(Eric Lacombe - dark abstract portraits)
RESUMO
Ex-seminarista,
Deus de Todos-os-Santos é o senhor da vida e da morte naquela comunidade
miserável, fazendo todo tipo de negócios espúrios. Mas sua ânsia de poder
esbarra em alguém mais poderoso – seu pai, Salviano de Todos-os-Santos, que
trafica almas, ou seja, vende crianças para transplante de órgãos aos países do
primeiro mundo. A luta entre pai e filho pelo poder total é uma luta de ódios
passados, rancores mal resolvidos, mas é, acima de tudo, a luta de um filho
contra um pai.
SBAT
1344
FBN
214.046
livro 373
folha 206
AUTOR
ISAIAS EDSON SIDNEY
RUA DOS BURITIS, 251
– JABAQUARA, SÃO PAULO – SP
CEP – 04321 – 001
Telefone: 5011-9628
PERSONAGENS:
§ Deus
de Todos-os-Santos
§
Salviano de Todos-os-Santos
(pai de Deus)
§
Diva
(mulher/amante de Deus)
§
Pedro
(lugar-tenente de Deus)
§
Dalva (mãe
de Deus)
|
§
Repórter
|
§
Juiz
|
§
Ancião
|
§
Prisioneiro
|
§
Bispo da
igreja de Deus
|
§
Vendedor
de jornais
|
§
Segurança
da loja
|
§
Capitalistas
|
§
Mulheres
|
§
Peregrino
e peregrina
|
§
Asseclas
de Salviano
|
§
Corretores
da Bolsa
|
§
Soldados
de Deus
|
§
Populares
|
§
Pedro XII
(último lugar-tenente de Deus)
|
CENA 1:
Barulho de sirenes, tiros e gritos. Vozes em off.
VOZ 1:- ... vagando pelos
esgotos...
VOZ 2:- Morreu?
VOZ 1:- Diz que Deus não
morre... Sumiu! Como um rato... nos esgotos...
VOZ 2:- De onde veio!
VOZ 1:- De onde nunca devia ter
saído!
VOZ 2:- Agora deve de estar
lá... na merda! Deus está na merda!
Gargalhadas, sons de sirenes e gritos. Uma figura rasteja
como cobra, toda suja de sangue e de lodo. É Deus de Todos-os-Santos.
DEUS:- Filhos da puta... mil
vezes filhos da puta... Vingança... Eu me vingarei... Eu vou voltar... eu vou
me vingar... EU VOU VOLTAR!
CENA 2:
Deus de Todos-os-Santos está tirando de um saco sujo
maços de notas e dando a um mendigo.
DEUS:- Toma... É o teu
preço... E mais este para fazer o que eu mandei. Aqui é o começo. Eu serei o
teu guia, o teu senhor.. e te chamarei de agora em diante de Pedro. Não. Não
importa o teu nome, não importa o teu passado. Agora tu és Pedro... de pedra.
Vai, vai até os capitalistas e negocia... e só volte aqui depois de cumpridas
todas as etapas de minha volta...
Deus beija-o e o mendigo sai. Deus começa a lavar-se numa
tina, enxuga-se e troca os trapos sujos por roupas limpas, tiradas do saco, de
onde ainda caem muitos maços de dinheiro, que ele recolhe.
DEUS:- Eu preciso me limpar...
mudar... renascer... Eu vou renascer... A vingança precisa gelar em minhas
veias, atiçar o meu cérebro, dar vida nova aos meus velhos planos... Aqui está
o asfalto de minha estrada: dinheiro! O dinheiro que os malditos não
conseguiram pôr as mãos. Muito nariz apodreceu para que eu tivesse tudo isso...
notas verdes... verdes como as plantas esmagadas, trituradas, transformadas no
branco mais puro... o branco de minha alma... se eu tivesse uma! Eu, Deus de
Todos-os-Santos sairei do esgoto para o poder! O poder vai ser o alimento de
minha vingança, o poder que está no meu nome, o poder que eu jurei
conquistar... e eu serei o caos, para ser o poder! Meu pai... serás tu o meu
inimigo, meu pai?
CENA 3:
Vestido com roupas de capitalista, o mendigo Pedro
contata os capitalistas, que jogam algum tipo de jogo de cartas.
PEDRO:- Eu sou Pedro, aquele
que tem o que os senhores mais desejam!
CAPITALISTA 1:- Nós não desejamos nada!
Temos tudo! E passo.
CAPITALISTA 2:- Nosso clube é fechado!
Eu também passo.
CAPITALISTA 3:- Nosso sangue é gelo! Eu
pago para ver.
Pedro saca uma metralhadora. Os capitalistas olham-no com
desprezo.
CAPITALISTA 1:- Nós não precisamos de
armas! Ganhei!
CAPITALISTA 2:- Nós vendemos armas!
Outra rodada. Eu distribuo as cartas.
CAPITALISTA 3:- Nós compramos armas! Me
dá mais uma carta.
CAPITALISTA 1:- Tudo errado!
CAPITALISTA 2:- Eu pago o preço do erro.
Vamos começar de novo!
CAPITALISTA 3:- Você começa. Eu pago.
CAPITALISTA 1:- Nós não precisamos de
armas! Ganhei de novo.
CAPITALISTA 2:- Nós não compramos
armas! E eu tinha uma seqüência de ases...
CAPITALISTA 3:- Nós não... isto é...
Nós vendemos armas. Isso: NÓS VENDEMOS, ENTENDEU? Outra rodada?
PEDRO:- Os senhores vendem. Eu
uso.
Metralha-os e tira de seus bolsos recheados as ações de
suas companhias.
PEDRO:- Agora já têm o que mais desejam: a
eternidade. E eu tenho o que Deus mais deseja: dinheiro e poder! Bancos...
Petróleo... Redes de Televisão... Minas de Ouro... Prostíbulos... Pontes...
Rodovias... Governos... Tudo merda... tudo uma porra de uma merda... Tudo o que
o patrão quer!
CENA 4:
Pedro vai até Deus de Todos-os-Santos que o abraça e
beija efusivamente.
DEUS:- Você comprou... você
comprou tudo isso, Pedro?
PEDRO:- Tudo merda... tudo uma
porra de merda!
DEUS:- Cadê o troco? Não teve
troco? Você gastou tudo?
PEDRO:- Tudo merda... tudo uma
porra de merda!
DEUS:- Deixa o troco pra lá...
Sou dono do mundo... SOU DONO DO MUNDO...
PEDRO:- Dono de uma porra de
merda!
DEUS:- Pedro, Pedro meu, meu
Pedrinho, meu Pedregulho, meu Pedrescão... Diga para mim, sou dono do mundo,
não sou? Diga!
PEDRO:- Só há um dono do mundo!
DEUS:- Quem é esse? Diga, diga
pra mim, sua pedra de porra nenhuma!!!
PEDRO:- Aquele que manda e
todos fazem! Você não manda em merda de porra nenhuma!
DEUS:- E quem é esse? Fala,
meu Pedro de todas as pedras, meu Pedrinho, meu... Bosta!... desligou!
Pedro está mudo, alheado. Inútil qualquer tentativa de
fazê-lo falar. Deus repete para si as palavras de Pedro.
DEUS:- Aquele que manda...
aquele que manda... e todos fazem... todos fazem... Já sei! Fundarei uma
igreja! FUNDAREI UMA IGREJA! E cumprirei teus desejos, meu pai... e cumprirei
teus desejos...
CENA 5:
Numa loja de departamentos, o segurança prende uma ladra.
É Diva. Há um tumulto.
SEGURANÇA:- Vamos, confesse! Eu vi
você pegando a calcinha!
MULHER 1:- Revista ela, seu
guarda!
MULHER 2:- Ladra! Ladrona! Ela
roubou minha bolsa!
MULHER 1:- Desce o cacete!
MULHER 2:- Lincha! Lincha!
DIVA:- Eu quero Deus! Eu
preciso de Deus!
MULHER 1:- Puta arrependida!
MULHER 2:- Bata na boca... bata na
boca...
SEGURANÇA:- Calma... calma... Não
precisam bater... Ela vai devolver a calcinha, não vai?
DIVA:- Por favor, seu guarda,
me leva pra cadeia... me bata... me mate... Eu perdi o meu Deus... eu não sei
viver sem meu Deus!
MULHER 1:- É tudo fingimento... é
tudo mentira...
MULHER 2:- Deus seja louvado! Deus
é o nosso pastor! Solta ela! Ela precisa de Deus! Eu posso salvar sua alma...
MULHER 1:- Ela precisa é de uma
boa surra...
SEGURANÇA:- Senhoras, por favor...
MULHER 2:- Eu pago... eu pago a
calcinha... toma... Ela vai comigo... Deus está chamando ela... Deus está
chamando ela... Viva! Viva! Viva!
A mulher sai com a ladra pela mão. Diva carrega uma
pequena mala de papelão e protege-a com o corpo. Na igreja, pessoas rezam
diante de uma cruz amarela com os braços em forma de triângulo.
PEREGRINO:- Quando ele virá?
PEREGRINA:- Ele está sempre
presente!
O Peregrino faz uma reverência à cruz, enquanto a mulher
entra com Diva pela mão e obriga-a a fazer o mesmo.
DIVA:- Eu sinto! Eu sinto! É
ele... eu sei que é ele!
TODOS:- Viva! Viva! Viva
DIVA:- Viva, não... Diva! Meu
nome é Diva... Diva... Eu procuro Deus...
MULHER:- Eu sabia... eu sabia...
ela vai encontrar Deus... Deus virá por ela!...
PEREGRINO:- Deus será louvado!
TODOS:- Para sempre... para
sempre... para sempre... Viva! Viva! Viva!
Luzes coloridas e piscantes, som alto de guitarras,
grande alarido e fumaça anunciam a chegada de Deus de Todos-os-Santos,
travestido de Deus, no seu máximo esplendor. Todos se abaixam em reverência e
tapam os olhos com as mãos. Diva solta
um grito e lança-se em seus braços. Os dois desaparecem, enquanto todos gritam
histéricos “milagre”, “milagre”, “milagre”.
CENA 6:-
DEUS:- Diva! Diva!... eu
pensei que... Não, não ouso dizer o que pensei!
DIVA:- Te procurei... te
procurei nas prisões, nos hospitais... no inferno... Também pensei que você...
Não! Não vamos nunca dizer essa palavra... Eu te amo... Jura! Jura que é você
mesmo!
DEUS:- Sou eu... sou eu,
sim... o teu Deus de Todos-os-Santos... o teu Deusinho... o único, o único que
pode te chamar de puta... Vem, meu anjo decaído, vem...
DIVA:- Sofri tanto...
DEUS:- Minha paixão!
DIVA:- Fui presa...
DEUS:- Meu cálice sagrado!
DIVA:- Me bateram!
DEUS:- Minha via-sacra!
DIVA:- Apanhei muito...
queriam que eu te dedurasse...
DEUS:- Minha mártir!
DIVA:- E eu nem podia te
dedurar... não sabia de ti... não sabia onde você estava!
DEUS:- Minha... judas!
DIVA:- Não, não, eu juro... não seria a tua judas...
