domingo, 25 de abril de 2021

ÂNGELA

 

 

(Adolph von Menzel)

 

 

 Isaias Edson Sidney

Rua dos Buritis, 251

São Paulo / SP

04321-001

tel.:5011-9628

SBAT – 34.002

 

 

 

 S.P. 30/11/95

 

 

CENA 1:

 

(Um escritório político, com uma mesa e várias cadeiras. Cartazes pelas paredes e sinais de que uma reunião tenha acabado há pouco.  Pelas janelas, ao fundo, ouve-se o barulho meio abafado e longínquo de uma manifestação popular. Guilherme está sentado atrás da mesa e Afonso ora senta-se sobre ela, ora anda nervosamente à sua volta).

 

AFONSO:- É isso aí, Guilherme. Puxe o fio da história. Sua vez está chegando...

 GUILHERME:- Então você acha que me saí bem? As pessoas gostaram do meu discurso?

 AFONSO:- Porra, Guilherme, não estou te dizendo? Você foi ótimo!

 GUILHERME:- Foi apenas o primeiro passo, Afonso...

 AFONSO:- As pessoas começarão a falar no seu nome... Como membro do Diretório, você vai ver como logo, logo, estarão te chamando para decisões importantes... E aí, meu amigo, suas opiniões começarão a aparecer... As eleições serão dentro de dois anos... É tempo mais do que suficiente para colocarmos o seu nome entre os possíveis candidatos...

 GUILHERME:- Nem acredito que isto possa estar acontecendo, Afonso... Eu, um político! Era tudo o que almejava na vida... (Puxa de sob a camisa uma correntinha, com um amuleto, e beija-o)  Que a sorte nos acompanhe, Afonso, que a sorte nos acompanhe...

 AFONSO:- Como nos velhos tempos de estudantes, Guilherme: com força e...

 AMBOS:- (Rindo muito e abraçando-se):- Com força e com tesão!

  

(Batem à porta. Afonso vai atender e volta puxando pela mão uma bela mulher, Ângela).

  

AFONSO: - E para nos dar mais sorte ainda, quero lhe apresentar uma colega dos tempos de colégio. Eu a convidei para a nossa reunião, mas parece que ela não perdeu o velho hábito de se atrasar... Guilherme, esta é Ângela. Ângela, este é o nosso futuro candidato, Guilherme...

 GUILHERME: - De onde você  veio?

 ÂNGELA: - Como?

 GUILHERME: - De que galáxia... de que Olimpo você veio? Deusa...

 AFONSO: - Não se assuste, Ângela, o Guilherme é assim mesmo...

 GUILHERME: - Um tanto louco? Não, apenas julguei estar vendo um sonho, uma miragem... uma...

 ÂNGELA: - Exagerado o seu amigo!

 GUILHERME: - Desculpe...  Prazer em conhecê-la...

 ÂNGELA: - Prazer... Ângela...

 AFONSO: - Como eu dizia, Guilherme, Ângela é uma ex-colega de colégio...

 GUILHERME: - ... e uma deusa! Por que você nunca me falou dela?

 AFONSO: - Falei, sim! Você é que deve ter se esquecido...

 GUILHERME:- ... mas agora nunca mais vou esquecê-la...

 ÂNGELA:- Isso é uma... uma promessa de amizade?

 GUILHERME:- Sim, quem sabe!

 ÂNGELA: -  Amigos do Afonso são sempre meus amigos também...

 GUILHERME: - A senhorita...

 ÂNGELA: - ...senhora...

 GUILHERME: - ... casada?!...

 ÂNGELA:- ...digamos, ex..., ex-casada...

 GUILHERME: - Deusas não se deixam pescar...

 ÂNGELA: - Depende do pescador... mas não sou deusa...

 GUILHERME: - ... também não sou pescador... Apenas um político iniciante...

 ÂNGELA:- E o político, não é um pescador?

 GUILHERME:- De mentes, talvez...

 ÂNGELA:- Não, de almas!

 GUILHERME:- Gosta de política?

 ÂNGELA: Mais dos políticos...

 AFONSO:- Vocês dois querem parar com essa rasgação de seda e me ouvir? (Ambos olham para ele, espantados). Podemos ir jantar... os três... que acham?...

  

(Batem à porta. Novamente Afonso vai atender. Conversa com alguém fora de cena e volta para falar com Guilherme).

  

GUILHERME:- O que foi, Afonso? Algum problema?

 AFONSO:- Não... acho que não... é... alguém que deseja falar com você...

 GUILHERME:- Quem? Já algum futuro eleitor?

 AFONSO:- Não...  é... (olha para Ângela, meio constrangido) Madame... Risoleta...

 GUILHERME:- Como? Madame Risoleta? Aqui? Mande entrar... claro... mande entrar... eu falo com ela... Não, Ângela, fique... não é nada pessoal ou secreto... quem sabe, você até goste dela... é uma grande vidente...

 ÂNGELA:- Vidente? Desculpe, mas eu não... (cala-se diante da aproximação da mulher, vestida à moda cigana).

 GUILHERME:- Madame Risoleta, a que devo a honra de sua visita?

 M.RISOLETA:- Guilherme, meu filho... eu soube que... não, não importam os detalhes... vim até aqui para vê-lo, para dizer que você será muito bem sucedido se... (dá-se conta da presença de Ângela e faz uma pequena pausa)  não houver outras forças interferindo...

 GUILHERME:- Esta é Ângela... uma amiga...

 M.RISOLETA (tomando entre as suas as mãos de Ângela):- Você...  (olha por alguns instantes as mãos de Ângela)... o destino... você e Guilherme... há um caminho escrito para vocês dois...

 ÂNGELA:- Mas eu e Guilherme mal nos conhecemos!...

 M.RISOLETA:- Deus sabe o que faz, minha cara... Deus sabe o que faz... E quem sou eu para contrariar os seus desígnios... E você, Guilherme, não perdeu o amuleto, perdeu?

 GUILHERME:- Não... não... está aqui...

 M.RISOLETA:- Não o tire nunca, ouviu? Nunca! Você vai precisar muito dele.

 AFONSO:- Assim a senhora nos assusta, Madame...

 M.RISOLETA:- Não brinque, Afonso, não brinque com coisa séria... O destino escreve a história por caminhos nem sempre muito claros... Guilherme, só vim mesmo até aqui para te rever, você não tem mais procurado a sua velha amiga... Mas, estou indo! Afonso e... Ângela, foi uma satisfação encontrá-los... sei que Guilherme está em boas mãos, com vocês... E você, moça, cuide bem dele... e de você mesma... e não ouse dizer não ao destino... Adeus!

  

(Guilherme acompanha-a até a porta,  e fica fora de cena por alguns instantes).

  

ÂNGELA:- Mulher estranha essa...

 AFONSO:- Estranha... mas nunca errou...

 ÂNGELA:- Você sabe que eu não acredito! Mas, você!? Quem diria? Você: supersticioso!...

 AFONSO:- Eu?... Um pouco! O Guilherme, sim! Jamais discuta esse tipo de coisa com ele... Guilherme é... muito, muito supersticioso...

 ÂNGELA:- Acho muito estranho um cara que, como você diz, tem idéias sociais e políticas tão avançadas e acredita em ciganas... vidente, sei lá... E ele é tão simpático, não é?

  

(Guilherme volta e, enquanto tentam dar um pouco de organização ao escritório e trancar as janelas, conversam alegremente).

  

ÂNGELA: - ... mas por que a política, Guilherme?

 GUILHERME: - Quero ajudar o meu país... colocar em prática alguns sonhos...

 ÂNGELA: - Você não está com nenhum discurso tipo salvador da pátria, não é?

 GUILHERME:- Não, claro que não... de salvadores da pátria o país está cheio... já basta o... bem, você sabe, o presidente! Aquele  que se disse caçador de marajás... tantos valores moralistas... tudo mentira!

 ÂNGELA: - Então, você concorda com o impeachment?...

 GUILHERME: - É claro... E digo mais: esse é um erro que nenhum político deve cometer... Falsidade e corrupção devem cair fora da vida política!

 ÂNGELA: -  Honestidade... sinceridade... Bravos... bravos... será que, finalmente, vamos ter isso na política?

 

AFONSO: - Pode ter certeza, Ângela, pode ter certeza... Pelo Guilherme eu coloco a mão no fogo... as duas e mais alguma coisa...

 ÂNGELA: - Vocês são mesmo dois sonhadores...

 AFONSO: - Pronto! Vamos jantar! Poderemos então discutir política, sonhos e o  que mais vocês quiserem! De barriga cheia! Está bem?

 GUILHERME: - E talvez eu encontre o caminho para o Olimpo... ou para o céu...(Saem).


CENA 2 :

  

(Apartamento de Evandro. Destaca-se uma foto do Marechal Castelo Branco. Evandro está ouvindo marchas militares. Entra Ângela e tenta falar, não consegue, baixa o volume da velha vitrola).

  

EVANDRO:- Ângela... Onde você esteve até  essa hora?

 ÂNGELA: - Já sou um pouco crescidinha para você ficar me controlando, não é general? Cadê as crianças?

 EVANDRO:- Você não está vindo dessas... dessas manifestações políticas, não é?

 ÂNGELA: - Claro que não... saí com alguns amigos...

 EVANDRO:- Estava vendo televisão, mas não agüentei... é só impeachment... é um absurdo o que estão fazendo com o presidente...

 ÂNGELA: - Absurdo, meu pai? Absurdo? Absurdo é o que o senhor está me dizendo...

 EVANDRO:- É absurdo, sim... Que moral têm esses políticos para cassar um presidente?

 ÂNGELA: -  Espere aí, general Evandro... meu digníssimo pai... o que o senhor está querendo dizer com isso?

