(Foto de Fátima Alves - bandas de Ijacy/MG)
Isaias Edson Sidney
Rua dos Buritis, 251 – Jabaquara
São Paulo, SP
04321-001
tel. 5011-9628
SBAT – Nº 33.999
nota do Autor
As duas personagens (Jonas e
Cigana), devem iniciar a peça com a idade de 20 a 25 anos aproximadamente
e devem ir envelhecendo gradativamente
até o final, 19 anos depois. Os sinais do tempo deverão ser um pouco mais
acentuados do que nas demais pessoas, em virtude de sua vida de peregrinos. A
linguagem de Jonas - errada e com sotaque bem mineiro - está parcialmente
transcrita no texto. A respeito disso, aliás, deve ser dito que o falar
regional está sempre presente, mas nem
sempre a transcrição é perfeita ou exatamente igual, se não poderia
ocorrer dificuldade de compreensão. Ao cantar, Jonas, no entanto, perde quase
todo o sotaque e pronuncia corretamente as letras das canções, todas elas das
décadas de 20, 30 ou 40, portanto fortemente parnasianas, com raras exceções.
O uso dessas canções antigas não
tem o objetivo de ‘resgatar’ esse tipo de música, mas apenas acentuar o tom
confessional e romântico da peça. Todas as indicações de letras e gravações
estão anexadas ao final, como referência ao ator/cantor ou atriz/cantora que
fizerem a peça. Arranjos mais modernos são, portanto, admissíveis, desde que
não eliminem das músicas o seu tom nostálgico e seresteiro. Também é uma
oportunidade para as gerações mais novas conhecer e apreciar a beleza das
melodias dessa época, áurea, da música popular brasileira.
Época da ação: entre 1945 e
1964. O contexto social e político é sutilmente insinuado, porque, afinal,
procurou-se uma metáfora de um Brasil que morre em 1964; não um país “puro”,
porém diferente, com estruturas arcaicas que, ao se modernizarem, cobram do povo
o mais alto preço a ser pago - a liberdade.
CENÁRIO: Uma rua de São Paulo em 1945.Latidos de
cães. Alguns segundos depois, Jonas entra correndo, esbravejando, com pedaço da
perna da calça rasgada.
JONAS:- Malditos... inda mato esses
cachorro... Venham, desgraçados! Venham me pegar!
(Grunhe, atira uma pedra e, ante o aumento
dos latidos, corre ainda mais assustado. Tropeça em algo coberto por um saco de
aniagem: é a Cigana, que acorda, e parte pra cima dele, querendo briga).
CIGANA:- Que merda! A gente
não pode nem dormir sossegada, que aparece um filho da puta pra atrapalhar.
(Jonas e a Cigana correm em círculo: ela querendo pegá-lo e ele fugindo e fazendo
micagens, até que ele se cansa e segura-a de repente).
JONAS:- Carma, mocinha nervosa, carma...
Discurpe... Foi sem querer... Esses malditos cães me fazem perder a cabeça...
Odeio cachorro... e eles me odeia mais ainda...
CIGANA:- Não me chame de
mocinha... Me solta... me solta... Tá me machucando!
JONAS:- Tá bem... Tá bem... mas
fique carma, mocinha...
CIGANA:- Já disse que não
gosto que me chame de mocinha...
JONAS:- Então qual é o seu nome?
CIGANA:- Não interessa!
JONASJONAS:- Então vou continuar te chamando de mocinha
nervosa...
CIGANA:- Ah! Não vai,
não... que eu tô indo embora (apanha o
saco de aniagem).
JONAS:- Tão cedo? Eu ainda nem me apresentei...
CIGANA:- Não precisa,
não... Tchau!
JONAS (segurando-a):- Mas ocê é muito bonita...
CIGANA:- Me larga!
JONAS:- ... pra estar dormindo
assim, largada, na rua...
CIGANA:- Me larga! (Dá-lhe um chute, que ele
habilmente evita).
JONAS:- Vamo, me diga, ocê é cigana,
não é?
CIGANA:- Não interessa...
(tenta acertá-lo de novo, de novo ele se
esquiva).
JONAS:- Mas que gata brava, sô!
CIGANA:- Me larga, se não
eu grito!
JONAS:- Não! Se ocê gritar, a
cachorrada vem tudo de novo...e essa cachorrada num respeita nem pracinha...
CIGANA:- Então me
solta!...
JONAS:- Ocê promete ficá? Promete?
CIGANA:- Tá bem, tá bem,
eu prometo... mas me solta...
JONAS (imitando-a):- Me sorta... me larga... Ocê só sabe dizê isso? (Solta-a, afinal). Então, amigos? (Ela faz sinal que sim com a cabeça).
Vamo nos apresentar... Meu nome é...
CIGANA:- ...Jonas!
JONAS:- Uai, sô, como ocê sabe?
CIGANA:- Eu sou cigana...
não está vendo?
JONAS:- Ocê... ocê... adivinha mesmo? Tudo?
CIGANA:- Hum... hum... (Diverte-se com o espanto dele). Quer que
eu leia a sua mão? (Ele estende a mão,
fazendo cara de espanto e incredulidade. Sentam-se na calçada). Vamos
ver... aqui... a linha da vida... diz que você está procurando um sonho...
JONAS:- Sim, sim... o meu sonho... sair de dentro
desta... desta baleia... desta cidade... ir embora...
CIGANA:- O seu sonho está
numa terra chamada... chamada...
JONAS:- ... Lua... quero ver a lua... o céu azul...
ar puro...
CIGANA:- Isso mesmo...
Lua... Lua branca... A cidade da Lua Branca... Lá você será feliz...
(Jonas levanta-se, com o rosto como que
iluminado por uma visão. Esboça alguns passos de dança, tira o violão que
levava às costas, dedilha-o e canta. Pouco a pouco, tudo ganha uma coloração de
luar e a própria lua surge, enorme, ao fundo).
JONAS:- Não há, ó gente, oh não,
Luar como esse do sertão...
Ó que saudade
do luar da minha terra
lá na serra prateando
folhas secas pelo chão!
Esse luar
cá da cidade, tão escuro
não tem aquela saudade
do luar lá do sertão.(1)
(Ao terminar a estrofe de Luar do Sertão,
tudo volta ao normal. Após um instante de silêncio, quando Jonas guarda o
violão de novo nas costas, a Cigana dirige-se a ele. E agora é ela quem está
enlevada com sua canção).
CIGANA:- Que bonito,
Jonas! Nunca ouvi uma canção tão bonita!...
JONAS:- É uma canção antiga... É que eu sou um
romântico... um eterno romântico... perdido nesta cidade-baleia...
CIGANA:- A cidade...uma
baleia?...
JONAS:- Enorme!
CIGANA:- Mas ainda jovem
aos 391 anos...
JONAS:- Ela engole gente!
CIGANA:- E vai engolir
cada vez mais...
JONAS:- ... uma enorme baleia... que me engoliu...
CIGANA:- Mas pode vomitar
você de volta...
JONAS:- Para a Terra da Lua Branca?
CIGANA:- Sim! Para a
Terra da Lua Branca!...
JONAS:- Vamo, Cigana, vamo comigo... Junto a gente
vai encontrá essa Terra... e lá vamo sê feliz... Vem...
CIGANA:- Não! Não posso!
JONAS:- Por que não? Ocê não é cigana?
CIGANA:- Por isso, mesmo!
JONAS:- Ocê não pode deixar o seu povo?
CIGANA:- Meu povo já me
deixou!
JONAS:- Como?!
CIGANA:- Meu povo é que
me deixou... me expulsou... há não sei quanto tempo!
JONAS:- Mas... por quê? Por quê?
CIGANA:- Coisas de
ciganos... Não admitiram o que eu fiz...
JONAS:- Grave assim?
CIGANA:- Para os ciganos,
sim... Abandonei meu noivo... Prometi não ser de homem nenhum... Queria ser
freira...
JONAS:- Freira?!
CIGANA:- É! Mas não deu
certo! (Pausa). E você? De onde vem?
JONAS:- Das estranja...
CIGANA:- Você era
pracinha?
JONAS:- Servi a Pátria.
CIGANA:- Entrou em
combate?
JONAS:- A guerra acabô antes.
CIGANA:- Me conta.
JONAS:- Num gosto de falá nisso... (Mudando de assunto). E então! Vem comigo... vamos achar a Terra...
CIGANA:- ... da Lua
Branca... Não, Jonas, não posso...
JONAS:- Ocê ainda quer ser freira?
CIGANA:- Não! É por causa
da promessa...
JONAS:- De não ter homem nenhum?
CIGANA:- É...
JONAS (depois de alguns instantes pensando):- Ora... então é isso? Óia: eu
prometo... eu juro... por tudo quanto é santo... pela minha mãezinha... que eu
não conheci... mas que devia sê santa... eu juro... se ocê vié comigo, eu num
vô nunca... não vô... te... importuná... te tocá... Só quero a sua companhia...
a sua amizade... Nóis dois, junto... ocê lendo as mão... eu cantando... o
caminho será mais fácil... Vamo... vamo sê uma drupa... um trio... eu, ocê e
meu violão... pelas estrada...
CIGANA:- Você sabe onde
fica a Terra da Lua Branca?
JONAS:- Não, mas ocê sabe... não
sabe?...
CIGANA:- Não sei... não
sei se sei... (concentrando-se). Ela
fica... ela fica... nessa direção... nas montanhas atrás das montanhas...
longe... talvez...
JONAS:- Nas montanha atrais das montanha? Então ela
fica em Minas... uai... e eu sô de lá... E é para lá que nóis vamo...
CIGANA:- Nós?!
JONAS:- Sim!... Nóis... eu sei... ocê vem... não vem?
Fazê o quê, aqui? Sem o seu povo... nas ruas... ao léu... Nóis dois, sim, pelas
estrada de Minas...
(Dão-se as mãos e começam a caminhar. Jonas
cantarola alguns versos de Caminhemos).
JONAS:- Vida comprida, estrada alongada...
Parto à procura de alguém ou à
procura de nada...(2)
(Pequena quitanda mineira, de uma só porta.
Vê-se um tabuleiro com frutas, verduras e legumes. Um preto velho, cabeça bem
branquinha, trajando uma camisa xadrez e uma calça azul e botas está sentado à
porta, fumando um cigarro de palha. Seu nome é Vicente).
JONAS:- Tardes...
VICENTE:- Tarde...
JONAS:- Como o sinhô se chama?
VICENTE:- Eu num me chamo
não sinhô... os outro é que me chama...
JONAS (para a Cigana):- Ih! Conversa de mineiro... tamo lascado.(Para Vicente);- Meu bom homem...
VICENTE:- Num sô bom nem
sô seu...
JONAS:- Tá bem... tá bem... Como é o seu nome?
VICENTE:- Por que ocê num
perguntô logo?... Meu nome é Vicente...
JONAS:- Prazer... Jônathas Daniel Pinto de
Miranda, um seu criado... Essa aqui é a
Cigana, minha parceira de caminhos...
CIGANA:- Prazer...
VICENTE:- Nome cumprido...
JONAS:- Mas pode me chamar de Jonas...
VICENTE:- Miranda... Ocê
disse Miranda?
JONAS:- Isso mesmo... Pinto de Miranda, com muito
gosto!
VICENTE:- Conheço uns
Pinto de Miranda...
JONAS:- É mesmo? De donde?
VICENTE:- Num é daqui
não... É de uma cidade que tem uma rua só... e um bonde...
JONAS:- E isso fica longe daqui?
VICENTE:- Uns tirinho de
espingarda...
CIGANA:- ‘Seu’ Vicente,
posso escolher umas laranjas?...
VICENTE:- Não!
CIGANA:- Mas eu tenho
dinheiro...
VICENTE:- Eu escolho pra
senhora...