Nem com todos os demônios do inferno a me torturar, eu te entregava... Diga que
me ama, diga...
DEUS:- Deus de Todos-os-Santos
tem de novo o poder... Saberei te proteger...
DIVA:- Eu te amo, diga que me
ama... por favor...
DEUS:- Eu amo a todas as
mulheres... e a todos os homens... minha carne é generosa... Vem: agora somos
três... Pedro, ó Pedro, vem conhecer minha Diva!
Pedro entra, beija o rosto de Diva ao mesmo tempo que
Deus também a beija. Lentamente, o beijo duplo transforma-se em triplo e os
três se abraçam e se amam até a exaustão.
DEUS:- É essa a minha miséria,
mas não será esse o meu destino... Meu pai... por ele sofri... dez anos de
seminário... Devia ser padre, devia ser bispo, devia ser cardeal da Santa Madre
Igreja... E ser Papa... o primeiro papa mulato... o primeiro papa do terceiro
mundo... Meu pai, velho sujo... Me jogou no seminário... dez anos fui papa,
sim, fui papa-hóstia... até que um dia... não, não posso lembrar... eu era o
único pobre, o único mulato daquele maldito seminário... o único que não tinha
defesa, não tinha padrinhos de púrpura, não tinha um sobrenome... só esse
nome... Deus... esse maldito nome... de escárnio... de deboche... (fala cantando, imitando criança) “Nós
não precisamos de hóstia, nós não precisamos de hóstia. Nós vamos comer um
Deus, nós vamos comer um Deus...” Aqueles filhos-da-puta... depois me acusaram...
me acusaram de sodomia... e só eu, o mulato, o sem sobrenome, o sem padrinho...
só eu... só eu fui expulso... do seminário e da vida de meu pai... Mas cedo
descobri que o corpo de Deus não se come. O corpo de Deus se cheira, se
injeta... e se transforma em notas verdes... Com elas criei minha Igreja, com
elas vou criar o caos... e essa favela... esse morro... tudo vai ser meu...
Vocês... vocês vão ser respeitados... você, Diva, sua puta, sua grande puta,
será a grande dama... e você, Pedro, o meu profeta, o meu profeta do
Apocalipse... a besta de fogo... a minha besta de fogo... Venham, sentem-se
comigo aqui... vamos fazer nossos planos...
Deus, Diva e Pedro estão absortos, discutindo em cima de
algo que parece um mapa. Entra um mensageiro e cochicha aos ouvidos de Deus,
que fica por alguns instantes em silêncio.
DEUS:- Pedro, meu perverso
Pedro... Fundei a Igreja e apazigüei os espíritos... pude fazer, então, todos
os negócios que ampliam meu poder... Mas agora, eu te pergunto de novo: Pedro,
meu profeta, existe, aqui, alguém mais poderoso que eu? Existe alguém que possa
fazer sombra ao meu reinado, ao reinado de Deus de Todos-os-Santos? Me diga...
meu santo, meu santo Pedro...
PEDRO:- Existe, sim... existe
alguém... diante dele seu poder pode ser merda de porra nenhuma...
DEUS:- Tá bem... meu poder
pode ser merda de porra nenhuma... tudo bem... agora com calma... me diga: quem
é ele? O NOME DELE, seu bosta!
PEDRO:- O nome... o nome é o
nome que tem o seu nome... um nome de porra nenhuma...
DEUS:- Paciência, é preciso
muita paciência... EU TE MATO SE VOCÊ NÃO ME DISSER AGORA MESMO QUEM É ESSE
PORRA!
PEDRO:- É alguém que compra e
vende almas... um negociante de almas... e corpos... corpos... de merda... de
porra... de porra nenhuma...
DEUS:- Bosta!... Ele sempre
apaga... Diva, você entendeu o que ele disse? Me diga, entendeu? Droga...
negociante de almas... negociante de almas... Eu preciso entrar nesse
negócio... Eu tenho que entrar nesse negócio...
CENA 7:
Bar de favela. Um homem - Salviano de Todos-os-Santos,
pai de Deus - e seus asseclas. Salviano dá um murro na mesa.
SALVIANO:- Eu não me chamo Salviano de Todos-os-Santos se não der
um basta nessa situação... Chega! Se ele quer a guerra, terá a guerra... Não
vou admitir que ele entre nesse negócio... Tudo eu permiti... Ele quis entrar
no negócio da droga? Tudo bem... Quis fundar uma igreja... tá lá... fundou a
igreja... eu fiquei no meu canto... Vender armas? Pode vender... pode vender...
eu até comprei algumas... Jogo do bicho... agiotagem... nada contra... fique à
vontade... Mas... no meu negócio, não! NÃO MEXAM COM MINHAS ALMAS! É guerra!
GUERRA!
UM ASSECLA:- Mas chefe... Guerra?
Contra... contra o teu próprio filho, de novo! Você já o traiu uma vez, já o
expulsou daqui... antes...
SALVIANO:- Era meu filho, ouviu?
Era! Um filho que nega os desejos do pai não pode ser chamado de filho. Um
filho a quem dediquei dez anos de escravidão, de trabalho duro, sol a sol,
cumprindo todos os mandamentos de Deus para que não tivessem isso, ouviu,
isso... (mostra uma unha) pra
falar... uma desculpa sequer... um pecado... um erro que fosse... ia na missa,
comungava... tudo para que aquele desgraçado pudesse fazer boa figura no
seminário... E no fim de tudo, o que é que eu recebo? Me digam: o quê? Um belo
chute no traseiro... ó... aqui, ó... bem no meio do cu... Aquele desgraçado...
E agora ainda vem pra cima de meu território... pra cima de euzinho, aqui?!
Como se eu fosse um... um... qualquer... um banana... um borra-botas? Guerra é
o que ele quer... guerra, ouviram? Aquele pederasta me paga! Ele me paga! E
você, seu bosta, não repita isso nunca mais... que eu já o traí uma vez... se
repetir, eu te mato, ouviu... Ninguém, ninguém sabe... só eu e você...
CENA 8:
Salviano sozinho. Vestido com uma capa negra, como uma
grande sombra, aproxima-se Deus.
SALVIANO:- Quem está aí?
Silêncio. A sombra
se aproxima.
SALVIANO:- Diga logo quem está aí!
Silêncio. Salviano puxa uma arma.
SALVIANO:- Se não falar logo, leva
chumbo.
A sombra pára.
DEUS:- Sou os teus miasmas.
SALVIANO:- Miasmas?! Que merda é
essa?
DEUS:- Os miasmas do pântano
de tua alma.
SALVIANO:- Minha alma é minha
palma. Nem miasmas nem fantasmas.
Deus tira o capuz.
DEUS:- Olha bem nos meus
olhos: há sangue em minhas pupilas.
SALVIANO:- Se há dor no que tu
vês, cego é o teu espírito, ó estranho. Do fundo da noite, só podes vir
chorando desgraça. Vai. Vai-te embora. Não sou o espelho de tua miserável vida.
DEUS:- Nem me viste ainda.
SALVIANO:- Vejo-te. Vejo-te agora
bem claramente. Mas é como se não te
visse. Teu rosto não acorda meus sentidos: não tens alma. Deves ser apenas um
espectro. Um espectro do pântano que dizes ser minha alma.
DEUS:- Tu me vês, mas és tu o
cego... Olha... olha bem, miserável... E verás refletidas no meu rosto as
linhas do teu próprio rosto!
SALVIANO:- Não! O que vejo é fruto
de meus pesadelos. O que vejo é o ódio que não vem do fundo do coração, o ódio
que queres ter e não o ódio que deveras sentes. Não vieste do passado
abominável para atormentar um pai...
DEUS:- ... um pai que só
merece do filho o ódio que tu desejas que ele não tenha.
SALVIANO:- Ódio! Ódio, meu filho?
Dei-te o nome do Santíssimo em vão?!
DEUS:- Maldito o nome que me
deste!
SALVIANO:- Deus... Deus, meu
filho... ouve! Não faz sentido a vida... se um filho abomina a semente que o
gerou. Não faz sentido a vida... se um pai contra o próprio filho ergue armas
mortais. Ouve. Não brinques com o teu nome. Foi apenas um equívoco... um
delírio de um louco... que queria apenas...
DEUS:- ... queria apenas o
quê? Fala! Que queria apenas um filho que pudesse ser... o quê? Fala,
miserável! Tira de mim o peso desse maldito nome.
SALVIANO:- Está certo... você está
certo... O delírio de poder... Era meu, esse delírio... Eu queria ser imortal
no teu nome... O homem mais poderoso do mundo! Carregado num andor, em
procissão de milhares... de milhões de fiéis... A mitra... o cetro... o
manto... a púrpura... o cheiro de incenso... ah! O cheiro de incenso! E todos
aqueles cardeais caquéticos a te bajular... a me implorar uma gota de água
benta... Eu seria o primeiro Papa negro da história!
DEUS:- Tu, meu pai? Tu?! Um
bosta que nunca saiu dessa merda de favela?...
SALVIANO:- Agora não importa mais,
ouviu? Agora não importa mais. Eu compro almas... eu compro almas... e vendo
corpos! Olhe: está vendo esse negrinho aqui? (Mostra uma foto). Podia ser seu irmão, não podia? Pois é, meu
querido filho, meu filhinho imaculado, sabe o que aconteceu? Você sabe? Eu o
vendi! Eu o vendi!! E só eu posso fazer isso, entendeu? Só eu! Os gringos só
compram de mim... pagam o quanto eu pedir... comem na minha mão! Eu não pude
ser o Papa... Você não é o Papa... Mas eu sou o maior papa-anjo desses
trópicos... o maior, ouviu? Meu negócio mantém viva essa favela... É do meu
negócio que esse povo todo vive!
DEUS:- Desde quando, meu pai,
o comércio da morte pode gerar vida? Me diga, pode a vida depender da morte? E
eu pensei que podia entrar nesse negócio... E eu pensei que podia ser maior que
você... Tenho vontade de vomitar...
SALVIANO:- Você é fraco! Sempre
foi... Por isso, no seminário, fizeram com você...
DEUS:- Você perdeu o medo da
morte, meu pai?
SALVIANO:- E eu queria tanto um
filho... um filho que fosse o homem que eu não mais podia ser... E agora,
você...
DEUS:- O poder, meu pai... só
o que herdei de você... o desejo de pisar, de esmagar... de estar acima do bem
e do mal...
SALVIANO:- Você teme o meu poder!
O meu poder sobre a vida e morte. Sim, você me teme... e, apesar de tudo, você
é meu filho!
DEUS:- Seu filho?!
SALVIANO:- Sim, meu filho... Eu
posso te odiar por aquilo que não foste, mas não posso deixar de te amar pela
tua ambição... Mas, ouça... não diga mais nada... vou explicar o meu negócio...
tim-tim por tim-tim... Nada de ânsias de vômito... nada de caras de horror...
