(Escultura de Javier Marín)
CENA 1 “Prólogo”
CENÁRIO: praça enorme e vazia, com um banco,
algumas árvores desfolhadas e destroços espalhados (pneus, pedaços de
automóveis, jornais, latas etc.) Desolação. Ao fundo, visão de uma grande
cidade. Luzes acendem-se aos poucos e um foco acompanha a entrada do Profeta,
com o andar arrastado e um saco às costas. Chega até o proscênio, perscruta
todo o cenário e coloca o saco sobre o banco.
PROFETA: - Que vazio! Parece
que cheguei cedo. O mundo parece vazio. A praça... onde estão todos? Por que
não vêm? A noite já desceu... um novo ano se aproxima... logo será
meia-noite... ou não? (Despeja o conteúdo
do saco no chão, com barulho: panelas, talheres, pedaços de pau e um embornal
de onde retira um frango já depenado). Bom! Aqui estou eu. Espero ou começo
a preparar tudo? (Joga o frango numa
panela e coloca-a sobre alguns pedaços de pau a que ameaça pôr fogo). Não,
vou é descansar um pouco. Pôr em ordem os meus pensamentos. (Senta-se ao banco, leva a mão à cabeça, como
se sentisse algo). Engraçado, às vezes essa pequena dor me traz lembranças.
Ou será a chegada de um novo ano... o sentimentalismo das festas de Natal... a
cara de bobo comovido que a gente tem de fazer para contentar o espírito
caridoso das pessoas... seu repentino espírito de solidariedade humana... com
data marcada... Não sei, só sei que isso tudo me traz imagens ... às vezes
claras, às vezes envoltas em fumaça ... Rostos, rostos de pessoas que parecem
gostar de mim... uma mulher... nem feia nem bonita... simpática. Um casal de
velhos ... sorridentes... olham para mim com ternura.... Será que eu, que só
vejo o presente à minha volta, que às vezes pressinto o futuro das pessoas,
será que já tive um passado? Como todo mundo? Será que já fui
objeto da ternura, da ternura verdadeira, de alguém? Vejo crianças... ou
jovens, sei lá. Oh! vida! Eu, o Profeta, que tantas vezes consegue ver e sentir
o que vai no interior das pessoas... eu... não tenho respostas para as minhas
visões! Vida... vida que tresloucada vem aos borbotões, em rios, em ondas de
loucuras.... Ouço o alarido de cães. Ouço tiros... ou serão apenas fogos, fruto
de minha imaginação? Ando pelas ruas e as pessoas são como fantasmas de um
tempo que não mais pertence a mim. Eu também não sou desse tempo. Mas, quem sou
eu? Um mendigo a exigir caridade alheia?
Um monstro sem passado a conviver com cães e ratos nos esgotos da cidade? Um
visionário a sonhar realidades que só existem em meu cérebro louco? Por que não
têm respostas as minhas indagações? Maldito o deus que me fez assim! Malditos,
mil vezes malditos aqueles rostos verdes que assombram meus sonhos e permanecem
incógnitos! Quem são vocês, desgraçados? O que têm a ver com a minha vida?
Deixem-me! Deixem-me em paz!
(Silêncio.
O Profeta, com a cabeça entre as pernas, parece chorar. Um barulho de latas
começa a vir de longe e, aos poucos, do fundo do palco vem surgindo a figura do
Napoleão).
NAPOLEÃO: - Profeta! Ô
Profeta! É você que está aí? Sou eu, Profeta, o seu amigo Napoleão... (Já mais próximo). Olha, trouxe a bebida
pra nossa ceia. E das boas! Não foi fácil, mas consegui. Nessa época todo mundo
enche a cara, mas quando alguém como nós vai pedir uma garrafa de pinga ou até
mesmo de vinho, só recebe sermão. Tá todo mundo com espírito de Natal. Quero lá
saber de espírito de Natal? Quero é dar uma lambadinha numa boa pinga... ou o
espírito do vinho... (Rindo, senta-se ao
lado do Profeta). Que foi, Profeta? Aquela dor de novo? Vamos lá, meu
velho, anime-se, isso passa, como sempre.... Olha, o pessoal já deve estar
vindo aí. Ouvi dizer que a Vera Doida tem uma surpresa para nós... o que será,
heim, heim? Adoro surpresa!
PROFETA: - Tá tudo bem,
Napoleão. Já passou.... Vamos ver o que temos aí. (Pega as garrafas das mãos de Napoleão e examina-as). Muito bem,
parecem ótimas... E o resto do pessoal? Já estão atrasados, não?
NAPOLEÃO: - Não, ainda é cedo....
Já devem estar chegando...
CENA 2 ‘REUNIÃO’
(Profeta
e Napoleão começam a preparar a fogueira e os demais utensílios para o
“banquete”. Do fundo do palco, o alarido de vozes e passos denuncia a
aproximação dos demais: Vera Doida, M.Bovary, Jasão, Doutor. Vêm alegres e logo
estão em torno do Profeta e Napoleão).
NAPOLEÃO: - Olha aí o
pessoal. Eu não disse que eles já vinham?
PROFETA: - Bem-vindos,
irmãos. Aproximem-se para a grande ceia, vamos, venham logo!
NAPOLEÃO: - Espero que tenham
trazido o combinado.
(O
grupo já está próximo. Cumprimentam-se efusivamente e cada um começa a mostrar
seus “troféus”).
JASÃO: - Aqui está o
prometido: arroz e farofa. E farofa da boa. Descolei de um restaurante famoso.
O garçom é meu amigo.
DOUTOR: - E eu, gente, olha
só o que eu trouxe: uma porção de frutas. Bananas, laranjas, melancia e até
uvas. Uvas italianas. Um feirante amigo meu, gente finíssima, descolou para
mim.
M. BOVARY: - Legal, Doutor,
legal, mas vocês ainda não viram nada! Olha só o que eu consegui: uma bela
torta de frango! E não foi caridade não. Eu mesma é que fiz!
NAPOLEÃO: - Você?! Você fez?
Não acredito!
M. BOVARY: - Claro! Sou uma
ótima cozinheira. É que nem sempre tenho ingredientes...
JASÃO: - Mas onde foi que
você conseguiu o frango?...E os demais ingredientes?
M. BOVARY: - Bom, a verdade é
que o frango eu ...ó! (Faz com a mão o gesto de furto). Agora, os demais
ingredientes...
JASÃO: - Não importa, você
fez e acabou, não é mesmo, pessoal?
TODOS: - Claro! Isso aí!
Legal!...
NAPOLEÃO: - Ei pessoal! E a
Vera Doida? Deixem a Vera Doida mostrar o que ela trouxe. Ouvi dizer que é uma
bela surpresa...
TODOS (para Vera Doida, que estava quieta até então):
- Mostra! Mostra! Mostra!
(Vera
Doida vai para o centro do grupo em passos vagarosos, levando algo nas duas
mãos, coberto por um pano branco. Todos se juntam, curiosos. Lentamente, ela
levanta o pano e mostra o seu “troféu”).
M. BOVARY: - Fios de ovos,
gente... fios de ovos... não acredito!...
TODOS: - Oh! Puxa!
Caramba! Legal!...
M. BOVARY: - Ela conseguiu!
Ela conseguiu! Viva a Vera Doida!
TODOS: - Viva! É a maior!
É a maior! (Cercam-na, abraçam-na,
beijam-na).
JASÃO: - Foi você quem
fez, Vera Doida? Como conseguiu? Conta pra gente...
NAPOLEÃO: - Deixa de ser
bobo, Jasão. Ela morre, mas não diz. Deixa pra lá. Vamos lá, pessoal, vamos nos
organizar...