CIGANA:- Mas é que tem
algumas murchas...
VICENTE:- Na minha venda
quem escolhe as mercadoria sou eu...
CIGANA:- Mas, ‘seu’ Vicente, eu não vou levar laranja
murcha...
VICENTE:- Eu comprei
assim, eu vendo assim.. Se num quisé, num precisa levá... Num faço a mínima
questão...
JONAS:- Num’dianta, Cigana... Isso é Minas...
CIGANA:- Mas eu queria
chupar umas laranjas...
VICENTE:- No meu
estabelecimento, eu vendo as laranja que eu quero...
JONAS:- Tá vendo? Tá vendo? Deixa pra lá... (Para Vicente). Será que o sinhô não
teria um copo d’água pr’arrumar pra gente?
VICENTE:- Copo num tem
não... Mas se o sinhô quisé uma caneca, é só ir lá dentro...
(Jonas entra na venda, enquanto ‘seu’
Vicente, meio disfarçadamente, com o rabo do olho, procura vigiá-lo e também à
Cigana, sem deixar de pitar o seu cigarrinho).
VICENTE:- Tão vindo de
onde, moça?
CIGANA:- Da cidade
grande...
VICENTE:- Se mar pergunto,
e vão indo pra onde?
CIGANA:- Pra lugar
nenhum, não senhor... (Pausa). Como é
que chama essa cidade?
VICENTE:- Essa cidade? Num
pricisa chamá ela não, senhora... ela já tá aí...
CIGANA:- Sei... então...
qual é o nome dela?
VICENTE:- Extrema.
CIGANA:- Extrema? Por que
Extrema?
VICENTE:- Acho qui é o
lugar mais longe dessas Minas Gerais...
JONAS (do fundo da venda):- Qué um pouco d’água, Cigana?
CIGANA:- Quero sim!
(Jonas sai com uma caneca de alumínio e dá
para a Cigana).
JONAS:- De quem o retrato lá no fundo?...
VICENTE:- Do Presidente...
Getúlio...
JONAS:- O Presidente num é o Dutra?
VICENTE:- Não! O véio
vortô... ganhô as eleição...
CIGANA:- Hm! Que água
gostosa!
VICENTE:- É da bica...
água do fundo da terra... água das boa...
JONAS (devolvendo a caneca a ‘seu’ Vicente):- Nóis... eu e minha
parceira, aqui... tamos procurando a Terra da Lua Branca... O senhor já ouviu
falá?
VICENTE:- Óia, meu jovem,
faiz muito, mas muito tempo mesmo, eu era moço assim como o sinhô, eu tive
nessa tar de Terra da Lua Branca...
JONAS:- Então ela existe, mesmo!
CIGANA:- Mas é claro que
ela existe!
JONAS:- E onde ela fica? Diga aí, meu bom homem, onde
ela fica?
VICENTE:- Isso eu não sei
dizê não...
JONAS:- Mas o senhor não teve lá?
VICENTE:- Isso é verdade.
JONAS:- E então?...
VICENTE:- Si bem lembro,
os caminho pra chegar lá é muito, muito difice...
JONAS:- Não tem importância... eu quero chegá lá...
eu quero morá lá... Num é lá que mora a felicidade?
VICENTE:- É... é sim...
mas ninguém escolhe morá lá... a gente é escolhido...
JONAS:- O senhor não foi escolhido?
VICENTE:- Eu tô aqui, num
é mesmo... E aqui eu vô morrê... Só tê ido lá... por uns pouco de tempo, já foi
a felicidade de toda a vida...
JONAS:- Como é que eu chego lá? Como?
VICENTE:- Isso eu num sei
mais não... Mas tem um sábio, quase um bruxo, qui sabe...
JONAS:- E onde mora esse bruxo, meu velho, onde?
VICENTE:- Minha memória é
fraca, minha razão já se perdeu pelos caminho do tempo, pelos caminho de
Minas... Eu só me lembro que ele mora numa cidade que tinha um bonde numa rua
só... comprida... que subia... que subia... quase até a árvore da forca...
JONAS:- O nome! O nome, ‘seu’ Vicente...
VICENTE:- Era uma árvore... de frutinha vermelha... do
mato... e tinha um dois na frente...
JONAS:- Uma árvore de frutinha vermelha e um dois na
frente... Cigana, ô, Cigana, ocê que tudo adivinha, me ajude...
CIGANA:- Eu sei dos
enigmas dos deuses, não dos enigmas dos homens... Mas nós descobriremos...
Vamos... (Observando que Vicente parecia
ter mergulhado em sonhos distantes, completamente alheio a tudo). Esse
pobre velho já nada pode nos dizer... Acho que ele está na Terra da Lua
Branca...
(Eles se afastam, lentamente. Jonas canta ao
violão).
JONAS:- Ó lua branca, de fulgores e
de encanto!
Se é verdade que ao amor tu dás
abrigo
vem tirar dos olhos meus o pranto
Ai, vem matar essa paixão que anda
comigo!
(Concluindo).
Ó lua branca, por quem és, tem dó
de mim...(3)
(Quase manhã. Chegam a uma cidadezinha de
ruas ainda desertas. Param em frente a uma casa branca, de venezianas azuis por
onde se percebe luz e se ouve o som meio abafado de um rádio. Jonas e a Cigana
escutam, meio indecisos sobre o que fazer. Francisco Alves canta os últimos
acordes de “criança feliz, feliz a cantar... oh meu Jesus... olhai as crianças
do meu Brasil...”).
VOZ (de rádio, meio fanhosa, filtrada pelas janelas):- ... cinco horas e
trinta minutos na capital federal... na cidade maravilhosa... vamos acordar,
minha gente... (ruídos e som de galo
cantando). O dia está chegando... O programa “Desperta, Brasil” continua em
sua homenagem ao Rei da Voz... essa voz que não se calará jamais. Vamos ouvir,
agora, de Pedro de Sá Pereira e Lamartine Babo, na voz de Francisco Alves,
CANÇÃO DA NOITE (11)
(A música toca até quase o final, durante o
que se segue. Jonas toma coragem e bate de leve à janela. A personagem que vai
atender é Samuel, alfaiate de profissão, usa óculos e tem como característica
pigarrear a todo instante e, às vezes, gaguejar um pouco, principalmente quando
se entusiasma. Além disso, segue a religião espírita, conforme ficará claro).
SAMUEL:- Quem está aí?
JONAS:- É de paz...
SAMUEL:- O que deseja?
JONAS:-
Sua atenção por um instante... nóis... nóis somo andarilho... (A janela se abre e ilumina-se a figura alta
e esguia de Samuel, agulha e dedal na mão)... meu nome é Jônathas...
Jônathas Daniel Pinto de Miranda... e essa aqui...
SAMUEL (interrompendo):- Pinto de Miranda?...
JONAS:- Mas pode me chamá de Jonas...
SAMUEL:- O senhor disse
Pinto de Miranda?
JONAS:- Asseguro que foi o que eu
disse...
SAMUEL:- O senhor é de
Lavras, por acaso?
JONAS:- Lavras?... Não... não... Eu
nem conheço esse lugá aí que o sinhô falô...
SAMUEL (desconfiado):- Mas o seu sobrenome, meu
amigo, onde o senhor arrumou, se não se ofende eu lhe estar perguntando isso...
JONAS:- Num me ofendo, não sinhô...
Mas meu sobrenome eu tamém num sei de onde veio, não... Eu não conheci meus
pais...
SAMUEL (lançando um olhar meio maroto para a Cigana):-
E essa aí... também é Pinto de Miranda?
JONAS:- Não, sinhô... ela é a minha
parceira, a Cigana...
CIGANA (fazendo uma breve reverência):-
Prazer...
SAMUEL:- Mas você não tem
nome?
CIGANA:- Tenho... tenho,
sim, mas me chame só de Cigana, tá bem?
SAMUEL:- Tão bonita e tão
brava, não é mesmo?
JONAS (interrompendo um gesto e uma palavra malcriada da Cigana):- O sinhô
num se arrepare, não, que nem pra mim ela contô o nome... E óia que já perdi a
conta dos meis que nóis tá junto...
SAMUEL:- Isso não tem
importância, meus amigos... Simpatizei com vocês... Em que posso servi-los?
Minha casa é pobre mas está sempre aberta pra gente boa e humilde como...
nós... (dá mais uma olhadinha marota em
direção à cigana, que permanece amuada).
JONAS:- Será que o sinhô num podia
arrumá pra nóis um pouco de café... Nóis caminhô a noite inteirinha...
SAMUEL (para dentro):- Minha filha, você já está
acordada?
CIGANA (para Jonas):- Não gostei desse cara...
SAMUEL:- Desliga esse
rádio e traz um pouco de café com pão para esses dois aqui... (Para Jonas, depois que o rádio é desligado).
Vocês caminharam a noite inteira?
JONAS:- Isso mesmo, nóis já tamo na
estrada faiz muito, muito tempo...
SAMUEL:- Eu também posso
dizer que estou na estrada há muito tempo, meu amigo... Aqui, olha (mostra a agulha e a linha)... Essa
agulha é que vem abrindo a minha estrada... Costurando... costurando dia e
noite, abrindo picada nos panos... pra conseguir sobreviver... Graças a Deus e
aos bons espíritos, eu e minha mulher vamos vivendo... A vida é dura, meu amigo,
mas cada um sabe o seu carma, não é mesmo?
JONAS:- Desse negócio de carma eu
num entendo não, ‘seu’ Samuel, mas de vida dura só eu sei o que temo passado
nessas estrada...
SAMUEL:- Mas vocês estão
vindo de onde?
JONAS:- Das lonjura que já nem sei... sempre buscando
a Terra da Lua Branca...
SAMUEL:- Terra da Lua
Branca?
JONAS:- É... o sinhô já ouviu falá
dela?
SAMUEL:- Não... acho que
não...
JONAS:- É onde eu vô encontrá a
minha felicidade... minha e da Cigana...
SAMUEL:- Cigana bonita...
CIGANA (entre dentes):- Mas não é pro seu
bico...
(Nesse momento, chega a mulher de Samuel,
Aparecida, com uma bandeja contendo café e pão. Samuel apresenta os amigos.
Jonas e a Cigana se servem.)
APARECIDA:- Ocêis num
repara... a gente tá num aperto danado... o Samuel inventou de fazer essa
casa... e agora tamos cheio de dívida... E ocêis? Num são vendedor, são? O
Samuel não pode comprar nada...
JONAS:- Não, sinhora... nóis tamo
vendendo nada, não... tamo só de passage...
APARECIDA:- Ah! De passage!
E tão indo pra onde?
JONAS:- Nóis vamo ...
CIGANA:- ... visitar uns
parentes, na terra aí do Jonas...
APARECIDA:- Ocêis vão passar
em Boa Esperança?
JONAS:- Boa Esperança? Num tem uma
música...
SAMUEL:- Tem, sim... é
uma música famosa... Serra da Boa Esperança...
JONAS:- Eu conheço... (cantarola)... ‘Serra da Boa Esperança...
esperança que encerra...’(4)
APARECIDA:- Ocê tem voz
bonita, num é mesmo, meu filho (para
Samuel).
SAMUEL:- Tem, sim, minha
filha... O senhor é cantor? Estou vendo aí um violão...
CIGANA:- Cantor dos
bons... Tem encantado muita platéia aí por... (para de falar ao perceber o olhar de Samuel).
JONAS:- A gente arranha um pouco...
SAMUEL:- A gente podia
fazer uma serenata hoje... lá no Centro... Que você acha, minha filha?...
APARECIDA:- Ocê tem cada
idéia, Samuel... onde já se viu isso! Fazer serenata num centro espírita...
SAMUEL:- Podia ser depois
da sessão... acho que as pessoas iam gostar... (Para Jonas). Você toparia?