Ouça! Nas estranjas, Europa, Estados Unidos, Canadá... qualquer um desses
países aí, civilizados... civilizados porque têm o poder de comprar, comprar e
comprar... Pois bem, lá nas estranjas, nascem todos os dias milhares de
loirinhos, lindos, cândidos, anjos de Michelangelo... mas, ouça bem... com
alguns probleminhas, digamos, técnicos... genéticos... algumas deficiências...
um rim que não processa o xixizinho como deve... uma válvula no coraçãozinho
que não bombeia o sangue azul direitinho... um pulmãozinho que é um fole
furado... Está me entendendo, não está? Pois bem, e aqui, nessa nossa favela,
nesse nosso mundo? Aqui, nascem todos os dias mil negrinhos e mulatinhos e até
mesmo branquinhos fortes, robustos, gorduchos como querubins do Aleijadinho...
Só que, atente bem para o detalhe, desses mil, uns cinqüenta ou sessenta pelo
menos nunca chegarão a soprar a primeira velinha... vencidos pela pobreza...
pelo desemprego... pela ignorância... pela falta de tudo! O que eu faço, então?
Desses mil, eu compro, ouviu bem, eu compro uns dez... só uns dez... e vendo
para os gringos... a peso de ouro... e muito bem pesado! Desse dinheiro, eu
tiro uma pequena parte para mim... e o resto, o resto... sabe o que eu faço com
o resto, meu filho, você sabe? Eu salvo os outros quarenta ou cinqüenta que iam
morrer! Agora me diga: sou ou não sou o mais cristão dos homens? Tenho ou não o
direito de defender o meu negócio? Só eu, com a minha generosidade, com o meu
coração transbordante das melhores intenções, só eu posso ter esse negócio...
Enquanto Deus vomita num canto, ouvem-se vozes, ruídos e
gargalhadas, acompanhados de luzes piscantes e fumaça. Salviano desaparece.
VOZ 1:- Deus desceu aos
infernos!
VOZ 2:- Foi traído por seu
próprio pai... saiu da merda, ascendeu ao poder e agora está no inferno!
VOZ 1:- Quem vai tirar Deus dos
infernos? Quem vai tirar Deus dos infernos?
VOZ 2:- Quem vai salvar Deus de
seus demônios?
De repente, o silêncio. Deus está só.
CENA 9:
DEUS:- Eu quero ficar só... eu
estou só... Deus está só... Miserável vida minha... Um pai louco, um nome que
não é um nome... que é o peso do universo. Merda! Eu não quero ficar só... eu
quero companhia... a companhia do mundo inteiro. Deus odeia ficar só!... Pedro,
sua pedra de porra nenhuma... vem pra cá... traz vinho... traz o pó... traz
também aquela que se diz minha mulher... aquela puta... que eu chamo de puta e
ela fica puta da vida!
Entram Pedro e Diva com bebida e cocaína. Eles bebem e
cheiram.
DIVA:- Deus, você me ama...
então me beija...
Deus beija Pedro.
DIVA:- Você é um desgraçado,
Deus, você é um maldito!
DEUS:- Psiu... silêncio...
pecadora... não chame meu nome em vão...
PEDRO:- Em vão... em vão os
mortos da estrada... em vão os loucos do asilo... as torturas... as injeções de
sossega-leão... tudo em vão... eu... eu estou aqui!...
DEUS:- Você veio de lá, Pedro?
Das profundas daquele inferno?
PEDRO:- Inferno? Inferno?! Mais
que inferno...era o cu do diabo...
Homens de branco! Odeio homens de branco!... Chapéus... sei lá o que era
aquilo... Odeio chapéus!... Mato todos eles... eu... eu mato... mato todos
eles... eu mato... Ocê manda, eu mato... Mato homens de preto também... tudo o
que o meu senhor mandar...
DEUS:- Pedro, meu amigo, minha
pedra angular... meu porto seguro... que afunda comigo nessa viagem... Eu te
amo, Pedro... amo sua dor... amo sua mente tresloucada... Oh! Meu pai... você
nunca soube o que é amar...
DIVA:- Você me ama também, não
é, meu Deusinho?!...
DEUS:- Pedro, você ama a Diva,
não é, meu Pedrinho... você ama a Diva... diz pra ela, diz... diz que você a
ama... que você a ama de paixão...
PEDRO:- Diva... Diva... quem...
quem é essa... quem é essa mulher? Ah! Já sei... aquela que rouba calcinhas...
a ladra de calcinhas...
Pedro pega a mala de Diva e abre-a, depois de uma breve
luta entre os dois. Estende sobre o palco inúmeras calcinhas de todas as cores.
Os dois brincam, dançam e cantam bizarra e alegremente, fazendo mil micagens
com as calcinhas, enquanto Diva fica amuada num canto. Cansados, voltam a beber
vinho e a cheirar cocaína.
DEUS:- Eu tinha... eu tinha
feito uma promessa... uma promessa... de nunca... beber... de nunca...
cheirar... me picar... Hoje, eu posso... eu posso tudo isso... Quero
esquecer... esquecer meu pai... esquecer que eu existo... E isso, meus amigos,
é a coisa... mais difícil... que existe... Ninguém... consegue... esquecer...
que... Deus existe!... e eu quero... eu quero esquecer... eu quero esquecer de
mim!...
DIVA:- Deus... Deus...
DEUS:- Não... fale... o meu...
nome... Eu... esqueci.... Eu esqueci que existo....
DIVA:- Eu quero te contar uma
coisa...
DEUS:- Não fale comigo...
fale... com ele... com o apóstolo... o primeiro ministro... o administrador...
o gerente... de meu reino... Vai, fale com... ele... não me encha o ...
Diva abraça Pedro e chora um pouco.
DIVA:- Pedro... posso te
contar... uma coisa? Posso?
PEDRO:- Uma coisa boa?
DIVA:- ... uma coisa pra lá de
boa...
PEDRO:- ... uma porra de
merda... de coisa boa?...
DIVA:- Sabe o Deus... o nosso
Deus ali?... o Deusinho dono de tudo?... Pois, é... ele pode tudo, não pode?...
Ele é o nosso ídolo... Eu... você... nós dois... nós amamos ele de paixão, não
é mesmo?... O povo... o povo também... todo mundo... todo mundo ama ele... não
é, mesmo?... E sabe por quê?... Sabe? Porque Deus é bom... Deus é generoso...
protege as criancinhas... Deus adora criancinha... você não acha, Pedro?
DEUS:- Que merda.... de
papo... é esse?
DIVA:- Pedro, sabe o quanto as
criancinhas também amam esse nosso Deus?
DEUS:- Não! Não fale... em
criancinha... Não hoje... Hoje... não!
DIVA:- Elas gostam tanto
dele... que me pediram... me pediram para fazer uma... que fosse, sabe?... que
fosse igualzinha a Deus!...
Deus pula na frente de Diva, desperto de todo o porre, olhos
esbugalhados e transformado numa fúria.
DEUS:- Maldita! Prostituta!
Podia te perdoar tudo... até que me
entregasse às tropas de meu pai... Podia te perdoar o pior dos crimes: a
traição! Mas isso, não! Isso, não!
O murro de Deus em direção ao ventre de Diva encontra o
braço firme de Pedro. Os dois se encaram com ódio por um instante. Deus
recompõe-se, pega a capa e sai. Diva chora no ombro de Pedro.
CENA 10:
Salviano e seus asseclas.
SALVIANO:- A guerra tá brava...
Agora, me digam: com quem está o povo? Com quem?
ASSECLA 1:- Meio dividido, né Seu
Salviano...
ASSECLA 2:- Como nunca esteve
antes...
SALVIANO:- Me digam: o que está
pegando? O quê?
ASSECLA 1:- Pegou mal aquela
história, né Seu Salviano...
ASSECLA 2:- Os jornais andaram
sugerindo...
ASSECLA 1:- Assustou!
ASSECLA 2:- Tem gente defendendo
uma liderança nova...
ASSECLA 1:- ... mais... mais...
cristã! É! É isso: mais cristã!
ASSECLA 2:- Mas ainda tem muita
gente do nosso lado, né, chefe...
ASSECLA 1:- ... o senhor tem um
passado... tem história...
ASSECLA 2:- ... graças a Deus!
SALVIANO:- Falando de corda em
casa de enforcado, desgraçado?!... Perdeu noção do perigo?... Temos que
reverter essa guerra. Mande entrar o repórter.
Entra o repórter, vendado e amarrado, puxado por um dos
asseclas.
SALVIANO:- Pode soltar ele... E
então, o senhor quer uma exclusiva comigo, não é? Por quê?
REPÓRTER:- Nossa revista é de
circulação nacional...
SALVIANO:- Grande merda! O que eu
quero saber, mesmo, é se essa sua revista aí de circulação nacional vai
publicar a verdade!
REPÓRTER:- Claro... claro... seu
Salviano... Nosso lema é a verdade, somente a verdade, nada mais que a verda...
Salviano mostra uma revista.
SALVIANO:- Verdade! Isso aqui é
verdade? Vamos... leia... Leia alto, para todos ouvirem!
REPÓRTER:- “Exércitos de Deus
derrotam traficantes de bebês!”
SALVIANO:- E então... o que você
me diz... é isso a verdade dessa sua revistinha de merda... de circulação
nacional?
REPÓRTER:- Foi... foi... um...
equívoco... não tínhamos ouvido a outra parte, o senhor...
SALVIANO:- Tá... tá... tá... Vamos
ao que interessa: o agora e o depois do agora. Se sair uma só linha nessa sua
revista de circulação nacional que não seja verdade, você é que vai ter
repercussão internacional, ouviu, internacional... com o rabo cheio de formiga!
Mandem entrar o juiz e a mulher que tá lá fora. Eu não vou te falar nada: você
vai ver com esses olhos aí que a terra pode comer mais cedo como eu ajo, como
eu trabalho...
Entram o juiz, devidamente togado, e uma mulher em trajos
de pobre, em adiantado estado de gravidez.
JUIZ:- Tudo como manda a lei!
Tudo como manda a lei! Dura lex, sed lex!
SALVIANO:- Mulher, qual é o teu
nome?
MULHER:- Maria de Lurdes, seu
Salviano... Maria de Lurdes Machado, para vos servir.
SALVIANO:- Confere, Meritíssimo?
Todos os dados estão de acordo?
JUIZ:- Data venia dos
presentes, só uma informação não confere... a idade da reclamante...
SALVIANO:- Isso não importa.
Prossigamos! Quantos filhos a senhora tem?
MULHER:- Com o que tá aqui... pra
nascer... vão ser... dez, Seu Salviano... dez...
SALVIANO:- Todos vivos? Isto é, os
que já nasceram...
MULHER:- Se o senhor chama aquilo
de vida... tão vivo... graças a ...
SALVIANO:- ...graças a mim...
ouviu, graças a mim... Pra quando é o parto?
MULHER:- Mais um mês, seu
Salviano...
SALVIANO:- A senhora está doando o
seu filho que vai nascer por livre e espontânea vontade?
MULHER:- Si... sim... sim,
senhor!
SALVIANO:- Então, assina aqui...
Salviano estende-lhe um papel em que ela marca com o
polegar molhado de tinta. O Juiz confere tudo minuciosamente. Chama alguns
asseclas e o repórter para assinarem, como testemunhas, assina também e
retira-se pomposamente, depois de cumprimentar a todos. A mulher também sai,
pelo braço de um dos asseclas, chorando um pouco.