(O grupo
se divide para realizar várias tarefas: improvisar um pequeno fogão com
tijolos, uma mesa com dois pneus velhos e uma porta; panelas, pratos de
alumínio e talheres surgem dos diversos sacos e embornais dos mendigos,
principalmente da vara do Napoleão. Enquanto fazem tudo isso, trocam poucas
palavras, quase todas ininteligíveis. Quando tudo está pronto, sentam-se ao
redor da mesa improvisada, tendo o Profeta no centro, ladeado pelas duas
mulheres e pelos demais.... Começam a comer.)
CENA 3 “CHEGADA DO PALHAÇO”
(Os
mendigos estão comendo e bebendo. Murmuram palavras de satisfação, ao passarem
a garrafa ou alguma comida uns para os outros. Ao fundo, passa um bloco
“carnavalesco” de figuras grotescas: demônios, monstros, bailarinas com
máscaras de bruxas, pierrôs com feições deformadas, figuras, enfim, que parecem
saídas de um quadro de Bosch. Cantam baixinho, num murmúrio, o “Ô abre alas”,
de Chiquinha Gonzaga, sob a indiferença dos mendigos. Quando terminam de
passar, no centro do palco está a figura do Palhaço, estática, olhando o
“banquete”).
JASÃO (levantando-se com a garrafa na mão,
caricatamente solene): - Proponho, ó meus queridos amigos, um brinde à
barriga de nosso companheiro Napoleão que, depois de um longo e tenebroso
inverno, volta a manifestar a satisfação das vísceras de um verdadeiro
burguês...
NAPOLEÃO: - É.… é isso
mesmo... minha grande barriga não via um banquete assim desde... desde... sei
lá quando.... Portanto, brindemos...
(Todos
erguem pratos, garrafas, panelas ou o que têm às mãos. Gritam vivas, riem,
felizes e distraídos).
PROFETA (subindo no banco e ameaçando fazer um
discurso): - Meus irmãos...
DOUTOR: - Deixa disso,
Profeta. Nada de sermão... vamos só comer...
M. BOVARY: - Isso mesmo, nada
de palavra, hoje...
(Todos
falam ao mesmo tempo, tentando dissuadir o Profeta).
PROFETA: - Mas, meus irmãos,
eu só queria falar da excelência desse vinho...
TODOS: - Sim, é isso
mesmo, viva o vinho!
PROFETA: - Sim, viva o
vinho! ...
TODOS: - Viva!
PROFETA: - In vino veritas...
DOUTOR: - Profeta...
Profeta... deixa o latim em paz e beba...
JASÃO: - Desce daí,
Profeta... ainda vai acabar caindo e latindo...
(O
Profeta vira-se para descer do banco e dá de cara com o Palhaço. Fica um
instante estático, tempo suficiente para que todos, pouco a pouco se virem
também e o vejam. Estupefação. O Palhaço olha-os, com um sorriso congelado na
cara. Então, num repente, através de algumas piruetas, o Palhaço está no meio
deles).
PALHAÇO (mexendo nas panelas, saltitando para todos
os lados): - Então, o que temos aqui? Comida... hum, parece boa; bebida,
puxa... vinho de primeira.... Como é, não me convidam para comer também? É
assim que tratam as visitas? Ah! Já sei... é uma festa íntima... só entre
amigos... e vocês não me conhecem. Ora, ora, ora, quem não conhece o Palhaço?
Será que os senhores e as senhoras, aliás todos muito distintos, diga-se de
passagem, será que nunca foram a um circo? Nunca me viram? Sou o Palhaço, amigo
de todos, aquele que só traz alegria onde chega... E então, não me convidam?...
Também estou faminto...
PROFETA (quando todos parecem recuperar-se da
surpresa): - Quem é você?
TODOS: - É isso mesmo,
quem é você, o que faz aqui?...
PALHAÇO: - Ah! Querem uma
apresentação formal? Pois não... (Faz uma
mesura e algumas piruetas). Distinto público, com vocês o Palhaço (outras piruetas) ... que sou
eu... eu, o grande Palhaço do Grã Circo da Vida...
(Quebra-se
o gelo: Todos começam a rir, alguns aplaudem, as mulheres aproximam dele,
tocam-no, comentam coisas entre si, procuram uma vasilha para lhe dar comida....
Enfim, todos parecem satisfeitos com a chegada do Palhaço. Ele senta-se entre
eles descontraído, brinca com um ou outro e começa a comer como se já os
conhecesse há muito tempo. Recompõe-se a cena do banquete, agora com a presença
do Palhaço. Enquanto comem, ao fundo desfila um pequeno batalhão de soldados em
marcha “passo de ganso”. Param um instante no meio do palco e viram-se para
frente, mostrando máscaras de caveiras no rosto. Os mendigos continuam alegremente
sua festa).
CENA 4 “VERA DOIDA”
(Todos
comem, compenetrados, num semicírculo).
JASÃO (limpando a boca na manga da camisa): -
Ufa! Eta sopa gostosa! Até me lembra uma vez que passei uns tempos num
orfanato...
PROFETA: - Orfanato? Você
era órfão, Jasão? Que história é essa?
VERA DOIDA: - Para com isso,
Jasão!
JASÃO: - Não, eu não era
órfão.... Ou era? Sei lá! Eu já era grandão assim. É que eu fiz amizade com uns
moleques e eles me levaram pra lá.... As freiras me empregaram como
jardineiro... por uns tempos... em troca de comida. De noite eles... eles, não...
elas, as freiras serviam uma sopa pras crianças...
VERA DOIDA: - Mentira! Você só
está falando isso para me provocar...
PROFETA: - Tinha muita
criança lá, Jasão?
(Vera
Doida pára de comer e olha fixamente para Jasão. Vai-se levantando aos poucos,
enquanto ele fala).
JASÃO: - E não? Se era um
orfanato, num havera de ter criança? Tinha um monte.... De tudo quanto é
tipo... pretinhas... moreninhas... loirinhas... criança, muita criança. Tinha
um loirinho lá, um molequinho de nada, de uns cinco, seis anos... era o
capeta... mas gostava de mim, que só vendo... Vivia atrás de mim, me
aporrinhando. (Imita voz infantil). Tio Jasão, esconde minha bola? Tio Jasão,
limpa meu sapato? E era tio pra lá, tio pra cá... o moleque não me dava
sossego. E até que eu também gostava um bocado daquele molequinho...
VERA
DOIDA
(levantando-se): - Mentira! Você não
pode fazer isso comigo, Jasão!
JASÃO: - Tinha muita
criança lá, sim!
VERA DOIDA: - Não, para, não...
JASÃO: - Criança, sim,
criança... criança... muita criança!...
VERA DOIDA: - Criança... criança... não... criança...
não... sim... sim...criança ... minha história... minha vida...Gente,
lembrei... minha vida ... meu... meu... meu filho! Eu ... eu... eu tenho um
filho! Gente, lembrei, eu tenho um filho.... Espere... eu era gente, também, eu
era gente, eu sou.… eu sou gente.... Ouçam.... Vejam...
(No
canto do palco, a iluminação destaca duas figuras femininas sentadas num sofá,
vendo tevê).
VERA DOIDA: - Ora, Mãe, eu acho
que estou fazendo o certo.... Não sou mais jovem. Luisinho está crescendo,
sente falta de uma figura masculina mais constante, mais próxima...
MÃE: - Ocê que sabe, sua
alma sua palma. Eu lavo as mãos. A vida é sua. Mas eu acho que ele não é o
homem ideal para você.
VERA DOIDA: - Homem ideal! Lá
vem a senhora com essa história de homem ideal. O que é homem ideal? Diz...
MÃE: - Ah! O Israel,
aquele sim, era o homem perfeito para você...
VERA DOIDA: - Só tinha um
probleminha, né Mãe? Era casado; era, não: é! E com um monte de filhos...
MÃE: - Mas que
simpatia... que doçura de homem...
VERA DOIDA: - Deixa disso, mãe:
cai na real. Ele nunca ia deixar a mulher e os filhos por minha causa...
MÃE: - É pena... muita
pena...
(Apagam-se
as luzes dessa cena ao mesmo tempo em que se acendem as luzes de um praticável,
no alto, iluminando só o rosto da noiva e do padre).