 EVANDRO:- Os políticos não têm moral para cassar um presidente...

 ÂNGELA: - E quem teria moral para isso? Diga! Quem?

 EVANDRO:- O Exército! Quem mais!? As Forças Armadas!... Somente elas! Esses políticos demagogos e corruptos!... É preciso pôr os urutus na rua! Os urutus, Ângela!

 ÂNGELA: - Golpe, general! Isso é  golpe!...  O país não  admite mais esse  tipo de coisa!

 

EVANDRO:- Golpe! Golpe nada! As Forças Armadas nunca deram golpe... fizeram intervenções políticas para salvar a nação! A pedido das forças vivas... organizadas... da sociedade!...

 ÂNGELA: - Salvar a nação! Vocês só  violentaram  o país, torturaram quem não concordava com vocês...

 EVANDRO:- Não fale em tortura, sua fedelha! Não fale em tortura,  se não...

 ÂNGELA: - ...se não o quê, general? Vai me bater? Me torturar também?

 EVANDRO:- Não me provoque, Ângela! Não me provoque! Eu não admito que você fale assim comigo! Sou seu pai! E não toque nunca mais nessa palavra na minha frente!... Nós nunca fizemos mal a ninguém, nunca! Você não sabe o que está dizendo!...

 ÂNGELA: - Tá bom, meu pai! Tá bom!  Por que ficamos discutindo isso a esta hora da noite?... E as crianças?...

 EVANDRO:- Já foram dormir... Seus filhos! Meus netos! Aqui comigo! Você não sabe o quanto me faz bem!...

 ÂNGELA: - Fico preocupada em ter vindo perturbar o seu sossego!

 EVANDRO:- Não! Nada disso! Pode ficar tranqüila, Ângela. Seus filhos são  benvindos nesta casa... Enchem os meus dias! Alegram a casa! (pausa) Tem uma coisa que  me aborrece, Ângela... Pensar que eles vão ser criados sem pai!

 ÂNGELA: - Pronto! Lá vamos nós,  outra vez!

 

EVANDRO:- Você sabe muito bem! Eu não concordo com esses modernismos de divórcio! No meu tempo...

 ÂNGELA: - Eu não disse? Quando você começa com esse negócio de “no meu tempo”... Olha! Pode ficar sossegado... Seus netos não ficarão sem pai por muito mais tempo!...

 EVANDRO:- Vai voltar para o seu marido? É isso? Vocês estão pensando em reconciliação? Oh! Meu Deus! Seria muita felicidade para o coração de um velho pai...

 ÂNGELA: - Calma aí, general! Não disse isso! O senhor sabe perfeitamente que é impossível eu voltar para o meu marido... aliás, ex-marido, ouviu bem?

 EVANDRO:- A gente cria uma filha com todo o conforto, com todo o carinho... dá-lhe uma educação cristã, prepara-a para a vida, para o casamento, confia que conseguiu para ela o melhor genro, um homem honrado, de boa família... Depois,  recebe um golpe pelas costas! Isso, sim, é que é golpe...

 ÂNGELA: - Isso vai longe! Olha aqui, general! Meu casamento acabou, ouviu? Acabou!  Não me comovem as suas lágrimas! Além do mais, não foi você que conseguiu um genro, sacou? Eu casei com ele porque quis, a burrada foi minha!

 EVANDRO:- É isso! A tal democracia, é isso! Não se tem mais respeito por nada! Anarquia! É isso o que vocês fizeram com o país... com os valores cristãos... com a família! Anarquia... bagunça...

 ÂNGELA: - General Evandro, acho que você pirou de vez! Está misturando estação! Não suporto mais ouvir essas... essas... asneiras... Eu vou é dormir! Boa noite!

  

(Ângela sai, batendo a porta. O general fica um instante pensativo, faz alguns gestos para o alto, vai até  vitrola, aumenta o som da marcha militar e fica acompanhando os seus compassos por algum tempo).

 

CENA 3:

  

(Salão amplo, espelhado, para a prática de esgrima. Dois esgrimistas colocam-se em posição e iniciam luta de floretes, até que um deles é tocado).

 

 GUILHERME (tirando a máscara protetora):- O que é isso, Afonso?  Está fora de forma ou  distraído?

 AFONSO: -  Só pensando! Em você! Na Ângela!

 GUILHERME: -  Por quê? Nós nos amamos! E foi você que nos uniu!

 AFONSO: - É isso mesmo o  que você quer?

 GUILHERME: - Mesmo que me dissessem que Ângela é o demônio, para mim seria o mais amável dos demônios!...      

 AFONSO: - Ela é filha de general, um general de passado no mínimo suspeito...

 GUILHERME: -  Eu também sou filho de general!

 AFONSO: - O passado, Guilherme, o passado acabará por mexer com você... Suas pretensões políticas... suas idéias avançadas... Filho de general e agora genro de general... Como você espera que as pessoas acreditem em você?

 

GUILHERME: -  Eu tenho consciência disso! Meu pai... não há ódio entre nós, mas não posso dizer que eu o ame. Nossas posições ideológicas criaram obstáculos intransponíveis entre nós... E agora, o pai de Ângela...

 AFONSO: - O meu faro de repórter me diz que existem coisas graves no passado de seu sogro...

  GUILHERME: - Ângela não tem nada com isso!...

 AFONSO: -  Mas precisamos estar prevenidos...

 GUILHERME: -  Abandono a política... Não sei mais viver sem essa mulher...

  AFONSO: -  Você quer que eu pare as investigações?

 GUILHERME: -  Talvez seja melhor...  Ângela está para chegar. Marquei com ela aqui. Precisamos conversar sobre aquilo...

 AFONSO: -  “Aquilo” é a idéia maluca de vocês me levarem junto na lua de mel? Esqueça!

 GUILHERME: - Você sabe que não é bem isso. A lua de mel, mesmo, vamos passar no interior. Depois, veja bem, depois é que nós queremos que você nos acompanhe numa volta ao mundo. Você fala várias línguas, já andou muito por aí, seria o nosso guia perfeito. Ângela...

 

 (Neste momento, entra Ângela, beija o noivo e o amigo).

 

 ÂNGELA: -  Estava falando de mim?...

 GUILHERME: -  Sim, falava ao Afonso do prazer que nós teríamos se ele nos acompanhasse no cruzeiro que planejamos... África do Sul, Egito, Marrocos, Sidney!... Sei lá quantos outros lugares!

 AFONSO: -  Eu acho que não faz sentido vocês terem um acompanhante na lua de mel...

 ÂNGELA: -  E eu acho já somos um pouco crescidinhos para termos esses escrúpulos...

 GUILHERME: -  Vamos fazer um lanche enquanto discutimos isso...

 ÂNGELA: - Hm... que arrepio! Não gosto deste salão...

 AFONSO: -  Só por que aqui se pratica esgrima?

 GUILHERME (fazendo um movimento com o florete):- Sim, esgrima! Um dos mais nobres esportes do homem...

 AFONSO (pondo-se em guarda diante de Guilherme):- Um esporte nobre para homens nobres! Em guarda! (Os dois trocam, de brincadeira, alguns golpes, enquanto continuam conversando). Mas o que pode trazer arrepios à nobre noiva de meu nobre amigo?

 ÂNGELA: -  Não é a esgrima! Meu pai também gosta desse esporte. É este salão... Há nele uma atmosfera estranha, como se... vocês podem zombar, mas isso aqui, para mim, tem ar de cemitério...

 GUILHERME: -  Agora você foi longe, Ângela. (Ri) Ar de cemitério!...

 AFONSO: -  Deve ser porque ele ficou abandonado muitos anos... É cheiro de coisa antiga...

 ÂNGELA: -  Sei lá se é coisa antiga... Mas que eu não gosto deste lugar, não gosto.

 GUILHERME: -  Como você sabe que ele ficou abandonado?

 AFONSO: - Ora, Guilherme, e você não me conhece? Não sabe como sou curioso? Repórter é assim: qualquer coisa é motivo para pesquisar, perguntar... Conversei com velhos militares amigos de seu pai. É verdade que foram meio reticentes... Não souberam me explicar por que este salão ficou tantos anos fechado.

 GUILHERME: -  Essa eu pagaria para ver! Você, que nunca gostou de milico, conversando com os velhos generais amigos de meu pai!... Curiosidade mata, sabia?

 AFONSO: - Olha quem fala! Como se você gostasse muito de milico...

 GUILHERME: - Eu tenho motivos para não gostar. Sou filho de um, esqueceu?

 ÂNGELA: -  Eu também!

 AFONSO:- Até que foi uma experiência interessante conversar com os velhos generais... Querem que eu investigue mais?

 ÂNGELA:- Deixa isso pra lá! Vamos embora!

  

(Os dois param a luta).

  

ÂNGELA:- Vocês parecem...

 GUILHERME:- ... irmãos...

 ÂNGELA:- ... crianças...

  

(Guilherme e Afonso pegam suas mochilas e saem abraçados a Ângela, rindo e brincando muito).


CENA 4:

  

(Evandro e Miguel, jovens no começo, vão envelhecendo pouco a pouco até a ação presente. No começo da cena entram marchando numa sala de aula. São cadetes).

  

VOZ (em off):- Companhia! Alto! Descansar!

  

(Evandro e Miguel sentam-se em suas carteiras e escrevem por algum tempo. Depositam as provas na mesa do professor e saem da sala de aula. Enquanto conversam, esgrimam com seus espadachins).

  

EVANDRO:- Tema maldito esse da prova de português!...

 MIGUEL:- Não entendo sua irritação, Evandro.

 EVANDRO:- Ora, como alguém pode dissertar sobre isso, logo agora?

 MIGUEL:- A frase de Machado de Assis é filosófica!