(Espantado com o inusitado do convite, Jonas
faz um sinal de concordância, meio frouxo).
SAMUEL (cada vez mais entusiasmado):- É isso
mesmo... podemos realizar um sarau... como antigamente... a gente pede às
pessoas para levarem refrigerante, pão-de-queijo, doces... Será ótimo...
Estamos combinados, então... Vocês vêm pra cá, à tarde, e vamos todos para o
Centro... Já vou avisar todo mundo...
(Aparecida faz um gesto de discordância, mas
não fala nada. Recolhe a bandeja com as xícaras e volta para dentro da casa.
Jonas, ainda meio confuso com o rumo da conversa, despede-se de Samuel,
prometendo voltar à tarde, para irem ao sarau).
JONAS (voltando-se um pouco, antes de ir embora):- Ah! uma coisinha só,
‘seu’ Samuel... Quando a gente tava chegando nessa cidade, a gente viu uma
serra estranha... com três picos...
SAMUEL:- É a Serra das
Três Pontas, meu amigo... Você está na cidade de Três Pontas...
JONAS (afastando-se):- Três Pontas... vamo conhecê Três Pontas, Cigana...
Isso aqui parece sê terra de gente muito boa... Num é a Terra da Lua Cheia,
mais podemo tê um pouco de descanso... e, quem sabe? de felicidade tamém... (Cantarola alguns versos de Serra da Boa
Esperança). ‘Serra da Boa Esperança/ Esperança que encerra/ No coração do
Brasil um pedaço de terra...’(4)
(Salão de um centro espírita, com mesa aonde
estão sentados os dirigentes e o médiuns - cerca de 3 ou 4 pessoas - e um
pequeno auditório com várias pessoas simples, sentadas em cadeiras comuns,
entre elas Jonas e a Cigana).
SAMUEL (como um dos dirigentes):- Meus irmãos,
como vocês já sabem, estamos recebendo hoje a visita de dois irmãos andarilhos,
que estão viajando pelas estradas de Minas levando sua arte - a música. Assim,
dando continuidade ao trabalho de nossa administração neste Centro de
diversificar nossas atividades, com eventos de lazer e culturais, vamos ter
alguns momentos de enlevo com a verdadeira música de seresta... Então, sem mais
conversa, com vocês, Jonas e sua companheira Cigana...
(Alguns aplausos. Jonas e a Cigana se
levantam e vão para a frente do auditório. A função da Cigana se restringe a
virar as páginas do livrinho de músicas de Jonas e, às vezes, acompanhá-lo em
alguma canção).
JONAS:- Senhoras e senhores, como
disse o ‘irmão’ Samuel, nós vamo apresentá um repertório de seresta, que é o
que eu sei tocá e cantá... Se alguém quisé uma música em especial, é só pedi,
que se o Jonas aqui soubé, a gente canta... Vamos começá... (dedilha o violão, acerta a afinação e inicia
a seresta. A primeira música é Seresta do Norte (5), que recebe aplausos já
entusiasmados; a segunda música é Sinhá Maria (6), que recebe aplausos
calorosos. Vivas e bravos. Entram dois soldados e um desconhecido. Cochicham e
apontam para Jonas, que inicia a terceira canção).
Terceira canção
(3):
Ó lua branca de fulgores e de encanto!
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo
vem tirar dos olhos meus o pranto
Ai, vem matar essa paixão...
(Jonas não consegue terminar a estrofe. Os
soldados avançam para ele, agarram-no e algemam-no, no meio de uma grande
confusão).
ESTRANHO:- É ele mesmo, seu
guarda! Pode prender o safado...
SOLDADO 1:- O senhor está preso...
SOLDADO 2:- Segura ele...
SAMUEL:- O que é isso?
Vocês não podem invadir...
CIGANA:- Larguem o
Jonas... larguem... seus putos... ele não fez nada... (A Cigana chuta, bate e morde os soldados).
SOLDADO 1:- Ai! Ui! Pare com isso...
SOLDADO 2:- Me ajuda a segurar o homem...
SOLDADO 1:- Tira essa louca daqui...
(Todos se engalfinham, numa luta meio
ridícula, até que um dos soldados puxa uma arma e dá um tiro para cima. Todos param,
assustados, por um momento, tentando entender o que está acontecendo. A Cigana
está em cima de um soldado, que está ridiculamente estatelado no chão. O outro
soldado segura o Jonas com a mão esquerda e a arma fumegante com a direita,
enquanto recebe uma saraivada de golpes de guarda-chuva por parte das mulheres;
Samuel tenta puxar o Jonas, já algemado e com cara de tonto etc.)
SOLDADO 1:- Silêncio! Respeitem a otoridade... Quem oceis pensa que é?
(Depois de um instante de estupefação, todos
recomeçam a falar ao mesmo tempo, o que obriga o soldado a dar outro berro e
ameaçar com outro tiro. Restabelece-se um pouco de ordem).
SAMUEL :- O senhor quer
me explicar o que está acontecendo aqui?
SOLDADO 1:- É que esse elemento é um gatuno...
DEMAIS PESSOAS (novamente numa confusão de vozes):-
Gatuno? Ladrão?! Como? Que absurdo!? Não é possível! Deve ser engano!
SOLDADO 1:- Silêncio! Ordem! Eu prendo todo mundo...
ESTRANHO:- Eu explico...
esse homem é um ladrão... eu o peguei depois do almoço tentando roubar minha
casa...
CIGANA:- Mentira! Ele
estava comigo... E Jonas não é ladrão...
ESTRANHO:- É ele mesmo...
Eu vi...
SAMUEL:- O senhor viu a
cara do ladrão?
ESTRANHO:- Não... mas...
SAMUEL:- Então como pode
ter certeza?
ESTRANHO:- É que... ele...
ele tava com essa mesma camisa... igualzinho... eu vi... e eu tenho certeza...
CIGANA:- É mentira! (Avança contra o estranho e é segura por um
dos soldados). Canalha! Mentiroso! Cachorro! O Jonas não é ladrão...
SAMUEL:- E o que foi que
ele roubou de sua casa, meu amigo?
ESTRANHO:- Bem... é...
bem... ele...
SAMUEL:- Vamos, diga! O
que foi que ele roubou?
ESTRANHO:- Nada!
SAMUEL:- Então, soltem o
homem... se não há roubo, não há culpado!
SOLDADO 1:- Num é bem assim... solta o homem... existe uma queixa na delegacia...
SAMUEL:- Então o senhor
vai lá na delegacia e retira a queixa e pronto!
ESTRANHO:- É, mas ele num
roubô nada porque eu num deixei... eu cheguei na horinha de pegá esse
desgraçado mexendo nas gaveta do meu quarto...
SAMUEL:- Mas como o
senhor pode acusar esse homem de roubo, se não houve roubo...
SOLDADO 2:- Foi uma tentativa... e tentar roubar já é roubo...
SAMUEL:- Não, senhor...
isso não tem lógica... Se eu tento me matar e não consigo, então eu estou
morto? Estou?
SOLDADO 2:- Não... não, sinhô...
SAMUEL:- Não houve
roubo... não há ladrão...
SOLDADO 1:- Mas foi feita uma queixa na delegacia...
ESTRANHO:- E eu peguei esse
diabo dentro de minha casa...
SAMUEL:- Mas o senhor não
tem certeza de que é ele... Como pode reconhecer alguém só pela camisa...
ESTRANHO:- Quem é que teria
aqui em Três Pontas uma camisa igual a essa?
(Todos reparam na camisa de Jonas e concordam
com o estranho. Murmúrios de dúvida, concordância e gestos de discordância
entre as pessoas).
SAMUEL:- Estamos aqui num
impasse...
SOLDADO 1:- Num... o quê?!
ALGUÉM DA PLATÉIA:- Sordado
inguinorante... num sabe nem o qui é passe...
OUTRO:- ... inda mais dentro dum
centro espírita...
SAMUEL (com paciência):- Estamos aqui numa
grande dúvida... Vocês não querem soltar o Jonas...
SOLDADO 1:- Então o nome do safado é Jonas!...
JONAS:- Jonas pr’os amigo... Pr’ocê,
Jônathas, ouviu? Jônathas com tê hagá... Jônathas Daniel Pinto de Miranda!...
SOLDADO 1:- Grande bosta!
SAMUEL:- Olha o respeito!
Isso aqui é um templo de Deus!
SOLDADO 1:- Discurpe...
SAMUEL:- Então eu
proponho o seguinte: vamos todos para a Delegacia, que o delegado é quem poderá
resolver o caso...
(Todos concordam e, entre conversas e
murmúrios, saem em direção à delegacia, com os soldados levando o prisioneiro e
a Cigana tentando ampará-lo e sendo empurrada por um dos soldados. Celas da Delegacia de Polícia. Jonas atrás
das grades. Não há outros prisioneiros).
VOZ (em off):- Seresteiro, visita pr’ocê...
(Entra a Cigana, vestida de homem. Jonas não
a reconhece).
JONAS:- Uai... sô... tava esperando
a Cigana... Quem é ocê?
CIGANA:- Tá besta? O
xadrez te deixou de miolo mole?
JONAS:- Cigana?!... É ocê mesmo? Por
que ocê tá vestida assim?
CIGANA:- Eu até já tinha
me esquecido... É que tive uns problemas...
JONAS:- Pobrema? Que pobrema?
CIGANA:- Uns homens aí,
começaram a me importunar...
JONAS:- Quem é que te deu essas
roupa?
CIGANA:- O ‘seu’
Samuel... Estão um pouco folgadas, mas enganam bem...
JONAS:- Uai... ocê num gostava dele...
CIGANA:- Me enganei...
ele tem me ajudado bastante...
JONAS:- ‘Seu’ Samuel é um cara
bacana...
CIGANA:- Mas não é dele
que eu vim falar com você... Tá muito difícil, Jonas... Não tenho dinheiro para
arrumar advogado... ninguém ajuda... Como é que vamos fazer para te tirar
daqui, meu amigo?
JONAS:- Num se preocupe comigo,
Cigana... Tô preso, mas é só meu corpo... meus sonho continua tudo voando por
aí...
CIGANA:- Mas precisamos
seguir viagem...
CIGANA:- Num vô ficá aqui
pra sempre... E continuo viajando... viajo nas música que eu canto... (Entusiasmado). Espere... vô te mostrá
uma coisa... (Vai até o fundo da cela e
pega o violão). Consegui tirá aquela música que eu tava tentando...
(Jonas dedilha o violão com prazer, tirando
os primeiros acordes e canta).
JONAS:- Se da saudade o sofrimento
que é cruel
não te tortura o coração
feito de fel
concede ao menos o alento
por favor
a quem perdeu toda a ilusão
do teu amor
(do teu amor) (7)
CIGANA:- Que lindo,
Jonas?! É só isso?
JONAS:- Não, ainda farta o resto...
é muito bonita, não é?
(Neste momento entra o soldado com um
prisioneiro algemado).
SOLDADO :- É o seu dia de
sorte, seresteiro... Olha bem pra cara desse elemento! Sabe quem é ele? O
ladrão, seresteiro... o ladrão que dissero que era ocê... Vô botá o bicho na
gaiola e te sortá... O delegado mandô te sortá, seresteiro... (Tira as algemas do prisioneiro e joga-o na
outra cela. Depois se dirige para a cela de Jonas e começa a abri-la).
Junta seus trem, seresteiro e... rua! Ocê tá livre!
(Jonas sai, abraça-se à Cigana, rodopiam de
felicidade. A Cigana beija-o no rosto. O soldado olha espantado, pois pensa que
a Cigana é mesmo homem).
SOLDADO :- Que trem mais
esquisito, sô... Home cum home dá lobisome...
(Jonas ignora a observação do Soldado, pega
suas coisas e sai, abraçado à Cigana, ambos muito felizes. Já quase saindo de
cena, volta-se, dá uma olhada no prisioneiro e no soldado).
