sábado, 24 de abril de 2021

HERDEIROS

 

(Escultura de Javier Marín)

CENA 1 “Prólogo”

 CENÁRIO: praça enorme e vazia, com um banco, algumas árvores desfolhadas e destroços espalhados (pneus, pedaços de automóveis, jornais, latas etc.) Desolação. Ao fundo, visão de uma grande cidade. Luzes acendem-se aos poucos e um foco acompanha a entrada do Profeta, com o andar arrastado e um saco às costas. Chega até o proscênio, perscruta todo o cenário e coloca o saco sobre o banco.

PROFETA: - Que vazio! Parece que cheguei cedo. O mundo parece vazio. A praça... onde estão todos? Por que não vêm? A noite já desceu... um novo ano se aproxima... logo será meia-noite... ou não? (Despeja o conteúdo do saco no chão, com barulho: panelas, talheres, pedaços de pau e um embornal de onde retira um frango já depenado). Bom! Aqui estou eu. Espero ou começo a preparar tudo? (Joga o frango numa panela e coloca-a sobre alguns pedaços de pau a que ameaça pôr fogo). Não, vou é descansar um pouco. Pôr em ordem os meus pensamentos. (Senta-se ao banco, leva a mão à cabeça, como se sentisse algo). Engraçado, às vezes essa pequena dor me traz lembranças. Ou será a chegada de um novo ano... o sentimentalismo das festas de Natal... a cara de bobo comovido que a gente tem de fazer para contentar o espírito caridoso das pessoas... seu repentino espírito de solidariedade humana... com data marcada... Não sei, só sei que isso tudo me traz imagens ... às vezes claras, às vezes envoltas em fumaça ... Rostos, rostos de pessoas que parecem gostar de mim... uma mulher... nem feia nem bonita... simpática. Um casal de velhos ... sorridentes... olham para mim com ternura.... Será que eu, que só vejo o presente à minha volta, que às vezes pressinto o futuro das pessoas, será que já tive um passado? Como todo mundo? Será que já fui objeto da ternura, da ternura verdadeira, de alguém? Vejo crianças... ou jovens, sei lá. Oh! vida! Eu, o Profeta, que tantas vezes consegue ver e sentir o que vai no interior das pessoas... eu... não tenho respostas para as minhas visões! Vida... vida que tresloucada vem aos borbotões, em rios, em ondas de loucuras.... Ouço o alarido de cães. Ouço tiros... ou serão apenas fogos, fruto de minha imaginação? Ando pelas ruas e as pessoas são como fantasmas de um tempo que não mais pertence a mim. Eu também não sou desse tempo. Mas, quem sou eu?  Um mendigo a exigir caridade alheia? Um monstro sem passado a conviver com cães e ratos nos esgotos da cidade? Um visionário a sonhar realidades que só existem em meu cérebro louco? Por que não têm respostas as minhas indagações? Maldito o deus que me fez assim! Malditos, mil vezes malditos aqueles rostos verdes que assombram meus sonhos e permanecem incógnitos! Quem são vocês, desgraçados? O que têm a ver com a minha vida? Deixem-me! Deixem-me em paz!

  

(Silêncio. O Profeta, com a cabeça entre as pernas, parece chorar. Um barulho de latas começa a vir de longe e, aos poucos, do fundo do palco vem surgindo a figura do Napoleão).

  

NAPOLEÃO: - Profeta! Ô Profeta! É você que está aí? Sou eu, Profeta, o seu amigo Napoleão... (Já mais próximo). Olha, trouxe a bebida pra nossa ceia. E das boas! Não foi fácil, mas consegui. Nessa época todo mundo enche a cara, mas quando alguém como nós vai pedir uma garrafa de pinga ou até mesmo de vinho, só recebe sermão. Tá todo mundo com espírito de Natal. Quero lá saber de espírito de Natal? Quero é dar uma lambadinha numa boa pinga... ou o espírito do vinho... (Rindo, senta-se ao lado do Profeta). Que foi, Profeta? Aquela dor de novo? Vamos lá, meu velho, anime-se, isso passa, como sempre.... Olha, o pessoal já deve estar vindo aí. Ouvi dizer que a Vera Doida tem uma surpresa para nós... o que será, heim, heim? Adoro surpresa!

PROFETA: - Tá tudo bem, Napoleão. Já passou.... Vamos ver o que temos aí. (Pega as garrafas das mãos de Napoleão e examina-as). Muito bem, parecem ótimas... E o resto do pessoal? Já estão atrasados, não?

NAPOLEÃO: - Não, ainda é cedo.... Já devem estar chegando...

  

CENA 2 ‘REUNIÃO’

  

(Profeta e Napoleão começam a preparar a fogueira e os demais utensílios para o “banquete”. Do fundo do palco, o alarido de vozes e passos denuncia a aproximação dos demais: Vera Doida, M.Bovary, Jasão, Doutor. Vêm alegres e logo estão em torno do Profeta e Napoleão).

  

NAPOLEÃO: - Olha aí o pessoal. Eu não disse que eles já vinham?

PROFETA: - Bem-vindos, irmãos. Aproximem-se para a grande ceia, vamos, venham logo!

NAPOLEÃO: - Espero que tenham trazido o combinado.

  

(O grupo já está próximo. Cumprimentam-se efusivamente e cada um começa a mostrar seus “troféus”).

 

JASÃO: - Aqui está o prometido: arroz e farofa. E farofa da boa. Descolei de um restaurante famoso. O garçom é meu amigo.

DOUTOR: - E eu, gente, olha só o que eu trouxe: uma porção de frutas. Bananas, laranjas, melancia e até uvas. Uvas italianas. Um feirante amigo meu, gente finíssima, descolou para mim.

 M. BOVARY: - Legal, Doutor, legal, mas vocês ainda não viram nada! Olha só o que eu consegui: uma bela torta de frango! E não foi caridade não. Eu mesma é que fiz!

 NAPOLEÃO: - Você?! Você fez? Não acredito!

 

M. BOVARY: - Claro! Sou uma ótima cozinheira. É que nem sempre tenho ingredientes...

JASÃO: - Mas onde foi que você conseguiu o frango?...E os demais ingredientes?

M. BOVARY: - Bom, a verdade é que o frango eu ...ó! (Faz com a mão o gesto de furto). Agora, os demais ingredientes...

JASÃO: - Não importa, você fez e acabou, não é mesmo, pessoal?

TODOS: - Claro! Isso aí! Legal!...

 NAPOLEÃO: - Ei pessoal! E a Vera Doida? Deixem a Vera Doida mostrar o que ela trouxe. Ouvi dizer que é uma bela surpresa...

TODOS (para Vera Doida, que estava quieta até então): - Mostra! Mostra! Mostra!

  

(Vera Doida vai para o centro do grupo em passos vagarosos, levando algo nas duas mãos, coberto por um pano branco. Todos se juntam, curiosos. Lentamente, ela levanta o pano e mostra o seu “troféu”).

  

M. BOVARY: - Fios de ovos, gente... fios de ovos... não acredito!...

TODOS: - Oh! Puxa! Caramba! Legal!...

M. BOVARY: - Ela conseguiu! Ela conseguiu! Viva a Vera Doida!

TODOS: - Viva! É a maior! É a maior! (Cercam-na, abraçam-na, beijam-na).

JASÃO: - Foi você quem fez, Vera Doida? Como conseguiu? Conta pra gente...

NAPOLEÃO: - Deixa de ser bobo, Jasão. Ela morre, mas não diz. Deixa pra lá. Vamos lá, pessoal, vamos nos organizar...

  

(O grupo se divide para realizar várias tarefas: improvisar um pequeno fogão com tijolos, uma mesa com dois pneus velhos e uma porta; panelas, pratos de alumínio e talheres surgem dos diversos sacos e embornais dos mendigos, principalmente da vara do Napoleão. Enquanto fazem tudo isso, trocam poucas palavras, quase todas ininteligíveis. Quando tudo está pronto, sentam-se ao redor da mesa improvisada, tendo o Profeta no centro, ladeado pelas duas mulheres e pelos demais.... Começam a comer.)