SALVIANO:- Viu, seu reporterzinho
de nada, viu como eu trabalho? Esse moleque que vai nascer, vai nascer com o
rabo pra lua... vai ser adotado por um casal de alemães... e graças a isso, os
seus irmãos aqui no Brasil vão ter uma vida melhor... Vão ter casa, comida,
escola... Vão ter uma profissão... Um futuro, ouviu, um futuro!
REPÓRTER:- E quanto o senhor vai
ganhar com isso?
Salviano olha-o, por um momento, com ódio, enquanto os
asseclas ameaçam sacar as armas e partir para cima do repórter. Salviano faz um
gesto de calma, passa a mão, ironicamente, pelo rosto do rapaz, aperta-lhe as
bochechas e abre um grande riso.
SALVIANO:- Hoje estou de bom
humor... Hoje estou de bom humor... Agora vai, conte o que tu viu aqui... e não
minta, ouviu, não minta... Estarei de olho em você... Vai, vai...
Os asseclas vendam de novo os olhos do repórter e todos
se retiram a um gesto de Salviano que, cansado, recosta-se numa cadeira e, aos
poucos, com a diminuição da luz, começa a adormecer. Sonha. E, no sonho,
aparece-lhe uma mulher com um bebê ao colo. É Dalva, sua esposa.
SALVIANO:- Dalva... Dalva, meu
amor... meu anjo... minha estrela... você me deu um menino... Um menino!
A mulher amamenta a criança, enquanto outras mulheres
aproximam-se e olham, estarrecidas, o recém-nascido, com expressões como: “É
lindo!” “Maravilhoso!” “Nunca vi uma criança tão linda, assim!” “É um deus...
um deus!” “Sim, um deus está entre nós”! etc. Fazem gestos de depositar
oferendas e saem.
SALVIANO:- Você ouviu, Dalva? O
nosso filho... ele é um deus... ele será poderoso como um deus... será tudo
aquilo que eu não pude... Oh! Dalva, meu amor, seremos tão felizes... com nosso
filho... nosso filho que é um deus...
Para, de repente, num gesto de terror.
SALVIANO:- Não! Por Deus, não! A
maldição! Eu esqueci a maldição! Não! Dalva, não! Você não pode... você não
pode... Não!!! Não!!!
Chora e debate-se como um louco, enquanto a visão
desaparece e ele acorda, ainda gritando. Procura acalmar-se, percebe uma sombra
vindo em sua direção, puxa uma arma e atira.
DEUS:- Cuidado, meu pai... sou
eu! Não atire... Sou eu...
CENA 11:
Segundo encontro entre Salviano e Deus.
SALVIANO:- Você???... O que...
como... não entendo!
DEUS:- Começamos mal, de novo,
meu pai... A primeira vez que estive aqui, você não me reconheceu. Agora, me
recebe a bala. Não é por estarmos em guerra que precisamos nos matar, não é
mesmo?
SALVIANO:- Fantasmas! Fantasmas de
meus pesadelos... você, ainda tão frágil... meu filho querido... belo, belo
como um deus... é você, mesmo? Não estou mais dormindo?
DEUS:- Vamos lá, seu
Salviano... Acorde! O que é isso, agora? O poderoso Salviano, senhor de vidas e
destinos, agoniado... como um qualquer?
SALVIANO:- Os sonhos, meu filho,
os sonhos fragilizam o homem... Não sonhe nunca, ouviu? Não sonhe nunca... que
a traição pode estar nos teus sonhos...
DEUS:- Estranhas palavras, meu
pai... Traição? De que traição está falando?... Você está me escondendo alguma
coisa?
SALVIANO:- Como entrou aqui? E os
meu guardas? Guardas!
DEUS:- Deixe-os dormir, meu
pai, deixe-os dormir o sono dos que não têm sonhos... nem pesadelos... Estamos
sós, eu e você, não há mais ninguém no mundo neste momento... Vamos acertar
nossas vidas, acabar com a guerra...
SALVIANO:- Bandeira branca, meu
filho? Você se rende?
DEUS:- Acho que não me
expliquei direito. Eu disse que devemos acabar com a guerra, não disse que me
renderia... Um filho é sempre rendido ao pai, deve-lhe respeito, admiração às
vezes, mas não quer isso dizer que deva fazer tudo o que o pai manda...
SALVIANO:- O poder...
DEUS:- Não! Basta! Não me
venha com esse papo furado de poder... eu estou careca de saber onde isso nos
leva... de filosofia eu já tenho o meu saco por aqui... Vamos tratar de coisas
concretas... de vidas humanas... de mortes inúteis... de seres inocentes que
não deviam morrer...
SALVIANO:- Também eu já sei onde
nos leva esse teu papo que também é
furado, mais furado que o meu... Podemos acertar qualquer acordo, mas em minha
seara você não tem o direito de se meter... Eu tenho alguns princípios, meu
filho, e deles não abro mão. Não, não diga nada. Ouça, apenas, por enquanto. Eu
te amo, porque você é meu filho. Um pai não pode odiar um filho: esse é o meu
princípio número um. Embora, às vezes... seja obrigado a coisas que não merecem
perdão... Esqueça... não é disso que devo falar... Tem o princípio número dois:
o filho não pode morrer antes do pai. Sabe por quê, não sabe? Um filho tem que
continuar o pai, torná-lo eterno, dando-lhe netos que vão transmitindo... e
etc. e etc. ... essa baboseira toda que você parece desdenhar, mas que é a lei
da vida... E tem mais: o princípio de todos os princípios: o poder! Já sei, já
sei o que você está pensando... que lá vem esse velho idiota falar de poder
novamente... Mas eu falo... Eu falo sempre... O poder, meu filho... o poder é o
motor do mundo... O poder que se conquista... o poder que se ganha... na marra,
na porrada, no sacrifício... Esse você já tem bastante... com seus negócios...
com sua igreja... com o ópio... e sei lá quantas coisas mais... Mas existe um
outro poder: o poder que se herda... que vem do pai para o filho... que vai do
filho para o neto... Esse é o poder que realmente conquista... que realmente
manda... porque se consolida com o tempo, com o suor e o sangue dos que lutam
por nós e nos fazem realmente poderosos... É esse o poder que eu quero lhe
entregar... que eu quero passar para você... Nossa guerra, meu filho, é apenas
uma forma de alimentar esse poder... com sangue... com vidas... Quando nos
juntarmos, seremos eternos... Ouviu? Eternos...
DEUS:- Eu quero tanto o poder
quanto você, meu pai... e quero também vingança... Quero vingar quem me
traiu... Quanto ao poder, não quero o teu poder, ouviu? Não quero o poder que
você quer me dar... Poder feito de vidas humanas inocentes... eu também tenho
princípios...
SALVIANO:- Isso não são
princípios... são escrúpulos.. E para gente como nós não pode haver
escrúpulos... Entenda: escrúpulos é o sinal da fraqueza e nós não podemos
demonstrar nunca qualquer tipo de fraqueza... Quando nossas tropas guerreiam lá
fora, se matam por nós, sem nem saberem direito por que estão matando, por que
estão morrendo, estamos demonstrando ao mundo nossa força... As pessoas vão
dizer: esses são homens poderosos: lutam com coragem... são verdadeiros
homens... nós os seguiremos até a morte.
DEUS:- Enquanto isso...
SALVIANO:- Enquanto isso, nós
estamos aqui, unidos, acertando nossos negócios... pensando em estratégias...
sonhando com o mundo que estará aos nossos pés...
DEUS:- Eu enfraqueço... eu
enfraqueço diante de você, meu pai... Não, eu não posso continuar ouvindo
isso... Você é louco e mais louco serei eu se lhe der ouvidos... Eu vim buscar
a paz, mas estou levando a guerra... Eu não quero a guerra... Eu não
quero... Mas lutarei até o meu último
homem... Eu pensei que podia te amar... que podíamos nos entender... Mas
encontro só o ódio em meu peito... ódio contra você... contra o que você
representa...
SALVIANO:- Isso... me odeia... Me
odeia bastante... Será o teu caminho para me entender... para me amar... Do teu
ódio nascerá a razão... E você verá que a razão esteve, está e estará sempre
comigo... Vai! Vai embora! A luta encarniçada fará de você um verdadeiro
deus!...
Deus sai com expressão de ódio e asco.
CENA 12:
Deus, Pedro e Diva.
DEUS:- Você, Pedro, reúne
todos os homens... Acabou a trégua! Guerra total, ouviu? Guerra total!
PEDRO:- Morrerão muitos...
muitos inocentes... Não é isso...
DEUS:- Não me contrarie! O
sangue dos inocentes será a prova de que estamos certos... Vai! A minha
palavra, a palavra de Deus de Todos-os-Santos, essa é que vale... Não existem
inocentes! Não existem inocentes! Fala de novo com os capitalistas, mas não os
mate, ouviu? Precisamos deles para instaurar a nova ordem... Afinal, nem eu
entendo muito desse neoliberalismo que anda por aí... Nós vamos nos tornar
globais, Pedro, globais! Nossa igreja vai crescer... nossos lucros vão
arrebentar as bolsas de valores do mundo inteiro... Nada vai poder nos deter...
Mas, primeiro é preciso fazer a guerra... com o dinheiro dos malditos
capitalistas... e depois, com tudo o que eles têm... Vai! Toma o dinheiro
deles, para nossa guerra...
Pedro sai.
DEUS:- E você, minha
Diva... Vamos acertar nossas contas... (Ela
aproxima-se, os dois se beijam). Tesouro meu... a mais fiel de todas as
mulheres... (Diva sorri, agradecida.
Beija-o com ternura). Você será a Eva de meu paraíso... a estrela matutina
de minhas noites... a gazela dos meus campos floridos... a musa e a inspiração
de meus atos... Farei para ti um palácio com as mais ricas pedras de meu
reino... Diva... (Muda de repente).
Sua filha-da-puta ordinária! (Empurra-a,
ela cai). Você vai tirar já esse filho, antes que eu o arranque de sua
barriga a pontapés... Cadela ordinária... Toma! (Joga um monte de dinheiro em cima dela). Procura o melhor médico,
o melhor curandeiro, a melhor curiosa... procura o diabo que a carregue... Mas
não me volte aqui com esse bucho cheio... que eu te mato... entendeu? Eu te
mato com minhas próprias mãos!
Deus
vai saindo, enquanto Diva, aterrorizada, puxa uma arma, aponta para ele,
titubeia, não tem coragem de atirar.
Chorando, junta o dinheiro espalhado e vai saindo também, cantando a canção:
DIVA:- Olho para fora
e
o mundo parece
o
que é agora:
rede
que tece e retece
o
tempo e o momento
a
coser a vida
neste
movimento
rede
entretecida
assim
sempre aos poucos
seus
fios enleia
ao
longe a cadeia
dos
sonhos mais loucos
a
fruta no pé
madura
parece
mas
aquilo que é
ao
toque fenece
já
podre por dentro
um
círculo de luz
uma
ave no centro
a
morte produz
o
estranho chamado
será
o tempo tecido
para
sempre sonhado
jamais
esquecido?
CENA 13:
Grande burburinho. Tudo acontece ao mesmo tempo. De algum
ponto do alto, Deus e Salviano apenas olham.