JONAS (declamando bem alto):- Eh! terra dos trêis pico
Onde eu quase me trumbico:
Entrei num baita rolo
Caus’ dum ladrão marolo...
PRISIONEIRO:- Marolo é a mãe!
JONAS:- Uai... e aqui num é a terra
dos marolo?
SOLDADO :- Óia! Ocê tá
querendo vortá pro xilindró? Tá? (Ameaça
pegar Jonas).
JONAS:- Tá bom... tá bom... num tá
aqui quem falô... (Sai com a Cigana e
encontra Samuel). Tamo livre, amigo Samuel! Tamo livre! (Abraçam-se).
SAMUEL:- Graças a Deus,
meu amigo, graças a Deus e ao Padre Vítor, padroeiro desta cidade... O que você
vai fazer agora?
CIGANA:- Vamos embora,
‘seu’ Samuel... Pegar a estrada...
JONAS:- Já perdemo muito tempo... A
Terra da Lua Branca espera nóis...
SAMUEL:- O que tem nessa
terra, meu amigo?
JONAS:- A felicidade... ‘seu’
Samuel... a felicidade...
SAMUEL:- E onde fica essa
terra?
JONAS:- Se nóis subesse, já tava
lá... tamo procurando... tamo procurando... (Mudando de tom). ‘Seu’ Samuel, me diga uma coisa: o sinhô é marolo?
SAMUEL (rindo gostosamente):- Eu, não...
Jonas... eu, não... Mas não chame o povo daqui de marolo que você arruma uma
baita encrenca... Olha aqui, Jonas e Cigana, já que vocês vão à procura dessa
tal Terra da Lua Branca, quem sabe um dia vocês passam em Lavras...
JONAS:- Pode sê, ‘seu’ Samuel...
SAMUEL:- Então, passando
lá, procura a minha mãe... Olha, aqui está o nome e o endereço dela... Diz que
fui eu que mandei...
JONAS:- “Seu” Samuel, uma preguntinha: é verdade
mesmo que o “seu” Getúlio se matô?
SAMUEL:- É, Jonas, é
verdade. O Presidente deu um tiro no peito.
CIGANA:- Maus
presságios... para os pobres... como sempre...
JONAS:- Vamo s’imbora, Cigana... Nosso destino é as
estrada da terra, num é as estrada complicada da política...
(Samuel, Jonas e a Cigana se abraçam. Jonas e
a Cigana se afastam em direção a uma lua imensa que começa a surgir ao fundo.
Jonas canta).
JONAS:- Ai, por quem és? Desce do
céu, ó lua branca!
Essa amargura do meu peito, ó vem,
arranca!
Dá-me o luar da tua compaixão
Ó vem, por Deus, iluminar meu
coração! (3)
CIGANA:- Espere um pouco,
Jonas... estou... cansada... demais... (Pára,
senta numa pedra, Joana dá-lhe água, ampara-a, parece preocupado). A gente
não tem tido... muita sorte... trabalho pouco... dinheiro pouco... estrada
muita...
JONAS:- O sonho tá ficando caro,
Cigana... mió desisti... sentá os trapo num lugá quarqué... deixá essa vida...
CIGANA:- E fazer o quê,
Jonas... Ler mão e cantar é função de andarilho... Se a gente para, a gente
morre... fica sem plateia e sem cliente...
JONAS:- Quem sabe nóis num podia ir pra nova
capitar... Diz que lá tem muito dinheiro...
CIGANA:- Não é lá a Terra
da Lua Branca!
JONAS:- Tô preocupado com ocê...
CIGANA:- Você se esquece
que cigano nasceu pra estrada...
JONAS:- Mas não pra essa miséria que
temo vivido...
CIGANA:- Miséria do povo,
Jonas... Do pouco que têm, pouco sobra pra quem vive como nós... as cigarras...
Vamos continuar... já melhorei...
JONAS:- Parece que tem uma cidade
logo ali na frente... e é cidade grande... não esses arraiá que temo passado...
Quem sabe é a tar cidade de uma rua só com um bonde...
CIGANA:- ...um bonde que
vai até quase a árvore da forca...
JONAS:- ...onde mora o bruxo que tem
no nome um dois na frente de uma árvore...
CIGANA:- ...que vai nos
dizer onde fica a Terra da Lua Branca...
JONAS:- Vamo... Cigana... quem sabe
o sonho tá perto...
(Chegam à cidade, param numa praça, ajeitam
suas coisas num banco e armam o seu pequeno show. Jonas canta e a Cigana dança.
Algumas pessoas aproximam-se e a Cigana lê a sorte de um ou outro).
JONAS:- Quero beijar a alma do Sol
Sentir a vida em plena luz
Trago nos olhos o arrebol
de uma aleluia que seduz
Pelas campinas tão louçãs
a terra é loura floração
E os passarinhos nas manhãs
vibram, cantando, o coração... (8)
(De repente, a Cigana, que lia a sorte de um
rapaz, leva a mão à cabeça por um instante, fecha os olhos e cai desmaiada.
Todos acorrem a socorrê-la. Colocam-na sobre o banco e fica aquele momento de
incerteza, sem ninguém saber muito bem o que fazer. Abre caminho no meio do
grupo um médico, todo de branco, com uma valise. Tem cerca de 45 anos, vastos
cabelos negros, mal escondendo as entradas. É o doutor Adelino).
ADELINO:- Com licença...
com licença... eu sou médico... Afastem-se um pouco, por favor, para que eu
possa examinar a moça... (Ausculta-lhe o
peito, tira a pressão etc.). Ela está sozinha?
JONAS:- Não, sinhô... doutor... ela
está comigo...
ADELINO:- Então me ajuda a
levá-la para o hospital... Vamos...
JONAS:- Mas... doutor...
ADELINO:- Não se
preocupe... tudo vai ficar bem... Me ajude...
(A Cigana acorda no quarto do hospital e a
primeira imagem que vê é a do médico).
CIGANA (meio delirando):- Jo... Jonas... não...
não é o Jonas... é... é... morri... estou no céu... você deve ser...o anjo...
sim, o anjo... eu morri...
ADELINO:- Fique calma,
moça, fique calma... Você ainda não morreu...
CIGANA:- Você... você não
é um anjo?...
ADELINO:- Não. Sou apenas
um médico... Meu nome é Adelino. Qual é o seu?
CIGANA:- Ci... Cigana...
Meu nome é Cigana...
ADELINO:- Mas isso é nome?
CIGANA:- É nome, sim. É o
meu nome. Se não gostou...
ADELINO:- Não precisa
brigar, eu gostei, sim... Mas fique calma... você está muito fraca...
CIGANA:- O que é que eu
tenho? Onde estou? Cadê o Jonas?...
ADELINO:- Uma pergunta por
vez... Seu mal maior é fome... já mandei preparar uma sopa pra você... está
anêmica... mas preciso fazer outros exames... por enquanto, fique quietinha,
tome a sua sopa, que já vem... depois veremos...
CIGANA:- O Jonas?...
ADELINO:- Está aí fora...
vou mandar ele entrar... depois eu volto... Faça o que eu mandei...
(O médico sai e em seguida entra Jonas com
uma bandeja nas mãos, todo preocupado).
JONAS:- Cigana... que bão que ocê já
tá acordada... Como é que ocê tá? O que ocê tá sentindo? (Toca-lhe a fronte). Meu Deus do céu, que susto, Cigana... Ocê tá
bem, está? Olha, eu trouxe uma sopinha pr’ocê... (Ajuda-a a erguer-se um pouco). Vamos... tome a sopinha... tome...
CIGANA:- Calma, Jonas. Eu
estou bem.
JONAS:- O que disse o dotô? Diz...
eu quero sabê... Ocê vai ficá boa, num vai?
CIGANA:- Claro que vou,
seu bobo. É coisa à toa. Agora vamos, me ajude a tomar a sopa... (Depois de algumas colheradas). Quem está
preocupada sou eu, Jonas... esse hospital... como é que nós vamos pagar isso?
JONAS:- Nada... O dotô Adelino disse
que num vamo pagá nada...
CIGANA:- Você tem
certeza?...
JONAS:- Foi o que ele disse...
CIGANA (mais para si mesma que para o Jonas):-
Doutor Adelino... que médico... que alma boa... acho que vou ficar doente por
muito tempo...
CIGANA:- Como? O que ocê
tá falando, Cigana?
(Entra o Doutor Adelino com algumas chapas
nas mãos).
ADELINO:- Já está bem
melhor, não é mesmo... Cigana? E nós vamos cuidar muito bem de você...
CIGANA (enlevada):- Cuidar? Cuidar de mim,
Doutor? Mas eu não estou...
JONAS:- Deixa o dotô falá, Cigana!
ADELINO:- Bem... eu tirei
umas chapas... dos pulmões... não é nada grave... mas você vai ter que ficar
internada umas duas semanas, pelo menos...
JONAS:- Duas semana, dotô?...
CIGANA:- O que é que eu
tenho, doutor? É grave?
ADELINO:- Não... grave não
é... mas poderia ser... seus pulmões... não estão bons... mas com bastante
repouso, alimentação adequada e alguns remédios, em quinze dias, no máximo,
você vai estar boa...
CIGANA:- E como... como
nós vamos pagar tudo isso?...
ADELINO:- Já falei com o
seu... companheiro... não é mesmo, Jonas? Vocês não vão ter de pagar nada...
Isso aqui é um hospital-escola... Você tem onde ficar, Jonas?
JONAS:- N...n...não... eu num sei
nem que cidade é esta!
ADELINO:- Vocês chegaram
aqui, hoje? Não sabem que cidade é esta?
CIGANA:- É mesmo! Nós chegamos aqui e não sabemos onde
estamos!...
ADELINO:- Vocês estão em
Alfenas... Já que o Jonas não tem onde ficar...
JONAS:- Num se preocupe, dotô... eu
me arranjo... Além de cantadô, e dos bão, eu trabaio em jardim, sei plantá umas
coisinha, racho uma lenha... eu me arranjo...
ADELINO:- Que isso, uai,
você pode ficar lá em casa... Tenho um quartinho bom, lá... E posso te pagar
pra cuidar do meu jardim... Não tenho tido tempo pra nada e ele está precisando
de um trato...
JONAS:- Mas, dotô... nóis já deu
muito trabaio...
ADELINO:- Que trabalho que
nada... Está resolvido... Você fica lá em casa, enquanto nós vamos cuidar da
moça ali... Está bem?..
JONAS:- Já que o dotô inseste... mas
num quero pagamento nenhum, não...
(Ainda o quarto do hospital. Jonas chega
eufórico).
JONAS:- Cigana, ô Cigana,
vam’embora! Ocê tá boa... já pode sair daqui...
CIGANA:- E o doutor... o
doutor Adelino?...
JONAS:- Intão, muié, e ele já num
assinô sua arta?...
CIGANA:- Ele não vem
aqui?... Me ver?...
JONAS:- Não... ele num pode... teve
um chamado... urgente... num sei quem teve uma ataque do coração... Arrume suas
coisa, vam’embora... Temo muito chão pra andá...
CIGANA:- Por que esse
entusiasmo todo, Jonas? Pra onde a gente vai?
JONAS:- Ih! Cigana! Nem te conto...
Sabe o dotô Adelino? Ele disse que existe uma cidade não muito longe daqui que
tem muito home bruxo, sábio... tarvez seja lá que a gente vai encontrá aquele
que guarda o segredo da Terra da Lua
Branca...
(Já na estrada, caminham em silêncio. Param,
voltam-se um instante).
JONAS:- Adeus, Alfenas, adeus... Aí
deixo um amigo...
CIGANA (suspirando):- E eu, um pedacinho de
mim...