CENA 3 “CHEGADA DO PALHAÇO”

 

 (Os mendigos estão comendo e bebendo. Murmuram palavras de satisfação, ao passarem a garrafa ou alguma comida uns para os outros. Ao fundo, passa um bloco “carnavalesco” de figuras grotescas: demônios, monstros, bailarinas com máscaras de bruxas, pierrôs com feições deformadas, figuras, enfim, que parecem saídas de um quadro de Bosch. Cantam baixinho, num murmúrio, o “Ô abre alas”, de Chiquinha Gonzaga, sob a indiferença dos mendigos. Quando terminam de passar, no centro do palco está a figura do Palhaço, estática, olhando o “banquete”).

  

JASÃO (levantando-se com a garrafa na mão, caricatamente solene): - Proponho, ó meus queridos amigos, um brinde à barriga de nosso companheiro Napoleão que, depois de um longo e tenebroso inverno, volta a manifestar a satisfação das vísceras de um verdadeiro burguês...

NAPOLEÃO: - É.… é isso mesmo... minha grande barriga não via um banquete assim desde... desde... sei lá quando.... Portanto, brindemos...

  

(Todos erguem pratos, garrafas, panelas ou o que têm às mãos. Gritam vivas, riem, felizes e distraídos).

  

PROFETA (subindo no banco e ameaçando fazer um discurso): - Meus irmãos...

DOUTOR: - Deixa disso, Profeta. Nada de sermão... vamos só comer...

 M. BOVARY: - Isso mesmo, nada de palavra, hoje...

  

(Todos falam ao mesmo tempo, tentando dissuadir o Profeta).

  

PROFETA: - Mas, meus irmãos, eu só queria falar da excelência desse vinho...

 TODOS: - Sim, é isso mesmo, viva o vinho!

 PROFETA: - Sim, viva o vinho! ...

 TODOS: - Viva!

 PROFETA: - In vino veritas...

 DOUTOR: - Profeta... Profeta... deixa o latim em paz e beba...

 JASÃO: - Desce daí, Profeta... ainda vai acabar caindo e latindo...

  

(O Profeta vira-se para descer do banco e dá de cara com o Palhaço. Fica um instante estático, tempo suficiente para que todos, pouco a pouco se virem também e o vejam. Estupefação. O Palhaço olha-os, com um sorriso congelado na cara. Então, num repente, através de algumas piruetas, o Palhaço está no meio deles).

  

PALHAÇO (mexendo nas panelas, saltitando para todos os lados): - Então, o que temos aqui? Comida... hum, parece boa; bebida, puxa... vinho de primeira.... Como é, não me convidam para comer também? É assim que tratam as visitas? Ah! Já sei... é uma festa íntima... só entre amigos... e vocês não me conhecem. Ora, ora, ora, quem não conhece o Palhaço? Será que os senhores e as senhoras, aliás todos muito distintos, diga-se de passagem, será que nunca foram a um circo? Nunca me viram? Sou o Palhaço, amigo de todos, aquele que só traz alegria onde chega... E então, não me convidam?... Também estou faminto...

 PROFETA (quando todos parecem recuperar-se da surpresa): - Quem é você?

 TODOS: - É isso mesmo, quem é você, o que faz aqui?...

 PALHAÇO: - Ah! Querem uma apresentação formal? Pois não... (Faz uma mesura e algumas piruetas). Distinto público, com vocês o Palhaço (outras piruetas) ... que sou eu... eu, o grande Palhaço do Grã Circo da Vida...

  

(Quebra-se o gelo: Todos começam a rir, alguns aplaudem, as mulheres aproximam dele, tocam-no, comentam coisas entre si, procuram uma vasilha para lhe dar comida.... Enfim, todos parecem satisfeitos com a chegada do Palhaço. Ele senta-se entre eles descontraído, brinca com um ou outro e começa a comer como se já os conhecesse há muito tempo. Recompõe-se a cena do banquete, agora com a presença do Palhaço. Enquanto comem, ao fundo desfila um pequeno batalhão de soldados em marcha “passo de ganso”. Param um instante no meio do palco e viram-se para frente, mostrando máscaras de caveiras no rosto. Os mendigos continuam alegremente sua festa).

  

CENA 4 “VERA DOIDA”

  

(Todos comem, compenetrados, num semicírculo).

  

JASÃO (limpando a boca na manga da camisa): - Ufa! Eta sopa gostosa! Até me lembra uma vez que passei uns tempos num orfanato...

 PROFETA: - Orfanato? Você era órfão, Jasão? Que história é essa?

 VERA DOIDA: - Para com isso, Jasão!

 JASÃO: - Não, eu não era órfão.... Ou era? Sei lá! Eu já era grandão assim. É que eu fiz amizade com uns moleques e eles me levaram pra lá.... As freiras me empregaram como jardineiro... por uns tempos... em troca de comida. De noite eles... eles, não... elas, as freiras serviam uma sopa pras crianças...

 VERA DOIDA: - Mentira! Você só está falando isso para me provocar...

 PROFETA: - Tinha muita criança lá, Jasão?

  

(Vera Doida pára de comer e olha fixamente para Jasão. Vai-se levantando aos poucos, enquanto ele fala).

  

JASÃO: - E não? Se era um orfanato, num havera de ter criança? Tinha um monte.... De tudo quanto é tipo... pretinhas... moreninhas... loirinhas... criança, muita criança. Tinha um loirinho lá, um molequinho de nada, de uns cinco, seis anos... era o capeta... mas gostava de mim, que só vendo... Vivia atrás de mim, me aporrinhando. (Imita voz infantil). Tio Jasão, esconde minha bola? Tio Jasão, limpa meu sapato? E era tio pra lá, tio pra cá... o moleque não me dava sossego. E até que eu também gostava um bocado daquele molequinho...

 VERA DOIDA (levantando-se): - Mentira! Você não pode fazer isso comigo, Jasão!

 JASÃO: - Tinha muita criança lá, sim!

 VERA DOIDA: - Não, para, não...

 JASÃO: - Criança, sim, criança... criança... muita criança!...

 VERA DOIDA: -  Criança... criança... não... criança... não... sim... sim...criança ... minha história... minha vida...Gente, lembrei... minha vida ... meu... meu... meu filho! Eu ... eu... eu tenho um filho! Gente, lembrei, eu tenho um filho.... Espere... eu era gente, também, eu era gente, eu sou.… eu sou gente.... Ouçam.... Vejam...

  

(No canto do palco, a iluminação destaca duas figuras femininas sentadas num sofá, vendo tevê).

  

VERA DOIDA: - Ora, Mãe, eu acho que estou fazendo o certo.... Não sou mais jovem. Luisinho está crescendo, sente falta de uma figura masculina mais constante, mais próxima...

 MÃE: - Ocê que sabe, sua alma sua palma. Eu lavo as mãos. A vida é sua. Mas eu acho que ele não é o homem ideal para você.

 VERA DOIDA: - Homem ideal! Lá vem a senhora com essa história de homem ideal. O que é homem ideal? Diz...

 MÃE: - Ah! O Israel, aquele sim, era o homem perfeito para você...

 VERA DOIDA: - Só tinha um probleminha, né Mãe? Era casado; era, não: é! E com um monte de filhos...

 MÃE: - Mas que simpatia... que doçura de homem...

 VERA DOIDA: - Deixa disso, mãe: cai na real. Ele nunca ia deixar a mulher e os filhos por minha causa...

 MÃE: - É pena... muita pena...

  

(Apagam-se as luzes dessa cena ao mesmo tempo em que se acendem as luzes de um praticável, no alto, iluminando só o rosto da noiva e do padre).