 EVANDRO:- Filosófica! Uma merda! Como, me diz, como concordar com isso?

 MIGUEL:- Não entendo! Não era para concordar ou discordar...

 EVANDRO:- Preste atenção, Miguel: acabamos de vencer as forças do comunismo internacional. A Nação está salva! E vem esse professorzinho propor essa frase idiota!

 MIGUEL:- “Ao vencedor, as batatas!”

 EVANDRO:- Não repita isso perto de mim, Miguel! Não repita!

 MIGUEL:- Touché!

  

(Colocam insígnias de capitão e bigodes).

  

VOZ (em off):- Capitão Evandro! A Pátria  vos convoca!

 EVANDRO:- É uma honra, senhor!

 VOZ:- Capitão Miguel! A Pátria vos convoca!

 MIGUEL:- É uma honra, senhor!

 VOZ:- Prontos para a missão?

 MIGUEL e EVANDRO:- Positivo, senhor! Tudo pela Pátria!

 VOZ:- Passa a ser vossa a responsabilidade pelos inquéritos militares dessa região! Estais prontos?

 MIGUEL e EVANDRO:- Positivo, senhor!

 VOZ:- Devereis prestar contas somente a mim! Entendido?

 MIGUEL e EVANDRO:- Positivo, senhor! 

 VOZ:- E a Deus?

 MIGUEL e EVANDRO:- Sim, senhor!

  

(São trazidas e colocadas sobre a mesa pilhas de processos. Entra uma máquina de tortura).

  

MIGUEL:- Preocupam-me as suas últimas atitudes, Evandro...

 EVANDRO:- Só porque procuro cumprir com rigor a lei?

 MIGUEL:- Há momentos em que...

 EVANDRO:- Diga! Momentos em quê?...

 MIGUEL:- Não! Talvez seja loucura minha!

 EVANDRO:- A tortura, Miguel, é um instrumento legítimo para se obter a confissão de um prisioneiro. A doutrina de segurança nacional...

 MIGUEL:- Já discutimos isso! Não é esse o problema!

 EVANDRO:- E qual é o problema?

 MIGUEL:- Somos amigos...

 EVANDRO:- Quase irmãos...

 MIGUEL:- Você... Evandro, eu preciso saber! Você... sente prazer?

 EVANDRO:- O dever acima de tudo!

 MIGUEL:- Você não respondeu!

 EVANDRO:- A Pátria, Miguel, a Pátria responde por nós! Veja... esse comunicado oficial... acabou de chegar. Diz: “o coiote uivou para a lua, ao anoitecer!”

 MIGUEL:- Já decodificou?

 EVANDRO:- Positivo!

 MIGUEL:- E então? O que significa?

 EVANDRO:- Alegre-se, amigo! São boas notícias!

 MIGUEL:- Fala, logo, homem!

EVANDRO:- Ouça, ouça bem! Significa: “Marighella está morto”! O pesadelo está terminando! Não existem batatas em nosso campo! Não existem batatas em nosso campo, Miguel!

  

(Entra, forte, discurso do General Geisel. Miguel e Evandro colocam em si mesmos insígnias do generalato e de honra ao mérito, enquanto a voz em off vai, aos poucos, cobrindo a voz de Geisel).

  

VOZ:- ...e por todos os serviços prestados às mais nobres causas da Pátria, o Presidente da República houve por bem e sente-se honrado em recebê-los entre os mais insignes membros de nosso generalato, além de conceder-lhes a medalha de honra ao mérito...

 

(Volta a voz de Geisel a encobrir a voz em off. Pequena pausa. Miguel e Evandro voltam-se um para o outro. Cumprimentam-se e abraçam-se).

  

EVANDRO:- Adeus, amigo! Escreva sempre!

 MIGUEL:- Sim, escreverei!

 EVANDRO:- O País estará bem servido no Exterior, Miguel!

 MIGUEL:- Tudo farei para isso, amigo!

 EVANDRO:- E cuida bem de nosso... você sabe! Do nosso segredo!

 MIGUEL:- Será cuidado, Evandro! O exterior fará bem a ele!

 EVANDRO:- E a você, também! É a sua vocação.

 MIGUEL:- Como a sua é comandar! Sucesso!

 EVANDRO:- Sucesso! E nada de batatas, heim? E nada de batatas!

 MIGUEL:- Só as inglesas, Evandro, só as inglesas!...

 EVANDRO:- ...que na verdade são bem nossas... de nossos índios...

  

(Agora são os velhos generais: cabelos e bigodes brancos, mais gordos, mas ainda arrogantes e empertigados. Reencontram-se no velho salão espelhado).

  

MIGUEL:- O Evandro de sempre!

 EVANDRO:- E o Miguel de sempre!

  

(Abraçam-se).

  

MIGUEL:- O tempo...

 EVANDRO:- Passou, Miguel, passou!

 MIGUEL:- Mas não a amizade...

 EVANDRO:- Podem passar séculos, amigo!

 MIGUEL:- Reformado, general Evandro?

 EVANDRO:- Positivo, Miguel, positivo! E você?

 MIGUEL:- Também...

 EVANDRO:- Mas, como?... depois desses anos todos...

 MIGUEL:- Precisava vê-lo! Há uma tragédia!

 EVANDRO:- Uma tragédia? O que aconteceu?

 MIGUEL:-  Não é o que aconteceu... mas o que está para acontecer!

 EVANDRO:- Como? O que pode acontecer? Nossos cri... nossos pecados são tão antigos! Nada... nada mais pode nos atingir! Temos a proteção do tempo e do silêncio dos mortos. Não há testemunhas! Não há mais provas! Não há mais nada! O que pode acontecer conosco? Diga, o quê? O quê?

 MIGUEL:-  Compreendo a sua aflição, meu amigo. Também a minha alma às vezes se sobressalta. (Olha ao redor, para certificar-se de que não há ninguém). São muitos os fantasmas que nos perseguem. O que me reconforta é lembrar que estava em jogo o destino da Pátria. Defendíamos  os princípios cristãos contra... contra o império do mal... Eu, pelo menos, acreditava nisso...

 EVANDRO:- O que você está querendo dizer? Que eu não acreditava nesses ideais? É isso?

 MIGUEL:- Não, Evandro, eu não duvido de que você também acreditava... Só acho que não precisava ir tão longe... Olha, diga aqui só para mim: você fazia também por prazer, não era?

 EVANDRO:- Você está louco!...

 MIGUEL:- Louco, não, Evandro, louco, não... Louco é quem tortura por prazer... Eu era apenas um profissional! Nunca encostei um dedo em alguém por minha vontade!

 

EVANDRO:- Não fale em tortura, Miguel! Perto de mim, não volte nunca mais a falar essa palavra, ouviu? Nunca mais!

 MIGUEL:- Está bem, Evandro, está bem! Não precisa se alterar! Não comigo, que sei tudo o que passamos. Pelo menos, acho que sei.. Não vou falar mais nisso... Mas você não pode esquecer que tudo aconteceu em nome de idéias nobres, certo, Evandro? Certo?

EVANDRO:- Positivo, Miguel, positivo. Só essa certeza é que manteve minha sanidade durante todos esses anos! Você tem razão. Era preciso defender a pátria! Com luta, com sangue, até mesmo de inocentes!

 MIGUEL:- Numa guerra morrem inocentes, muitos inocentes. Só o sangue deles justifica a vitória!

 EVANDRO:- Ou a luta! A luta por uma vitória! Uma vitória de merda, a nossa, Miguel... 

 MIGUEL:- “Ao vencedor, as batatas...” É isso, Evandro?

 EVANDRO:- Positivo, Miguel! É a nossa situação atual! Com todos esses... socialistas, comunistas... no governo, nas escolas, até mesmo em setores das Forças Armadas! Batatas, Miguel, batatas foi tudo o que nos restou...

 MIGUEL:- Estamos fugindo do objetivo de nosso encontro...

 EVANDRO:- E  você tem uma tragédia... Vamos! Fale! Que tragédia é essa, homem?

 MIGUEL:-  Bem, é... é... Veja!

  

( Um foco de luz ilumina Ângela e Guilherme rindo, conversando, abraçando-se e beijando-se).

  

EVANDRO:- Ângela! É Ângela, minha filha! Com...

 MIGUEL:- ...Guilherme! Sim, Guilherme! Depois de todos esses anos... talvez você não esteja reconhecendo... Mas é ele! Guilherme! O nosso Guilherme!

 EVANDRO:- Não! Impossível! Não pode ser! Como isso pôde acontecer, Miguel? Como?!

 MIGUEL:-  O destino... a vida... sei lá! E essa é a nossa tragédia! Nossos filhos vão se casar!

 EVANDRO:- Casar?! Você disse casar?!

 MIGUEL:- E precisamos impedir!

 EVANDRO:- Como?

 MIGUEL:- Contando-lhes a verdade! A verdade nua e crua, Evandro.

  

(Pequena pausa. O casal de namorados desaparece).

  

EVANDRO (como a acordar de um pesadelo):- A verdade! Contar-lhes a verdade!?...

 MIGUEL:- Sim, toda a verdade!

 EVANDRO:- Você enlouqueceu!

 MIGUEL:- Não há outra saída. São jovens. E o tempo se encarregará das feridas.

 EVANDRO:- Você não entendeu, Miguel! Ficou burro depois desses anos todos?...

 MIGUEL:- Assim você está me ofendendo, Evandro!... Nós... nós nunca...

 EVANDRO:- Estou! Estou te ofendendo, sim! Preste atenção! Ouça!

 

 (A luz volta a iluminar Ângela e Guilherme. Evandro vai até eles, pega Ângela pela mão, enquanto Guilherme posta-se ao lado de Miguel).