SOLDADO 1:-Qual a tua fé,
desgraçado?
SOLDADO 2:-Creio em Deus...
SOLDADO 1:-Então morre com tua fé,
miserável!
CORRETOR DA BOLSA 1:-Deus está
comprando... Deus está comprando...
CORRETOR DA BOLSA 2:-Igreja de Deus...
subindo dez pontos... Igreja de Deus... subindo 15 pontos...
CAPITALISTA 1:- Eu compro, eu compro...
CAPITALISTA 2:- Arruinado... estou
arruinado...
SOLDADO 1:-Eu quero sangue... em
nome de Deus, eu quero sangue...
SOLDADO 3:-Viva Salviano... viva
Salviano... (é baleado).
CORRETOR DA BOLSA 1:-Ações do
Salviano... Ações do Salviano... vendo... eu vendo... por vinte... Ações do
Salviano... eu vendo... por dez...
CORRETOR DA BOLSA 2:-Igreja de Deus...
eu compro... por 40... Igreja de Deus... eu compro... por 50...
CAPITALISTA 1:- Eu vendo... eu vendo...
por 60 eu vendo...
CAPITALISTA 2:- Ações do Salviano... eu
vendo por cinco... eu vendo por cinco... Eu troco por revólver... as ações do
Salviano por uma arma... As ações do Salviano por uma arma...
CAPITALISTA 1 (contando dinheiro):- Estou rico... graças a Deus, estou rico...
estou rico...
VENDEDOR DE JORNAIS:- Extra! Extra!
Deus compra companhias de petróleo no Oriente...
SOLDADO 1:-Vencemos! Por Deus, nós
vencemos!
VENDEDOR DE JORNAIS:- Extra! Extra!
Deus investe nas bolsas da Ásia!
CORRETOR DA BOLSA 1:-Ações de Deus em
alta... Deus está em alta!
Enquanto
o Capitalista 1 se mata, o Capitalista 2 embolsa uma grande quantidade de
dinheiro.
CAPITALISTA 1:- Que Deus queime no
caldeirão do Diabo!...
CAPITALISTA 2:- Deus seja para sempre
louvado! Deus seja para sempre louvado!
VENDEDOR DE JORNAIS:- Extra! Extra!
Salviano promete renunciar ao comércio de adoções!
CORRETOR DA BOLSA 2:- Liquidando...
ações do Salviano... liquidando... última oferta... vendendo por 3... vendendo
por 3...
SOLDADO 1:- Deus... Deus... continua
a guerra... continua a guerra...
VENDEDOR DE JORNAIS:- Extra! Extra!
Salviano está liquidado! Salviano está liquidado!
CENA 14:
Todos comemoram a vitória de Deus, conduzindo-o num
andor, pulando, dançando e cantando. Salviano vem conduzido por Pedro, numa
coleira, como um cachorro.
TODOS:- Salve o nosso Deus,
Salve
o nosso Deus,
Que
bate forte
Que
decreta a morte,
Salve,
salve o nosso Deus.
Deus
é nosso rei,
Senhor
de tudo,
Senhor
da lei,
Fracos
e covardes,
Tremei,
tremei,
Que
Deus é nosso rei.
Salve,
salve o nosso Deus!
Que
bate forte,
Que
decreta a morte
Salve,
salve o nosso Deus!
CENA 15:
Deus, Salviano e Pedro. Diva permanece amuada a um canto.
DEUS:- Então, Salviano, meu...
meu...
SALVIANO:- Pai! Diga! Pai! Sempre
fui e sempre serei seu pai!
DEUS:- Os cães ladram... e
Deus se vinga. Cala a boca, miserável... ou mandarei que Pedro lhe coloque uma
mordaça...
PEDRO:- Cão que ladra não
morde...
DEUS:- Pelo menos, enquanto
está latindo... Você tem razão: deixa ele latir à vontade... Vamos, late, late,
cão danado!
SALVIANO:- Há um outro cão que o
aguarda: o cão dos infernos, para onde você vai...
DEUS:- Dá um osso para ele,
Pedro... dá um osso para ele... E deixa ele amarrado num canto aí qualquer...
Agora mande entrar os meus súditos e meus fiéis... Quantas pessoas estão
aguardando?
PEDRO:- Um porrada de gente,
chefe, uma porrada...
DEUS:- Já sei, uma porra de
merda de tanta gente... Só vou receber uns três ou quatro... Manda os outros embora...
manda os outros embora... Diga que Deus está cansado da luta... que Deus está
com dor de barriga... diga qualquer besteira... que eu estou de saco cheio... E
mande entrar o primeiro!
CENA 16:
Sentado numa espécie de trono, Deus atende os súditos,
com ar de tédio. Salviano, amarrado a um canto, como um cachorro, rói um osso.
Diva permanece noutro canto, amuada. Pedro conduz um a um os reclamantes. O
primeiro reclamante é um bispo da igreja de Deus: traz o símbolo da igreja (uma
cruz em forma de triângulo) e um saco de dinheiro.
BISPO:- Diante do Deus de nossa
igreja, eu me penitencio. (Ajoelha-se e
beija a mão de Deus). Trago-te o dízimo do mês. Mas as notícias não são
boas: os fiéis têm-se recusado a colaborar. Dizem que não têm empregos, não têm
comida e não têm dinheiro.
DEUS:- Estão querendo te
enrolar. Aperte as penitências. Ameace com o fogo do inferno. Prometa! Prometa
sempre! Faça-os entender que quanto mais contribuírem com o dízimo, quanto mais
sofrerem agora, mais recompensa terão. Lembre-se, bispo: o tamanho da
misericórdia de Deus será o tamanho do sacrifício que deverão suportar. (Pega o saco de dinheiro). Que miséria!
Isso não é dinheiro para uma igreja do tamanho da sua. Assim, não há milagre
que se possa fazer! Vamos: traga mais dinheiro da próxima vez; o dobro disso,
ouviu? Sua meta é dobrar essa quantia. Pedro, anota aí o quanto esse miserável
deverá trazer no próximo mês. Se não trouxer, já sabe: rua! E você sabe, seu
bispo-de-preguiça, o que significa rua, você sabe? Pois nem queira saber. Só
lhe digo uma coisa, uma coisinha apenas: eu, Deus de Todos-os-Santos, agora
senhor de almas e de todo um império, não suporto, não gosto nem de pensar, que
pode existir um ex-fiel, um ex-seguidor, entendeu? Deus não gosta de testemunhas,
entendeu? Agora vai, vai e não seja venial com o patrimônio de Deus.
(Entra
o segundo reclamante: um ancião de longas barbas, frágil, apoiado a um bastão.
Deus enternece).
DEUS:- Meu bom homem, que
agruras lhe trazem à minha presença? Diga: o que a vida lhe tem reservado? Se
lhe fizeram algo de mal, é só dizer... Colocarei todo o meu poder – que agora é
imenso – para defendê-lo, meu bom homem... Coisa que não admito é que
desrespeitem os mais velhos...
ANCIÃO:- Deus de
Todos-os-Santos, que a graça do Senhor do Teu Nome te acompanhe para sempre.
Suas palavras são bálsamo aos meus ouvidos que quase já não ouvem. Sua figura é
a glória para esses olhos que em breve deixarão de contemplar o seu reino. Seu
poder...
DEUS:- Chega, meu bom homem,
não gaste em vão o pouco da vida que lhe resta com este que está aqui apenas
para servi-lo. Vamos, conte-me o que o trouxe aqui?
ANCIÃO:- Deus seja louvado... e
o senhor também... Com tais palavras... meu coração se regozija... Não, não vou
cansá-lo mais, nem ocupar por muito tempo o seu precioso tempo, embora na minha
idade o tempo seja para mim a maior riqueza... Não a desperdicemos, pois... Vou
direto ao meu pleito: eu tenho um neto... quinze anos... forte como um touro...
belo como um deus, se me permite... e talentoso... muito talentoso... não há
naquilo a que ele se propôs ser ninguém que se lhe compare!... É por ele que
venho a sua presença, santo Deus de Todos-os-Santos... Uma palavra sua e todas
as portas serão abertas ao meu neto e, então, eu poderei morrer em paz...
DEUS:- Morrer não, meu bom
homem, que homens com a sua bondade vivem uma longa vida... Mas pode deixar:
ainda verá seu neto glorioso, naquilo a que ele se propôs fazer... E é esse o
ponto: diga-me quais portas deverão ser abertas e elas se abrirão, não mais por
esforço vosso, mas por minha vontade...
ANCIÃO:- Meu neto deseja ser
jogador de futebol. Esse o seu talento!
(Deus
irá mudando à medida que o ancião responde às suas perguntas, da ternura à
ira).
DEUS:- Jo... jogador... de
futebol?
ANCIÃO:- Sim! E será o maior de
todos, se a mão de Deus abrir para ele as portas certas!
DEUS:- Mas... me diga, que...
que posição... que posição... ele... o seu neto... joga?
ANCIÃO:- Meu neto será... será,
não: já é... um grande goleiro! É isso: um grande goleiro!
DEUS:- Não! Saia daqui, velho
miserável... vamos, saia... e não volte nunca mais... Desgraçado... maldito...
saia...
(Deus
expulsa o ancião a pontapés, com toda a fúria, sem que Diva e Pedro consigam
detê-lo).
PEDRO:- Calma... calma... que
porra de merda é essa...
DIVA:- O que deu em você?
Ficou louco? Deixa o velho em paz... Onde já se viu... que coisa... calma...
Não entendo você: num instante estava aí babando todo para o velho e agora
isso?! O que está acontecendo?
DEUS:- Água! Água! Água, não:
vinho. Eu preciso... eu preciso... uma taça de vinho... Esse velho...
miserável... me dá... eu quero vinho...
(Pedro
serve-lhe uma taça de vinho. Deus, aos poucos, acalma-se. Diva consola-o).
DIVA:- Meu deusinho
nervosinho... calminha... calminha...
DEUS:- Calminha uma ova! (Rende-se aos carinhos de Diva). Está...
está passando... estou melhor...
DIVA:- Mas o que aconteceu,
meu querido... conte aqui para sua Diva... conte...
(Deus
mergulha nas lembranças e na depressão).
DEUS:- Talvez seja
melhor... contar... talvez alivie... Eu vou contar... Éramos jovens, quinze...
dezesseis anos... e amigos... éramos uma dupla inseparável, naquele maldito
seminário... Mickey e Pateta, entende? Irmãos... Jogávamos futebol toda
tarde... ele no gol e eu, centroavante... ele segurava tudo lá atrás e eu fazia
os gols do nosso time... éramos invencíveis... E amigos, irmãos... todos nos
invejavam... diziam coisas... a gente nem ligava pro falatório dos outros...