  

PADRE: - Agora você, minha filha. Leia o seu compromisso matrimonial.

 NOIVA: - Recebo diante de Deus este homem para meu marido. E prometo amá-lo e respeitá-lo, na alegria e na tristeza, na pobreza e na riqueza, sendo-lhe fiel até o último de nossos dias.

  

(A luz ilumina totalmente a noiva: percebe-se, então, que ela está vestida apenas com um longo véu. Terminada a leitura, ela simula colocar uma aliança no dedo do homem inexistente a seu lado, enquanto o padre os abençoa. Em seguida, atira-se do praticável, sendo recolhida numa rede por homens de negro que a levam para fora do palco. O foco de luz destaca Vera Doida e o noivo. Ele está no alto de outro praticável, no lado oposto do palco. É barrigudo, caricatamente barrigudo e segura na mão esquerda uma garrafa, enquanto brande na direita uma bíblia).

 

VERA DOIDA: - Você! É você, seu desgraçado?

 NOIVO: - Não fale assim comigo, sua... sua...

 VERA DOIDA: - Vai, diz... diz o que você está pensando, seu bêbado maldito!

 NOIVO: - Sua vagabunda, sua puta de beira de estrada!

 VERA DOIDA: - Me xinga, seu bêbado, me xinga! Foi sempre a única coisa que você soube fazer direito: me xingar!

 NOIVO: - Olha aqui, Vera Doida: você sabe que eu te amava...

 VERA DOIDA: - Amava! Amava porra nenhuma. Você só amava essa garrafa. Bêbado... bêbado e carola.... Quando bebia, ficava agarrado aí nessa bíblia.... Se me amasse, não tinha escondido de mim essa bebedeira... Desgraçado... E ainda usava a bíblia como desculpa pra me bater.... Maldito! Mil vezes maldito!

 NOIVO: - Tá... tá... tá... eu te dei uns tapas uma vez ou duas, mas nunca destratei o teu filho...

 VERA DOIDA: - Meu filho! Não fala nele, seu filho da puta! Você... você ...

  

(Só um foco de luz sobre Vera Doida, que se atira no chão. Nesse momento, soa bem alto o barulho de uma batida de carro, alarido de vozes, em que se sobressai a voz de Ver Doida).

  

VERA DOIDA (na gravação): - Meu filho... onde está meu filho... Socorro.... Me ajudem a tirar meu filho...

  

(Vozes, sirenes, brecadas de carro).

  

VERA DOIDA (na gravação): - Me ajuda, gente... me ajuda a acordar ele.... Não! Não! Meu filho... meu...filho...

  

(O som pára de repente. Um instante de silêncio. O foco está em Vera Doida, que se levanta aos poucos. Sua fisionomia volta ao alheamento de sempre. Começa a despir uma a uma as várias saias de seu vestuário, até chegar à última, branca, de cujo bolso retira uma foto. Mostra-a a cada um dos mendigos, recolhe as roupas e vai saindo lentamente do palco, ao som da música “Folhas ao Vento”, na voz de Gastão Formenti. Os mendigos dançam ao som da música, alguns de forma séria, outros de forma caricata. Quando a música termina, Vera Doida está de volta ao grupo, com as mesmas roupas e o mesmo ar alheado de sempre. Todos retomam alguma atividade, como reacender o fogo, varrer, estender os panos para dormir etc.).

 

 

CENA 5 ‘DELÍRIO DO PROFETA’

  

 (Há uma certa modorra no ar. Todos estão alimentados e pouco dispostos a fazer qualquer coisa. Sentados ou recostados em torno da fogueira, ouvem com alguma atenção a conversa meio arrastada entre o Profeta e o Doutor).

  

PROFETA: - Não, meu caro Doutor, não existem mistérios no mundo. Os homens, nós é que inventamos mistérios e deuses para explicar ou tentar explicar aquilo que ainda não entendemos...

 DOUTOR: - Eu é que não te entendo, Profeta, você vive citando palavras da bíblia e age como um daqueles pregadores que a gente encontra no centro da cidade, e agora vem com um discurso de ateu? Pra mim, isso já é um mistério...

 PROFETA: - E exemplifica bem o que eu acabo de te dizer: como você não entende o que se passa na minha cabeça, que me leva a ter atitudes absolutamente contraditórias, você acha que é um mistério. Aliás, eu também não entendo o que se passa comigo. Só que de vez em quando me vem essa dor aguda na cabeça, esse mal-estar e tudo em volta parece mudar para um outro tempo e eu, eu não consigo dominar as emoções nem as palavras que saem da minha boca....

 DOUTOR: - Você precisava é de um médico...

 PALHAÇO: - Eu acho que você é louco.

 PROFETA: - E gente como nós tem direito a médico? Deixa isso para conta dos nossos mistérios, não é mesmo, Doutor?

 PALHAÇO: - Mistério! Que nada, é doideira mesmo...

 PROFETA: - Meu amigo Doutor e vocês todos que estão aqui me ouvindo... você também, Palhaço, que se juntou a nós nessa noite, não acham que parece haver algo estranho no ar? Já é mais de meia-noite, acho, e, portanto, um novo ano já começou ou está começando. No entanto, a cidade está quieta, não ouvimos, como nos outros anos, nem fogos nem gritos pela passagem do ano.... É estranho, muito estranho...

 

 (Neste momento, passa ao fundo um grupo de manifestantes de caras pintadas e roupas coloridas, portando cartazes com diversos símbolos e desenhos absolutamente incompreensíveis. Passam pulando e “gritando” e batendo bumbos enormes, mas não se ouve nenhum som. O Profeta leva as mãos à cabeça e suas feições mudam para um breve esgar de dor. Então, ele retoma seu discurso, agora num outro tom, mais solene, mais profético).

  

PROFETA:- Ouçam: as escrituras, as sagradas escrituras falam de reis e profetas... de batalhas... de lutas pelo poder e conquistas... O povo, o povo talvez desde sempre... o grande ausente... coadjuvante no grande teatro... da história...como nós, aqui, entrecortando nossos lamentos, nossas histórias, com as migalhas caídas das mesas dos ricos... Desde que os homens criaram seus deuses, esses mesmos deuses criados pelo homem tomaram as rédeas da história e têm castigado os homens por suas misérias e pecados...Ai, minha cabeça... Infelizes, os homens: miseráveis, por precisarem de deuses... Esquecem-se de que tudo na vida é inútil... Tudo é loucura de nossa mente louca...Ó tempos,  tempos de grotescas figuras... de dores e sofrimentos inúteis... Somos todos descendentes de um mesmo mal ou dos mesmos demônios... Ouvi-me vós todos: o momento de revelações espantosas está chegando! Não! Não vos atemorizeis: o castigo será apenas o início de eras e eras de purgação. Deixai que vossos corações aceitem as regras do grande jogo da vida e da morte. Dor, ó dor... (Ajoelha-se transtornado) não me abandone... permita que eu veja o fundo de cada coração... que não me atemorize o esgar de bocas famintas! Louco? Não, louco não: apenas o clarão de uma mente que vê além das formas! Ai! Não! Afastem-se... Deixem-me em paz.... Eu sei que sois os meus demônios..., mas não mais quero ver o que me angustia e atormenta... Saiam... saiam... deixem-me só... não quero ver… não quero...

  

(M. Bovary, que se aproximara do Profeta, toma-o pelos ombros e sacode-o violentamente.... Aos poucos, ele vai retomando a serenidade).

  

M. BOVARY: - Profeta! Vamos, acalme-se, vamos... Profeta! Chega...

 PROFETA: - Você... obrigado, amiga... obrigado... já passou...

 M. BOVARY: - Estamos aqui para ajudá-lo, Profeta. (Pausa). Por que todo esse sofrimento, meu amigo? Por que toda essa dor?

 PROFETA: - É a minha sina. Algo me toma por dentro.... Uma dor... uma quase não vida ... como uma possessão...