JONAS:- O que ocê quer dizê com
isso, Cigana?
CIGANA:- Nada... é que
você falou de um amigo...
JONAS:- O dotô Adelino... que te
cuidô...
CIGANA:- Mais do que
devia...
JONAS:- Como?
CIGANA:- O doutor
Adelino... moço bonito... moço bom... fez mais do que devia...
JONAS:- Tô te achando estranha...
CIGANA:- Estou com
vontade de cantar uma canção... Você me acompanha?
(Acertam o tom e a Cigana canta, acompanhada
pelo violão de Jonas).
CIGANA:- Não foi assim
que te ensinei, não foi
o amor que diz felicidade
Aquele que no dá prazer, nos faz
chorar
O amor melhor, o mais sincero, é
a saudade
O amor-saudade eu te juro
é de todos o mais puro
porque é recordação
que faz bem ao coração
É a lembrança de um passado
que nos volta com esplendor
Saudade é o melhor amor (9)
JONAS (com tristeza):- Ocê tá querendo dizê que...
CIGANA (enxugando uma lágrima):- Já passou...
foi só uma... uma... saudade do impossível... Somos só eu e você, meu amigo. (Acaricia-o ternamente). As estradas de
Minas são o nosso alento... e a lua, o nosso mistério...
JONAS (tentando parecer alegre):- Óia... óia lá... é o Rio Verde... nossa
estrada... temos que segui ele acima... até uma cidade chamada Três Corações...
CIGANA:- Três Corações?
Que nome esquisito para uma cidade...
JONAS (já mais entusiasmado):- Lá tem um amigo do dotô Adelino... (arrependendo-se de ter tocado nesse nome)
Discurpe... lá tem uma pessoa... que vai ensiná nóis como chegá na cidade mágica...
CIGANA:- Cidade
mágica?...
JONAS:- É... diz que lá tem bruxa...
e uns homezinho... assim... que veio do espaço... voando nuns avião redondo...
parece que eles mora nas caverna... que lá tem um monte... e cachoera... com
gonomo...
CIGANA (já mais alegre, rindo muito):- Que
história mais esquisita, Jonas... homens do espaço... avião redondo...
cachoeira.. gnomos... Você tá ficando xarope...
JONAS:- Foi o que me contaro...
CIGANA:- E como se chama
essa cidade, Jonas?...
JONAS:- Acho que é... São Tomé...
isso, mesmo... São Tomé das Letra...
CIGANA:- Olha: acho que
já estamos chegando em Três Corações... Vamos procurar a pessoa que... o tal
que vai ensinar o caminho para essa cidade maluca aí...
(Chegam à casa de Augusto e Diva - marido e
mulher, ambos já na casa dos trinta e poucos anos).
JONAS (batendo palmas):- Ô de
casa!...
DIVA:- Quem é?
JONAS:- Viemo da parte do dotô... (olha meio de esguelha para a Cigana)
Adelino... de Alfenas...
DIVA (saindo à janela, ainda meio desconfiada):- Ocêis são parente do
Adelino?
JONAS:- Não... mas a gente é amigo
dele... ele mandou essa carta pro ‘seu’ Augusto...
DIVA (para dentro):- ...Gusto... ô Augusto... tem uns amigo do Adelino
aqui, querem falá c’ocê...
AUGUSTO (chegando à janela):- Boas tardes...
JONAS:- Boas tardes... meu nome é
Jônathas Daniel Pinto de Miranda, de alcunha Jonas, sim sinhô... e essa é minha
companheira, a Cigana...
CIGANA:- Prazer... (cumprimenta os dois, que declinam o nome).
AUGUSTO:- Então... vocês
são amigos do Adelino... não querem entrar?
JONAS:- Pr’cisa não... nóis tem um
pouco de pressa... Viemo só entregá essa carta... e, por mercê de sua boa
vontade, pegá umas informação (entrega a
carta a Augusto que a lê rapidamente)... ele disse que o sinhô pudia nus
ajudá...
AUGUSTO:- Sei... sei...
acho que posso, sim... Mas vocês num querem mesmo entrar?...
CIGANA:- Se a senhora
dona Diva puder me arrumar um pouco d’água...
DIVA (abrindo a porta):- Posso, sim... entra um pouco... Cigana o seu
nome, não é? Entra... deixa os home aí conversando... vamo lá dentro...
(A Cigana entra acompanhando a Diva, enquanto
Augusto e Jonas ficam conversando do lado de fora).
AUGUSTO:- Então, ‘seu’
Jonas... tá há muito tempo nessa caminhada?
JONAS:- Muito... já perdi as conta
dos passo que demo nessas estrada... do tanto de poeira que já comemo... acho
que pra mais de dez... é... pra mais de dez ano... os caminho parece num tê
fim...
AUGUSTO:- E agora tão indo
pra São Tomé...
JONAS:- Isso mesmo... quem sabe...
lá a gente encontra nosso destino e achamo paradeiro...
AUGUSTO:- O povo de lá é
simples, mas muito hospitaleiro... Você e sua mulher vão gostar...
JONAS:- Deus te ouça, ‘seu’
Augusto... Deus te ouça!
AUGUSTO:- Tô vendo aí uma
viola nas suas costas...
JONAS:- Minha verdadeira companheira
nesse vale de lágrima que é a vida... é o meu ganha-pão nesses meu caminho de
busca da Terra da Lua Branca...
AUGUSTO:- Terra da Lua
Branca?... Uai, num era São Tomé?!
JONAS:- Óia, ‘seu’ Augusto, a
verdade verdadeira mesmo é que vamo procurá lá em São Tomé um home sábio que
vai ensiná o caminho pra Terra da Lua Branca...
AUGUSTO:- Acho que estou
te entendendo, Jonas... Eu também já procurei a minha Terra da Lua Branca...
Por muito tempo, eu pensei que essa terra era Lavras, onde eu nasci...
JONAS:- O sinhô é de Lavras?!
Qu’engraçado! Nessa minha sina pelas estrada de Minas, já encontrei um ror de
gente dessa cidade aí...
AUGUSTO:- Lavrense é que
nem formiga: tem pra todo lado... Mas, então, deixa eu te ensinar o caminho pra
São Tomé...
(Neste momento, retornam a Cigana e Diva,
conversando e rindo alto, como se já se conhecessem há muito tempo. Augusto e
Jonas ficam em segundo plano e não mais se ouve o que eles dizem. Apenas se
percebem os gestos de Augusto ensinando a Jonas o caminho).
DIVA:- Mas então, Cigana, é só ocê
querer... tendo um tempinho antes de seguir viagem... vem aqui, que eu posso
cortar seu cabelo... dar um banho de óleo... o que você quiser...
CIGANA:- Ah! venho mesmo,
minha amiga... Já faz tempo que eu não sei o que é cuidar de mim... devo tá
parecendo uma bruxa... Essa vida tem sido só andar, andar e mais nada...
DIVA:- E ocê aproveita e lê a minha
sorte... ou o meu azar... (ri).
CIGANA:- Não fala essa
palavra, que atrai coisa ruim...
DIVA:- Já num tem mais nada de ruim
pra acontecer, não... agora até que melhorou um pouco... mas eu e o Augusto já
passamos tudo quanto é aperto... que nem te conto...
CIGANA:- A vida não está
fácil pra ninguém...
(Augusto e Jonas terminam seus entendimentos
quanto ao caminho e juntam-se às mulheres, para as despedidas).
AUGUSTO:- Ô Diva... tava
falando aqui pro Jonas... eles podiam ficar uns dias aqui em casa... a gente é
pobre, mas é só botar mais água no feijão, não é mesmo?
DIVA:- Ocê parece até que
adivinhou... eu já falei a mesma coisa pra Cigana...
JONAS:- Nóis agradece muito... mas
eu Cigana tamo mesmo é só de passage... A lua tá cheia e pricisamo aproveitá os
clarão nos caminho...
CIGANA:- É verdade! Quem
sabe, em outra hora... Depois de tanto tempo de estrada, são os caminhos que
conduzem a gente...
(Eles se despedem. Jonas e Cigana retomam o
caminho. Jonas canta Lua Cheia (10), enquanto a lua vem nascendo no horizonte).
JONAS:- Óia, Cigana... lá no alto... É São Tomé?
CIGANA:- É lindo,
Jonas... Tão alto... Tanta luz... na pedra... É, deve ser, sim, deve ser São
Tomé!
JONAS:- Vamo, Cigana, vamo subir...
CIGANA:- Diz que tem uma
cachoeira bem no pé da serra... Vamos até lá!
(Chegam à cachoeira).
CIGANA:- Vai, Jonas, vai
dar uma volta... Me deixe sozinha um pouco...
JOj JONAS:- O que ocê vai fazê?
CIGANA:- Coisa minha...
do meu povo... Preciso me purificar... do cansaço dos caminhos... tirar o pó...
as dores dos espinhos de cada estrada que já pisamos... Vai, volte daqui a uma
hora.
(Jonas afasta-se, dá uma volta e retorna a um
ponto atrás de um arbusto, de onde observa sem ser visto. A Cigana fica alguns
instantes em posição de extrema concentração. A iluminação deve destacá-la com
uma luz que lembre a luz da lua. Lentamente, ela despe-se e toma um longo banho
de cachoeira. A luz destaca a expressão inebriada de Jonas).
JONAS:- Que canção... que canção pra cantá esse
momento?... Minha viola, minha voz... não tem corda o meu coração... só ele
podia botá pra fora a canção da minha Cigana... Cigana, a Lua, a Lua de meu
céu... a estrela de minha noite escura... quem sabe, a lua da Terra da Lua
Branca... e eu, aqui... sozinho... um Sol vendo a Lua... num posso chegá
perto... vou queimá dentro de mim essa paixão... Sossega, Jonas... Guarde a
dor, guarde o amor... Ocê prometeu... e trocô a breve chama da paixão pela
brasa sempre acesa da presença... Sofre calado, “seu” Jonas... só a quietude te
garante o amor... Ela é a Lua, ocê é o Sol... só podem caminhá junto... não
podem se juntá...
(Enquanto Jonas fala, a Cigana enxuga-se,
veste-se, senta-se numa pedra e começa a pentear os cabelos. Jonas suspira e
sai de seu esconderijo e vai ao seu encontro, como se nada tivesse acontecido).
CIGANA:- Você demorou,
Jonas. Por onde andou?
JONAS:- Por onde andei?! Tava viajando, Cigana...
tava na Terra da Lua Branca...
CIGANA:- A Terra da Lua
Branca... Precisamos achar essa terra logo, Jonas. Não sei se conseguirei, se
demorar tanto ainda...
JONAS:- Ocê tá bem, Cigana? Tá sentindo arguma
coisa?...
CIGANA:- Só cansaço, Jonas,
só cansaço... É muita estrada, é pouca a vida...
JONAS:- Óia aqui, Cigana, num acho que a gente vai
encontrá o que a gente procura lá em São Tomé...
CIGANA:- Você tem razão,
Jonas. São Tomé ainda está muito longe, muito lá no alto...
JONAS:- Vamo procurá a cidade de uma rua só...
CIGANA:- ...e o sábio que tem um dois no nome...
JONAS:- ...e nome de pé de fruta...
CIGANA:- Vamos! Os
caminhos pra Terra da Lua Branca estão cada dia mais estreitos...
(Prosseguem a caminhada. A lua aparece. Jonas
pega e a viola e canta).
JONAS:- E quantas vezes lá no céu me aparecia
a brilhar em noite calma e
constelada
A sua luz então me surpreendia
ajoelhado junto aos pés da minha
amada. (3)
(Chegam a outra cidade. Encontram um negro
alto, bonito, vestido com uniforme de ferroviário da antiga Rede Mineira de
Viação. Seu nome - Francisco, mais conhecido por Chiquinho da Alzira, sua
mulher).