PADRE: - Agora você, minha
filha. Leia o seu compromisso matrimonial.
NOIVA: - Recebo diante de
Deus este homem para meu marido. E prometo amá-lo e respeitá-lo, na alegria e
na tristeza, na pobreza e na riqueza, sendo-lhe fiel até o último de nossos
dias.
(A luz
ilumina totalmente a noiva: percebe-se, então, que ela está vestida apenas com
um longo véu. Terminada a leitura, ela simula colocar uma aliança no dedo do
homem inexistente a seu lado, enquanto o padre os abençoa. Em seguida, atira-se
do praticável, sendo recolhida numa rede por homens de negro que a levam para
fora do palco. O foco de luz destaca Vera Doida e o noivo. Ele está no alto de
outro praticável, no lado oposto do palco. É barrigudo, caricatamente barrigudo
e segura na mão esquerda uma garrafa, enquanto brande na direita uma bíblia).
VERA DOIDA: - Você! É você, seu
desgraçado?
NOIVO: - Não fale assim
comigo, sua... sua...
VERA DOIDA: - Vai, diz... diz o
que você está pensando, seu bêbado maldito!
NOIVO: - Sua vagabunda,
sua puta de beira de estrada!
VERA DOIDA: - Me xinga, seu
bêbado, me xinga! Foi sempre a única coisa que você soube fazer direito: me
xingar!
NOIVO: - Olha aqui, Vera
Doida: você sabe que eu te amava...
VERA DOIDA: - Amava! Amava
porra nenhuma. Você só amava essa garrafa. Bêbado... bêbado e carola.... Quando
bebia, ficava agarrado aí nessa bíblia.... Se me amasse, não tinha escondido de
mim essa bebedeira... Desgraçado... E ainda usava a bíblia como desculpa pra me
bater.... Maldito! Mil vezes maldito!
NOIVO: - Tá... tá... tá...
eu te dei uns tapas uma vez ou duas, mas nunca destratei o teu filho...
VERA DOIDA: - Meu filho! Não
fala nele, seu filho da puta! Você... você ...
(Só um
foco de luz sobre Vera Doida, que se atira no chão. Nesse momento, soa bem alto
o barulho de uma batida de carro, alarido de vozes, em que se sobressai a voz
de Ver Doida).
VERA
DOIDA
(na gravação): - Meu filho... onde
está meu filho... Socorro.... Me ajudem a tirar meu filho...
(Vozes,
sirenes, brecadas de carro).
VERA
DOIDA
(na gravação): - Me ajuda, gente...
me ajuda a acordar ele.... Não! Não! Meu filho... meu...filho...
(O som
pára de repente. Um instante de silêncio. O foco está em Vera Doida, que se
levanta aos poucos. Sua fisionomia volta ao alheamento de sempre. Começa a
despir uma a uma as várias saias de seu vestuário, até chegar à última, branca,
de cujo bolso retira uma foto. Mostra-a a cada um dos mendigos, recolhe as
roupas e vai saindo lentamente do palco, ao som da música “Folhas ao Vento”, na
voz de Gastão Formenti. Os mendigos dançam ao som da música, alguns de forma
séria, outros de forma caricata. Quando a música termina, Vera Doida está de
volta ao grupo, com as mesmas roupas e o mesmo ar alheado de sempre. Todos
retomam alguma atividade, como reacender o fogo, varrer, estender os panos para
dormir etc.).
CENA 5 ‘DELÍRIO DO PROFETA’
(Há uma certa modorra no ar. Todos estão
alimentados e pouco dispostos a fazer qualquer coisa. Sentados ou recostados em
torno da fogueira, ouvem com alguma atenção a conversa meio arrastada entre o
Profeta e o Doutor).
PROFETA: - Não, meu caro
Doutor, não existem mistérios no mundo. Os homens, nós é que inventamos
mistérios e deuses para explicar ou tentar explicar aquilo que ainda não
entendemos...
DOUTOR: - Eu é que não te
entendo, Profeta, você vive citando palavras da bíblia e age como um daqueles
pregadores que a gente encontra no centro da cidade, e agora vem com um
discurso de ateu? Pra mim, isso já é um mistério...
PROFETA: - E exemplifica bem
o que eu acabo de te dizer: como você não entende o que se passa na minha
cabeça, que me leva a ter atitudes absolutamente contraditórias, você acha que
é um mistério. Aliás, eu também não entendo o que se passa comigo. Só que de
vez em quando me vem essa dor aguda na cabeça, esse mal-estar e tudo em volta
parece mudar para um outro tempo e eu, eu não consigo dominar as emoções nem as
palavras que saem da minha boca....
DOUTOR: - Você precisava é
de um médico...
PALHAÇO: - Eu acho que você
é louco.
PROFETA: - E gente como nós
tem direito a médico? Deixa isso para conta dos nossos mistérios, não é mesmo,
Doutor?
PALHAÇO: - Mistério! Que
nada, é doideira mesmo...
PROFETA: - Meu amigo Doutor
e vocês todos que estão aqui me ouvindo... você também, Palhaço, que se juntou
a nós nessa noite, não acham que parece haver algo estranho no ar? Já é mais de
meia-noite, acho, e, portanto, um novo ano já começou ou está começando. No
entanto, a cidade está quieta, não ouvimos, como nos outros anos, nem fogos nem
gritos pela passagem do ano.... É estranho, muito estranho...
(Neste
momento, passa ao fundo um grupo de manifestantes de caras pintadas e roupas
coloridas, portando cartazes com diversos símbolos e desenhos absolutamente
incompreensíveis. Passam pulando e “gritando” e batendo bumbos enormes, mas não
se ouve nenhum som. O Profeta leva as mãos à cabeça e suas feições mudam para
um breve esgar de dor. Então, ele retoma seu discurso, agora num outro tom,
mais solene, mais profético).
PROFETA:- Ouçam: as
escrituras, as sagradas escrituras falam de reis e profetas... de batalhas...
de lutas pelo poder e conquistas... O povo, o povo talvez desde sempre... o
grande ausente... coadjuvante no grande teatro... da história...como nós, aqui,
entrecortando nossos lamentos, nossas histórias, com as migalhas caídas das
mesas dos ricos... Desde que os homens criaram seus deuses, esses mesmos deuses
criados pelo homem tomaram as rédeas da história e têm castigado os homens por
suas misérias e pecados...Ai, minha cabeça... Infelizes, os homens: miseráveis,
por precisarem de deuses... Esquecem-se de que tudo na vida é inútil... Tudo é
loucura de nossa mente louca...Ó tempos,
tempos de grotescas figuras... de dores e sofrimentos inúteis... Somos
todos descendentes de um mesmo mal ou dos mesmos demônios... Ouvi-me vós todos:
o momento de revelações espantosas está chegando! Não! Não vos atemorizeis: o
castigo será apenas o início de eras e eras de purgação. Deixai que vossos
corações aceitem as regras do grande jogo da vida e da morte. Dor, ó dor... (Ajoelha-se transtornado) não me
abandone... permita que eu veja o fundo de cada coração... que não me atemorize
o esgar de bocas famintas! Louco? Não, louco não: apenas o clarão de uma mente
que vê além das formas! Ai! Não! Afastem-se... Deixem-me em paz.... Eu sei que
sois os meus demônios..., mas não mais quero ver o que me angustia e atormenta...
Saiam... saiam... deixem-me só... não quero ver… não quero...
(M.
Bovary, que se aproximara do Profeta, toma-o pelos ombros e sacode-o
violentamente.... Aos poucos, ele vai retomando a serenidade).
M. BOVARY: - Profeta! Vamos,
acalme-se, vamos... Profeta! Chega...
PROFETA: - Você... obrigado,
amiga... obrigado... já passou...
M. BOVARY: - Estamos aqui para
ajudá-lo, Profeta. (Pausa). Por que
todo esse sofrimento, meu amigo? Por que toda essa dor?