 M. BOVARY: - Eu sei, Profeta, eu sei. Todos temos nossas dores escondidas... Mas nem todos podemos ter as visões que você tem... Não conseguimos nem conseguiremos nunca nos livrar de nossos fantasmas, de nossos pecados, sejam eles falsos ou verdadeiros...

 PROFETA: - Você, minha amiga, sempre tão boa, sempre tão prestativa... Por que me fala de pecados? Não pode haver fantasmas ou demônios numa alma como a sua...

 

M. BOVARY: - Aí é que você se engana, meu amigo. Tenho guardado comigo há anos o meu amargor. Meu cálice de veneno esteve sempre cheio. Apenas não o deixei transbordar...

 PROFETA: - Sinto-te infeliz, minha amiga. Fico eu a remoer os meus males e esqueço-me de meus amigos. Vamos, coloque para fora a dor, o espanto de viver!

 M. BOVARY: - Quer mesmo saber? Talvez seja bom botar pra fora aquilo que causou a minha desgraça. Afinal, não somos todos atores nesse palco iluminado de luzes falsas, que é a vida? Vamos, todos vocês, meus amigos, vamos montar a peça da minha vida ou a peça que a vida me pregou. Você, Palhaço, não quer ser o apresentador da grande comédia de uma vida inútil?

 PALHAÇO (levanta-se, faz algumas piruetas e assume um tom solene): - Senhoras e senhores, o Grã Circo da Vida apresenta, de autoria de nossa grande amiga, Madame Bovári, o espetáculo UMA VIDA INÚTIL!

 M. BOVARY: - Aproximem-se Todos! Vamos ao espetáculo!

 

 

CENA 6 ‘M. BOVARY’

 

 

(Figuras vestidas de negro e mascaradas aprontam rapidamente um palco no centro da cena. Os mendigos sentam-se em semicírculo. Luzes sobre o palco improvisado. M.Bovary despe as roupas costumeiras e veste um belo vestido que lhe estendem das coxias. Um ator sobe ao palco. Usa terno elegante, europeu. Fala com sotaque francês, carregando os erres).

  

M. BOVARY: - Caro Antoine, desde a morte de mamãe, há mais de cinco anos, que não volto ao Brasil. Não podíamos passar lá nossas férias?

 MARIDO: Impossível, querida. A empresa está abrindo uma filial na Alemanha e não poderei tirar férias esse ano. Quem sabe, no próximo?

 

M. BOVARY: - Mas eu não sei se vou aguentar esperar tanto... estou morta de saudade do Brasil, dos meus irmãos... Lá, agora, é verão, e você sabe como me sinto deprimida com o inverno... Preciso de um pouco de sol, de praia...

 MARIDO: - Olha, por que você não vai sozinha?

 M. BOVARY: - Sozinha?

 MARIDO: - Sim, por que não? Afinal, deverei estar mais na Alemanha do que na França, nas próximas semanas... E eu sei que você não gosta muito da Alemanha... Assim...

 M. BOVARY: - Oh! Meu amor, prometo a você que voltarei do Brasil com as baterias recarregadas. Poderemos, então, pensar em realizar o nosso velho sonho...

 MARIDO: - O nosso filho? Você acha que já está pronta?

 M. BOVARY: - Sim, e você também... não seria ótimo?

 MARIDO: - Claro, claro... uma criança completaria nossa felicidade. Mas, como...

 M.BOVARY: - Não, não diga nada... deixe por minha conta...

  

(Abraçam-se e beijam-se apaixonadamente. As luzes se apagam lentamente. Quando voltam a acender-se, o cenário é de um baile carnavalesco, com figuras estranhas e indefinidas sexualmente, pulando e dançando, sem qualquer som, tendo M. Bovary como centro. Isso dura alguns instantes, até que todas as figuras se “congelam” numa pose grotesca. Apagam-se as luzes. Retoma-se a cena de M. Bovary e o marido).

  

MARIDO (brandindo uma fita de vídeo na mão): - Não interessa quem mandou essa fita! Você nega que esteve nesse baile? Nega?

 M.BOVARY: - Não, não é isso... eu estive nesse baile, sim... mas não foi o que você está pensando...

 MARIDO: - Eu não estou pensando nada... eu vi, apenas vi, essas imagens... indecen... chocantes... e você... você no meio de todas essas... esses gays... Você me prometeu nunca mais...

 M. BOVARY: - Eu sei, eu sei... mas não houve nada, eu juro... pela alma de minha mãe... Nós...

 MARIDO: - Chega! Não posso admitir isso... é uma vergonha! Você... não, não posso perdoar isso nunca... Você rompeu nosso trato...  

 

 (Neste momento, homens de negro e usando capuzes pontudos e negros entram em cena, colocam o marido sobre os ombros e levam-no. Somente um foco de luz sobre M. Bovary que, com gestos lentos, despe o seu belo vestido e veste o uniforme roto de um asilo de loucos. Aproxima-se dela outra detenta, com um pequeno embornal na mão).

  

LOUCA: - E então, minha amiga, está pronta para fugir?

 M. BOVARY: - Sim, sim, depois desses anos todos, é a nossa oportunidade! Vamos...

 LOUCA: - Mas você não vai levar nada?

 M. BOVARY: - Não, já estou levando muito ... dentro do meu peito... dor, vergonha, traição... você sabe...  Já lhe contei mil vezes minha história...

 LOUCA: - Sim, eu sei... Mas nunca vou entender como seus irmãos e seu pai, seu próprio pai, puderam fazer isso com você...

 M. BOVARY: - Dinheiro, minha cara, o dinheiro explode a cabeça das pessoas...  Quando perceberam que podiam ficar com o dinheiro que eu receberia se me separasse de Antoine, fizeram toda aquela armação... E eu, idiota, confiei neles... Acreditei que tinha uma família, que eles estavam com pena de mim, que me dariam a mão... Sim, deram a mão, a mão que rouba, a mão que trai...  Mas deixemos o passado, já está quase na hora combinada... E você, o que leva aí?

 LOUCA: - Apenas as minhas lembranças... você sabe... e o livro que tantas vezes você lia para mim, já faz parte da minha vida, não posso deixá-lo...  

 M. BOVARY: - Está certo... vamos, e que a sorte nos acompanhe.

 

 (Dão-se as mãos e saem de cena. Todas as luzes se acendem, expondo o cenário original, com todos os mendigos sentados ao cão, enquanto homens de negro desmancham o pequeno palco. Ouvem-se, simultaneamente, ruídos de tiros, gritos, sirenes etc. Após um instante de silêncio, M. Bovary volta lentamente ao convívio dos mendigos, já vestida com suas roupas habituais e trazendo o pequeno embornal de sua amiga louca).

  

PROFETA: - E o que aconteceu com sua amiga? Onde ela está?

  M.BOVARY: - O que aconteceu? Foi tudo muito simples, rápido e ... doloroso. Eu consegui fugir, mas minha amiga, não. Foi baleada. Antes de morrer, deixou-me seu bem mais precioso... (Retira o livro M. BOVARY do embornal).

 PROFETA: - Esse livro... o que tem de tão especial?

 M.BOVARY: - Isso já é uma história complicada... O que eu posso lhe dizer é que, desde que cheguei naquele asilo, fiquei muito amigo dessa mulher. Sua vida daria um romance. Quando lhe vinham as crises de depressão e de agonia, ela gostava de ler esse livro, parece que ele a acalmava, mas seus óculos de leitura se quebraram e como ninguém se preocupou em lhe dar outros, eu passei a lê-lo para ela, já que era a única que sabia ler francês...

 PROFETA: - Mas... e o seu nome, minha amiga?...

 M. BOVARY: - É... não tem nada a ver...  passaram a me chamar assim por causa do cuidado que eu tinha com o livro...

 PROFETA: - Mas... o seu nome... o seu verdadeiro nome...