JONAS:- Tardes!
CHIQUINHO:- Boas tardes,
forasteiros...
JONAS:- Como sabe que nóis é forasteiro?
CHIQUINHO:- A cidade é
pequena... e eu conheço todo mundo... Tão vindo de onde?
JONAS:- De longe... desde muito tempo... temo andado
por esses caminho... Meu nome é Jônathas... mas pode me chamá de Jonas... Essa
é a Cigana, minha companheira de estrada...
CHIQUINHO:- Prazer... Meu
nome é Francisco, mas todo mundo me conhece por Chiquinho...
CIGANA:- Nós estamos
procurando a casa da dona Ina... (tirando
uma carta amarrotada do seio). Olha... o nome correto é Dona Lazarina...
ela mora com a dona Aparecida Urbano...
CHIQUINHO:- Vocês acharam a
pessoa certa para lhes dar todas as
informações... A Aparecida é minha irmã...
JONAS:- Puxa, que coincidência...
CHIQUINHO:- É mesmo muita
coincidência... Principalmente porque se eu sou a pessoa certa, vocês estão na
cidade errada...
CIGANA:- Cidade errada?
JONAS:- Aqui num é Lavras?
CHIQUINHO (rindo):- Não... aqui não é Lavras...
Lavras é onde mora minha irmã... Vocês estão em Divinópolis...
JONAS:- Ora veja...
CIGANA:- Não é possível...
erramos o caminho...
CHIQUINHO:- Que mal lhes
pergunte: o que vocês querem da dona Ina?
JONAS:- Nóis tem uma carta do fio dela... o “seu”
Samuel, de Três Ponta...
CIGANA:- É... e já faz
tempo que essa carta está com a gente, não é, Jonas?
JONAS:- Bota tempo nisso...
CHIQUINHO:- Se são amigos do
Samuel, são meus amigos também... E são benvindos em minha casa... Eu moro logo
ali... Vamos...
JONAS:- “Seu” Chiquinho, nóis num qué dá trabaio...
Nóis se ajeita por aí...
CHIQUINHO:- Não tem trabalho
nenhum... faço questão, uai... Então vou deixar amigos de meus amigos na rua? Que que isso... e pare me chamar de “seu”... é só
Chiquinho... Vamos...
(Os três caminham até a casa de Chiquinho).
JONAS:- “Seu”... discurpe... Chiquinho... é muito bonito
esse seu uniforme... O sinhô... ocê é sordado?
CHIQUINHO:- Soldado, nada...
eu sou ferroviário... maquinista... da Rede Mineira de Viação...
CIGANA:- Maquinista?! O senhor... você dirige locomotiva?
CHIQUINHO:- Isso mesmo... eu
sou chofer de maria-fumaça...
JONAS:- Maria-fumaça?
CHIQUINHO:- Maria-fumaça é
modo de dizer... agora é tudo máquina diesel... Mas já “pilotei” muita
maria-fumaça... por essas estradas de Minas... bitola estreita... muita
sujeira... pra ir daqui até Belo Horizonte era quase um dia inteiro de
viagem...
CIGANA:- Então... você
viaja muito... conhece tudo quanto é lugar... e viaja de trem... Eu também
queria viajar de trem... a gente ia achar rapidinho a Terra da Lua Branca...
Não é mesmo, Jonas?
CHIQUINHO:- Terra da Lua
Branca? Eu nunca
ouvi falar... Onde fica isso?
JONAS:- Nóis num sabe...
CIGANA:- ... e por isso a
gente não pode andar de trem... É nossa sina achar essa Terra...
CHIQUINHO:- Mas por que
vocês têm de achar essa Terra? O que é que tem lá?
CIGANA:- A felicidade,
Chiquinho, a felicidade...
CHIQUINHO:- Uai, sô, então
eu também quero ir pra essa Terra...
(Chegam à casa de Chiquinho).
CHIQUINHO (ainda do lado de fora da casa):- Alzira,
ô Alzira... Bota água no feijão, que temos visita...
(Entram na casa, fazem-se as apresentações).
CHIQUINHO:- Ah! Alzira...
não se esqueça daquele ora-pro-nobis... que eu estou com vontade de comer...
ALZIRA:- Já colhi,
Chiquinho... tá na água com vinagre, pra não ficar babento...
CIGANA:- Ora... o quê?
ALZIRA:- Ora-pro-nobis!
Ocêis num conhece? É uma verdurinha mineira, que a gente faz refogada com alho, no azeite
bem quente... é uma delícia...
JONAS:- Que nome isquisito...
ora-pro-nobis...
CIGANA:- Parece latim...
CHIQUINHO:- É latim,
mesmo... o padre aqui da paróquia, que é freguês da comida da Alzira, me disse
que significa reza por nós... Mas vamos deixar de conversa... vocês vão provar
o melhor tutu mineiro do mundo, não é Alzira? Com uma costelinha de porco e... ora-pro-nobis...
(Todo o palco escurece e um foco de luz
destaca um aparelho de rádio. Ouvem-se os acordes da Protofonia do Guarani,
característicos da abertura de “A Voz do Brasil”. O locutor anuncia o discurso
do presidente da República, Sr. Jânio da Silva Quadros. O Presidente começa a
falar. Chiquinho desliga o rádio, ilumina-se o palco e um grupo de pessoas se
reúne em torno de Jonas e da Cigana, para ouvi-los cantar. Jonas canta Vingança
(11) e é muito aplaudido por todos).
JONAS:- Vamo, Cigana... ânimo... Tamo quase
chegando... Óia! Já é a estação do trem...
CIGANA:- Ainda bem,
Jonas... Meu peito parece que vai explodir... Acho que estou ficando velha...
JONAS:- Véia!? Véia nada, Cigana... É só o cansaço
das estrada...
CIGANA:- ... e da vida,
Jonas...
(Chegam a uma estação ferroviária. Jonas lê:
LAVRAS. Pula de alegria e abraça a Cigana).
JONAS:- Eu num falei... É mesmo Lavras! Quem sabe
nóis vai encontrá arguém pra nos dizê
onde fica a cidade de uma rua só...
(Jonas percebe que a Cigana desfalece.
Senta-a num banco e tenta reanimá-la).
JONAS:- O que é isso, minha amiga... Vamo... ocê num
pode desisti agora... Tamo perto, Cigana, tamo perto da felicidade!...
CIGANA (reanimando-se um pouco):- Felicidade,
Jonas... Quem sabe se a felicidade não foi tudo o que vivemos?
JONAS:- O que ocê qué dizê, Cigana? Ocê está tão
estranha...
CIGANA:- Você tem razão:
nós vamos ser felizes. (Levantando-se).
Já passou... foi só um pequeno mal-estar... Vamos... vamos seguir nossa sina...
Lavras nos espera...
JONAS:- Mais que espera, acho que Lavras é a nossa esperança...
(Caminham até uma praça onde se encontram
vários estudantes, dentre eles Vitório. É a ele que Jonas se dirige).
JONAS:- Boas tardes...
VITÓRIO:- Boas tardes,
moço. Se é esmola o que o senhor quer, pode desistir, que estou pedindo
também!...
CIGANA:- Olha aqui, ô seu
moleque atrevido...
JONAS:- Carma, Cigana, ele tá só brincano... um moço
rico, estudante...
VITÓRIO:- Estudante, sim.
Rico, nada... a gente aqui anda numa pindaíba danada, seu moço...
JONAS:- Pode assussegá, moço... Nóis num veve por aí
a pedi esmola, não sinhô... só queria umas informação...
VITÓRIO:- Estou vendo aí
que o senhor tem uma viola...
JONAS:- Nóis... eu e a Cigana, aqui... nóis arrisca
umas musiquinha...
CIGANA:- Não arrisca só,
não... Você tá diante de um grande cantador...
VITÓRIO:- O senhor canta
música antiga?
JONAS:- Ocê tá querendo dizê...
VITÓRIO:- Chico Alves...
Orlando Silva...
JONAS:- Mas é claro... é o que eu mais sei cantá...
VITÓRIO:- Qual é a sua
graça?
JONAS:- Jônathas... mas me chamam de
Jonas... um seu criado... E essa é a Cigana, minha companheira...
VITÓRIO:- Prazer...
Vitório... A gente precisa se encontrar... que eu quero ouvir o senhor
cantar...
JONAS:- Mas agora o que nóis qué é encontrá umas
pessoa... O moço conhece a dona Lazarina... sabe onde ela mora?
VITÓRIO:- Mas é claro que eu conheço... é só o senhor subir direto essa rua,
até a praça... bem em frente ao Grupo Escolar, tem uma sapataria - é do “seu”
Faria -, a casa da dona Lazarina fica bem do lado... Mas não adianta o senhor
ir lá agora, não, ela está viajando... Olha, aqui está a chave da casa, eu é
que estou tomando conta...
JONAS:- Mas que azá... nóis veio de tão longe... E a
dona Aparecida Urbano, o senhor conhece?
VITÓRIO:- Mas é claro...
Olha: está vendo aquela praça lá em cima?
JONAS:- Discurpe, moço, mas minha visão anda meio
fraca... num tô enxergando, não...
VITÓRIO:- Eu vou subir
daqui a pouco, eu levo vocês... É muito fácil... aqui em Lavras a gente costuma
dizer que é a cidade de uma rua só...
CIGANA:- Cidade de uma
rua só? Que vai até a árvore da forca?
VITÓRIO:- É isso mesmo...
Como você sabe?
CIGANA:- Jonas, Lavras é
a cidade que temos procurado há tanto tempo! Achamos, Jonas, achamos... (Eles se abraçam e pulam de alegria).
JONAS:- Então... então... é aqui que mora o sábio que
vai ensiná o caminho pra Terra da Lua Branca...
VITÓRIO:- Sábio, Terra da
Lua Branca... que conversa de doido, sô...
JONAS:- Seu moço... Vitório... ocê sabe se aqui mora
um home que tem nome de árvore com um dois na frente...
CIGANA:- É... árvore de
frutinha vermelha, do mato...
VITÓRIO:- Agora é que vaca
foi pro brejo... Explica isso direito, “seu” Jonas... num tô entendendo... num
tô entendendo...
CIGANA:- Disseram pra nós
que na cidade de uma rua só mora um homem... um sábio... o nome dele lembra uma
árvore de frutinha vermelha e tem um dois na frente...
VITÓRIO:- Bom! Cidade de
uma rua só é aqui mesmo... Mas um homem com nome de árvore e um dois na
frente... aí já tá meio complicado... Deixe eu pensar um pouco... Nome de
árvore... pode ser “Pereira”, mas esse é o meu nome... na minha família não tem
ninguém com dois na frente... Mangueira... Jabuticabeira... Amoreira...
Amoreira... com dois na frente... É isso! Não é Amoreira... é Moreira... e o dois
na frente só pode ser “bis”, ou Bi, Bi Moreira...
JONAS (decepcionado):- Bi... Bi Moreira?
VITÓRIO:- É... isso
mesmo... Bi Moreira! O senhor não disse que ele é um sábio? Pois é: o nosso Bi
Moreira é professor, poeta, um sábio! Só pode ser ele!
CIGANA:- E onde a gente
encontra esse... esse Bi Moreira?
VITÓRIO:- Isso já é outro
problema... Como todo sábio, ele é muito ocupado... Mas nós vamos dar um jeito
de falar com ele... Vamos subindo... até a minha casa e a gente combina tudo...
E eu quero saber direitinho dessa história de Terra da Lua Branca... e também
quero ouvir o Jonas cantar as músicas antigas...
(Os três saem conversando, Jonas e Cigana
mais animados agora. Praça da cidade.
Algumas pessoas em torno de Jonas, que dedilha o violão, e da Cigana, que lê a
mão de um ou outro. Vitório entre eles. É o final de um concerto).