  

ÂNGELA:- General Miguel, este é meu pai, General Evandro!

 MIGUEL:- Prazer em conhecê-lo! (Batem continência e apertam-se as mãos). Pelas palavras de meu filho, já sei que seremos grandes amigos! Entrem! O jantar será servido logo!

  

(Sentam-se em torno de uma mesa de jantar. Trocam gentilezas entre si. Riem. Comem. Bebem. O casal de namorados parece estar no paraíso).

  

EVANDRO:- Muito bem, meus queridos! Está tudo ótimo, maravilhoso! Só há um pequeno detalhe...

 GUILHERME:- Detalhe, general? Que detalhe?

 MIGUEL:- Ouça o general, meu filho! É o seu futuro!

 GUILHERME:- Meu futuro é Ângela.

 ÂNGELA:- E Guilherme é a minha vida!

 MIGUEL:- Vocês são jovens... Vão compreender!

 GUILHERME:- Compreender?!

 ÂNGELA:- De que vocês estão falando?

 EVANDRO:- Vocês não podem se casar! É isso: vocês não podem se casar!

 ÂNGELA e GUILHERME:- Não podemos?!

 EVANDRO:- Não! Não podem! E sabem por quê? Sabem?

 MIGUEL:- Porque vocês são irmãos! Apenas isso: são irmãos!

  

(Congela-se a cena que, em seguida, se desfaz).

  

MIGUEL:- Pois então? Não é simples? A única solução é a verdade!

 EVANDRO:- Acho que você não entendeu! O problema não é só eles ficarem sabendo a verdade! Nem como lhes contar a verdade! O problema é a conseqüência disso!

 MIGUEL:-  Conseqüência?

 EVANDRO:- Positivo, Miguel. A conseqüência!

 MIGUEL:-  Ah! sim! Eles vão ficar muito chateados, tristes mesmo. Mas isso passa. Compreenderão que perderam um parceiro mas ganharam um irmão, uma irmã...

 EVANDRO:- Desculpe, amigo, mas sua...  sua falta de percepção do problema não é própria do Miguel que eu conheci. Você ainda não entendeu.

 MIGUEL:-  Não entendi? Não? Não entendi... Está certo... não entendi... então me explica... talvez eu esteja diminuindo o impacto da verdade na vida deles! Mas não vejo nada de irremediável...

 EVANDRO:- Miguel, preste atenção, Miguel! Sim, eles vão sofrer! Vão sofrer muito, quando souberem que são irmãos! Mas isso é o de menos! Como você mesmo disse, isso passa...

 MIGUEL:-  E então?

 EVANDRO:- Miguel! Você se recusa a enxergar! É preciso que você perceba a gravidade da situação. Acho que você esqueceu as circunstâncias em que Guilherme foi... foi ... concebido! Você está se esquecendo da mãe dele, sacou? Da mãe , Miguel! Como lhe falar da mãe dele?!... E de todo o resto?! Como? Miguel? Me diga: como?!


CENA 5:

 

 (Simultaneamente, dois ambientes representam a casa de Miguel e Evandro. Ambos conversam com os respectivos filhos: Evandro com Ângela e Miguel com Guilherme).

  

GUILHERME: - Meu pai, meus planos são outros. Que conversa é essa?

 ÂNGELA: -  Não estou te entendendo, general.

 MIGUEL:-  Não era o que você queria? Ir para o exterior? Trabalhar em Nova Iorque?

 EVANDRO:- Não gosto que você me chame de general.

 GUILHERME: - Ah! Estou entendendo agora: tem o seu dedo nessa história, não é, general?

 ÂNGELA: -  Então, por que isso agora? Me diga, por quê?

 MIGUEL:- É... mas não era isso o que você sempre quis?

 EVANDRO:- Eu sempre quis te proteger e agora não concordo com que você se separe definitivamente de seu marido e fique com um.. um..

 GUILHERME: -  Um golpe sujo de sua parte, general!... Mais um!... Você sabe que eu não admito que você interfira na minha vida...

 ÂNGELA:- A vida é minha, meu pai. E você  sabe que eu não tenho mais nada a ver com meu ex-marido, ouviu? Acabou... acabou...

 MIGUEL:- Você quer acabar sua vida como um burocrata qualquer, atrás de uma mesa, fazendo sempre a mesma coisa, quer? É a sua grande oportunidade...

 EVANDRO:- A oportunidade não bate duas vezes à mesma porta, Ângela. É um absurdo você abandonar seu marido por uma aventura...

 GUILHERME: -  É um absurdo o que você está me dizendo, meu pai. Por acaso  tem alguma coisa contra o meu casamento com Ângela?

 ÂNGELA: -  Você está insinuando que é contra meu casamento com Guilherme?

 MIGUEL:-  Não... não é bem ser contra... mas vocês não podem...

 EVANDRO:- Positivo... sou radicalmente contra!

 ÂNGELA e GUILHERME: -  Vocês estão loucos!

 ÂNGELA: -  Nós nos amamos...

 GUILHERME: -  ... e nada poderá nos separar!

  

(A cena se congela por um instante. Focos de luz sobre Ângela e Guilherme que se voltam  um para o outro, aproximam-se, abraçam-se e beijam-se, na fusão dos dois focos de luz).

 

CENA 6:

  

(Apartamento de Guilherme. Ele e Ângela acabaram de fazer amor).

  

ÂNGELA: -  Você tem certeza, Guilherme?

 GUILHERME: -  De quê, minha querida?

 ÂNGELA: -  De  que me ama? Diz, você me ama?

 

GUILHERME: -  Você ainda tem dúvida? Ou será que preciso gritar para o mundo: eu te amo! (Vai até a janela e grita para fora) Eu amo esta mulher! Eu amo! Ângela! Eu te amo!

 ÂNGELA: - (corre a tapar-lhe a boca, entre risos e brincadeiras. Voltam para a cama):- Está bem, está bem, eu acredito. Também não posso mais viver sem você. Por que não nos encontramos antes? Por quê? Quanto sofrimento teria sido evitado... para mim...

 GUILHERME: - Não falemos de dor... estamos juntos. E isso basta. Não gosto de lembrar o seu passado, você sabe.

 ÂNGELA: -  Ciúmes, querido?

 GUILHERME: -  Não são ciúmes... um sentimento de tempo perdido. Sim: por que não nos conhecemos antes? O que eu mais queria no mundo, agora, neste momento, é ter sido o pai de seus filhos.

 ÂNGELA: -  Você é e será o pai de meus filhos! Nós vamos viver juntos, casar... temos uma vida inteira para viver juntos... e eu  posso te dar filhos, se é  o que você quer, meu querido...

 GUILHERME: -  Claro, claro, meu amor... (Leva a mão  ao amuleto que carrega numa correntinha presa ao pescoço).

 ÂNGELA: -  O que é isso, Guilherme?... Vi uma sombra em seus olhos ou estou vendo coisas?

 GUILHERME: -  Não, não, não há sombra alguma... São... apenas...

 ÂNGELA: -  Apenas o quê?...

 GUILHERME: -  Nada! Coisas do passado...

 ÂNGELA: -  Têm alguma coisa a ver com esse amuleto? Sempre quis lhe perguntar o que ele significa...

 GUILHERME: -  Você... acredita em objetos mágicos?...

 ÂNGELA: - Você sabe que não... a não ser, é claro, como objeto intermediário...

 GUILHERME (rindo):-  Sem psicologia, Ângela, sem psicologia...

 ÂNGELA: -  Está bem, desculpe. Mas fale...

 GUILHERME: -  Este amuleto... ele me foi dado por uma vidente... aquela mulher que você encontrou lá no comitê...

 ÂNGELA: - Madame Risoleta? Há quanto tempo? Me conta: o que ela ‘viu’?

 GUILHERME: -  Você não acredita... nem acreditaria...

 ÂNGELA: -  Meu ceticismo não impede que eu ouça a sua história e respeite a sua crença. Vamos, conte, agora estou curiosa...

 GUILHERME: -  Promete não zombar de mim?

 ÂNGELA: -  Juro... juro por minha mãe... que já morreu

 GUILHERME: -  Eu devia ter uns vinte anos... estava, acho, no primeiro ano de faculdade...

  

(Um foco de luz sobre um Guilherme jovem, de cabelos compridos, com uma colega de faculdade).

  

GUILHERME: - Mas, Valquíria, vidente?... Eu não sei, não... Isso pode ser... enganação...

 VALQUÍRIA:- Não, Guilherme, essa mulher é muito legal, barra limpa mesmo... eu te juro... vamos... se você não acredita, vem comigo só pra me fazer companhia... vem...

 GUILHERME: - O que você vai fazer lá, afinal?

 VALQUÍRIA:- Ora, Guilherme, o que você acha que a gente faz numa vidente? Não se seja bobo...

 GUILHERME: - Está bem, eu vou com você, mas se essa mulher falar bobagem, eu vou dar risada...

  

(No “consultório” de Madame Risoleta).

  

M.RISOLETA:- Entrem, jovens, entrem... Madame Risoleta sabe tudo: presente, passado e futuro...

 GUILHERME (para Valquíria):- A bola de cristal... cadê a bola de cristal?

 VALQUÍRIA:- Fica quieto, Guilherme!

 M.RISOLETA:- Não se preocupe, garota... Todo mudo procura a bola de cristal... Valquíria... é o seu nome, não é?...

 VALQUÍRIA:- Como... como a senhora sabe?

 M.RISOLETA:-  Eu vou ler a sua sorte. Mas antes quero falar com seu amigo aí... Guilherme... vem, Guilherme, entra aqui... há coisas muito importantes que você precisa saber... ou contra as quais precisa se prevenir... vem... Madame Risoleta vai te ajudar...