 M.BOVARY: - Meu nome? Quem o sabe? Já o perdi há muito tempo, quando perdi Antoine, quando perdi minha vida, minha identidade. Por que não pode ser M. Bovary ou Bovári quem já foi Maria ou Teresa ou João ou Antônio?...

 

 

CENA 7 “ENTREATO 1”

 

 (Forma-se uma roda em torno de M. Bovary, com exceção de Vera Doida e o Profeta, que se sentam a distância. O Palhaço também permanece longe do grupo, tentando, no entanto, ouvir a conversa).

  

JASÃO: - Acho que você não devia ter se aberto tanto... afinal, são coisas muito pessoais...

M.BOVARY: - Porra, Jasão! Você é um grande filho da puta. Me provocou com aquela merda toda de criança, e agora vem me aporrinhar?

 JASÃO: - Eu esqueci... me desculpe...

 M.BOVARY: - Desculpe, desculpe... não vou te perdoar nunca... você é ridículo, sabia?

 JASÃO: - Espere aí. Não sou o único culpado aqui. Estão acontecendo coisas estranhas...

 DOUTOR: - É verdade. Até o Profeta está achando tudo muito esquisito. Esse silêncio...

 JASÃO: - É, mas a Bovári aí não achou nada estranho contar sua vida para estranhos...

 M. BOVARY: - Vá à merda, Jasão. Foi até bom, sabia? Eu precisava mesmo pôr tudo pra fora. Estava engasgado aqui...

 JASÃO: - Mas na frente de estranhos? Precisava, precisava?

 NAPOLEÃO: - Estranhos? Nós? Ninguém aqui é estranho...

 JASÃO: - Não estou falando de nós...

  DOUTOR: - O Palhaço? Ora, é apenas um Palhaço...

 JASÃO: - Não sei, não. Esse cara é muito esquisito, ainda mais com essa cara pintada...

 M. BOVARY: - Vocês estão desviando o assunto, seus bostas. Ficam aí me criticando e agora querem botar a culpa num panaca pintado qualquer...

 JASÃO: - Não é isso, não é isso...

 DOUTOR: - Acho que Jasão está certo. Estão acontecendo coisas nesta noite que eu não estou entendendo... Todos ouviram o que o Profeta disse.

 M. BOVARY: - Deixa disso, gente. Tá todo mundo ficando é meio biruta... Se eu falei sobre a minha vida foi porque quis...

 JASÃO: - É, mas a gente sempre se juntou aqui todo começo de ano há não sei quanto tempo já, e nunca aconteceu nada parecido... Sempre foi só bebida, comida, conversa fiada, não tinha esse troço de ficar mexendo com o passado, não.

 DOUTOR: - É verdade! Ninguém aqui tem passado. Chega desse papo. Vamos...  

  

(O Palhaço aproxima-se, com uma garrafa na mão).

  

PALHAÇO: - Ei pessoal, que baixo astral, pô... Vejam, ainda tem bebida... vamos beber, ficar alegres, esquecer as tristezas...

  

(A garrafa passa de mão em mão).

 

 PALHAÇO: - Sentem-se, sentem-se... Vou lhes contar umas histórias. Afinal, para que serve um Palhaço? O que vocês preferem? Uma história triste ou alegre? Não importa, uma história é sempre uma história. Vamos lá! Era uma vez um jovem, filho de uma família abastada de uma bela cidade do interior. Esse jovem era filho único. Sua mãe...    

  

 

CENA 8 ‘DOUTOR’

 

 (O som de catracas marca a entrada da Mãe. Vem sobre um andor carregado por quatro homens vestidos de túnicas e capuzes vermelhos. Seguem-na figuras de negro. A Mãe traz um terço numa mão e um chicote na outra. Seu vestido é longo. Usa uma máscara (triste) sobre o rosto. A procissão pára no centro do palco, na frente do Palhaço. Os mendigos sentam-se um pouco afastados, um tanto assustados. A Mãe fala com voz monocórdia).

  

MÃE: - Bom dia, meu filho!

 PALHAÇO: - Bom dia, minha Mãe. A sua bênção.

 MÃE: - Deus te abençoe. Já escovou os dentes?

 PALHAÇO: - Sim, minha Mãe.

 MÃE: - Lavou o rosto, meu filho?

 PALHAÇO: - Sim, minha Mãe.

 MÃE: - Passou o remédio na cabeça?

 PALHAÇO: - Sim, minha Mãe!

  

(Som de catracas).

 

 MÃE: - Boa tarde, meu filho!

 PALHAÇO: - Boa tarde, minha Mãe. A sua bênção.

 MÃE: - Deus te abençoe, meu filho. Já almoçou?

 PALHAÇO: - Sim, minha Mãe.

 MÃE: - Escovou os dentes, meu filho?

 PALHAÇO: - Sim, minha Mãe.

 

 (Som de catracas).

  

PALHAÇO: - Boa noite, minha Mãe. A sua bênção.

 MÃE: - Boa noite, meu filho. Deus te abençoe.

 PALHAÇO: - Já escovei os dentes, já tomei banho e já passei remédio na cabeça, minha Mãe.

 MÃE: - Muito bem, meu filho. Pode ir dormir.

 PALHAÇO: - Mãe...

 MÃE: - Sim, meu filho?

 PALHAÇO: - Onde está meu pai?

 MÃE: - Teu pai morreu, meu filho.

 PALHAÇO: - Quando, minha Mãe?

 MÃE: - Eras pequeno ainda...

 PALHAÇO: - Por que morreu meu pai, minha Mãe?

 MÃE: - Conto-te a história: dormi com teu pai apenas a primeira noite. Quando acordei, meu leito estava vazio e meu útero estava cheio. Nunca mais o vi.

 PALHAÇO: - Mas como morreu meu pai, minha Mãe?

 MÃE: - Alguns anos depois, de doença ruim, nos braços de uma prostituta.

  

(Neste momento, o Doutor se levanta, puxa um revólver e atira na Mãe, que apenas se imobiliza. Leva o revólver à cabeça, sempre coberta por panos e um chapéu. O Palhaço aproxima-se dele).

  

PALHAÇO: - Não, Doutor, não faça isso. Dê-me a arma.

 DOUTOR: - Eu... eu matei... matei minha Mãe!

 PALHAÇO: - Não seja idiota! Você matou, ou melhor, tentou matar apenas um fantasma que está em sua cabeça. Você atirou na sua memória.

 DOUTOR (aproximando-se da Mãe): - Minha Mãe, perdão. Mil vezes perdão!

 MÃE: - És tu mesmo, filho?

 DOUTOR: - Sim, minha Mãe. Sou eu. Teu filho. Veja.

  

(Tira o chapéu e desenrola os panos e mostra a cabeça toda deformada, com caroços horrendos).

  

MÃE: - Sim, és tu! Que fizeste de ti, meu filho?

 DOUTOR: - MÃE... onde está minha... minha mulher, Mãe?

 MÃE: - Tua irmã? Tua irmã está... Veja!

  

(Neste momento, entra ao fundo uma mulher empurrando um enorme carrinho de bebê coberto com um pano negro).

  

DOUTOR: - Minha esposa! Meu filho!

  

(Levanta o pano do carrinho. Foge com horror. Atira-se aos pés da Mãe, aos prantos, enquanto a mulher e o carrinho desaparecem do outro lado do palco).

  

DOUTOR: - Que fiz eu, minha Mãe? Por que criatura tão monstruosa é o meu filho?

 MÃE: - Pagas de teu pai todos os pecados.

 DOUTOR: - Por que chamou de irmã à minha esposa?

 MÃE: - Teu pai teve uma filha. Por ela abandonaste a faculdade. Com ela tiveste a criatura a quem chamas de monstruosa.

 DOUTOR: - Mas por quê? Por quê?

 MÃE: - Já trazias em ti a semente do mal que matou teu pai.

  

(O Doutor cai, em prantos, enquanto a procissão, batendo catracas e cantando ladainhas, se retira com a Mãe).