Não importava... só importava a nossa amizade... Uma tarde, durante o treino, o
padre... o padre que era o técnico... nem me lembro mais o nome dele...
resolveu colocar o... o meu amigo, o meu irmão... no outro time... De repente,
éramos adversários... e uma saudável e meio que fingida rivalidade surgiu entre
nós... Eu atacava e ele defendia... Eu conseguia fazer um gol e ele, logo
depois, fazia uma grande defesa... Quase no final do treino... jogo empatado...
o duelo não tinha vencedores... um bola longa, da nossa defesa... projeto-me...
como um louco... para fazer o gol... já na área... não vejo mais nada... só a
meta... só a bola... a última chance... enfio o pé com toda a minha força... e
já sentia o orgasmo do gol... o pé... o
pé na velocidade da corrida e do chute... atinge... atinge algo duro... tão
duro quanto pode ser dura uma cabeça... não vejo mais nada... só a dor... a dor
no pé... como se em mil pedaços... Só um instante depois é que tomei
consciência do que tinha acontecido... ao ver uma massa imóvel, uma mancha de
sangue... e todos gritando... gritando muito... Meu amigo morreu três dias
depois... nunca voltou do coma... nunca... nunca mais joguei futebol... passei
a odiar futebol... Odeio futebol!
CENA 17:
Deus recupera-se das
lembranças. Diva volta ao seu posto, ainda amuada. Salviano rói o osso em seu
canto. Pedro aguarda ordens.
DEUS:- Pedro, já mandou
todo mundo embora?
PEDRO:- Mandei... mandei tudo
embora... Só ficou um porra de um juiz que insiste em falar com você... e uma
dona com uma barriga enorme assim, ó...
DEUS:- Que merda... Juiz? Que
raio de juiz?
Salviano,
de seu canto, fica atento.
PEDRO:- Acho que é aquele
mesmo... que é amigo desse porra aí...
DEUS:- O que será que ele
quer? Agora estou curioso... Vai, vai lá, Pedro... manda esse cara entrar!
Pedro
obedece. Entram o Juiz e uma mulher grávida. O juiz, cheio de pompa e
salamaleques, beija a mão de Deus e, ao vir a situação de Salviano, procura
ignorá-lo acintosamente.
DEUS:- Deixemos de frescura,
senhor Juiz...
JUIZ:- Meritíssimo, senhor
Deus, meritíssimo...
DEUS:- Olha aqui, seu
basbaque, eu já tô de saco cheio com essa merda toda... desembucha logo, antes
que eu perca ainda mais a paciência...
JUIZ:- Mil perdões, senhor Deus
de Todos-os-Santos, mil perdões... Data venia de vossa deidade, aqui venho em
nome de todas as famílias da comunidade, aqui representada por essa senhora...
MULHER:- Para vos servir,
senhor...
JUIZ:-... aqui representada
por essa senhora em estado adiantado de prenhez, para exortá-lo a que retome
alguns projetos... alguns projetos... deixados por... (pigarreia) o senhor sabe quem... (olha de soslaio para Salviano, que rosna). A nossa comunidade é carente e não pode dispensar a venda... quero dizer... o
processo de adoção do... do... do antigo senhor... (evita olhar para Salviano, que continua rosnando)...
DEUS:- Pedro! Bota uma
focinheira nesse cachorro... (Pedro corre
a obedecer-lhe). Seu juizinho de merda, se eu tô entendendo, o senhor está
me propondo o negócio sujo daquele cachorro ali? É isso? O negócio sujo de...
de... como é mesmo que vocês chamam? De adoção de crianças... do envio de
inocentes para as estranjas... para fazer... para fazer o diabo! É disso que
você está falando?
JUIZ:- Data venia...
DEUS:- Data venia o caralho...
Eu conheço o jogo de vocês... com essa
fala mansa, cheia de trololó pra cá, trololó pra lá... e, no final, enchem a
pança de grana às custas de foderem a vida desses coitados...
MULHER (ajoelhando-se, desesperada):- Pelo amô de todos os santo, meu
Deusinho, meu sinhô de tudo quanto é deus, eu sô uma pobre que tá esperando
o... o... o... doze fio... o fio número doze... nóis num tem onde arrumá cumida
pra tanto fio... então nóis feiz esse aqui pros estranja... seu Salvi... seu
Juiz garantiu que se nóis fizesse mais um pros estranja, nóis salvava os
onze... e agora, meu Deus, e agora, o que nóis vai fazê... tem piedade de
nóis... faiz aquilo que o seu.. o seu... Sal... o senhor Juiz aqui tá pidino...
faiz...
DEUS:- Pedro! Tira essa mulher
daqui... tira essa mulher daqui! Dê uma boa esmola pra ela, mas tira essa
mulher daqui!
O
juiz e Pedro levam a mulher para fora, tentando consolá-la. Enquanto isso, Deus
continua seu discurso irado.
DEUS:- Um absurdo! Meus
princípios éticos não permitem! Lutei uma guerra contra esse cachorro... contra
esse absurdo! Agora, querem que assuma o negócio sujo... Sujo? O mais sujo, o
mais vil, o mais torpe de todos os negócios... Isso eu não permito... não vou
permitir nunca... Ouviu? Nunca!
Diva
e Pedro retornam.
DEUS:- O meritíssimo aí: tem
um minuto para se desculpar e se escafeder daqui!
O
juiz mostra-lhe um livro.
JUIZ:- Num minuto me desculpo,
data venia de sua deidade... Apenas veja o quanto perde o vosso reino com tais
pruridos...
Deus
olha com o rabo do olho o livro, interessa-se um pouco, depois um pouco mais,
toma o livro das mãos do juiz, arregala os olhos e diz, sem palavras, mas de
modo que todos percebam: PUTA QUE O PARIU! TUDO ISSO?
DEUS:- Senta aqui, meritíssimo
juiz. Vamos negociar! Mas já lhe adianto que meus princípios morais são incorruptíveis.
Apenas sigo as regras da boa educação, que mandam ouvir a oferta, a palavra dos
nossos ilustres visitantes... E eu sou bem educado, como o meritíssimo sabe,
criado em seminário, já fui até mesmo recebido no Vaticano... não, não
exatamente pelo papa... deixemos isso pra lá... Pedro! Sirva aqui uma bebida
para o nosso visitante... (Pedro
obedece-lhe). Como eu ia dizendo, eu lutei... lutei muito para vencer o...
o senhor sabe... para derrotar o satanás... (Salviano está desesperado em seu canto, mas nada pode fazer, amarrado e
amordaçado). Agora, eu tenho o poder... e para manter felizes todos os meus
súditos, a minha igreja, preciso de dinheiro, muito dinheiro... o senhor sabe,
os gastos são imensos...
PEDRO:- E o senhor sabe que a
porra do dinheiro na mão do rico sempre se transforma em mais dinheiro, num é
mesmo?
DIVA:- Já sei o rumo dessa
prosa... Tô me mandando!
Diva sai, sob o olhar irado de Deus. Pedro acompanha-a
por um instante e, meio sem saber se vai ou não, volta para perto de Deus. Este
dá uma pequena volta pelo espaço, chega até Salviano, dá-lhe um chute na bunda,
olha para todos os lados, como a certificar-se de que não há mais ninguém, vai
até o Juiz.
DEUS:- Chega de enrolação:
onde eu assino?
CENA 18:
Deus, Pedro e Salviano. Pedro vai até Salviano e tira-lhe
a mordaça.
SALVIANO:- Canalha! Me solta,
canalha! Vencer-me na guerra eu admito... amarrar-me aqui, como um cachorro, eu
admito... Mas roubar meu negócio desse jeito! Seu filho da... não! Não posso
xingá-lo desse nome... estaria ofendendo quem não merece... CANALHA!
Deus dá boas risadas, depois para de repente e ameaça
chutá-lo.
DEUS:- Podia moer os seus
ossos, Salviano de Todos-os-Santos... Mas, não... você podia não aguentar... e
eu quero você vivo e bem vivo... para aplaudir todas as minhas vitórias... e
todas as sacanagens que vou fazer com você... e assistir à vingança aos meus
traidores... Você não sabe quanto ódio eu tenho de traidores... farei com eles
o dobro do que pretendo fazer com você, meu pai... E cale a boca... não diga mais nada... se não
eu mando o Pedro colocar uma mordaça ainda mais apertada em sua boca... e só
vai tirar para roer o osso de cada dia...
(Ri, como gostando da própria piada). Em vez do pão nosso, o osso nosso de
cada dia... nosso, não... o vosso... o vosso osso...
Salviano intimida-se e encolhe-se em seu canto. Só um
foco em Deus. Pedro faz-lhe uma espécie de toalete, leva-o até o trono. Deus
boceja com enfado.
DEUS:- Poder, Pedro... Poder é
bom... mas é um saco... só nós dois aqui... sem mais ninguém...
PEDRO:- É mesmo... é uma porra
de merda... a gente podia convocar uns caras aí prum joguinho de biriba, prum
carteado dos bão...
DEUS (imitando
um pouco o jeito de falar de Pedro):- É... só que não tem mais carteado
bão... só aparece puxa-saco... perde a graça, logo, logo... Ocê lembra da arma
do cão ali... lembra? Eu queria uma igual... o maldito num me disse onde
escondeu a dele... Vai... vai comprá uma pra mim, igualzinha, igualzinha... é
só um capricho... mas compra...
Pedro
vai saindo para cumprir a ordem de Deus e cruza com Diva, já mostrando uma
barriga de mais de seis meses de gravidez. Esboça um gesto enternecido de
acariciar-lhe a barriga. Ela acomoda-se
ao pé do trono de Deus.
DIVA:- Deus, meu Deusinho,
você ainda me ama?
DEUS (com
enfado):- Amo... amo, muito...
DIVA:- Você ama o nosso filho?
DEUS:- Não me fale em filho...
muda de assunto... (pausa). O que
está acontecendo lá fora? Me diz... você que veio das ruas... o que está
acontecendo?
DIVA:- Tão organizando uma
passeata de apoio a você...
DEUS:- De apoio a mim? Por
quê?
DIVA:- Porque tem uma passeata
contra você, ora...
CENA 19:
Entra uma passeata de
apoio a Deus, com pessoas fantasiadas carregando cartazes etc.
TODOS (cantando):-
Deus, Deus, Deus!
Deus
é nosso pai...
Deus,
Deus, Deus,
Com
Deus a coisa vai!
ALGUÉM:- Viva o nosso Deus!
TODOS:- Viva! Viva!
ALGUÉM:- Quem é nosso pai?
TODOS (cantando):- Deus, Deus, Deus!
Deus
é nosso pai...
Deus,
Deus, Deus,
Com
Deus a coisa vai!
Cantando e dançando,
envolvem Deus na folia. Ouvem-se vozes pedindo “discurso! discurso!”, até que
todos repetem a mesma palavra. Deus, que aos poucos foi saindo do tédio,
entusiasma-se, sobe no trono, pede silêncio e discursa.
DEUS:- Meus caros amigos,
meus queridos irmãos. O mal está vencido e vendido. Agora o que pode fazer é só
roer os ossos que nossa comunidade lhe joga. (Aplausos). Nós ganhamos... ganhamos mercado... e vamos ganhar
mais. Nossa comunidade está aberta a todos que queiram vir aqui realizar
negócios. Só haverá empregos para todos, se todos apoiarem esse nosso programa
de inserção de nossa economia nos outros mercados. Ou seja, é preciso dar para
receber. E o que é que nós podemos dar? Me digam? O quê? Trabalho, meus caros,
trabalho. Muito trabalho espera quem quiser realmente arregaçar as mangas.