VITÓRIO:- Canta uma música
de Chico Alves, Jonas...
JONAS:- Tá bem... eu vô cantá Lua Nova (13)... (Canta.
Todos aplaudem e depois se dispersam, pois Jonas começa a guardar o vilão.
Ficam, num banco, apenas Jonas, Vitório e a Cigana).
JONAS:- Já tamo aqui muito tempo... e nada do seu
amigo Bi Moreira...
CIGANA:- O tempo já está
correndo contra nós, Vitório...
VITÓRIO:- Calma, gente,
nós vamos conseguir conversar o Bi Moreira...
(Aproxima-se outro estudante, agitado.
Dirige-se ao Vitório).
ESTUDANTE:- Você vai
conosco, não vai?
VITÓRIO:- Vai aonde, cara?
De que você está falando?
ESTUDANTE:- A passeata... a
passeata... é amanhã... estou avisando todo mundo... não deixe de ir... (Afasta-se).
VITÓRIO (para Jonas):- Eta encrenca, isso...
Política eu tô fora...
JONAS:- Passeata pra quê, Vitório?
VITÓRIO:- Coisa desses
fazendeiros... contra o Jango... Acho que estão querendo derrubar o
Presidente...
JONAS:- Derrubar o Jango? Por quê?
VITÓRIO:- Acho que eles
têm medo de perder suas fazendas... A coisa tá feia, meu amigo... a cobra vai
fumar, como diziam os aviadores durante a guerra...
JONAS:- Uai, moço, como ocê sabe isso de aviadô na
guerra?
VITÓRIO:- É que o meu
sonho é ser aviador, Jonas... Eu ainda quero ver essa cidade lá do alto,
pilotando o meu avião...
CIGANA:- Você vai ser
piloto... depois de muita luta, muito sofrimento, Vitório... O sonho é difícil,
mas possível...
VITÓRIO:- Eu sou pobre, eu
sei... mas vou lutar pelo meu sonho...
(Neste momento, passa, não muito distante
deles, um senhor moreno, alto, cabelos ralos e brancos, num caminhar altivo e
alheado. É Bi Moreira. Vitório interrompe o que estava dizendo e corre atrás
dele).
VITÓRIO:- “Seu” Bi...
“seu” Bi Moreira... um instante, por favor... Preciso...
BI MOREIRA (detendo-se, espantado):- O que o moço
deseja?
VITÓRIO:- Desculpe... eu
sei que o senhor é ocupado, mas é que...
BI MOREIRA (consultando o relógio):- Tenho alguns
minutos... antes das minhas aulas... Vamos, fale... você é aluno do Instituto?
VITÓRIO:- N...não, mas
admiro muito o senhor... o seu trabalho... as suas poesias... eu tenho até um
amigo que é poeta também...
BI MOREIRA:- Não acho que o
assunto que você tem a tratar comigo seja poesia...
VITÓRIO (tentando explicar tudo o mais rápido
possível):- Sabe? Aqueles dois ali... o Jonas e a Cigana... eles vieram de
muito longe... estão caminhando há muito tempo... pra falar com o senhor...
sobre... sobre a Terra da Lua Nova...
BI MOREIRA:- Terra da Lua
Nova? Que história é essa?
JONAS (aproximando-se e fazendo uma reverência):- Perdão... sinhô dotô Bi
Moreira... deixa eu me apresentá... Jônathas... Jônathas Pinto de Miranda, por
alcunha Jonas... um seu criado... e essa é minha companheira de estrada, a
Cigana...
(A Cigana também se aproxima e cumprimenta o
Professor. Ambos estão fascinados por sua figura e tentam mostrar grande
respeito).
BI MOREIRA:- Com que então
são andarilhos...
CIGANA:- Sim, senhor... e
viemos de longe para consultá-lo... o senhor que é um sábio...
BI MOREIRA:- Se ser poeta é
ser sábio, então eu sou...
JONAS:- A Cigana, aqui, teve a visão da terra da
felicidade...
CIGANA:- A Terra da Lua
Branca...
JONAS:- ...e um preto veio... um sábio... disse que o
sinhô pudia nos dizê onde fica essa Terra da Lua Branca...
BI MOREIRA:- Terra da Lua
Branca?!... Deixe-me pensar... Terra da Lua Branca... Acho que vocês estão no
lugar e no caminho certo... Existe, aqui mesmo, perto de Lavras, acho que a uns
doze quilômetros de distância, uma terra mágica... Era pra ser lá a construção
da nova capital de Minas, Belo Horizonte... mas felizmente escolheram outro
lugar... é um lugar muito bonito... às margens do Rio Grande... chama-se
Ijaci... que em tupi, a língua dos índios, significa LUA BRANCA... Deve ser lá
a terra que vocês procuram...
JONAS:- Ijaci!... Lua... Lua Branca... e como a gente
chega até lá?
BI MOREIRA:- Isso é fácil, e
qualquer lavrense sabe informar: é só pegar a Estrada do Quenta Sol, virar á direita
sob o pontilhão e subir... subir... e depois descer... Fica ao sopé da serra...
no vale...
JONAS:- Obrigado, mestre...
obrigado... (tenta beijar a mão de Bi
Moreira). Só mais uma pregunta: é
lá, é lá que mora a felicidade?
BI MOREIRA (depois de um instante pensativo):- Se
você colocou lá a felicidade que você procura, ela deve estar lá te
esperando...
(Jonas abraça-se ao Vitório e ambos pulam de
alegria. Discretamente, o Professor se afasta e vai embora).
JONAS:- Obrigado ocê tamém, Vitório, obrigado...
VITÓRIO:- Eu sabia, Jonas,
eu sabia que a gente ia conseguir...
JONAS:- Cigana... nóis... Cigana, cadê ocê? (Só então se apercebe que a Cigana desmaiara).
Cigana!... Me acude aqui, Vitório... (Ambos
erguem-na até o banco, onde ela continua desfalecida). Ai, meu Deus do
Céu... ai, meu Deus do Céu... Cigana... acorde, Cigana... nóis tá perto da
Terra da Lua Branca...
VITÓRIO:- Vamos, Jonas,
vamos levá-la para o hospital...
(A Cigana está sobre um leito de Hospital,
ligada a um aparelho de soro. Parece dormir. Jonas entra tateando, como se
estivesse quase cego. Ela acorda).
CIGANA:- Doutor
Adelino?... É você?
JONAS:- Não, Cigana, sou... Cadê ocê?
CIGANA:- Aqui, Jonas...
em frente... isso... Você não está enxergando?
(Jonas senta-se com certa dificuldade numa
cadeira perto da cama e coloca ao lado o violão).
JONAS:- Não... não... eu tô enxergano bem... é que tá
meio escuro aqui...
CIGANA:- Jonas, meu
querido Jonas... (toma-lhe a mão com
carinho). É a última curva da
estrada para mim, Jonas... Estou no fim...
JONAS:- Não... não diga isso, Cigana... Ocê vai ficá
boa...
CIGANA:- Tenho muito pra
te dizer, meu amigo... Só espero que ainda tenha tempo... (Ouve-se, ao longe, um barulho estranho que aos poucos se identifica
como marcha de tropas e estampidos de armas de fogo). Que barulho é esse,
Jonas?
JONAS:- Acho que é o gorpe, Cigana... Vão derrubá o
Jango...
CIGANA:- Que dia é hoje,
Jonas?
JONAS:- Hoje? Hoje é primeiro de abril, do ano da
graça de Nosso Sinhô de mil novecentos e sessenta e quatro...
CIGANA:- É o dia da
mentira, mas o que eu vou te dizer é tudo verdade... Verdade verdadeira...
JONAS:- Algum dia ocê mentiu pra
mim, Cigana?
CIGANA:- Não foram
propriamente mentiras... foram meias verdades...
JONAS:- O que ocê qué dizê com isso?
CIGANA:- Meu nome, por
exemplo. Nunca lhe disse o meu verdadeiro nome...
JONAS:- Cigana...
CIGANA:- ...foi a
fantasia... sob a qual me escondi... Meu nome é Jacira... que quer dizer Lua...
eu...
JONAS:- Você... a Lua...
CIGANA:- Também não sou
cigana...
JONAS:- Ocê num é cigana?
CIGANA:- Ouça, primeiro,
meu amigo, meu... ouça a minha história... só você pode me julgar... e
condenar... Aos quinze anos, me apaixonei por um cigano e com ele parti...
Foram sete anos de loucura... de felicidade... apesar de tudo... Quando você me
encontrou, Jonas, eu tinha sido abandonada por ele... Acho que os ciganos são
assim... Estava magoada, ferida... tinha prometido a mim mesma não ter mais
nenhum homem, nenhum amor... E você surgiu de repente... Eu não queria te
magoar, Jonas... Você era a pureza de que eu precisava... Inventei aquela
história de freira, pra me esconder... pra não te ferir...
JONAS:- Eu te amei assim que te vi... e te amei cada
vez mais... em cada curva de caminho eu te amava mais...
CIGANA:- Eu também,
Jonas, eu também te amei e te amo... Tive apenas dois amores em minha vida: ao
primeiro, entreguei minha mocidade; ao segundo, a você, entreguei minha vida...
JONAS:- Ocê num quis... num quis sê minha... Por quê,
Cigana, por quê?
CIGANA:- Quantas vezes,
meu amigo, quantas vezes eu tive vontade... Aquela vez na cachoeira... eu vi
que você me via...
JONAS:- E eu num sabia que era sonho ou se era
verdade...
CIGANA:- Mas se eu me
entregasse... o sonho da Terra da Lua Branca morria... e você, Jonas, morria
também...
JONAS:- Mas meu sonho era ocê... Cigana... Lua...
Jacira... Num existe outra terra... num existe...
CIGANA:- Eu sabia,
Jonas... eu sei... Eu inventei a Terra da Lua Branca... porque ela seria o fogo
da sua vida... Meu marido... o cigano... me chamava de Lua... Lua Branca...
porque minha pele clara...
JONAS:- Na cachoeira, eu vi... eu vi uma lua no céu e
uma lua na água... E era ocê...
CIGANA:- Me perdoa, meu
amigo, me perdoa... Por te amar tanto... tantas paixões deixei pelas
estradas...
JONAS:- E eu sofria comigo em meu coração... Eu tinha
prometido... num pudia te cobrá nada... E cada vez que...
CIGANA:- Não... não
fale... deixe que eu fale de meus pecados... de tantos amores que pedia o
corpo... pelas estradas de Minas... em Alfenas...
JONAS:- O dotô Adelino...
CIGANA:- Em Três
Pontas...
JONAS:- O “seu” Samuel...
CIGANA:- Não... não vou
te torturar mais...
JONAS:- Ocê foi sempre minha... no meu coração... num
posso perdoá um pecado que não teve... Nos caminho que nóis percorreu, ficou o
nosso passado... Eu te amo... Ocê vai saí daqui e nóis vamo nos casá...
CIGANA:- Tarde demais,
Jonas... tarde demais... Ouça: são tiros? É o nosso tempo que está morrendo...
Ora-pro-nobis...
JONAS:- Ora-pro-nobis? Por que ora-pro-nobis,
Cigana?...
CIGANA:- Porque não há
futuro... não pra nós, Jonas... Você me faz um favor? Quero ouvi-lo cantar...
JONAS (pegando o violão):- Ocê qué ouvi a primeira música que eu cantei
pr’ocê, o Luar do Sertão?
CIGANA:- Não, Jonas, eu
quero ouvir Lua Branca (4)... mas só
o finzinho... a última estrofe...
(Jonas afina o violão, solfeja algumas notas
para encontrar a última estrofe da canção).
JONAS:- “E ela a chorar, a soluçar, cheia de pejo
vinha em seus lábios me ofertar um
doce beijo
Ela partiu, me abandonou assim
ó lua branca, por quem és? Tem dó
de mim!”