  

 

CENA 9 ‘ENTREATO 2’

 

 (Os mendigos juntam-se em torno do Doutor, para consolá-lo, com exceção do Profeta e do Palhaço).

  

PROFETA: - Por que isso tudo? Por quê?

 PALHAÇO: - Isso o quê, Profeta? Por acaso, não é você aquele que diz tudo saber?

 PROFETA: - Não, eu não sei nada. Chamam-me apenas Profeta, mas não sou o que Todos dizem.

 PALHAÇO: - Ora, ora, ora... temos agora um pouco de humildade.

 PROFETA: - Humildade? Que sabe você sobre humildade? Chegou não se sabe de onde, com esse riso sempre irônico na cara, sempre a zombar e a provocar...

 PALHAÇO: - Provocar? E quem provocou alguma coisa? O que sabe você sobre provocação? O seu passado? O que foi o seu passado?

 

PROFETA: - Cala-te, miserável! Não tenho passado! Somente sombras cobrem minha memória... Não queiras trazer luz a quem somente nas trevas sobreviveu!

 PALHAÇO: - Não, Profeta, não serei eu, um simples Palhaço, a acender qualquer luz... Já há luzes demais entre nós...

 JASÃO (aproximando-se): - De que luzes estão falando?

 PALHAÇO: - Luzes, Jasão, luzes que iluminam vidas que não podiam ser iluminadas.

 PROFETA: - Não te metas com ele, Jasão. Já não chega o que ele fez com o Doutor?

 JASÃO: - E eu lá tenho medo desse diabo de cara pintada, Profeta? Deixa comigo...

 PALHAÇO: - Ora, ora, ora, mais um a escorregar para dentro de si! Vamos lá, Jasão. O que temos aí?

 JASÃO: - Nada, seu cretino, nada! Suas palavras são ouro de tolo. Nada valem para mim.

 PALHAÇO: - Muito bem, seu Jasão. Já que você diz que minhas palavras são ouro de tolo, que tal buscarmos juntos o ouro verdadeiro?

 PROFETA: - Cuidado, Jasão! Cuidado com esse...

 PALHAÇO: - Tarde demais, Profeta. Jasão agora não mais pertence a si... pertence à sua memória. Veja!

  

 

CENA 10 ‘JASÃO’

  

(Os mendigos afastam-se, enquanto Jasão, como um autômato, dirige-se ao fundo do palco, onde troca suas roupas maltrapilhas por um terno colorido e brilhante. Aproximam-se figuras vestidas de branco ou de preto, todos extremamente sóbrios e formais).

 

 

FIGURA 1: - És o novo técnico?

 JASÃO: - Sim, sou eu.

 FIGURA 2: - Teu currículo é excelente.

 FIGURA 3: - Sim, faculdades americanas, experiência comprovada...

 FIGURA 2: - Cala-te. Não fales ainda.

 JASÃO: - Também para aqui me recomendaram. Espero...

 FIGURA 1: - Sim, ouçamos primeiro o Chefe.

 CHEFE (entrando de forma pomposa e também vestido como os demais. Destaca-o apenas uma coroa na cabeça): - Jasão da Silva! Nome forte e sobrenome nobre! Vens em busca do teu velocino de ouro? 

 JASÃO: - Não, Chefe. Trago o meu velocino para vos servir.

 CHEFE: - És inteligente, Jasão! Confia em mim e serás o que eu sou!

 FIGURA 1: - Mas Chefe, ele é tão diferente!

 FIGURA 2: - Nunca será como nós!

 FIGURA 3: - Nem poderá ser como és!

 FIGURA 1: - Sim, diferente... muito diferente!

 JASÃO: - Não, não sou diferente. Apenas as vestes que trago, de longas tradições de meu povo, é que são diferentes. Posso despi-las e vestir-me como vós...

 FIGURA 1: - Não, não basta que te vistas como nós. És diferente até mesmo sob as vestes com que te enfeitas!

 CHEFE: - Caros colaboradores: na diferença estará o crescimento de todos. Conto com o bom senso de vós para a glória de nossa Companhia. (Retira-se, pomposo).

 FIGURA 1: - Diferente! Que nojo!

 FIGURA 2: - De nada valem teus títulos, pois um dia tu farás a cagada que sempre fazem os que são diferentes!...

 FIGURA 3: - E aí, então, nós te expeliremos de nosso convívio. Diferente nojento!

 JASÃO: - Mas o Chefe...

 FIGURA 1: - Esquece o Chefe. O Chefe apenas manda, mas nós, nós é que fazemos.

 FIGURA 2: - E fazemos o que queremos.

 FIGURA 3: - E nós não te queremos aqui.

 JASÃO: - Por quê? Por quê?

 FIGURA 1: - Ora, por quê! Porque és diferente.

 FIGURA 2: - Sim, diferente! Que nojo!

 FIGURA 3: Nojento! Sujo! Diferente!

  

(As três figuras se lançam sobre Jasão. Despem-no, erguem-no e jogam-no para fora da cena. Retiram-se acompanhando um grupo de encapuzados que passam em marcha, conduzindo cruzes de fogo).

 

  

CENA 11 ‘ENTREATO 3’

  

PROFETA: - Maldito! Por que retiras das sombras o teu ódio? O que tens contra o presente para remexeres o passado?

 PALHAÇO: - Acalme-se, Profeta! Não sou eu quem busca o passado.

 M.Bovary (aproximando-se ameaçadoramente do Palhaço): - É verdade que você abriu o inferno da cabeça do Jasão e... e de todos nós? É verdade? Fala, miserável!

 PALHAÇO: - Ora, ora, ora... Todos contra mim? Só porque não pertenço ao clube?

 DOUTOR: - Canalha!

  

(Vera Doida tenta agredir o Palhaço, que corre lépido, fazendo micagens).

  

JASÃO (vindo do fundo do palco, já com suas vestes normais): - para... parem com isso... o Palhaço não tem culpa... ele é apenas...

 PROFETA: - Apenas? Apenas o quê, Jasão?

 DOUTOR: - Apenas o demônio, é isso o que ele é.

 JASÃO: - Não, não! Vocês não estão entendendo nada...

 DOUTOR: - Então, explica, Jasão. Vamos explica...

 VERA DOIDA: - Porra, que explica que nada. Vamos expulsar logo esse mascarado de nosso meio. Vamos meter o pé na bunda desse maldito...

 PROFETA: - Não! Não podemos mais fazer isso, é tarde demais!

 NAPOLEÃO: - Tarde demais, Profeta? O que é tarde demais?

 PROFETA: - Já não somos mais donos de nossas vidas. É preciso que bebamos o cálice até o fim, por mais amargo que ele seja!

 PALHAÇO: - Sim, bebamos a taça. (Gargalha). Já não precisamos de meias palavras! Ao passado! Ao passado! (Ergue uma vasilha qualquer, como num brinde).

 NAPOLEÃO: - Chega, Palhaço! Você não sabe o que diz!

 PALHAÇO: - Sei, sei sim, Napoleão! Tanto sei que cobro de você, agora, a sua quota! O que me diz?

 NAPOLEÃO: - Não sou o Profeta, mas prevejo em ti não a maldição, mas, quem sabe, nosso próprio verme a corroer a carne que virou o que somos...

 PALHAÇO: - Bonitas palavras, Napoleão! Quem diria, heim? Você... que tal nos dizer o que o trouxe até aqui? Heim? Heim? Vamos, conte!

 NAPOLEÃO: - Não tenho história a contar, Palhaço! Tenho apenas mágoa, mágoa profunda...

  

 

CENA 12 ‘NAPOLEÃO’

  

(Somente uma luz sobre Napoleão. Os demais se afastam. Do fundo, um som de música, vozes, risos aproximam-se aos poucos. Arma-se um baile. Enquanto se acendem as luzes, uma das bailarinas chega até Napoleão e tira-o para dançar).