  

(Guilherme é levado a sentar-se diante de M. Risoleta. Há um clima de mistério acentuado pela fala pausada da vidente e pelo jogo de luz e sombra).

  

M.RISOLETA:- Você, Guilherme, tem um futuro brilhante pela frente... no trabalho... na política... mas forças poderosas do passado conspiram contra... Não posso saber se essas forças vencerão... isso vai depender exclusivamente de você... e do destino... tudo está escrito... mas não consigo enxergar bem... vejo sombras... vejo luta... não sei... não sei quem vencerá... há duas mulheres... uma representa a morte, o passado... a dor... a outra... a outra é o amor... mas não sei... ela lhe dará o fruto de seu futuro... mas o passado... o passado... eu vejo, agora: é sua mãe... ela está sofrendo... um sofrimento infinito... você está nascendo, mas ela não sobreviveu ao seu nascimento... e a história vai se repetir... não entendo...a história vai se repetir...

 GUILHERME: -  Mas, madame, minha mãe ainda vive... ela não morreu...

 M.RISOLETA:- Pobre rapaz, os teus mistérios, quando revelados, só trarão sofrimento e dor... Os teus mistérios... só trarão sofrimento e dor... quando revelados... (pausa) Você precisa de proteção... muita proteção... olha... coloca esse amuleto no pescoço... ele é muito poderoso... traz incrustada a ponta da presa de uma urutu... são magias muito antigas... de velhos feiticeiros...

 GUILHERME: -  Mas, madame, eu não...

 M.RISOLETA:- Não duvide, Guilherme, não duvide... posso lhe contar muitas outras coisas que lhe provarão o poder de minhas visões... Você deve voltar outras vezes... Mas agora tem de me prometer uma coisa: não tirar nunca esse amuleto do pescoço... Prometa! Vamos, prometa!

 GUILHERME: -  Si...sim... eu... eu prometo...

  

(Retoma-se a cena de Guilherme com Ângela).

  

GUILHERME: -  E foi assim, Ângela, que eu ganhei esse amuleto e nunca mais o tirei...

 ÂNGELA (olhando atentamente o amuleto):- Dente de urutu... engraçado... outro dia, meu pai falou em botar os urutus na rua... Dizem que o veneno da urutu é fatal... como os tanques... Mas, Guilherme, me diga uma coisa: você voltou outras vezes à casa da... da vidente?

 GUILHERME: - Sim, tenho ido lá algumas vezes... ficamos amigos... por isso ela me procurou naquele dia lá no comitê... é que já fazia algum tempo que eu não a procurava...

 ÂNGELA: - ... mas ela tem ajudado você?

 GUILHERME: - Olha, não sei te dizer se ela tem me ajudado... digamos, em termos de resultados objetivos, não... Mas tem-me feito bem conversar com ela... ouvir seus conselhos... suas orientações...

 ÂNGELA: - ... e o amuleto com o dente de urutu?...

 GUILHERME: - Se ele me protege? Acho que não, pois não me protegeu de você...

 ÂNGELA: - Ah! Então você precisa de proteção contra mim, não é? Vou lhe mostrar como eu sou má... (Faz cócegas em Guilherme e os dois riem, se abraçam e se beijam ). Mais uma coisa, Guilherme: e essa história da sua mãe?

 GUILHERME: - Essa eu também não entendi. Muitas vezes tentei esclarecer esse ponto com ela, mas nunca obtive respostas conclusivas... Se eu insistia, Madame Risoleta alegava que não conseguia controlar todas as suas visões e profecias quando estava em estado de transe... Também esse negócio de que a história iria se repetir... não sei... acho que nunca saberemos...

 ÂNGELA: - Mas sua mãe...

 GUILHERME: - ...faleceu há poucos anos... ataque cardíaco... à noite... Morreu como um passarinho, se é que os pássaros morrem sem sofrer...

 ÂNGELA: - E seu pai?...

 GUILHERME: -  Meu pai! Meu pai... você sabe...

 ÂNGELA: -  Guilherme... Guilherme... por que isso, meu querido? Esse rancor...

 GUILHERME: -  Não sei... cabeças diferentes... Não me conformo com o fato de... somos de gerações... de gerações, não, de galáxias diferentes...

 ÂNGELA: -  Mas ele é seu pai...

 GUILHERME: -  Pai... apenas um ser que me gerou, que me pôs no mundo. Mas odeio tudo o que ele viveu, tudo o que ele foi, tudo o que ele é...

 ÂNGELA: -  Engraçado, você não se parece com ele...

 GUILHERME: -  Ainda bem! Não me pareço com ele nem com minha mãe... Ela era uma mulher muito forte, não fisicamente, sabe? mas de idéias, de idéias até mesmo mais radicais que meu pai. Eu costumava brincar que ela era o coronel da casa. Meu pai... o general... não era ainda general... só dava uma de bravo no quartel, porque em casa quem mandava mesmo  era mamãe...

 ÂNGELA: -  Mas... e esse ódio todo contra seu pai, Guilherme?

 GUILHERME: -  Coisas que eu fiquei sabendo... diferenças políticas... enfim, não gosto de falar nisso... (pausa) Vamos, fale de você, de sua mãe, como ela era?

 ÂNGELA: -  Minha mãe? Ao contrário da sua, era extremamente submissa...

 GUILHERME: -  Quando ela morreu?

 ÂNGELA: -  Já faz quase dois anos... câncer... mas eu acho que foi mesmo de tristeza...

 GUILHERME: -  Tristeza? Seus pais...

 ÂNGELA: -  Não eram felizes... Não creio que papai a fizesse sofrer de propósito, mas o gênio dele é terrível... um homem muito duro... muito... muito general, se é que você me entende...

 GUILHERME: -  E como entendo! Se não fosse o gênio forte de minha mãe, acho que ela teria sofrido muito também...

 ÂNGELA: -  Nós temos alguns pontos  interessantes de coincidência em nossas vidas, Guilherme...

 GUILHERME: -  Como assim?

 ÂNGELA: -  Acho engraçado o fato de  termos pais militares... E eles são da mesma geração... será que eles realmente não se conhecem?

 GUILHERME: -  Uma vez eu perguntei ao general se ele conhecia o seu... Ele titubeou um pouco... vi uma sombra de... não sei se susto... ou preocupação em seus olhos... ele me garantiu que não...

 ÂNGELA: - Eu também fiquei meio desconfiada da maneira como o meu general negou conhecer o seu... Ainda mais que uns dois dias depois ele começou a me aporrinhar a vida com relação ao nosso caso...

 GUILHERME: -  Meu pai também começou a fazer pressão para eu ir para o exterior... Acho  que andou mexendo alguns pauzinhos lá na empresa... não sei... esses militares deixaram rastros muito fortes em muitas organizações... O mais estranho foi quando eu falei no seu nome, ele ficou furioso...

 ÂNGELA: -  É estranho... muito estranho. Que um só general implicasse com nosso romance, vá lá! Mas os dois?! É demais!

  

(Ângela pega em uma parede um florete e faz alguns movimentos com ele).

  

GUILHERME: -  O que será que deu neles? Até parece que combinaram!... Mas isso não importa mais: o que nós resolvemos está resolvido! Ninguém pode mudar nossas vidas! Cuidado, Ângela! Esse florete é afiado!

 ANGELA:- Nunca entendi essa sua paixão pela esgrima! Como meu pai!

 GUILHERME:- Seu pai? Ele também?

 

ÂNGELA:- Me diga uma coisa, Afonso. Você seria capaz de matar alguém com isto?

 GUILHERME:- Matar? Esgrima é apenas um esporte!

 ÂNGELA:- Uma espada afiada... pode matar! Não pode?

  

(Toca a campainha).

  

ÂNGELA: -  Quem será?

 GUILHERME: -  Deve ser o Afonso. Pedi-lhe que viesse aqui...

  

(Ângela vai para o banheiro. Guilherme se veste e vai atender a porta. Os dois amigos se cumprimentam. Afonso entra).

  

AFONSO:- Você ouviu as notícias?... Ouviu?

 GUILHERME:- Que notícias, Afonso? De que você está falando?

 AFONSO:- Aprovaram o impeachment! O Congresso acaba de aprovar! Estamos livres dele!!! Vamos,  vista-se! Vamos comemorar! O povo está nas ruas!...

 GUILHERME:- Fico muito feliz, Afonso, mas meus planos são outros... Preciso cuidar da minha vida...

 AFONSO:- Cuidar da vida? Abra a janela, olhe para fora, a história está sendo escrita, Guilherme!

 GUILHERME:- Tenho outra história para escrever, meu amigo. Eu e Ângela já decidimos tudo e não queremos perder tempo...

 AFONSO: -  Quer dizer que vocês não vêem outra saída? Os generais continuam implicando com vocês, não é? Que raça, essa! Justificam toda a ojeriza que sinto por essa gente...

 

GUILHERME: -  Eu quero que esses generais se fodam!  Não dá mais para  viver sem Ângela. O divórcio dela já saiu e nós vamos nos casar imediatamente.

 AFONSO: -  O que eu posso fazer por vocês?

 GUILHERME: - O plano é o seguinte: vamos dar entrada nos papéis amanhã. Enquanto correm as proclamas, eu e Ângela evitaremos nos encontrar e você será nossa ponte, se houver necessidade. Ângela vai pedir licença da faculdade por um ano e eu vou aceitar o estágio em Nova Iorque...

 AFONSO: - Vocês vão para Nova Iorque... e o pai de Ângela? O que ela vai dizer?...

 GUILHERME: -  Que aceitou a bolsa de estudos para um ano nos Estados Unidos... Já o meu caso é mais simples: foi o general que mexeu os pauzinhos para eu ir. É claro que vou fazer um pouco de doce, para ele não desconfiar...