(Jonas termina a música, tateia o corpo da
Cigana, das mãos até o rosto, e delicadamente fecha-lhe os olhos. Ao fundo,
surge, imensa, a lua cheia).
fim
MÚSICAS DA PEÇA - INFORMAÇÕES GERAIS, LETRAS ETC.
1. Luar do Sertão:
canção de Catulo da Paixão Cearense. Acompanhamento de Antenógenes Silva (solo
de acordeon) e Rogério Guimarães e seu conjunto. Odeon - 12247/ A. Grav. 1/42.
Lanç.: 1/43. Matriz: 7090. Moraes Neto. (*)
Não há, ó gente, ó não
luar como esse do sertão!
Ó que saudade
do luar da minha terra
lá na serra prateando
folhas secas pelo chão!
Esse luar
cá da cidade, tão escuro
não tem aquela saudade
do luar lá do sertão
Se a lua nasce
por detrás da verde mata
mais parece um sol de prata
prateando a solidão
A gente pega
na viola que ponteia
e a canção é a lua cheia
a nos nascer do coração
Coisa mais bela
neste mundo não existe
do que ouvir-se um galo triste
no sertão se faz luar!
Parece até
que a alma da lua, que descanta
escondeu-se na garganta
desse galo a soluçar.
2.Caminhemos: canção
de Herivelto Martins. RCA 110.000-B. Nelson Gonçalves.
Não, eu não posso lembrar que te amei,
Não, eu preciso esquecer que sofri,
Faça de conta que o tempo passou
E que tudo entre nós terminou
E que a vida não continuou, pra nós dois
Caminhemos, talvez nos vejamos depois
Vida comprida, estrada alongada
Parto à procura de alguém
Ou à procura de nada
Vou indo, caminhando, sem saber onde chegar
Quem sabe na volta te encontre no mesmo lugar.
3. Lua Branca:
canção (da revista “Forrobodó”) de Francisca Gonzaga, com piano por J.
Otaviano. Odeon - 10420/A. Grav.: 4/29. Lanç.: 7/29. Matriz: 2521-1. Gastão
Formenti. (*)
Ó lua branca, de fulgores e de encanto!
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo
vem tirar dos olhos meus o pranto
Ai, vem matar essa paixão que anda comigo!
Ai, por quem és? Desce do céu, ó lua branca!
Essa amargura do meu peito, ó vem, arranca!
Dá-me o luar da tua compaixão
Ó vem, por Deus, iluminar meu coração!
E quantas vezes lá no céu me aparecia
a brilhar em noite calma e constelada
A sua luz então me surpreendia
ajoelhado junto aos pés da minha amada
E ela a chorar, a soluçar, cheia de pejo
vinha em seus lábios me ofertar um doce beijo
Ela partiu, me abandonou assim
Ó lua branca, por quem és? Tem dó de mim!
4. Serra da Boa
Esperança: Lamartine Babo. RCA - grav.109.0103. Matriz: 61637815. Francisco
Alves.
Serra da Boa Esperança, esperança que encerra
No coração do Brasil um punhado de terra
No coração de quem vai
No coração de quem vem
Serra da Boa Esperança, meu último bem
Parto levando saudades
Saudades deixando
Murchas caídas na Serra
Lá perto de Deus
Ó minha Serra, eis a hora do adeus
Vou-me embora
Deixo a luz do olhar no teu luar
Adeus!
5. Seresta do
Norte: canção de Renê Bittencourt, com violões. Victor - 34739/B. Grav.:
3/41. Lanç.: 5/41. Matriz: 52159. Augusto Calheiros. (*)
Esta canção que inicio em serenata
eu dedico àquela ingrata
que a saudade faz lembra
E através deste luar tão prateado
violão fica a meu lado
e acompanha o meu cantar
Ó lua cheia
só tu sabes o tormento
de quem ficou no esquecimento
Sê solidária com a seresta
Abre o teu luar em festa
Diminui meu sofrimento.
6. Sinhá Maria:
canção de Renê Bittencourt, com violões. Victor - 34739/B. Grav.: 3/41. Lanç.:
5/41. Matriz: 52159. Orlando Silva. (*)
Nosso Senhor me perdoa
essa descrença magoada
Tive uma vida tão boa
Hoje não creio em mais nada!
Não canto mais ladainha
Não faço mais oração
Até a crença que eu tinha
fugiu do meu coração
Porque
não foste justo outro dia
vindo buscar Sinhá Maria
a santa do meu altar!
Talvez
Tu não pensaste em maldade
e que mais tarde a saudade
vinha me desesperar
Nosso Senhor, que tristeza
quando eu regresso à tardinha!
Debruço e choro na mesa
lembrando a vida que eu tinha
Minha choupana vazia
com a porta aberta pra trás
não sabe que Sinhá Maria
não volta mais , nunca mais!
Perdão!
Volve pra mim Teu olhar
Só Tu me podes vingar
o que a saudade me fez...
Por Deus
escuta, Nosso Senhor!
Manda do céu, por favor
Sinhá Maria outra vez!
7. Amargura:
canção de Eduardo Souto. Com Orchestra Copacabana - Odeon: 10944/A. Lanç.:
1932. Matriz: 4511. Jayme Vogeler. (*)
Se da saudade o sofrimento
que é cruel
não te tortura o coração
feito de fel
concede ao menos o alento
por favor
a quem perdeu toda a ilusão
do teu amor
(do teu amor)
Não te comove por ventura
o meu cantar
esta amargura, este penar?
A dor de um pobre coração
que vem humilde suplicar
o teu perdão nesta canção
Parece até este sofrer
este penar
tristonho despertar de um sonho
Vem acalmar esta aflição
a minha dor
Faz voltar ao coração o amor
Feliz então reviverá
minha ilusão
e o sonho tornará risonho
E verei a sorrir
nosso amor, nosso amor
reflorir
8. Festa Iluminada:
canção de Gomes Filho, com conjunto de Benedito Lacerda. Colúmbia - 55339/b.
Lanç.: 1942. Matriz: 510-1. Castro Barbosa. (*)
Quero beijar a alma do Sol
Sentir a vida em plena luz
Trago nos olhos o arrebol
de uma aleluia que seduz
Pelas campinas tão louçãs
a terra é loura floração
E os passarinhos nas manhãs
vibram, cantando, o coração...
Olho um bando de sabiás
nas moitas onde o orvalho
suspirou a perolar
Lembra os teus olhos azuis
um casal de sanhaçus
E o sol dos teus cabelos
da cor do ouro mais fulvo
põe um brilho neste olhar
Louro é o raio da esperança
E tu és, loura criança
a Vida em festa a iluminar
9. Melhor Amor:
canção de Joubert de Carvalho, com Orchestra Victor Brasileira. Victor -
33715/A. Grav.: 7/32. Lanç.: 11/32. Matriz: 65368. Albenzio Perrone. (*)
.
Não foi assim que te ensinei, não foi
o amor que diz felicidade
Aquele que nos dá prazer, nos faz chorar
O amor melhor, o mais sincero, é a saudade
O amor-saudade eu te juro
é de todos o mais puro
porque é recordação
que faz bem ao coração
É a lembrança de um passado
que nos volta com esplendor
Saudade é o melhor amor
10. Lua Cheia:
canção de Angelino de Oliveira, com seu Grupo Verde-Amarelo. Columbia 8186/B.
Lanç.: 1936. Matriz: 3213. Paraguassu. (*)
A lua cheia
quando nasce em minha terra
é uma fogueira muito grande
atrás da serra...
O astro divino, rei do luar
vai prateando a natureza
sem cessar
Juro por Deus
que não resiste
um coração bem triste
da viola uma canção
quando a lua vem à terra
e vem beijando a serra
do meu sertão
E é tanta a luz
pelo sertão verde, espalhada
que a noite linda
se confunde à madrugada...
E a lua sumido, sob um céu de anil
sente saudade do sertão
do meu Brasil
11. Canção da
Noite: tango-canção de Pedro Sá Pereira e Lamartine Babo, com
acompanhamento da Orchestra Rádio-Central. Odeon 10214/B. Lanç.: 8/2/28. Matriz: 1674. Francisco Alves. (*)
A cidade dorme um sono alado
e para o céu meu ser está voltado
Doce mistério então flutua e a lua
sonhar parece num passado
Penso num amor, cruel, tristonho
Ó que penar sofri dentro de um sonho!
Essa natureza cheia de tristeza
um triste e frio olhar eu ponho
Ó se Deus me desse
esse poder de assistir
do céu a noite quando desce!
E lá no azul eu viveria a sorrir
sem mais sofrer de amor
No convívio doce das estrelas a brilhar
talvez fugisse a minha dor
Pobre de mim querendo assim
o céu e as graças do Senhor
se sou um triste pecador!
Nesse sono imenso da cidade
vejo, ó sim, sutil serenidade
Doce mistério então flutua e a lua
parece rir da humanidade
Todo o firmamento a ofuscar
depõe o olhar nas mágoas desse mundo
E a natureza presa de tristeza
por nós sentindo um dó profundo
12. Vingança:
canção regional de José Maria de Abreu e Francisco Mattoso, com Orchestra
Victor Brasileira. RCA Victor - 34044/A. Grav.: 3/35. Lanç.: 4/36. Matriz:
79845-1. Gastão Formenti. (*)
Lá na bera do roçado
onde a tristeza não vem
eu vivia assussegado
com a viola do meu lado
Mais feliz do que ninguém
Numa festa no arraiá
vi dois óio me oiá
Decidi no improviso
Ela me deu um sorriso
e comigo foi morá
Nunca mais fui cantadô
e a viola descansô
Eu vivia pra caboca
Eu vivia pra caboca
Só pensava em meu amô
Nunca fui feliz assim!
Eu mesmo disse pra mim
Pensei que a felicidade
Pensei que a felicidade
não pudesse tê um fim
Mas um dia a marvada
foi-se embora e me esqueceu
Com um caboco decidido
Juca Antônio, conhecido
Cantadô mais do que eu
Já cansado de chorá
eu saí a procurá
a caboca que um dia
levou minha alegria
Eu jurei de me vingá!
Numa festa fui cantá
e a mulata tava lá
Juro por Nossa Senhora
Juro por Nossa Senhora
que a caboca eu quis matá
Mas fiquei sem respirá
quando vi ela dançá
Ela tava tão bonita
Ela tava tão bonita
que esqueci de me vingá
13. Lua nova:
canção de Francisco Alves. Acompanhamento do Grupo Odeon. Odeon 10341/A. Grav.:
9/28. Lanç.: 3/29. Matriz: 1982. Francisco Alves.(*)
Quando surgiste, que encantamento
na minha alcova todo taful!
Pensei que a lua nesse momento
tinha caído do céu azul
Vinhas de branco! Teu véu ao vento
mais parecia sonho ou visão!
Quando surgiste, que encantamento!
Bateu, cá dentro, meu coração!
Pela janela, transparecia
a lua cheia, a lua nova
Muito espantada vendo a alegria
que transbordava da minha alcova
Foi uma noite, apenas uma
Não mais volveste ao ninho em flor
O leito branco da cor da espuma
chora saudoso do nosso amor
A minha alcova imersa em bruma
emudecida depois ficou...
Foi uma noite, apenas uma!
Foi uma noite que já passou!
Pela janela, eu vejo agora
a lua branca, a lua nova
muito espantada fitar de fora
toda a tristeza da minha alcova!
(*)Canções e
informações extraídas dos CDs RVCD-062 e RVCD-095, No Tempo da Seresta, volumes 1 e 2, do selo Revivendo Músicas
Comércio de Discos Ltda. - Rua Barão do Rio Branco, 28/36 - 2 andar -
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Isaias Edson Sidney
São Paulo, 8 de abril de 1996.
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