Trabalho duro! (Alguns murmúrios de
descontentamento). Mas, esperem... Deus ajuda quem cedo madruga... mas
ajuda muito mais aquele que de fato acreditar que podemos nos tornar fortes com
entrada do capital de outras comunidades que querem investir aqui... Eu prometo
riqueza... muita riqueza para quem abrir... abrir sua casa para receber como
irmão o forasteiro com os bolsos cheios... (Alguns
aplausos). E nossa fé, meus irmãos, será a fé de todos, com organização...
com organização de todos em todas as etapas, teremos condição de pagar as
dívidas, incrementar a produção, gerar empregos...
UM POPULAR:- E os agiotas, Deus?
Quem controla os agiotas?
OUTRO POPULAR:- Estou atolado até
aqui nos juros!...
Há um ameaço de
tumulto, com todos falando ao mesmo tempo, concordando e discordando do que
está sendo dito. Com algum esforço, Deus consegue impor silêncio.
DEUS:- Meus amigos... meus
irmãos... Calma... Eu, o seu líder... eu, o seu guia... eu prometo... os agiotas
vão engolir os juros escorchantes que estão cobrando... Ninguém vai explorar o
meu povo... Anota aí, Pedro: Deus decreta que todo aquele que cobrar juro acima
do mercado, do nosso senhor mercado, estão ouvindo? todo aquele que desobedecer
à lei do mercado será preso e conduzido à minha presença para julgamento! (Aplausos frenéticos). E tenho dito!
A passeata prossegue
cantando e dançando e sai.
DEUS:- Ufa! Ainda bem que
era a favor. Imagine se fosse contra...
PEDRO:- Pois então se
prepare... que vem aí uma outra porra de passeata contra...
CENA 20:
Entra outra passeata: são os mesmos de antes, agora com
cartazes com dizeres contra Deus e cantando a mesma música, com letra oposta à
anterior.
TODOS (cantando):-
Deus, Deus, Deus!
Deus
quem nos traiu!
Deus,
Deus, Deus,
Vai
pra puta que pariu!
ALGUÉM:- Abaixo Deus!
TODOS:- Morra! Morra!
ALGUÉM:- Quem é que nos traiu?
TODOS (cantando):-
Deus, Deus, Deus!
Deus
quem nos traiu!
Deus,
Deus, Deus,
Vai
pra puta que pariu!
Cantando e dançando,
envolvem Deus na folia, de forma um tanto ameaçadora. Deus sobe no trono, tenta
impor-se, não consegue. Pedro aproxima-se, entrega-lhe sorrateiramente um
revólver. Deus dá dois tiros para o ar e todos param, amedrontados.
DEUS:- Meus caros amigos,
meus irmãos! Olhem, olhem para ali... (Aponta
Salviano). Ele era o mal! Eu o venci, em nome de vocês, meus irmãos... O
demônio! O demônio agora só faz mal a si mesmo... roendo ossos! (Alguns risos. Deus se entusiasma). Pois
é! Ele veio dos infernos e em inferno transformava a vida de todos... Agora
está ali... vencido... vendido... fodido! (Alguns
aplausos). Mas ainda existe muito mal a combater... o rabo do demônio ainda
está nos olhos de muitos de vocês... é preciso exorcizá-lo, é preciso orar
muito, para que o demônio que está na mente de muitos de vocês vá embora...
Olhem! OIhem o seu vizinho! Será ele o demônio? Não terá ele o demônio na alma?
Já diziam os profetas que é preciso estar sempre atento, não se pode descuidar
um minuto, que o demônio toma conta de nossa casa, de nosso lar... penetra sob
os lençóis do casal e traz a discórdia entre marido e mulher... penetra sob o
vestido de nossa filhas, para prostituí-las... penetra na cabeça de nossos
filhos, para conduzi-los ao caminho do pecado... E vocês... E vós, meus irmãos,
vinde aqui falar a mim, que expulsei o demônio, que amarrei o demônio, que
derrotei o demônio, que eu, meus amados irmãos, eu! eu vos traí?! Isso é coisa
do demônio que está entre alguns de vós...
Uma mulher cai em
transe, gritando palavras desconexas. Faz-se um grande tumulto. Todos começam a
falar ao mesmo tempo: uns acusando os outros de terem o demônio no corpo.
Arma-se uma briga. Deus atira novamente para o ar. Saem todos correndo,
dissolvida a passeata.
DEUS:- Ufa! Na próxima eu
caio fora e você se vira com o povão, ouviu, Pedro? Governar é uma baba... é só
saber se impor a esses babacas...
PEDRO:- Também, com uma porra
de arma na mão...
DEUS:- Toma, fica com ela...
quero ver se ela te faz mais macho... Antes que me esqueça, mande passar a fio
de navalha todos os que participaram da última passeata...
PEDRO:- Todos?
DEUS:- Todos! Que não sobre
absolutamente ninguém... e mais alguns que participaram da primeira, também...
Para saberem que não quero manifestações... Nem contra nem a favor...
Pedro sai por um instante, para dar as ordens de Deus.
DEUS:- Agora, quero beber
todas, quero cheirar tudo o que tem para cheirar... Vamos comemorar... vamos
comemorar o tédio, o tédio que se rompeu com esses bostas da passeata... Vem,
Diva, junte-se a nós...
Pedro,
que voltara, e Deus bebem, cheiram, divertem-se até a exaustão. Diva
acompanha-os, mas evita beber e cheirar. Todos adormecem.
CENA 21:
Estão todos dormindo.
Salviano, em seu canto, agita-se num pesadelo.
SALVIANO:- Dalva... Dalva, meu
amor... meu anjo... minha estrela... você me deu um menino... Um menino!
Surge uma mulher que amamenta uma criança, enquanto
outras mulheres aproximam-se e olham, estarrecidas, o recém-nascido, com
expressões como: “É lindo!” “Maravilhoso!” “Nunca vi uma criança tão linda, assim!”
“É um deus... um deus!” “Sim, um deus está entre nós”! etc. Fazem gestos de
depositar oferendas e saem.
SALVIANO:- Você ouviu, Dalva? O
nosso filho... ele é um deus... ele será poderoso como um deus... será tudo
aquilo que eu não pude... Oh! Dalva, meu amor, seremos tão felizes... com nosso
filho... nosso filho que é um deus...
Para, de repente, num gesto de terror.
SALVIANO:- Não! Por Deus, não! A
maldição! Eu esqueci a maldição! Não! Dalva, não! Você não pode... você não
pode... Não!!! Não!!!
Chora e debate-se como um louco, enquanto a visão
desaparece e ele acorda, ainda gritando. Procura acalmar-se, percebe uma sombra
vindo em sua direção e assusta-se. É Diva.
DIVA:- Salviano, seu
Salviano... está passando mal, meu sogro... o que houve?
SALVIANO:- Nada... nada...
pesadelos... quando a minha vida já é um pesadelo... Venha até aqui... eu
preciso de sua ajuda...
DIVA:- Você sabe: não posso
ajudá-lo.
SALVIANO:- Pode e vai... Preste
atenção: o filho em tua barriga... é mesmo meu neto?
DIVA:- Seu Salviano!!
SALVIANO:- Isso é muito
importante... Você precisa saber. Atormentam-me pesadelos... a verdade é a
minha única saída. Ouça: você não podia ter esse filho... Não, não fale nada.
Apenas ouça. Ele... o meu filho... não insistiu para que você abortasse? Ele
tinha razão... você devia ter feito o que ele mandou... Há uma maldição... uma
maldição sobre nossa família... ninguém até hoje escapou a essa maldição...
você precisa saber... você, minha filha, precisa saber... quando nasce um
primogênito, a mãe morre no parto... Entendeu? A mãe de todo primogênito morre
no parto...
DIVA:- A mãe... morre... então
é isso... o filho de Deus... o filho que estou esperando... ele, ele não
queria... ele não queria que eu tivesse esse filho.. então, oh! felicidade
suprema... então, ele, ele me ama... ele não queria esse filho porque ele me
ama... (Beija Salviano). Meu sogro...
meu pai... obrigada, obrigada... Morrerei, sim... feliz... ele me ama... por
isso, não queria esse filho... E eu, estúpida, que o odiava em silêncio... que
odiava o seu ódio a esse filho... e o ódio era forma de seu amor por mim...
Posso morrer, meu sogro... já nada importa... eu sou feliz... ele me ama...
SALVIANO:- Se tudo o que você diz
é verdade... pense, pense um pouco comigo... Ouça: se ele a ama a ponto de
odiar o filho que você espera, imagine o seu sofrimento se você morrer... Ele
vai odiar ainda mais a pobre criatura, que não tem nada com isso... Terá uma
vida inteira para odiar esse filho... e lamentar a perda da mulher amada... Seu
sacrifício terá sido inútil... Você estará morta e terá feito a desgraça do
homem que você ama e do filho que você deixará...
Pausa. O desespero
estampa-se no rosto de Diva. Ela canta.
DIVA:- Olho para fora
e
o mundo parece
o
que é agora:
rede
que tece e retece
o
tempo e o momento
a
coser a vida
neste
movimento
rede
entretecida
assim
sempre aos poucos
seus
fios enleia
ao
longe a cadeia
dos
sonhos mais loucos
a
fruta no pé
madura
parece
mas
aquilo que é
ao
toque fenece
já
podre por dentro
SALVIANO:- Eu tenho uma saída...
eu posso salvá-la...
DIVA:- Salvar... salvar a mim
e a meu filho...
SALVIANO:- Salvar seu filho e...
você...
DIVA:- O círculo da morte...
pode ser rompido?...
SALVIANO:- Vamos... pegue as
chaves das correntes que me prendem... estão no bolso de Pedro...
DIVA:- Libertar... você?
SALVIANO:- É o preço da vida...
Não hesite... vai... é simples... pegue as chaves...
Diva vai até Pedro. Revira-lhe os bolsos, retira as
chaves e liberta Salviano. Ambos saem.
CENA 22:
Deus em seu trono.
Entra Pedro, arrastando um prisioneiro, assecla de Salviano.
PEDRO:- Tá aqui o desgraçado,
meu patrãozinho... Esse porra de merda já tá pronto pra cantar... direitinho...
tudo... Vamos, seu maldito, conta tudo o qu’ocê contou lá dentro...
PRISIONEIRO:- Diva e Salviano...
estão escondidos lá... lá em cima... na rua 42... Ela... já teve o filho... um
menino... Salviano está cuidando de tudo... Vai levar o guri pra adoção...
Diva... Diva está bem...
DEUS:- Fala mais,
desgraçado... Fala...
PEDRO:- Ele tem mais uma porra
de merda pra falar, meu patrãozinho... Fala tudo, seu bosta...
DEUS:- Sinto cheiro de
traição... e eu odeio traidor... Você só tem duas opções: falar ou falar... Se
não falar, você morre... junto com toda a sua família... sua mulher, seus
filhos... todos... não vai escapar um só pra contar a história...
PRISIONEIRO:- Não! Piedade... meus
filhos, não!
DEUS:- Se falar, só você
morre... E então, o que prefere?