 AFONSO: -  E então?...

 GUILHERME: -  Nós nos casamos e viajamos a seguir, no mesmo dia, se possível. Tenho um mês de férias, para a nossa lua de mel e  ficaremos mais seis meses em Nova Iorque, que é o tempo de meu estágio. Assim que nos instalarmos, Ângela manda buscar as crianças...

 AFONSO: -  Estou pensando no ex-marido de Ângela. Pode ser um problema!...

 GUILHERME: -  Oh! não! Por uma dessas felizes coincidências, o cara vai ter que ir para a Itália, por um ano, pelo menos... para assumir os negócios que o pai dele tem por lá...

 AFONSO: - Tudo se encaixa... E eu, o que devo fazer por vocês?

 GUILHERME: -  Eu e Ângela estivemos conversando... Ela acha que eu  não devo mexer no passado, que os velhos acabarão por aceitar nosso casamento... Por mim, tanto faz, que não quero saber de muita conversa nem com meu pai nem com meu futuro sogro... Mas (baixando a voz e espreitando para ver se Ângela ainda não saiu no banheiro) eu não sei, não... Fiquei muito curioso para saber os motivos de tanta e tão forte oposição dos generais... Gostaria eu mesmo de ir atrás, mergulhar no passado, buscar explicações... Mas não posso... Há coisas estranhas, muito estranhas. Pode ser que tudo não passe de imaginação... Por isso, meu amigo, fique à vontade para bancar o detetive... Tente desvendar o meu passado como se fosse eu mesmo a fazê-lo...

 

CENA 7:

 

 (Sala de esgrima. Evandro anda de um lado para o outro, nervoso, gesticulando muito, olhando a todo momento o relógio. De um ponto qualquer de onde não possa ser visto, Afonso espreita. Entra Miguel).

  

EVANDRO:- Porra, Miguel, que negócio é esse de marcar encontro comigo aqui de novo?

 MIGUEL:-  Como?! Não foi você que me mandou recado?!

 EVANDRO:- Recado? Eu? Você deve estar maluco...

 MIGUEL:-  Então... então deve ter havido algum mal entendido...

 EVANDRO:- Vamos deixar de ora-veja, Miguel. Parece que alguém nos pregou uma peça. Mas quem?

 MIGUEL:-  Deve ter sido algum tipo de brincadeira...

 EVANDRO:- Não! Não foi nenhum mal entendido. Alguém está querendo alguma coisa de nós... (Vasculha toda a sala). Não pode ser brincadeira. Isso está me cheirando coisa de comunistas...

 MIGUEL:-  Deixa disso, Evandro. Você já está querendo enxergar conspiração onde não há nada mais que um mal entendido.

 

EVANDRO:- Não me venha dizer  que estou procurando chifre em cabeça de cavalo!

 MIGUEL:-  Está.. está, sim! Chifre em cabeça de cavalo... Puxa, há quanto tempo não ouço essa... essa...

 EVANDRO:- É mesmo... O tempo passa e a gente volta e meia acaba usando as mesmas velhas expressões...

  

(Sentam-se, agora mais calmos e mergulhados em lembranças).

  

MIGUEL:-  Se nossos filhos nos ouvirem falar assim, vão rir de nós... dirão que estamos velhos, ultrapassados... Ainda bem que já faz mais de seis meses que eles se separaram...

 EVANDRO:- É... tudo se  resolveu ... Mas você disse velhos? Velhos, talvez, Miguel, mas ultrapassados, nunca! Onde está o antigo orgulho pelo muito que já fizemos pela pátria?!

 MIGUEL:-  Será que valeu a pena?

 EVANDRO:- Positivo, Miguel! Valeu, valeu muito! Cometemos nossos pecadilhos, mas obtivemos grandes vitórias!

 MIGUEL:-  Mesmo no caso da...

 EVANDRO:- Positivo, Miguel, mil vezes positivo! Nesses mais de trinta anos, tenho pensado muito nisso. Tenho remoído milhares de vezes tudo o que aconteceu. Tenho até mesmo sofrido por isso:  não precisava ter acontecido do jeito que aconteceu. Mas, não podemos mudar as coisas. A vida que foi, foi para sempre. Não podemos pisar a mesma pegada duas vezes. O que mais me atormentou durante todo esse tempo foi não poder falar... Nem para um padre... nem no segredo absoluto da confissão eu pude confiar, Miguel. Que Deus me castigue, se estou blasfemando. Mas até para pensar... até pensar, Miguel, eu tinha medo de meus pensamentos...

 MIGUEL:-  Eu, também, Evandro. Não digo que eu tinha medo do padre num confessionário, porque nunca fui muito ligado a isso, mas também temia e temo por tudo quanto vivemos... Será que não... que não exageramos... que não podíamos mesmo ter evitado tudo?...

 EVANDRO:- Não... acho que não... (Ambos começam a despir suas vestes civis e a vestir o uniforme de coronel, empertigando-se pouco a pouco, removendo o bigode e cabelos grisalhos, remoçando no porte e na voz). Os tempos eram muito difíceis. A pátria estava em perigo. Não podíamos vacilar! O inimigo nos espreitava de cada canto, escondido, pronto para dar o bote... Além disso, éramos... éramos, não... somos! Somos jovens! Temos que aproveitar cada momento, cada ação, para mostrar que somos dignos da confiança que em nós depositam nossos superiores. Nós somos o futuro e o futuro depende de nós... (Puxam uma máquina de tortura). Que entre a prisioneira!

  

(Entra a prisioneira, uma mulher jovem, com as mãos atadas. Evandro e Miguel amarram-na à máquina).

  

MIGUEL:-  Qual é o teu nome, mulher?

  

(Ante o silêncio da prisioneira, ele repete a pergunta várias vezes e várias vezes a tortura).

  

EVANDRO:- Devagar, parceiro. Não precisa exagerar: você precisa usar a psicologia. Deixe comigo. (Miguel afasta-se.  Evandro aproxima-se da prisioneira). Vamos lá, minha senhora, não custa cooperar, se não o nosso amigo aí pode ficar zangado. E você não sabe do que ele é capaz, quando se enfurece. Vamos. Responda às nossas perguntas. Não vou machucá-la. E não vai doer nada, se você contar o que nós queremos saber. (Pausa). Você já sofreu muito, não gosto disso, mas nós precisamos saber. (Enxuga o rosto da prisioneira com suavidade. Recebe uma cusparada em troca). Não, não é isso. Você não está entendendo. Eu sou seu amigo. Não quero que você se machuque  mais. Não vou nem me importar com o que você fez. Olha, vou dar uma voltinha, deixar você pensando um pouco e, quando voltar, espero encontrá-la mais... mais receptiva, entende?

  

(Evandro afasta-se para um ângulo em que não possa ser visto pela prisioneira e Miguel passa a torturá-la novamente. Dessa vez, ela geme e grita de dor. Evandro ‘retorna’).

  

EVANDRO:- Quanto sofrimento inútil! Você vai falar, mais cedo ou mais tarde! Para que resistir? Vamos, fale comigo: não vou machucá-la e não vou também deixar o meu amigo aí te tocar outra vez. Basta colaborar um pouco...

  

(Miguel sai, a um gesto de Evandro).

  

EVANDRO:- Estamos sozinhos, agora. Não será humilhante para você responder. Vamos  conversar como pessoas civilizadas.

  

(Acende um cigarro e enfia-o entre os lábios da prisioneira, que o cospe longe).

  

PRISIONEIRA:- Pessoas civilizadas! Canalha. Eu vi o teu olhar bem de perto, sacana. Você se faz de bonzinho... mas no jogo você é o pior, eu sei, o pior... Vamos, chegue mais perto: veja o meu corpo. Está machucado, dolorido, mas ainda é jovem e belo... Vamos, rasgue as poucas roupas que ainda cobrem o que resta de minha dignidade. Sinta o cheiro de minha carne macerada, distendida ao limite da dor... Vem, cheire, sinta o cheiro do sangue, do suor, da dor, do desejo que cresce entre as tuas pernas... Pensa que eu não sei? Você quer é me possuir. Vamos. Cumpre o teu destino. Você quer me violentar!

 Evandro (quase colado ao corpo seminu da prisioneira):- Não! Não! Eu sou cristão! Eu não estupro inocentes... Eu não quero...

 PRISIONEIRA:- Inocente? E quem disse que eu sou inocente? Por que estou aqui? Já pensou?  Se me pegaram  é porque alguma eu fiz, não é mesmo? Vamos... é o teu destino...

 EVANDRO:- Afasta-te, Satanás! (Começa a rezar uma prece incompreensível).

 PRISIONEIRA:-  Vamos... sargentão... você tem que soltar os teus demônios... possua-me... a minha carne é o teu destino...

 EVANDRO:- Não posso! Eu não posso! Eu sou cristão! (Continua a rezar de forma incompreensível, misturando as palavras de várias preces).

 PRISIONEIRA:- Sim, você é cristão... cristão e estuprador! Por que não? Pensa que os cristãos não fazem isso? Vamos! Agora sou eu que quero... Quero sentir o teu cacete cristão dentro de mim! Vem... vem...

 EVANDRO:- Não! Não me provoque!

 PRISIONEIRA:- Ou será que você não é homem?! É o teu amigo lá que é o teu macho? Vamos! Enfrente uma fêmea no cio!

 EVANDRO:- Cala-te, miserável!

 PRISIONEIRA:-  Ah! É isso! Ele só é macho na hora de impingir a dor... Fracasso é o que você é, sargentão, fracasso... brocha... bicha...

 EVANDRO (esbofeteia a prisioneira):- Cala-te, maldita! Cala essa boca, prostituta!