  

BAILARINA: - Sinto-te preocupado, meu querido.

 NAPOLEÃO: - Preocupado talvez não seja a palavra exata. Estou é assustado

 BAILARINA: - Compreendo-te: deve assustar-te o poder que terás. Mas tens o apoio de todos e, acima de tudo, tens o poder da tua capacidade.

 NAPOLEÃO: - Enganas-te quando dizes que tenho o apoio de todos. Há forças imensas contra as quais não sei se estou preparado para lutar.

 BAILARINA: - Quando sentires que as forças diminuem, pensa em mim, meu querido, e pensa em nossos filhos. Sempre te apoiaremos. E seremos para ti o oásis de tua resistência.

 NAPOLEÃO: - Sim, sim, mil vezes sim. Em ti e nos nossos filhos buscarei as forças para vencer.

  

(Neste momento a música pára e todos os dançarinos se reúnem em torno de Napoleão. Ouvem-se vivas, gritos de satisfação. Todos o abraçam e comemoram com brindes. A música volta a tocar cada vez mais alta, enquanto todos dançam alegremente. De repente tudo escurece e silencia. Apenas um foco em Napoleão, no centro do palco. Os mendigos aproximam-se dele lentamente).

  

PROFETA: - Napoleão, Napoleão! Você está bem?

 VERA DOIDA: - Que merda, Napoleão. Sai dessa, vamos, reaja.

 DOUTOR: - É isso aí, tudo foi um sonho, não foi?

 NAPOLEÃO (voltando aos poucos ao normal): - Sonho? Não, meu caro Doutor, não foi um sonho, foi um pesadelo.

 JASÃO: - O baile? Um pesadelo, o baile, a festa? Como? Por quê?

 VERA DOIDA: - Sim, por quê? Uma porra de festa tão bonita!

 NAPOLEÃO: - Não, a festa não. O que aconteceu depois.

 PALHAÇO: - Não precisas dizer o que aconteceu depois... Talvez nem mesmo tu te lembres bem!

 PROFETA: - E o que sabe você, Palhaço? Diga: o quê?

 PALHAÇO: - Sei, não porque prevejo coisas, mas porque conheço a vida.

 VERA DOIDA: - Aí vem esse idiota pintado com um monte de merda para enganar vocês mais uma vez!

 PROFETA: - Talvez você tenha razão, Vera Doida. Mas é preciso ouvi-lo. Vamos, Palhaço, conte: o que você sabe?

 PALHAÇO: - Só contarei se Napoleão permitir. Posso dizer tudo o que sei, Napoleão?

 NAPOLEÃO: - Não... não sei... o que você sabe? Não me lembro de nada. Só sei que há um pesadelo rondando minha memória... um pesadelo...

 PALHAÇO: - Teus amigos, Napoleão. Não te lembras deles?

 NAPOLEÃO: - Amigos? Amigos?! Não tive amigos... apenas olhos imensos a cobiçar...

 PALHAÇO: - Sim, já disseste tudo. Calo-me. Não mereces mais que a tua pouca lembrança. (Mudando o tom). Descansemos, amigos. A noite vai alta. Outro dia se aproxima e, quem sabe, com ele vem a esperança?

 PROFETA: - Sim, o Palhaço tem razão. Foi uma longa noite...

 PALHAÇO: - Que ainda não terminou, embora.

 PROFETA: - Como? O que dizes?

 PALHAÇO: - Nada, nada... Ora, ora... vamos descansar, estou exausto.

  

(Todos se ajeitam para dormir. As luzes se apagam lentamente, realçando ao fundo a silhueta da cidade. Somente um foco sobre o Profeta, que logo adormece).

  

 

CENA 13 ‘PROFETA’

  

(O palco está vazio, só o Profeta dorme um sono agitado. O som de um bumbo ritmado vem crescendo de algum lugar. São soldados com máscaras verdes de demônios. Aproximam-se do Profeta).

  

POLICIAL 1: - É ele?

 POLICIAL 2: - Sim, ele mesmo.

 POLICIAL 1: - Peguem-no e amarrem-no.

  

(Os soldados agarram o Profeta, amarram-no e arrastam-no para o centro do palco. Colocam-no num “pau-de-arara”).

  

POLICIAL 1: - Ele está acordado?

 POLICIAL 2: - Sim, ele está acordado.

 POLICIAL 1: - Chame o Comandante. Diga-lhe que o prisioneiro está pronto para o interrogatório.

  

(Policial 2 sai e volta com o Comandante. Os soldados perfilam-se e batem continência).

  

POLICIAL 1: - Companhia apresentando-se, Senhor.

 COMANDANTE: - Companhia, descansar! É este o prisioneiro, Soldado?

 POLICIAL 1: - Sim, Comandante!

 COMANDANTE: - Ele está acordado, Soldado?

 POLICIAL 1: - Sim, Comandante.

 COMANDANTE: - Prisioneiro! Qual é o teu nome?

 PROFETA: - Não...não sei...

 COMANDANTE: - Soldado! Disseram que o prisioneiro estava pronto para o interrogatório. O que está acontecendo?

 POLICIAL 1: - É que ele resistiu, Comandante.

 COMANDANTE: - É preciso que ele confesse. Chame o Algoz.

 

 (Soldado sai e volta com o Algoz).

  

COMANDANTE: - O prisioneiro não quer cooperar. Faça-o falar.

  

(O Algoz tortura o Profeta).

  

COMANDANTE: - Qual é o teu nome, prisioneiro?

 PROFETA: - Não sei! Não sei!

  

(O Algoz torna a torturar o Profeta).

  

COMANDANTE: - Chega! Vamos mudar a tática! Soldado, dê-me o dossiê do prisioneiro.

 

(Policial 1 entrega-lhe uma prancheta).

 

 COMANDANTE: - Prisioneiro número 7.308. Acusações: pregar doutrinas exóticas, incentivar desobediência ao Estado, divulgar idéias revolucionárias tais como: igualdade entre todas as pessoas, fraternidade entre os povos e liberdade para os oprimidos etc., etc., etc. Chega! São acusações suficientes. O que você diz, Prisioneiro 7.308?

 PROFETA: - Nada... nada...

  

(O Algoz tortura o Profeta pela terceira vez. Ele desmaia).

  

COMANDANTE: - Não há que destruir a principal prova do crime... ainda! Deixemos o Prisioneiro 7.308 recuperar-se.

  

(Todos se retiram ao som do bumbo. Alguns instantes depois, entra o Palhaço).

  

PALHAÇO: - Profeta... Profeta... acorda! Estará morto? Não... ele não pode morrer... Não neste pesadelo! (Busca água e procura reanimar o Profeta). Ainda bem... não morreu...Vamos, Profeta, a chama do inferno queima, mas também reanima. Vamos, lute. Lutar é tudo quanto resta. Veja: sua família está aqui para ajudá-lo.

  

(Nesse momento, entram e param diante do Profeta: um casal de velhos, uma mulher e dois jovens. São pálidos e tristes. O Profeta olha-os longamente e eles se retiram).

  

PALHAÇO: - Viu, Profeta? São seus pais, sua mulher, seus filhos...

 PROFETA: - Sim, são eles... espectros, porém. Sombras... visões ... passado.

 PALHAÇO: - Sombras? Visões? Não compreendo, Profeta.

 PROFETA: - São visões de meus pecados, de minhas culpas...

 PALHAÇO: - Por que resistir e sofrer, Profeta? Por quê? Por quê?

 PROFETA: - Não resisto por mim... mas por eles, por aqueles que, como eu, são injustiçados...

 PALHAÇO: - Lute, Profeta. Mas lute pela sua vida. Chega de sofrimento. Diga, confesse, fale tudo o que eles querem ouvir!

 PROFETA: - Para quê? Eles já sabem tudo. Só resisto porque não há mais vida em mim. E é preciso ... é preciso deixar (tosse) ... deixar o exemplo... para os deserdados do mundo.