PRISIONEIRO:- Eu falo... eu falo...
por meus filhos, eu falo... Salviano... ele... quando ocê saiu do seminário...
foi ele quem mandou te levar pra droga... pro tráfico... ele mandou...
facilitou tudo... Quando a polícia deu em cima dele... ele tava com o rabo
preso... ele tinha que salvar a organização... o povo dependia dele... então,
ele fez um acordo...
DEUS:- Acordo? Que acordo?
Fala de uma vez, canalha...
PRISIONEIRO:- Ele... ele... te
entregou pra polícia... ele te entregou pra salvar o rabo lá dele... é isso...
foi ele quem te traiu... agora já disse... Piedade! Piedade! Não mate meus
filhos!...
DEUS:- Leve esse desgraçado
daqui, Pedro... joga ele pros tubarões... bem longe da praia... mas corta a
língua dele antes, que traidor tem de morrer sem língua... Ah! e leva a mulher
dele também... Não gosto de meios órfãos... Vai!
CENA 23:
Esconderijo de Salviano. Diva dorme numa
enxerga, a um canto. Salviano, sentado a uma escrivaninha, mexe em papéis.
Silêncio. Uma figura esgueira-se entre os seguranças, que cochilam, matando-os
um a um. Salviano percebe a aproximação. Salta da cadeira com uma arma.
DEUS:- Calma, meu pai... Vim
em paz... Não é por estarmos em guerra que precisamos nos matar, não é mesmo?
SALVIANO:- Como... como entrou
aqui? Guardas!!!
DEUS:- Não se preocupe com
seus carniceiros... estão todos dormindo... sonhando com os anjos... E você,
meu pai? Não dorme mais? Medo dos pesadelos? Na última vez que estive aqui,
você sonhava... sonhava um sonho aterrador, não é mesmo, seu Salviano? O seu
pesadelo agora está aqui... para cobrar algumas dívidas...
SALVIANO:- Todo prisioneiro tem o
direito de fugir...
DEUS:- Não é essa a dívida que
eu vim cobrar... Há um troco mais antigo.
Diva acorda, aterrada.
DIVA:- Deus! Aqui?!!
DEUS:- Cala-te! Primeiro, o
teu sogro... depois acertamos nossas contas...
SALVIANO:- Teu filho...
DEUS:- Não tenho frutos,
Salviano... A nossa história começa bem antes disso... Minha mãe...
SALVIANO:- Dalva... era uma
santa...
DEUS:- Que morreu em tuas
mãos...
DIVA:- A maldição... a
maldição...
DEUS:- Maldição? Você entrou
na conversa dele, Diva? Escuta: ele sempre veio com essa história de
maldição... para esconder a verdade...
SALVIANO:- O que sabe você de
verdades ou de mentiras? Diga: o quê? O que sabe você de sofrimento, de amor
verdadeiro, de dedicação a uma mulher?
DEUS:- Eu só sei do seu
remorso... dos seus pesadelos... das suas mentiras... E você vem falar de
dedicação? Que dedicação você teve com minha mãe?
DIVA:- Ela não... não morreu
no parto?
DEUS:- Morreu... morreu após o
parto... não por causa do parto... dias depois, não é seu Salviano? Conta para
ela a verdade, seu velho safado, conta...
Vamos lavar a roupa suja, aqui, agora... Afinal, somos uma família, não
é? Uma família... que nunca tive...
SALVIANO:- Culpa... você quer que
eu assuma uma culpa que não tive...
DEUS:- Se você não tem culpa,
tem remorso... Se não, por que ela se matou?
DIVA:- Uma suicida... sua mãe,
ela suicidou? Ela... se matou? Não foi a maldição?
SALVIANO:- Dalva... o único amor
de minha vida... você, meu filho, jamais saberá o que vai em meu peito... o
remorso... a dor...
DEUS:- Não enrola, meu pai...
A vida inteira eu convivi com suas enrolações... e com as mais estranhas
histórias... Eu quero a verdade!
SALVIANO:- Verdade? Qual verdade?...
Sua mãe não está mais aqui para dizer a verdade dela... Só existe a minha
verdade... E a minha verdade é que eu a amava... eu a amava muito...
DEUS:- Suas mãos estão sujas
de sangue...
SALVIANO:- Não menos que as
suas...
DEUS:- ... e eu quero saber se
o sangue de minha mãe...
SALVIANO:- ... isso, não: eu tenho
as mãos limpas...
DEUS:- ... mas a tua
consciência está suja...
SALVIANO:- ... você está indo
longe demais... nossas diferenças...
DEUS:- ... estão também no
passado...
SALVIANO:- ... você quer
desenterrar o passado como se isso fizesse alguma diferença agora... você se
esquece de uma coisa: ainda sou seu pai!
DEUS:- Pai?! Um pai que
entrega o próprio filho à sanha da polícia, para salvar o seu próprio rabo? Não
posso ser filho de um traidor! Tudo, menos ser filho de um canalha e traidor...
SALVIANO:- Esse é outro troco?
Você não entende nada da vida... Você só quer...
DEUS:- Vingança, meu... seu
Salviano! Vingança!
SALVIANO:- Contra teu próprio pai?
DEUS:- Nem isso talvez importe
tanto quanto a morte de minha mãe... Fale, seu maldito, fale... O que você teve
efetivamente com a morte de minha mãe?... Por que ela me deixou?... Por que ela
não viveu para mim? Para seu filho? Será que ela não pensou nem por um segundo
em mim... seu filho? Não terá sido em vão o rastro de sangue que deixaram meus
passos, se eu souber que ela me amou, que ela não fez o que fez sem pensar em
mim... E só você, Salviano, só você pode me dizer se ela pensou em mim...
SALVIANO:- Maldito dia, este...
Malditas as tuas dúvidas! Você quer de mim uma verdade que não sei se é a
verdadeira... Só ela podia, se estivesse aqui, responder suas dúvidas... Mas eu
vou tentar... eu vou tentar... Farei das tripas coração, para te narrar os
fatos... apenas os fatos... e seja o que o sua consciência julgar... (Salviano respira fundo. Controla-se.)
Éramos jovens, muito jovens, eu e sua mãe... A paixão foi fulminante... Ah!
Como nos amávamos... Foram os tempos mais felizes de minha vida... Até que ela
ficou grávida... De repente, sei lá por que, ela passou a me rejeitar... a ter
nojo de mim... Olhe, estou te contando só os fatos, ouviu? Só os fatos! E
então, durante os primeiros meses, eu suportei... até que um dia, arranjei uma
amante... não interessa como nem quem... nem me lembro mais dela... como ela
era... Alguém contou à sua mãe... e ela me seguiu... me seguiu e me pegou...
Não vou esquecer nunca... seu olhar... seu olhar de dor... de decepção...
baixando lentamente para aquela barriga enorme, já nos últimos dias de gravidez...
E você nasceu, uma semana depois... Ela não saiu do hospital... não sei como
arranjou o veneno... quem o vendeu... o inquérito policial não descobriu...
Quando lhe perguntaram, já no seu leito de morte, se não tinha dó do
recém-nascido, respondeu apenas que outros saberiam criá-lo tão bem quanto
ela... Não houve arrependimento, nenhum sinal de arrependimento... Estava a seu
lado quando morreu... e fechei-lhe os olhos... olhos que me viram pela última
vez... sem ódio, sem amor... apenas a me olhar... vazios, distantes... a deixar
em mim o remorso, a dor... O resto da história você sabe... nunca me casei...
DEUS:- Nem um só sinal de
arrependimento... nada... ela não pensou em mim... ela não me amou... minha
mãe... Estou só... estou órfão, pela segunda vez... Agora entendo tudo... Você,
Salviano, não foi o culpado... você foi apenas a causa, a razão de tudo... Olhe
nos meus olhos... dizem que são iguais aos dela... olhe bem... pela última vez
na minha vida, eu te digo esta palavra: pai! Você, meu pai, foi e continua
sendo um canalha!
Deus
puxa o revólver e atira uma, duas, três vezes. Salviano cai, agonizando,
enquanto Diva se atira sobre o seu corpo, em desespero. Neste momento, entra
Pedro com o corpo de uma criança enrolado em um cobertor.
PEDRO:- Que porra de merda...
um filho... um filho não pode matar o pai...
DEUS:- Mas um pai pode matar
um filho, não é, Pedro?
DIVA:- Meu filho, meu filho...
Não... não!
Diva toma o cadáver da criança e sai em desespero,
cantando:
DIVA:- a fruta no pé
madura
parece
mas
aquilo que é
ao
toque fenece
já
podre por dentro
PEDRO:- Que porra de merda é
essa, meu patrão? Que pai pode ter assassinado o próprio filho?
DEUS:- Você, seu cretino,
você! A criança que você matou, porque eu mandei, ouviu?... essa criança: era
teu filho... teu filho e daquela mulher... Eu não posso ter filhos... eu sou
estéril... entendeu? Eu sou estéril... e sabia, desde o começo, que aquela
criança só podia ser teu filho...
PEDRO:- Eu não entendo... eu
não entendo... que porra de merda ocê está falando... por que mandou matar...
se não era seu filho, por que matar... por quê?
DEUS:- Eu vou te contar uma
historinha, Pedro... num sei se ocê vai entendê... ocê é tão bronco para
entender os desígnios de Deus, Pedro... Ouça: numa enchente, um escorpião e uma
rã encontraram-se num tronco no meio do rio. O escorpião: “me salva, dona rã,
me salve”. A rã: “credo, seu escorpião... se eu te colocar em minhas costas,
você vai me picar...” O escorpião: “eu juro que não, dona rã, eu juro que
não... afinal, se eu te picar, nós dois morreremos, porque eu não sei nadar”.
Tanto implorou à rã o nosso escorpião que, afinal a rã concordou em colocar o
escorpião nas costas e levá-lo até a margem do rio. E lá vão eles... chap,
chap, chap... nadando... nadando... no meio da correnteza... De repente, a rã
sentiu... sentiu a picada... a picada do escorpião... fatal... mortal...
mortífera... E antes de afundarem para sempre na correnteza, a rã ainda
encontrou forças para perguntar: “Por quê, seu escorpião, por quê?”. E o
escorpião, já quase se afogando, num último esforço, respondeu: “Instinto, dona
rã, instinto... eu não posso fugir ao meu instinto.” Entendeu? Não? Não era
para entender mesmo...
Pedro
tenta puxar uma arma, mas Deus atira uma, duas, três vezes. E sai gargalhando
como um louco.
CENA
24:
Deus está em seu
trono, decrépito, barbas brancas
enormes, uma túnica suja.
DEUS:- Pedro, seu
vagabundo, onde você está... desgraçado. Estou com dor de barriga... preciso
cagar...
Pedro (um outro
Pedro) entra com um penico.
PEDRO:- Aqui está, patrão...
DEUS:- Você é o Pedro de que
número, mesmo?
PEDRO:- Eu sou o de número
doze, patrãozinho...
DEUS:- Pedro Doze... Pedro de
porra nenhuma... Meu império, minha igreja, todos os meus negócios... nas mãos
de Pedro Doze, um pedro de merda nenhuma... Sai! Sai daqui! Eu não preciso de
você... eu não preciso de ninguém... ESTOU CAGANDO PARA O MUNDO, OUVIU, ESTOU
CAGANDO PARA O MUNDO!
FIM
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