 PRISIONEIRA:- Sim, a tua prostituta! Mas você não é homem para me possuir! Os outros homens do quartel é que devem te enrabar!...

 EVANDRO:-(esbofeteia novamente a prisioneira):- Cala-te, maldita! Se não eu...

 PRISIONEIRA:-  Se não o quê, heim? O quê? O que mais você pode fazer comigo? Matar-me? E ficar sem as suas desejadas informações? Canalha! Vamos, possua-me! É isso o que você quer!

 EVANDRO:- Não! Não! Mil vezes não!

 PRISIONEIRA:-  Frouxo! Covarde! Sargentão de merda... Eu sempre vi em seus olhos o desejo! Vamos! Estou à sua mercê! Sou tua... tua! Vamos! Olhe para os meus seios... para o meu ventre... você quer tocá-los, não com raiva, mas com tesão... vamos... passe suas mãos... elas me feriram, mas também podem dar prazer... Vem, filho da puta!

  

(Enlouquecido, Evandro violenta a prisioneira, enquanto a luz vai, pouco a pouco, se apagando. Ouvem-se gemidos, gritos e palavrões da prisioneira. Quando as luzes voltam a acender-se, ainda a sala de esgrima. Evandro está sentado com o rosto entre as mãos, desolado. A seu lado, Miguel).

  

MIGUEL:- Você conhece a história do samurai que tinha por missão vingar a morte de seu senhor?

 EVANDRO:- Samurai? Que droga é essa agora?

 MIGUEL:- Depois de perseguir o assassino de seu senhor por vilas e cidades, em cada casa suspeita, em cada birosca de beira de estrada, o samurai finalmente encurralou o guerreiro e já estava pronto para desferir-lhe o golpe fatal... Neste momento, recebe uma cusparada na cara...

 EVANDRO:- E daí? O que essa merda toda tem a ver?...

 MIGUEL:- Espere! Você tem que ouvir o final! Ao receber a cusparada, o samurai embainhou a espada e retirou-se do combate...

 EVANDRO:- Você está louco, se pensa que eu estou entendendo alguma coisa!

 MIGUEL:- A cusparada, Evandro, deixou furioso o samurai. Se ele matasse o ofensor, ele não estaria vingando a morte de seu senhor... Ele estaria executando uma vingança pessoal!

 EVANDRO:- Você não está querendo dizer que...

 MIGUEL:- Sim, Evandro, você se envolveu pessoalmente... Não foi? Não foi?

 EVANDRO:- Você viu!  Eu não queria! Ela me obrigou! Ela me obrigou!!!

  

(Entra Afonso, ameaçador).

  

AFONSO: - Canalha! Você está mentindo! Você a violentou, sim! Mas foi porque quis! Seu... seu filho da puta! Eu sei toda a verdade!...

 MIGUEL:- Verdade? O que é a verdade? Você não sabe de nada, seu fedelho de merda! Quem é você para gritar assim com um... um general?

 AFONSO: -  Vocês se esqueceram de que existe uma testemunha, um médico...

 EVANDRO (levantando-se):- Cala-te, miserável! A História já apagou o passado!... Se você ouviu alguma coisa nesta sala, foi a sua própria imaginação. Não houve nada, não aconteceu nada! O tempo e os homens  já cuidaram de pôr um ponto final nessa história toda!

 AFONSO: -  Não é bem assim, general!   Vidas estão em jogo! A verdade precisa...

 MIGUEL:-  Deixe a verdade em seu canto! Ela está morta, enterrada! Saia daqui! Vai embora, antes que...

 AFONSO: - Ameaças, General? O passado é tão negro assim?

 EVANDRO:- Cuidado, rapaz! Não temos mais o cetro do rei nas mãos, mais ainda temos muito do poder! Você não passa de um reporterzinho enxerido...

 AFONSO: - Seu velho sacana! Os tempos são outros! Você não pode me ameaçar assim, impunemente...

 EVANDRO:- Você é que está enganado. A lei ainda pertence a quem possui isto (pega um florete) ou muito dinheiro!...

 AFONSO: - Não tenho medo de você,  seu general de bosta! Estuprador de mulheres indefesas!

  

(Evandro avança contra Afonso, que tenta defender-se: pega uma cadeira e atira-a contra Evandro, depois um outro objeto qualquer, até que consegue alcançar, também, um florete. Os dois lutam ferozmente).

  

EVANDRO:-  Não existem inocentes...

 AFONSO: - Nada justifica o teu crime, general...

 EVANDRO:- Não há crime se não há vítima...

 AFONSO: - Canalha! Ainda nega a existência de vítima...

 EVANDRO:- Ela pediu... a nação pediu isto...

 AFONSO: - Como ousa....desafiar a lógica...

 EVANDRO:- A única lógica era salvar... salvar a pátria...

 AFONSO: - ... matando... estuprando...  

  

(Chega Guilherme. Assusta-se. Grita).

  

GUILHERME: -  Afonso!

  

(No segundo de distração, Evandro atinge o peito de Afonso, que cai. Miguel corre para socorrê-lo, enquanto Guilherme pula na frente de Evandro e, tomando o florete de Afonso, reinicia a luta com Evandro).

  

GUILHERME: -  Maldito! O que está acontecendo aqui?... (Tenta atingir o general).

 EVANDRO:- Calma, eu posso explicar...

 GUILHERME: - Toma, covarde... assassino...

 

 (Lutam por alguns instantes, até que Guilherme atinge o general).

  

EVANDRO (antes de perder os sentidos):- O que... você... fez... não... podia... você... meu filho...

  

(Guilherme olha-o espantado, por um breve instante, e corre a socorrer o amigo).

  

GUILHERME: -  Afonso... meu amigo... Afonso!...

 MIGUEL:-  Ele não está morto, meu filho... (Olha para trás, vê Evandro agonizando). O que você fez, meu filho... o que você fez?

 GUILHERME: -  Afonso... não morra, por favor...

  

(Miguel vai até a porta da sala. Grita por socorro. Aparecem algumas pessoas, para socorrer os feridos. No meio da confusão que se forma, entra também Ângela, grávida de uns seis meses. Corre para a maca onde está sendo conduzido o pai e acompanha-o).

  

GUILHERME: - (enquanto retiram Afonso numa maca):- Afonso, meu amigo, você não pode morrer... Toma! (Tira o amuleto do pescoço e coloca-o entre as mãos do amigo). Isso irá protegê-lo... Você vai ficar bom...

  

(Na cena, estão, agora, apenas Guilherme e Miguel)

  

GUILHERME: -  Mas o que foi que aconteceu aqui, meu pai... Que tragédia... Eu não entendo... Me explica... O que aconteceu?

 MIGUEL:-  Acalme-se, meu filho! Se é que ainda posso chamá-lo assim...

 GUILHERME: - Como?... O que você está dizendo? Você... você é o meu pai... apesar de tudo!... Não é hora para discutirmos nossas diferenças, general...

 MIGUEL:- Então você não ouviu o que disse o Evandro?...

 GUILHERME: - Ouvi. Ouvi, sim, mas não entendi... ele me chamou de...

 MIGUEL:-  ... filho... sim, filho...

 GUILHERME: - Mas eu mal o conheço... como pai de Ângela... por que ele estava lutando com Afonso?... E você? Você o conhece? Será que eu o matei? Que situação absurda é essa, general? O que está acontecendo?

 MIGUEL:- Calma... eu lhe explico tudo. Você viu a Ângela?

 GUILHERME: -  Ângela? Ela esteve aqui?

 MIGUEL:- Sim, você não a viu?

 GUILHERME: -  Não. Onde ela está, agora?

 MIGUEL:-  Acompanhou o pai  ao hospital... Você tem certeza de que não a viu?

 GUILHERME: -  Não, general, eu não a vi ! Por que essa tua insistência?!

 MIGUEL:- É que... ela... ela está grávida!...

 GUILHERME: -  Claro que está. Ela está esperando um filho meu! Estamos juntos, casados, já faz... (Interrompe a fala ao perceber que Miguel fica lívido e quase desmaia. Socorre-o) O que é isso, general, está se sentindo mal? Quer que eu chame um médico?

 MIGUEL:-  Não... não... foi... só... um susto... (recuperando-se) Você... você e Ângela! Não... diga que não é verdade... diga... não pode ser verdade!

 GUILHERME: - O que não pode ser verdade, general? Eu e Ângela? Claro que é verdade! Nós nos casamos e ela está esperando um filho meu... O nosso filho... Você  acha que nós iríamos levar a sério as ameaças do pai dela e a sua oposição ao nosso casamento, general? Somos adultos, donos de nossas vidas e nos amamos... Fizemos o que achávamos que devíamos fazer: casamos! Casamos e somos muito felizes!

 MIGUEL:-  Vocês não deviam ter feito isto... Vocês não deviam...  Você sempre foi um grande teimoso... um... um revoltado... Mas agora você foi longe demais!... Eu preveni o Evandro de que devíamos falar a verdade... Mas, não! Ele não quis!... Achou que bastavam algumas ameaças e Ângela lhe obedeceria... E agora... essa tragédia toda!...

 GUILHERME: - Explique-se, general, chega de meias palavras. A verdade. Que verdade você e...  o pai de Ângela, deixaram de revelar? Vamos, fale! Por que eu e Ângela não podíamos nos casar? E o que tem tudo isso com... com... toda essa confusão que eu encontrei aqui? Vamos, fale... seu... seu... maldito!

 

MIGUEL:-  Nós sempre tivemos nossas diferenças, mas não admito que você fale assim comigo! Afinal eu sou seu... seu...

 GUILHERME: - ... pai, general? Você tem certeza de que queria dizer pai? Então, meu pai, abre o jogo! Deixe de ser general... seja pai! Uma vez na vida, seja pai!...