 PALHAÇO: - É inútil, Profeta. Outros tantos já lutaram, morreram e nada aconteceu.

 PROFETA: - Sim, Luther King... Guevara... e tantos, tantos outros... famosos ou anônimos... Mas a luta é feita do sangue de muitos mártires...

  

(Nesse momento, entram os demais mendigos e ajoelham-se diante do Profeta).

  

PROFETA: - Pelo menos no sonho, deixo um pouco do meu sofrimento para a redenção de meus amigos. Não morrerei, mas será como se estivesse morto. Não terei jamais a lembrança de quanto vivi, de quanto pressinto entre vós, meus amigos, a marca da tragédia.

 PALHAÇO: - Falas de mim, Profeta?

 PROFETA: - Sim, Palhaço. Vieste para desafiar o destino...

 PALHAÇO: - Que sabes de mim?... Diz...

 PROFETA: - Nada sei, apenas pressinto. E o que pressinto não é bom.

 PALHAÇO: - Horror?

 PROFETA: - Está em ti decidir o teu próprio inferno!

 PALHAÇO: - Não... não me acuses!

 PROFETA: - A ti? Acusar-te? Já não basta tua consciência?

  

(Nesse momento, figuras grotescas de demônios, monstros, bruxas, alguns conduzindo tochas e cruzes de fogo, cercam o grupo, numa louca coreografia ao som da Internacional, cujo som vai gradativamente aumentando até que um trovão e um raio desfazem a cena. Os mendigos resgatam o Profeta e colocam-no na posição em que adormecera. Retomam Todos os mesmos lugares, adormecidos e calmos. Começa a amanhecer).



CENA 14 ‘EPÍLOGO’

 

 

(Dois policiais aproximam-se do Palhaço. Colocam-se um de cada lado. O Palhaço acorda assustado).

  

PALHAÇO: - Quem são vocês? O que querem aqui?

 POLICIAL 1: - Você é João Alberto?... João Alberto Cruz?

 PALHAÇO: - Não, claro que não! Não estão vendo? Eu sou o Palhaço, apenas um Palhaço, um... um...

 POLICIAL 2 (segurando o Palhaço por trás): - Vamos logo, limpe a cara dele!

  

(O Policial 1 tira um lenço do bolso e começa a limpar, lentamente, a maquiagem do Palhaço. Tira-lhe a peruca).

  

POLICIAL 1: - É você mesmo, aqui está a fotografia... João Alberto...

 POLICIAL 2: - Você está preso!

 PALHAÇO: - Preso, eu?! Por quê? O que foi que eu fiz?

 PROFETA (Levantando-se): - O foi que ele fez, heim policial?...

 M. BOVARY (também se levantando): - É mesmo, o que foi que ele fez, diga, seu milico nojento!

 POLICIAL 1: - Olha aqui, nós estamos apenas cumprindo a lei. Vocês...

 JASÃO (levantando-se ameaçadoramente): - Cumprindo a lei!... (Cospe) que lei? Diga lá, que porra de lei vocês vieram cumprir aqui?

 NAPOLEÃO (também de forma ameaçadora): - Diga, seu polícia de merda, que lei?

  

(Todos os mendigos estão de pé e cercam os dois policiais. Assustados, eles sacam as armas).

  

POLICIAL 1: - Não se aproximem, se não eu atiro!

 POLICIAL 2: - Eu também! Afastem-se, vamos. Estamos apenas prendendo um fugitivo... um... um...

 MENDIGOS (em coro): - Um fugitivo? O que foi que ele fez?

 POLICIAL 1 (apontando a arma em direção ao Palhaço): - Parem! Ou eu mato esse Palhaço!

 JASÃO: - Mas você não disse o que ele fez!...

 MENDIGOS (aproximando-se lentamente dos policiais): - Soltem o Palhaço! Soltem o Palhaço!

 POLICIAL 2 (atira para o alto; os mendigos param e silenciam): - Se não pararem, eu vou começar a atirar pra valer!

 PROFETA: - Atira, satanás, o mal é a tua sina! Os povos de deus invocarão as sete pragas contra os ímpios!

 MENDIGOS: - Ímpios... ímpios... ímpios...

 POLICIAL 1: - Parem! Não queremos violência! Só vamos levar esse elemento. Ele é um assassino.

 PALHAÇO: - Eu?! Um assassino? Não! Eu sou bom. Eu nunca matei ninguém...

 POLICIAL 2: - Matou, sim... você matou...

 MENDIGOS: - Quem? Quem?

 POLICIAL 2: - Você... você matou... teus pais!

 PALHAÇO: - Meus pais? Eu? Eu nunca tive pais...

 POLICIAL 1: - Não negue, desgraçado!

 POLICIAL 2: - Sim, você matou seu pai... matou sua mãe...

 PALHAÇO: - Minha mãe!... Não...

 POLICIAL 1: - Sim... sim... e ainda matou tua mulher...

 POLICIAL 2: - E teu filho! Teu próprio filho!

 PALHAÇO (chorando): - Não... não... eu não matei... meu filho! Onde está meu filho?

 PROFETA: - Soam as trombetas do Apocalipse! A Besta está solta! O fim... o fim está próximo!

 PALHAÇO (desvencilha-se um pouco do policial que o segurava, escorregando-se para o chão): - Eu não matei ninguém! É tudo mentira!

 POLICIAL 1: - Sim, você matou friamente toda a sua família! Monstro! Não negue!

 PALHAÇO (ainda chorando): - Não... não... eu sou apenas o Palhaço!

 POLICIAL 2: - Não negue, você matou sim, matou a família... Você, João Alberto... João Alberto Cruz...

 PROFETA: - Cruz?! Ó Cruz de Cristo! Quem és tu, ó Palhaço?

 MENDIGOS: - Sim, quem és tu, ó Palhaço?

 PALHAÇO (de joelhos, ainda seguro pelo policial): - Eu... eu sou o Palhaço... o amigo de vocês... não, amigo não... eu sou o filho, o irmão... vocês são a minha família... os meus irmãos, os meus pais... as minhas mães... eu não sou o que estão dizendo... eu não matei... eu não matei... EU NÃO MATEI! (Chora).

 MENDIGOS (ameaçadores): - Não matarás! Não matarás! Não matarás!

  

(Os policiais estão cada vez mais assustados com a ameaça dos mendigos).

  

POLICIAL 1: - Parem!

  

(A um gesto do Profeta, os mendigos se calam).

  

PROFETA: - João... ou Palhaço... afinal, quem és tu? Mataste?

 PALHAÇO: - Profeta... (chora). Não vê, Profeta?... Eu sou o seu irmão, o seu filho, o seu...

 PROFETA: - Sim, irmão... tu és o nosso irmão... mais que irmão: nós somos de ti os... os herdeiros. Sim, nós somos os HERDEIROS... OS HERDEIROS DE TI QUE ÉS O NOSSO FILHO!

 MENDIGOS (cada vez mais ameaçadores, mais ensandecidos): - Os herdeiros... os herdeiros... os herdeiros... os herdeiros...

 PROFETA: - Nós somos os herdeiros... e você... e tu... tu és o assassino! Mas és também nosso irmão... nosso filho... NOSSO FILHO...

 MENDIGOS (fechando o círculo em torno dos policiais): - Nosso filho... assassino... nosso filho... assassino... nosso filho... assassino... nosso filho...

  

(Cai o pano, ao som de “Satisfaction” e de grande alarido de vozes e tiros).

 

 24.04.95

 

Isaias Edson Sidney

tel.(11) 5011-9628 

 

(Este texto foi escrito no período de 7/3/95 a 18/4/95, durante as aulas proferidas por Chico de Assis, no SEMDA - Seminário de Dramaturgia do Arena).

 

REGISTRO NA SBAT EM 1.10.94 – Nº 34.003

 

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