PROFETA: - É a minha sina.
Algo me toma por dentro.... Uma dor... uma quase não vida ... como uma
possessão...
M. BOVARY: - Eu sei, Profeta,
eu sei. Todos temos nossas dores escondidas... Mas nem todos podemos ter as
visões que você tem... Não conseguimos nem conseguiremos nunca nos livrar de nossos
fantasmas, de nossos pecados, sejam eles falsos ou verdadeiros...
PROFETA: - Você, minha
amiga, sempre tão boa, sempre tão prestativa... Por que me fala de pecados? Não
pode haver fantasmas ou demônios numa alma como a sua...
M. BOVARY: - Aí é que você se
engana, meu amigo. Tenho guardado comigo há anos o meu amargor. Meu cálice de
veneno esteve sempre cheio. Apenas não o deixei transbordar...
PROFETA: - Sinto-te infeliz,
minha amiga. Fico eu a remoer os meus males e esqueço-me de meus amigos. Vamos,
coloque para fora a dor, o espanto de viver!
M. BOVARY: - Quer mesmo saber?
Talvez seja bom botar pra fora aquilo que causou a minha desgraça. Afinal, não somos
todos atores nesse palco iluminado de luzes falsas, que é a vida? Vamos, todos
vocês, meus amigos, vamos montar a peça da minha vida ou a peça que a vida me
pregou. Você, Palhaço, não quer ser o apresentador da grande comédia de uma
vida inútil?
PALHAÇO (levanta-se, faz algumas piruetas e assume um
tom solene): - Senhoras e senhores, o Grã Circo da Vida apresenta, de
autoria de nossa grande amiga, Madame Bovári, o espetáculo UMA VIDA INÚTIL!
M. BOVARY: - Aproximem-se
Todos! Vamos ao espetáculo!
CENA 6 ‘M. BOVARY’
(Figuras
vestidas de negro e mascaradas aprontam rapidamente um palco no centro da cena.
Os mendigos sentam-se em semicírculo. Luzes sobre o palco improvisado. M.Bovary
despe as roupas costumeiras e veste um belo vestido que lhe estendem das
coxias. Um ator sobe ao palco. Usa terno elegante, europeu. Fala com sotaque
francês, carregando os erres).
M. BOVARY: - Caro Antoine,
desde a morte de mamãe, há mais de cinco anos, que não volto ao Brasil. Não
podíamos passar lá nossas férias?
MARIDO: Impossível,
querida. A empresa está abrindo uma filial na Alemanha e não poderei tirar
férias esse ano. Quem sabe, no próximo?
M. BOVARY: - Mas eu não sei se
vou aguentar esperar tanto... estou morta de saudade do Brasil, dos meus irmãos...
Lá, agora, é verão, e você sabe como me sinto deprimida com o inverno...
Preciso de um pouco de sol, de praia...
MARIDO: - Olha, por que
você não vai sozinha?
M. BOVARY: - Sozinha?
MARIDO: - Sim, por que não?
Afinal, deverei estar mais na Alemanha do que na França, nas próximas
semanas... E eu sei que você não gosta muito da Alemanha... Assim...
M. BOVARY: - Oh! Meu amor, prometo a você que voltarei do
Brasil com as baterias recarregadas. Poderemos, então, pensar em realizar o
nosso velho sonho...
MARIDO: - O nosso filho?
Você acha que já está pronta?
M. BOVARY: - Sim, e você
também... não seria ótimo?
MARIDO: - Claro, claro...
uma criança completaria nossa felicidade. Mas, como...
M.BOVARY: - Não, não diga nada...
deixe por minha conta...
(Abraçam-se
e beijam-se apaixonadamente. As luzes se apagam lentamente. Quando voltam a
acender-se, o cenário é de um baile carnavalesco, com figuras estranhas e
indefinidas sexualmente, pulando e dançando, sem qualquer som, tendo M. Bovary
como centro. Isso dura alguns instantes, até que todas as figuras se “congelam”
numa pose grotesca. Apagam-se as luzes. Retoma-se a cena de M. Bovary e o marido).
MARIDO (brandindo uma fita de vídeo na mão): -
Não interessa quem mandou essa fita! Você nega que esteve nesse baile? Nega?
M.BOVARY: - Não, não é isso... eu estive nesse baile,
sim... mas não foi o que você está pensando...
MARIDO: - Eu não estou
pensando nada... eu vi, apenas vi, essas imagens... indecen... chocantes... e
você... você no meio de todas essas... esses gays... Você me prometeu nunca
mais...
M. BOVARY: - Eu sei, eu sei...
mas não houve nada, eu juro... pela alma de minha mãe... Nós...
MARIDO: - Chega! Não posso
admitir isso... é uma vergonha! Você... não, não posso perdoar isso nunca...
Você rompeu nosso trato...
(Neste
momento, homens de negro e usando capuzes pontudos e negros entram em cena,
colocam o marido sobre os ombros e levam-no. Somente um foco de luz sobre M.
Bovary que, com gestos lentos, despe o seu belo vestido e veste o uniforme roto
de um asilo de loucos. Aproxima-se dela outra detenta, com um pequeno embornal
na mão).
LOUCA: - E então, minha
amiga, está pronta para fugir?
M. BOVARY: - Sim, sim, depois
desses anos todos, é a nossa oportunidade! Vamos...
LOUCA: - Mas você não vai
levar nada?
M. BOVARY: - Não, já estou
levando muito ... dentro do meu peito... dor, vergonha, traição... você
sabe... Já lhe contei mil vezes minha
história...
LOUCA: - Sim, eu sei...
Mas nunca vou entender como seus irmãos e seu pai, seu próprio pai, puderam
fazer isso com você...
M. BOVARY: - Dinheiro, minha
cara, o dinheiro explode a cabeça das pessoas... Quando perceberam que podiam ficar com o
dinheiro que eu receberia se me separasse de Antoine, fizeram toda aquela
armação... E eu, idiota, confiei neles... Acreditei que tinha uma família, que
eles estavam com pena de mim, que me dariam a mão... Sim, deram a mão, a mão
que rouba, a mão que trai... Mas
deixemos o passado, já está quase na hora combinada... E você, o que leva aí?
LOUCA: - Apenas as minhas
lembranças... você sabe... e o livro que tantas vezes você lia para mim, já faz
parte da minha vida, não posso deixá-lo...
M. BOVARY: - Está certo...
vamos, e que a sorte nos acompanhe.
(Dão-se
as mãos e saem de cena. Todas as luzes se acendem, expondo o cenário original,
com todos os mendigos sentados ao cão, enquanto homens de negro desmancham o
pequeno palco. Ouvem-se, simultaneamente, ruídos de tiros, gritos, sirenes etc.
Após um instante de silêncio, M. Bovary volta lentamente ao convívio dos
mendigos, já vestida com suas roupas habituais e trazendo o pequeno embornal de
sua amiga louca).
PROFETA: - E o que aconteceu
com sua amiga? Onde ela está?
M.BOVARY: - O que aconteceu? Foi tudo muito simples,
rápido e ... doloroso. Eu consegui fugir, mas minha amiga, não. Foi baleada.
Antes de morrer, deixou-me seu bem mais precioso... (Retira o livro M. BOVARY do embornal).
PROFETA: - Esse livro... o
que tem de tão especial?
M.BOVARY: - Isso já é uma história complicada... O que
eu posso lhe dizer é que, desde que cheguei naquele asilo, fiquei muito amigo
dessa mulher. Sua vida daria um romance. Quando lhe vinham as crises de
depressão e de agonia, ela gostava de ler esse livro, parece que ele a
acalmava, mas seus óculos de leitura se quebraram e como ninguém se preocupou
em lhe dar outros, eu passei a lê-lo para ela, já que era a única que sabia ler
francês...
PROFETA: - Mas... e o seu
nome, minha amiga?...
M. BOVARY: - É... não tem nada a
ver... passaram a me chamar assim por
causa do cuidado que eu tinha com o livro...
PROFETA: - Mas... o seu
nome... o seu verdadeiro nome...
M.BOVARY: - Meu nome? Quem o sabe? Já o perdi há muito
tempo, quando perdi Antoine, quando perdi minha vida, minha identidade. Por que
não pode ser M. Bovary ou Bovári quem já foi Maria ou Teresa ou João ou
Antônio?...
CENA 7 “ENTREATO 1”
(Forma-se
uma roda em torno de M. Bovary, com exceção de Vera Doida e o Profeta, que se
sentam a distância. O Palhaço também permanece longe do grupo, tentando, no
entanto, ouvir a conversa).
JASÃO: - Acho que você não
devia ter se aberto tanto... afinal, são coisas muito pessoais...
M.BOVARY: - Porra, Jasão! Você é um grande filho da
puta. Me provocou com aquela merda toda de criança, e agora vem me aporrinhar?
JASÃO: - Eu esqueci... me
desculpe...
M.BOVARY: - Desculpe, desculpe... não vou te perdoar
nunca... você é ridículo, sabia?
JASÃO: - Espere aí. Não
sou o único culpado aqui. Estão acontecendo coisas estranhas...
DOUTOR: - É verdade. Até o
Profeta está achando tudo muito esquisito. Esse silêncio...
JASÃO: - É, mas a Bovári
aí não achou nada estranho contar sua vida para estranhos...
M. BOVARY: - Vá à merda,
Jasão. Foi até bom, sabia? Eu precisava mesmo pôr tudo pra fora. Estava
engasgado aqui...
JASÃO: - Mas na frente de
estranhos? Precisava, precisava?
NAPOLEÃO: - Estranhos? Nós?
Ninguém aqui é estranho...
JASÃO: - Não estou falando
de nós...
DOUTOR: - O Palhaço? Ora, é apenas um
Palhaço...
JASÃO: - Não sei, não.
Esse cara é muito esquisito, ainda mais com essa cara pintada...
M. BOVARY: - Vocês estão
desviando o assunto, seus bostas. Ficam aí me criticando e agora querem botar a
culpa num panaca pintado qualquer...
JASÃO: - Não é isso, não é
isso...
DOUTOR: - Acho que Jasão
está certo. Estão acontecendo coisas nesta noite que eu não estou entendendo...
Todos ouviram o que o Profeta disse.
M. BOVARY: - Deixa disso,
gente. Tá todo mundo ficando é meio biruta... Se eu falei sobre a minha vida
foi porque quis...
JASÃO: - É, mas a gente
sempre se juntou aqui todo começo de ano há não sei quanto tempo já, e nunca
aconteceu nada parecido... Sempre foi só bebida, comida, conversa fiada, não
tinha esse troço de ficar mexendo com o passado, não.
DOUTOR: - É verdade!
Ninguém aqui tem passado. Chega desse papo. Vamos...
(O
Palhaço aproxima-se, com uma garrafa na mão).
PALHAÇO: - Ei pessoal, que
baixo astral, pô... Vejam, ainda tem bebida... vamos beber, ficar alegres,
esquecer as tristezas...
(A
garrafa passa de mão em mão).
PALHAÇO: - Sentem-se,
sentem-se... Vou lhes contar umas histórias. Afinal, para que serve um Palhaço?
O que vocês preferem? Uma história triste ou alegre? Não importa, uma história
é sempre uma história. Vamos lá! Era uma vez um jovem, filho de uma família
abastada de uma bela cidade do interior. Esse jovem era filho único. Sua
mãe...
CENA 8 ‘DOUTOR’
(O som
de catracas marca a entrada da Mãe. Vem sobre um andor carregado por quatro
homens vestidos de túnicas e capuzes vermelhos. Seguem-na figuras de negro. A
Mãe traz um terço numa mão e um chicote na outra. Seu vestido é longo. Usa uma
máscara (triste) sobre o rosto. A procissão pára no centro do palco, na frente
do Palhaço. Os mendigos sentam-se um pouco afastados, um tanto assustados. A
Mãe fala com voz monocórdia).
MÃE: - Bom dia, meu
filho!
PALHAÇO: - Bom dia, minha
Mãe. A sua bênção.
MÃE: - Deus te abençoe.
Já escovou os dentes?
PALHAÇO: - Sim, minha Mãe.
MÃE: - Lavou o rosto,
meu filho?
PALHAÇO: - Sim, minha Mãe.
MÃE: - Passou o remédio
na cabeça?
PALHAÇO: - Sim, minha Mãe!
(Som de
catracas).
MÃE: - Boa tarde, meu
filho!
PALHAÇO: - Boa tarde, minha
Mãe. A sua bênção.
MÃE: - Deus te abençoe,
meu filho. Já almoçou?
PALHAÇO: - Sim, minha Mãe.
MÃE: - Escovou os
dentes, meu filho?
PALHAÇO: - Sim, minha Mãe.
(Som de
catracas).
PALHAÇO: - Boa noite, minha
Mãe. A sua bênção.
MÃE: - Boa noite, meu
filho. Deus te abençoe.
PALHAÇO: - Já escovei os
dentes, já tomei banho e já passei remédio na cabeça, minha Mãe.
MÃE: - Muito bem, meu
filho. Pode ir dormir.
PALHAÇO: - Mãe...
MÃE: - Sim, meu filho?
PALHAÇO: - Onde está meu
pai?
MÃE: - Teu pai morreu,
meu filho.
PALHAÇO: - Quando, minha
Mãe?
MÃE: - Eras pequeno
ainda...
PALHAÇO: - Por que morreu
meu pai, minha Mãe?
MÃE: - Conto-te a
história: dormi com teu pai apenas a primeira noite. Quando acordei, meu leito
estava vazio e meu útero estava cheio. Nunca mais o vi.
PALHAÇO: - Mas como morreu
meu pai, minha Mãe?
MÃE: - Alguns anos
depois, de doença ruim, nos braços de uma prostituta.
(Neste
momento, o Doutor se levanta, puxa um revólver e atira na Mãe, que apenas se
imobiliza. Leva o revólver à cabeça, sempre coberta por panos e um chapéu. O
Palhaço aproxima-se dele).
PALHAÇO: - Não, Doutor, não
faça isso. Dê-me a arma.
DOUTOR: - Eu... eu matei...
matei minha Mãe!
PALHAÇO: - Não seja idiota!
Você matou, ou melhor, tentou matar apenas um fantasma que está em sua cabeça.
Você atirou na sua memória.
DOUTOR (aproximando-se da Mãe): - Minha Mãe,
perdão. Mil vezes perdão!
MÃE: - És tu mesmo,
filho?
DOUTOR: - Sim, minha Mãe.
Sou eu. Teu filho. Veja.
(Tira o
chapéu e desenrola os panos e mostra a cabeça toda deformada, com caroços
horrendos).
MÃE: - Sim, és tu! Que
fizeste de ti, meu filho?
DOUTOR: - MÃE... onde está minha... minha mulher,
Mãe?
MÃE: - Tua irmã? Tua
irmã está... Veja!
(Neste
momento, entra ao fundo uma mulher empurrando um enorme carrinho de bebê
coberto com um pano negro).
DOUTOR: - Minha esposa! Meu
filho!
(Levanta
o pano do carrinho. Foge com horror. Atira-se aos pés da Mãe, aos prantos,
enquanto a mulher e o carrinho desaparecem do outro lado do palco).
DOUTOR: - Que fiz eu, minha
Mãe? Por que criatura tão monstruosa é o meu filho?
MÃE: - Pagas de teu pai
todos os pecados.
DOUTOR: - Por que chamou de
irmã à minha esposa?
MÃE: - Teu pai teve uma
filha. Por ela abandonaste a faculdade. Com ela tiveste a criatura a quem
chamas de monstruosa.
DOUTOR: - Mas por quê? Por
quê?
MÃE: - Já trazias em ti
a semente do mal que matou teu pai.
(O
Doutor cai, em prantos, enquanto a procissão, batendo catracas e cantando
ladainhas, se retira com a Mãe).
CENA 9 ‘ENTREATO 2’
(Os
mendigos juntam-se em torno do Doutor, para consolá-lo, com exceção do Profeta
e do Palhaço).
PROFETA: - Por que isso
tudo? Por quê?
PALHAÇO: - Isso o quê,
Profeta? Por acaso, não é você aquele que diz tudo saber?
PROFETA: - Não, eu não sei
nada. Chamam-me apenas Profeta, mas não sou o que Todos dizem.
PALHAÇO: - Ora, ora, ora...
temos agora um pouco de humildade.
PROFETA: - Humildade? Que
sabe você sobre humildade? Chegou não se sabe de onde, com esse riso sempre
irônico na cara, sempre a zombar e a provocar...
PALHAÇO: - Provocar? E quem
provocou alguma coisa? O que sabe você sobre provocação? O seu passado? O que
foi o seu passado?
PROFETA: - Cala-te,
miserável! Não tenho passado! Somente sombras cobrem minha memória... Não
queiras trazer luz a quem somente nas trevas sobreviveu!
PALHAÇO: - Não, Profeta, não
serei eu, um simples Palhaço, a acender qualquer luz... Já há luzes demais
entre nós...
JASÃO (aproximando-se): - De que luzes estão
falando?
PALHAÇO: - Luzes, Jasão,
luzes que iluminam vidas que não podiam ser iluminadas.
PROFETA: - Não te metas com
ele, Jasão. Já não chega o que ele fez com o Doutor?
JASÃO: - E eu lá tenho
medo desse diabo de cara pintada, Profeta? Deixa comigo...
PALHAÇO: - Ora, ora, ora,
mais um a escorregar para dentro de si! Vamos lá, Jasão. O que temos aí?
JASÃO: - Nada, seu
cretino, nada! Suas palavras são ouro de tolo. Nada valem para mim.
PALHAÇO: - Muito bem, seu
Jasão. Já que você diz que minhas palavras são ouro de tolo, que tal buscarmos
juntos o ouro verdadeiro?
PROFETA: - Cuidado, Jasão!
Cuidado com esse...
PALHAÇO: - Tarde demais,
Profeta. Jasão agora não mais pertence a si... pertence à sua memória. Veja!
CENA 10 ‘JASÃO’
(Os
mendigos afastam-se, enquanto Jasão, como um autômato, dirige-se ao fundo do
palco, onde troca suas roupas maltrapilhas por um terno colorido e brilhante.
Aproximam-se figuras vestidas de branco ou de preto, todos extremamente sóbrios
e formais).
FIGURA 1: - És o novo
técnico?
JASÃO: - Sim, sou eu.
FIGURA 2: - Teu currículo é
excelente.
FIGURA 3: - Sim, faculdades
americanas, experiência comprovada...
FIGURA 2: - Cala-te. Não
fales ainda.
JASÃO: - Também para aqui
me recomendaram. Espero...
FIGURA 1: - Sim, ouçamos
primeiro o Chefe.
CHEFE (entrando de forma pomposa e também vestido
como os demais. Destaca-o apenas uma coroa na cabeça): - Jasão da Silva!
Nome forte e sobrenome nobre! Vens em busca do teu velocino de ouro?
JASÃO: - Não, Chefe. Trago
o meu velocino para vos servir.
CHEFE: - És inteligente,
Jasão! Confia em mim e serás o que eu sou!
FIGURA 1: - Mas Chefe, ele é
tão diferente!
FIGURA 2: - Nunca será como
nós!
FIGURA 3: - Nem poderá ser
como és!
FIGURA 1: - Sim, diferente...
muito diferente!
JASÃO: - Não, não sou
diferente. Apenas as vestes que trago, de longas tradições de meu povo, é que
são diferentes. Posso despi-las e vestir-me como vós...
FIGURA 1: - Não, não basta
que te vistas como nós. És diferente até mesmo sob as vestes com que te enfeitas!
CHEFE: - Caros
colaboradores: na diferença estará o crescimento de todos. Conto com o bom
senso de vós para a glória de nossa Companhia. (Retira-se, pomposo).
FIGURA 1: - Diferente! Que
nojo!
FIGURA 2: - De nada valem
teus títulos, pois um dia tu farás a cagada que sempre fazem os que são
diferentes!...
FIGURA 3: - E aí, então, nós
te expeliremos de nosso convívio. Diferente nojento!
JASÃO: - Mas o Chefe...
FIGURA 1: - Esquece o Chefe.
O Chefe apenas manda, mas nós, nós é que fazemos.
FIGURA 2: - E fazemos o que
queremos.
FIGURA 3: - E nós não te
queremos aqui.
JASÃO: - Por quê? Por quê?
FIGURA 1: - Ora, por quê!
Porque és diferente.
FIGURA 2: - Sim, diferente!
Que nojo!
FIGURA
3:
Nojento! Sujo! Diferente!
(As
três figuras se lançam sobre Jasão. Despem-no, erguem-no e jogam-no para fora
da cena. Retiram-se acompanhando um grupo de encapuzados que passam em marcha,
conduzindo cruzes de fogo).
CENA 11 ‘ENTREATO 3’
PROFETA: - Maldito! Por que
retiras das sombras o teu ódio? O que tens contra o presente para remexeres o
passado?
PALHAÇO: - Acalme-se,
Profeta! Não sou eu quem busca o passado.
M.Bovary (aproximando-se ameaçadoramente do Palhaço): - É verdade que
você abriu o inferno da cabeça do Jasão e... e de todos nós? É verdade? Fala,
miserável!
PALHAÇO: - Ora, ora, ora...
Todos contra mim? Só porque não pertenço ao clube?
DOUTOR: - Canalha!
(Vera
Doida tenta agredir o Palhaço, que corre lépido, fazendo micagens).
JASÃO (vindo do fundo do palco, já com suas vestes
normais): - para... parem com isso... o Palhaço não tem culpa... ele é
apenas...
PROFETA: - Apenas? Apenas o
quê, Jasão?
DOUTOR: - Apenas o demônio,
é isso o que ele é.
JASÃO: - Não, não! Vocês
não estão entendendo nada...
DOUTOR: - Então, explica,
Jasão. Vamos explica...
VERA DOIDA: - Porra, que
explica que nada. Vamos expulsar logo esse mascarado de nosso meio. Vamos meter
o pé na bunda desse maldito...
PROFETA: - Não! Não podemos
mais fazer isso, é tarde demais!
NAPOLEÃO: - Tarde demais,
Profeta? O que é tarde demais?
PROFETA: - Já não somos mais
donos de nossas vidas. É preciso que bebamos o cálice até o fim, por mais
amargo que ele seja!
PALHAÇO: - Sim, bebamos a
taça. (Gargalha). Já não precisamos
de meias palavras! Ao passado! Ao passado! (Ergue
uma vasilha qualquer, como num brinde).
NAPOLEÃO: - Chega, Palhaço!
Você não sabe o que diz!
PALHAÇO: - Sei, sei sim,
Napoleão! Tanto sei que cobro de você, agora, a sua quota! O que me diz?
NAPOLEÃO: - Não sou o
Profeta, mas prevejo em ti não a maldição, mas, quem sabe, nosso próprio verme
a corroer a carne que virou o que somos...
PALHAÇO: - Bonitas palavras,
Napoleão! Quem diria, heim? Você... que tal nos dizer o que o trouxe até aqui?
Heim? Heim? Vamos, conte!
NAPOLEÃO: - Não tenho
história a contar, Palhaço! Tenho apenas mágoa, mágoa profunda...
CENA 12 ‘NAPOLEÃO’
(Somente
uma luz sobre Napoleão. Os demais se afastam. Do fundo, um som de música,
vozes, risos aproximam-se aos poucos. Arma-se um baile. Enquanto se acendem as
luzes, uma das bailarinas chega até Napoleão e tira-o para dançar).
BAILARINA: - Sinto-te
preocupado, meu querido.
NAPOLEÃO: - Preocupado talvez
não seja a palavra exata. Estou é assustado
BAILARINA: - Compreendo-te:
deve assustar-te o poder que terás. Mas tens o apoio de todos e, acima de tudo,
tens o poder da tua capacidade.
NAPOLEÃO: - Enganas-te quando
dizes que tenho o apoio de todos. Há forças imensas contra as quais não sei se
estou preparado para lutar.
BAILARINA: - Quando sentires
que as forças diminuem, pensa em mim, meu querido, e pensa em nossos filhos.
Sempre te apoiaremos. E seremos para ti o oásis de tua resistência.
NAPOLEÃO: - Sim, sim, mil
vezes sim. Em ti e nos nossos filhos buscarei as forças para vencer.
(Neste
momento a música pára e todos os dançarinos se reúnem em torno de Napoleão.
Ouvem-se vivas, gritos de satisfação. Todos o abraçam e comemoram com brindes.
A música volta a tocar cada vez mais alta, enquanto todos dançam alegremente.
De repente tudo escurece e silencia. Apenas um foco em Napoleão, no centro do
palco. Os mendigos aproximam-se dele lentamente).
PROFETA: - Napoleão,
Napoleão! Você está bem?
VERA DOIDA: - Que merda,
Napoleão. Sai dessa, vamos, reaja.
DOUTOR: - É isso aí, tudo
foi um sonho, não foi?
NAPOLEÃO (voltando aos poucos ao normal): - Sonho?
Não, meu caro Doutor, não foi um sonho, foi um pesadelo.
JASÃO: - O baile? Um
pesadelo, o baile, a festa? Como? Por quê?
VERA DOIDA: - Sim, por quê? Uma
porra de festa tão bonita!
NAPOLEÃO: - Não, a festa não.
O que aconteceu depois.
PALHAÇO: - Não precisas
dizer o que aconteceu depois... Talvez nem mesmo tu te lembres bem!
PROFETA: - E o que sabe
você, Palhaço? Diga: o quê?
PALHAÇO: - Sei, não porque
prevejo coisas, mas porque conheço a vida.
VERA DOIDA: - Aí vem esse
idiota pintado com um monte de merda para enganar vocês mais uma vez!
PROFETA: - Talvez você tenha
razão, Vera Doida. Mas é preciso ouvi-lo. Vamos, Palhaço, conte: o que você
sabe?
PALHAÇO: - Só contarei se
Napoleão permitir. Posso dizer tudo o que sei, Napoleão?
NAPOLEÃO: - Não... não sei...
o que você sabe? Não me lembro de nada. Só sei que há um pesadelo rondando
minha memória... um pesadelo...
PALHAÇO: - Teus amigos,
Napoleão. Não te lembras deles?
NAPOLEÃO: - Amigos? Amigos?!
Não tive amigos... apenas olhos imensos a cobiçar...
PALHAÇO: - Sim, já disseste
tudo. Calo-me. Não mereces mais que a tua pouca lembrança. (Mudando o tom). Descansemos, amigos. A
noite vai alta. Outro dia se aproxima e, quem sabe, com ele vem a esperança?
PROFETA: - Sim, o Palhaço
tem razão. Foi uma longa noite...
PALHAÇO: - Que ainda não
terminou, embora.
PROFETA: - Como? O que
dizes?
PALHAÇO: - Nada, nada...
Ora, ora... vamos descansar, estou exausto.
(Todos
se ajeitam para dormir. As luzes se apagam lentamente, realçando ao fundo a
silhueta da cidade. Somente um foco sobre o Profeta, que logo adormece).
CENA 13 ‘PROFETA’
(O
palco está vazio, só o Profeta dorme um sono agitado. O som de um bumbo ritmado
vem crescendo de algum lugar. São soldados com máscaras verdes de demônios.
Aproximam-se do Profeta).
POLICIAL
1: -
É ele?
POLICIAL
2: -
Sim, ele mesmo.
POLICIAL
1: -
Peguem-no e amarrem-no.
(Os
soldados agarram o Profeta, amarram-no e arrastam-no para o centro do palco.
Colocam-no num “pau-de-arara”).
POLICIAL
1: -
Ele está acordado?
POLICIAL
2: -
Sim, ele está acordado.
POLICIAL
1: -
Chame o Comandante. Diga-lhe que o prisioneiro está pronto para o
interrogatório.
(Policial
2 sai e volta com o Comandante. Os soldados perfilam-se e batem continência).
POLICIAL
1: -
Companhia apresentando-se, Senhor.
COMANDANTE: - Companhia,
descansar! É este o prisioneiro, Soldado?
POLICIAL
1: -
Sim, Comandante!
COMANDANTE: - Ele está
acordado, Soldado?
POLICIAL
1: -
Sim, Comandante.
COMANDANTE: - Prisioneiro! Qual
é o teu nome?
PROFETA: - Não...não sei...
COMANDANTE: - Soldado! Disseram
que o prisioneiro estava pronto para o interrogatório. O que está acontecendo?
POLICIAL
1: -
É que ele resistiu, Comandante.
COMANDANTE: - É preciso que ele
confesse. Chame o Algoz.
(Soldado
sai e volta com o Algoz).
COMANDANTE: - O prisioneiro não
quer cooperar. Faça-o falar.
(O
Algoz tortura o Profeta).
COMANDANTE: - Qual é o teu
nome, prisioneiro?
PROFETA: - Não sei! Não sei!
(O
Algoz torna a torturar o Profeta).
COMANDANTE: - Chega! Vamos
mudar a tática! Soldado, dê-me o dossiê do prisioneiro.
(Policial
1 entrega-lhe uma prancheta).
COMANDANTE: - Prisioneiro
número 7.308. Acusações: pregar doutrinas exóticas, incentivar desobediência ao
Estado, divulgar idéias revolucionárias tais como: igualdade entre todas as
pessoas, fraternidade entre os povos e liberdade para os oprimidos etc., etc.,
etc. Chega! São acusações suficientes. O que você diz, Prisioneiro 7.308?
PROFETA: - Nada... nada...
(O
Algoz tortura o Profeta pela terceira vez. Ele desmaia).
COMANDANTE: - Não há que
destruir a principal prova do crime... ainda! Deixemos o Prisioneiro 7.308
recuperar-se.
(Todos
se retiram ao som do bumbo. Alguns instantes depois, entra o Palhaço).
PALHAÇO: - Profeta...
Profeta... acorda! Estará morto? Não... ele não pode morrer... Não neste
pesadelo! (Busca água e procura reanimar
o Profeta). Ainda bem... não morreu...Vamos, Profeta, a chama do inferno
queima, mas também reanima. Vamos, lute. Lutar é tudo quanto resta. Veja: sua
família está aqui para ajudá-lo.
(Nesse
momento, entram e param diante do Profeta: um casal de velhos, uma mulher e
dois jovens. São pálidos e tristes. O Profeta olha-os longamente e eles se
retiram).
PALHAÇO: - Viu, Profeta? São
seus pais, sua mulher, seus filhos...
PROFETA: - Sim, são eles...
espectros, porém. Sombras... visões ... passado.
PALHAÇO: - Sombras? Visões?
Não compreendo, Profeta.
PROFETA: - São visões de
meus pecados, de minhas culpas...
PALHAÇO: - Por que resistir
e sofrer, Profeta? Por quê? Por quê?
PROFETA: - Não resisto por
mim... mas por eles, por aqueles que, como eu, são injustiçados...
PALHAÇO: - Lute, Profeta.
Mas lute pela sua vida. Chega de sofrimento. Diga, confesse, fale tudo o que
eles querem ouvir!
PROFETA: - Para quê? Eles já
sabem tudo. Só resisto porque não há mais vida em mim. E é preciso ... é
preciso deixar (tosse) ... deixar o
exemplo... para os deserdados do mundo.
PALHAÇO: - É inútil,
Profeta. Outros tantos já lutaram, morreram e nada aconteceu.
PROFETA: - Sim, Luther
King... Guevara... e tantos, tantos outros... famosos ou anônimos... Mas a luta
é feita do sangue de muitos mártires...
(Nesse
momento, entram os demais mendigos e ajoelham-se diante do Profeta).
PROFETA: - Pelo menos no
sonho, deixo um pouco do meu sofrimento para a redenção de meus amigos. Não
morrerei, mas será como se estivesse morto. Não terei jamais a lembrança de
quanto vivi, de quanto pressinto entre vós, meus amigos, a marca da tragédia.
PALHAÇO: - Falas de mim,
Profeta?
PROFETA: - Sim, Palhaço.
Vieste para desafiar o destino...
PALHAÇO: - Que sabes de
mim?... Diz...
PROFETA: - Nada sei, apenas
pressinto. E o que pressinto não é bom.
PALHAÇO: - Horror?
PROFETA: - Está em ti
decidir o teu próprio inferno!
PALHAÇO: - Não... não me
acuses!
PROFETA: - A ti? Acusar-te?
Já não basta tua consciência?
(Nesse
momento, figuras grotescas de demônios, monstros, bruxas, alguns conduzindo
tochas e cruzes de fogo, cercam o grupo, numa louca coreografia ao som da
Internacional, cujo som vai gradativamente aumentando até que um trovão e um
raio desfazem a cena. Os mendigos resgatam o Profeta e colocam-no na posição em
que adormecera. Retomam Todos os mesmos lugares, adormecidos e calmos. Começa a
amanhecer).
CENA 14 ‘EPÍLOGO’
(Dois
policiais aproximam-se do Palhaço. Colocam-se um de cada lado. O Palhaço acorda
assustado).
PALHAÇO: - Quem são vocês? O
que querem aqui?
POLICIAL
1: -
Você é João Alberto?... João Alberto Cruz?
PALHAÇO: - Não, claro que
não! Não estão vendo? Eu sou o Palhaço, apenas um Palhaço, um... um...
POLICIAL
2 (segurando o Palhaço por trás): - Vamos
logo, limpe a cara dele!
(O
Policial 1 tira um lenço do bolso e começa a limpar, lentamente, a maquiagem do
Palhaço. Tira-lhe a peruca).
POLICIAL
1: -
É você mesmo, aqui está a fotografia... João Alberto...
POLICIAL
2: -
Você está preso!
PALHAÇO: - Preso, eu?! Por
quê? O que foi que eu fiz?
PROFETA (Levantando-se): - O foi que ele fez,
heim policial?...
M.
BOVARY
(também se levantando): - É mesmo, o
que foi que ele fez, diga, seu milico nojento!
POLICIAL
1: -
Olha aqui, nós estamos apenas cumprindo a lei. Vocês...
JASÃO (levantando-se ameaçadoramente): -
Cumprindo a lei!... (Cospe) que lei?
Diga lá, que porra de lei vocês vieram cumprir aqui?
NAPOLEÃO (também de forma ameaçadora): - Diga, seu
polícia de merda, que lei?
(Todos
os mendigos estão de pé e cercam os dois policiais. Assustados, eles sacam as
armas).
POLICIAL
1: -
Não se aproximem, se não eu atiro!
POLICIAL
2: -
Eu também! Afastem-se, vamos. Estamos apenas prendendo um fugitivo... um...
um...
MENDIGOS (em coro): - Um fugitivo? O que foi que
ele fez?
POLICIAL
1 (apontando a arma em direção ao Palhaço):
- Parem! Ou eu mato esse Palhaço!
JASÃO: - Mas você não
disse o que ele fez!...
MENDIGOS (aproximando-se lentamente dos policiais):
- Soltem o Palhaço! Soltem o Palhaço!
POLICIAL
2 (atira para o alto; os mendigos param e
silenciam): - Se não pararem, eu vou começar a atirar pra valer!
PROFETA: - Atira, satanás, o
mal é a tua sina! Os povos de deus invocarão as sete pragas contra os ímpios!
MENDIGOS: - Ímpios... ímpios...
ímpios...
POLICIAL
1: -
Parem! Não queremos violência! Só vamos levar esse elemento. Ele é um
assassino.
PALHAÇO: - Eu?! Um
assassino? Não! Eu sou bom. Eu nunca matei ninguém...
POLICIAL
2: -
Matou, sim... você matou...
MENDIGOS: - Quem? Quem?
POLICIAL
2: -
Você... você matou... teus pais!
PALHAÇO: - Meus pais? Eu? Eu
nunca tive pais...
POLICIAL
1: -
Não negue, desgraçado!
POLICIAL
2: -
Sim, você matou seu pai... matou sua mãe...
PALHAÇO: - Minha mãe!...
Não...
POLICIAL
1: -
Sim... sim... e ainda matou tua mulher...
POLICIAL
2: -
E teu filho! Teu próprio filho!
PALHAÇO (chorando): - Não... não... eu não matei...
meu filho! Onde está meu filho?
PROFETA: - Soam as trombetas
do Apocalipse! A Besta está solta! O fim... o fim está próximo!
PALHAÇO (desvencilha-se um pouco do policial que o
segurava, escorregando-se para o chão): - Eu não matei ninguém! É tudo
mentira!
POLICIAL
1: -
Sim, você matou friamente toda a sua família! Monstro! Não negue!
PALHAÇO (ainda chorando): - Não... não... eu sou
apenas o Palhaço!
POLICIAL
2: -
Não negue, você matou sim, matou a família... Você, João Alberto... João
Alberto Cruz...
PROFETA: - Cruz?! Ó Cruz de
Cristo! Quem és tu, ó Palhaço?
MENDIGOS: - Sim, quem és tu,
ó Palhaço?
PALHAÇO (de joelhos, ainda seguro pelo policial):
- Eu... eu sou o Palhaço... o
amigo de vocês... não, amigo não... eu sou o filho, o irmão... vocês são a
minha família... os meus irmãos, os meus pais... as minhas mães... eu não sou o
que estão dizendo... eu não matei... eu não matei... EU NÃO MATEI! (Chora).
MENDIGOS (ameaçadores): - Não matarás! Não
matarás! Não matarás!
(Os
policiais estão cada vez mais assustados com a ameaça dos mendigos).
POLICIAL
1: -
Parem!
(A um
gesto do Profeta, os mendigos se calam).
PROFETA: - João... ou
Palhaço... afinal, quem és tu? Mataste?
PALHAÇO: - Profeta... (chora). Não vê, Profeta?... Eu sou o
seu irmão, o seu filho, o seu...
PROFETA: - Sim, irmão... tu
és o nosso irmão... mais que irmão: nós somos de ti os... os herdeiros. Sim,
nós somos os HERDEIROS... OS HERDEIROS DE TI QUE ÉS O NOSSO FILHO!
MENDIGOS (cada vez mais ameaçadores, mais ensandecidos):
- Os herdeiros... os herdeiros... os herdeiros... os herdeiros...
PROFETA: - Nós somos os
herdeiros... e você... e tu... tu és o assassino! Mas és também nosso irmão...
nosso filho... NOSSO FILHO...
MENDIGOS (fechando o círculo em torno dos policiais):
- Nosso filho... assassino... nosso filho... assassino... nosso filho...
assassino... nosso filho...
(Cai o
pano, ao som de “Satisfaction” e de grande alarido de vozes e tiros).
24.04.95
Isaias Edson Sidney
tel.(11) 5011-9628
(Este texto foi escrito no período de
7/3/95 a 18/4/95, durante as aulas proferidas por Chico de Assis, no SEMDA -
Seminário de Dramaturgia do Arena).
REGISTRO NA SBAT EM 1.10.94
– Nº 34.003
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