 MIGUEL:-  Está... está bem, Guilherme... Vou-lhe contar tudo... Não existem mais motivos para que você não saiba...

  

(Os dois se sentam, taciturnos. Guilherme leva a mão ao peito, procurando o amuleto. As luzes apagam-se lentamente).


CENA 8:

  

(O cenário, agora, é uma cela, com um catre, onde Guilherme está deitado. Uma voz anuncia visita para o prisioneiro. Guilherme pula da cama para receber o amigo Afonso, que tem um braço na tipóia).

  

GUILHERME: -  Afonso! Que bom vê-lo, meu amigo... Pensei...

 AFONSO: - Que eu tinha morrido? Vão ser necessárias muitas espadas e muitos generais para me derrubarem...

 GUILHERME: - Me conta, o que está acontecendo? E Ângela? Por que não veio? Estou aqui há dois dias isolado do mundo, ninguém fala comigo... você é a primeira pessoa que... desculpe... estou falando demais... você é quem deve me falar... de Ângela... de tudo...

 AFONSO: -  Meu pobre amigo, o que fizeram com você? Quanto sofrimento inútil! Quantos equívocos! Antes de tudo, me diga, como você está?

 GUILHERME: -  Eu? Então não está vendo? Estou ótimo, meu amigo, estou ótimo. Só me falta uma coisa: Ângela. Quando eu encontrar a Ângela, tudo estará melhor ainda... E você vai me ajudar a encontrá-la, não vai? Como sempre, você, o meu melhor amigo...

 AFONSO: - Não estou entendendo... Você... Ângela...

 GUILHERME: -  Claro, claro, eu sei, nós somos irmãos... o general me contou tudo... e daí? Não é maravilhoso? Ela é minha mulher e nós somos irmãos... a família ideal... irmãos e amantes... e os filhos, filhos de dois irmãos... como é que se chamam os filhos de dois irmãos? Os pais são ao mesmo tempo pais e tios e eles são ao mesmo tempo irmãos e primos... não é isso? E não é legal?...

 AFONSO: -  Não, Guilherme, pára com isso, não é nada disso... Pára...

 GUILHERME: -  Irmãos!... Minha mulher, minha amante, minha amada e minha irmã!...

  AFONSO: - Guilherme, ouça, por favor... Ouça... Não trago boas notícias... mas o que você está falando não é verdade... por favor, me escuta... Olha, aqui está o seu amuleto... acho que ele me trouxe sorte... meu ferimento foi superficial... agora é a sua vez de precisar de sorte... mais do que sorte, você precisa de força, muita força, meu amigo... Mas me escute, por favor, é tudo mentira... mentira, não... é tudo um tremendo equívoco... você e Ângela não são irmãos, ouviu, vocês não são irmãos...

  

(Guilherme parece voltar de dentro de si mesmo e encara o amigo com surpresa).

  

GUILHERME: -  Quer dizer que o... o Evandro... pai de Ângela não é meu pai?

 AFONSO: -  Não, não é!

 GUILHERME: -  Mas o Miguel... que me criou... também não é meu pai... não?

 AFONSO: -  Não, também ele não é o seu pai...

 GUILHERME: - Mas, então... quem... quem é meu pai?

 AFONSO: - Posso lhe responder quase tudo sobre o seu passado, mas esta pergunta eu não sei. Infelizmente, Guilherme, não consegui descobrir quem é o seu verdadeiro pai...

 GUILHERME: - Pai... eu não tenho pai... é isso? E mãe? Quem é minha mãe? Isso você sabe, não? Quem é minha mãe...

 AFONSO: -  Sim, isto eu sei: sua mãe foi uma mulher extraordinária...

 GUILHERME: -  Foi?... o que você quer dizer com isso?

 AFONSO: -  Ela... ela morreu quando você nasceu... E aí começou toda a série de equívocos de sua vida...

 GUILHERME: - Minha mãe? Ela... morreu quando eu nasci!... Madame... Risoleta... ela falou sobre isso! É verdade: ela falou que via minha mãe morrer, quando eu nasci... que a história ia se repetir!...

 AFONSO: -  Eu vou lhe contar tudo... Tem certeza de que quer saber?

 GUILHERME: -  A história... a história vai se repetir... Eu quero ouvir tudo, Afonso! Sou apenas uma sombra, não um ser humano... não tenho passado... sou um... um nada... um ninguém... Você pode me dar uma identidade?... Pode? A historia vai se repetir, Afonso!

 AFONSO: -  Sua mãe era uma ativista política. Foi presa pelas forças da repressão, foi torturada e morta nas dependências do Clube Militar que freqüentávamos... naquela época era quartel... servia aos... encarregados dos inquéritos. Acontece que ela foi estuprada por um dos torturadores... naquele salão de esgrima... por isso Ângela não gostava daquele lugar...

 GUILHERME: -  Foi meu... isto é, o Miguel quem a estuprou?

 AFONSO: - Não. Foi... foi o pai de sua noiva, o general Evandro...

 GUILHERME: - Eu e Ângela somos realmente irmãos!...

 AFONSO: - Aí é que está o equívoco. Quando isso aconteceu, quer dizer, o estupro, ela já estava grávida e ninguém sabia... Só um médico, que a atendeu quando ela deu à luz, é que sabia a verdade...

 GUILHERME:- Por que ele não revelou a verdade?

 AFONSO:- Ele fez um relatório... mas na confusão daqueles tempos, esse relatório se perdeu... Como logo depois ele foi afastado de suas funções, Miguel e Evandro ficaram com a certeza de que o filho da prisioneira, isto é, você, era filho do Evandro... Para escaparem a um inquérito militar e evitarem o escândalo, Miguel e sua mulher assumiram a criança, já que Evandro ainda era solteiro...

 GUILHERME:- O que você está me dizendo é mesmo verdade, meu amigo? Você jura? Eu e Ângela... nós não somos irmãos? É isso? Estamos livres para nos amar... sem culpa... sem barreiras?... (Gira pelo aposento como um pássaro, livre, feliz). Ângela... meu amor... minha querida... somos livres... livres... eu te amo... eu te amo...

  

(Afonso permanece triste e cabisbaixo, ante a euforia do amigo. Espera, como um fardo às costas, que ele se acalme. Suas primeiras palavras vêm num esforço inaudito).

  

AFONSO:- Pois é, Guilherme, acabo de lhe dar, como você mesmo disse, uma identidade... Mas cruel é o destino que faz de um amigo o instrumento de alegria e de desgraça...

 GUILHERME:- O que você está dizendo, Afonso? Por que fica aí com essa cara de defunto quando o momento é de alegria? As paredes e as grades desta prisão acabam de ser destruídas... não sou mais prisioneiro... de nada... de ninguém... nem de mim mesmo... posso amar a mulher que me ama e vai me dar um filho... sou o homem mais feliz do mundo, Afonso...

 AFONSO:- Guilherme, meu mais querido amigo, meu irmão... saiba que estou ao seu lado sempre... Não, não sou eu quem está aqui, agora, para cumprir a missão mais triste... Não, eu queria morrer... mas tenho de lhe contar... Guilherme, ouça, eu não queria... não, ó Deus, por que eu, por quê, meu Deus...

 GUILHERME:- O que é isso, meu amigo? O que você tem ainda para me contar? O Evandro, pai de Ângela, morreu? É isso?

 AFONSO:- Sim, Guilherme, ele morreu...

 GUILHERME:- Está certo, é uma grande tragédia... Eu o matei... mas foi em legítima defesa... para defender meu amigo... meu irmão... você! Devo ser julgado por isso... Ângela... ela me ama o suficiente para compreender... foi uma fatalidade... não queria matá-lo... foi uma fatalidade...

 AFONSO:- Sim, isso foi uma fatalidade... mas coisas piores aconteceram...

 GUILHERME:- Coisas piores... como? Que coisas?

 AFONSO:- Antes de morrer, Evandro contou a Ângela que vocês eram irmãos...

 GUILHERME:- Mas isso não é  verdade, não é, Afonso? Você lhe disse que isso não é verdade... diga-me, você  lhe contou toda a história... a mesma história que você me contou...

 AFONSO:- Infelizmente, fiquei no hospital, inconsciente, por várias horas... não consegui falar com a Ângela...

 GUILHERME:- Mas ainda há tempo, meu amigo, vai... vai correndo contar-lhe... ela vai entender... e virá para os meus braços... não a deixe esperar mais... vai...

 AFONSO:- Não... não posso... não posso mais... o tempo acabou...

 GUILHERME:- O que você está querendo dizer?

 AFONSO:- A história, Guilherme, a história se repetiu...Ângela... Ângela... morreu... ela... não está mais entre nós...

  

(Guilherme fica um instante sem ação, depois toma o amuleto, ajoelha-se e, de forma contida e desesperada, começa a falar).

  

GUILHERME: - Não... não é possível... ela estava comigo... agora há pouco... ela falou comigo... mostrou o nosso filho... ela estava com nosso filho nos braços...

 AFONSO: - Sim, meu amigo... ela morreu... no parto... mas sua filha sobreviveu...

  

(Afonso vai até a porta, chama por alguém. Entra uma enfermeira com uma criança nos braços e entrega-a a Guilherme, que, lentamente, se  levanta, contempla-a por alguns instantes e ergue-se sob um foco de luz).

  

GUILHERME: - Minha filha... minha filha... em seu caminho... no seu futuro... não haverá mais crimes... não haverá mais urutus... Ainda resta uma esperança... ainda resta uma esperança... você, minha filha, minha Ângela... você é a minha esperança!... (Chora).

 FIM

 

São Paulo, 30/11/95  

Isaias E. Sidney

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário