quarto e sai andando à procura da voz, que o acompanha, até chegar à porta do quarto número 6.

  

VOZ:- “Senão não seria o amor

aquele em que a gente crê

amor que chegou para dar

o que ninguém deu pra você...”

 

 D.J. bate à porta do quarto número 6: era ela, a Mulher Azul. D.J. e Lu abraçam-se e dançam. Enlaçados, caem na velha cama do quarto de D.J. Breve blackout. Lu, enrolada numa toalha, e D.J., só de calças jeans.

 

 LU:- Lembra como eu era no Brasil, D.J.? Lembra? Não estudava, não trabalhava: lembra da minha dor de cabeça às 8 da noite?

 D.J.:- Só eu sei de seus recôncavos, minha pátria azul de sardas nas costas...

 LU:- Ai, D.J., assim você me arrepia toda... Estou ficando gorda, D.J.? Preciso parar de comer tanto cuscuz naquele restaurante da rue du Pot de Fer, D.J.... mas é tão gostoso, não é mesmo?

 D.J.:- Por sua voz de frevo tocando, minha pátria azul de sardas nas costas... por você, vale viver, vale morrer...

 LU:- Fica aí, D.J., dorme um pouco... vou tomar um banho...

  

Lu sai. D.J. espreguiça-se, deita-se e adormece. Entra Maria Mariana, toda de preto, com um véu sobre a cabeça, um terço numa mão e um vidro em outra.

  

MARIA MARIANA:- “Tenho que lutar fortemente contra minha rebelde natureza” (Repete várias vezes). Meu santo padre Carlos, me dá força, meu santo padre Carlos... eu preciso jogar essa santa água benta brasileira que você me deu, meu santo padre Carlos... jogar em todo o Quartier Latin... em toda a Rive Gauche... no Boulevard St. Michel... no Jardin du Luxembourg... na Sorbonne... (Aproxima-se de D.J. adormecido, enquanto fala, e faz que ele beba o conteúdo do vidrinho). Minha Nossa Senhora Aparecida... Paris é um pedaço de papel... rasga à toa... é frágil como o pecado... “Silêncio, minh’alma, nem queixa nem pranto”. Minha Nossa Senhora Aparecida, faz que minha mão seja forte... faz que eu salve do pecado o meu irmão pecador...

  

Lu, enrolada na toalha, voltando do banheiro, pára estática. D.J. mexe-se na cama, tosse e depois acorda.

  

MARIA MARIANA:- Acorda, D.J., acorda!

 D.J.:- Cadê a Lu? Onde foi a Lu?

 MARIA MARIANA:- Lu? Não existe Lu, D.J., você está delirando: se não sair daqui, se você não voltar, será considerado morto...

 D.J.:- Onde foi a Lu? Luuuuuuuuuuuuuu!!!

 MARIA MARIANA:- Não tem Lu, D.J., não tem Paris: é tudo sonho, tentação, pecado; é invenção, D.J., não existem mulheres azuis!...

  

D.J. acende um cigarro, tosse.

  

MARIA MARIANA:- Se você continuar nesta Paris de papel, D.J., é a morte: ainda há tempo para você se salvar... Lu é invenção... mulher azul é invenção: te enganaram, D.J., você ainda pode se salvar... Você quer ser um morto-vivo, D.J.?

 

 Lu entra no quarto.

 

 LU:- Quem é a senhora?

 MARIA MARIANA:- Sou uma enviada de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

 

 Maria Mariana, sob os olhos atônitos de Lu, começa a despir suas vestes de beata e transforma-se me Marimá.

 

 LU:- É você, Marimá?

 MARIMÁ:- Era! Era eu, Lu!

  

Marimá alterna choro e riso convulsivo. Lu tenta acalmá-la, até perceber que D.J. está morrendo.

 

  

D.J.: Morrer, Lu, é uma forma de viver...

  

Corre para ele, a tempo de fechar-lhe os olhos.

 

 LU:- Vocês mataram D.J.... vocês querem matar D.J.! Tem gente que quer que D.J. esteja vivo... tem gente que quer que D.J. esteja morto... Quem quiser, pode matar D.J., mas ele voltará... ele voltará no primeiro samba... ele voltará num frevo tocando... ele voltará num grito de gol!

 

FIM

 

 

 

s.p.

04.11.1998

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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