terça-feira, 27 de abril de 2021

FELINI DELÍRIO E MEIO

 

 

 





 


Telefone: (11)5011-9628

SBAT – 34.001

 Isaias Edson Sidney

 

 S.P.22.2.96

 

(TEXTO CLASSIFICADO NO IV CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA “VLADIMIR MAIAKOVSKI”, DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS, CONFORME COMUNICADO DA FUNDAÇÃO CULTURAL CASSIANO RICARDO, DE 6 DE DEZEMBRO DE 1996, ASSINADO POR ELISABETH BRAIT ALVIM, DIRETORA PRESIDENTE INTERINA DA FUNDAÇÃO CASSIANO RICARDO).


PERSONAGENS

  

1. FELINI

2. BRUXAS :

·   BRUXA 1

·   BRUXA 2

·   BRUXA 3

3. MÃE

4. AMAZONA/ATRIZ

5. ILUMINADOR/ASSISTENTE/MÉDICO

6. POLICIAL/POLÍCIA/SOLDADO

7. JAGUNÇO 1/ ATOR 1/ATOR/ENFERMEIRO

8. JAGUNÇO 2/ ATOR 2/ENFERMEIRO

 

 

(Só um foco de luz sobre Felini, agachado, gemendo).

  

FELINI:-- Ai! Ui! São dores horríveis! Por quê? Por quê?! Que merda ! Já estou velho demais para suportar isso! Antes, uma dorzinha como essa eu tirava de letra! Mas, agora!... Que merda! Ai! Ai! Ai! Vem, dor maldita! Traz a loucura de volta ao meu pensamento! Vem, mistura tudo! Vida! Morte! Horrores! E a luz... luz... câmera! Ação! Ação! Vamos, seus putos! Botem emoção nessa porra de beijo!

  

(Surge a Bruxa, como por encanto. Rodeia-o como uma borboleta em torno da lâmpada).

  

BRUXA:- Felini, seu filho da puta! Nem no delírio tu esquece! Desgraçado!

 FELINI:- Você! Vai embora! Me deixa!

 BRUXA (gargalhando):- FELINI! Eu sou o teu delírio, desgraçado!

 FELINI:- Não! Você não existe! Sai! Vai embora!

 BRUXA:- É claro que eu existo, seu falso! Eu sou a tua ilusão, como tudo que você criou! Ilusão! Ouviu? Tudo ilusão!

 FELINI:- Não! Vai embora! Ai! Ui!

 BRUXA:- Grita, filho da loucura! Grita de dor! Teu delírio é minha vida! E eu sou tão falsa quanto a tua vida!

 FELINI:- Não! Minha vida não é falsa! Eu criei! Eu criei!

 BRUXA:- Criou o quê, Felini? Ilusões?

  

(A Bruxa sai, “voando”, às gargalhadas. Felini debruça-se sobre a sua dor e mergulha nas lembranças. Uma luz ilumina a Mãe).

  

FELINI:- MÃE? MÃE? MÃE! É você, MÃE?

 MÃE:- Sou eu, filhinho! Vem, vem no colo, queridinho, vem?!

 FELINI:- Ai, MÃE... É tão bom o teu colo! Por que você não fica mais comigo, MÃE? Por quê? (Chora).

 MÃE (acariciando-o):- Mamãe tão ocupada! Precisa ganhar dinheirinho pro filhinho! Precisa ganhar dinheirinho pro filhinho! Olha! Vai vender esses pirulitinhos na praia, vai, meu neguinho! (Entrega-lhe um cesto com enormes pirulitos fálicos). Todo mundo quer chupar pirulitinhos que Mãezinha de Felinizinho fez!

  

(Felini pega a cesta, esboça um bailado meio trôpego, ameaça sair e volta).

  

FELINI:- Mãezinha!

 MÃE:- Sim, filhinho!

 FELINI:- Filhinho pode fazer perquntinha? Pode?

 MÃE:- Se perguntinha for rapidinha... Felinizinho pode fazer perguntinha pra mamãezinha!

 FELINI (escondendo o rosto, como a esperar uma porrada):- Mamãezinha! Quem... quem... quem é meu paizinho?

  

(A Mãe ameaça bater-lhe, pára o gesto no ar, abre um sorriso safado e  canta).

  

MÃE:- Paizinho de Felinizinho!

            Paizinho de Felinizinho!

            Irineu? que tanto amei?

            Ivan? que tanto trepei?

            Que mais aconteceu?

            Manhã? Messias! Messias!

            Quase me matei!

            Todos os santos... tantos...

            Valdir, Válter e Vanderlei!

            Cada um que me... fui eu...

            Fui que me estrepei!

            Felinizinho... Felinizinho,

            Ouça bem Mãezinha... escuta:

            Um dia você nasceu...

 FELINI:- Ah! Mãezinha! Então eu sou um... um...

 MÃE (completando o canto):- Um lindo... lindinho... filhinho... da puta!

  

(Sai a Mãe e entra uma mulher vestida de amazona, cavalgando um ator que imita cavalo. Há um set de filmagem, com câmeras, técnicos etc.).

  

FELINI (falando através de um megafone):- Vamos, seus palermas! Luz! Câmera! Ação! Aqui! Esse ângulo! E você, sua molenga, mais vibração: vamos, esporeie o cavalo! Vamos! Bata nele com o chicote! Mais força! Mais força! Vamos! Você está cavalgando numa estepe russa! Numa estepe russa! Ouviu? Gelada!

 AMAZONA:- Mas, seu Felini!... O senhor disse que era uma praia!...

 FELINI:- Ah! Ousa me contrariar? Eu te tiro do filme! Eu tiro! Você sabe quem eu sou? Sabe? Sou Felini Brasileiro da Silva! Ouviu? O maior diretor dessa bosta de terra! Ouviu?

 

ATOR:- Ai! Seu Felini! Eu num guento mais! Minha bunda está doendo de tanto chicote!

 FELINI (imitando o ator, de forma caricata):- Ai! Seu Felini! Eu num guento mais! Minha bunda está doendo... E vai doer mais, seu palerma! Bata! Açoite! (Para o câmera). Vamos, seu bosta! Close na bunda dele! Close na bunda dele! Fica quieto, seu puto! Você é um merda como ator, mas vai ter uma bunda famosa! Ilumina aqui, seu veado! Parece que não entende de luz!? Será que eu tenho de ficar falando tudo, pra vocês entenderem?

 ILUMINADOR (do alto da cena):- O senhor quer mais luz, “seu” FELINI?

 FELINI:- Não, seu puto, quero o rabo de sua mãe! Será que eu preciso repetir? Luz! Luz na bunda desse cavalo besta!

 ATRIZ (chicoteando cada vez mais forte):- É assim, seu Felini? É assim que o senhor quer?

 ATOR:- Ai! Chega! Tá doendo!

 FELINI:- Calem a boca, seus imbecis! Uma obra-prima está nascendo... e vocês ficam aí resmungando! Vamos! Filma tudo! Mais luz! Mais luz! Vamos! Gritem, berrem! Mais alto!

  

(A cena é um pandemônio: os atores berram e Felini berra ainda mais alto, ao som de instrumentos musicais cada vez mais altos, até o máximo possível! E, de repente, tudo pára. No silêncio que se segue, Felini volta à infância. Todos se retiram lenta e silenciosamente. Somente um foco de luz em Felini e na Mãe).

  

FELINI:- Mãezinha! Mãezinha! Olha o que eu achei! (Mostra uma máquina fotográfica).

 MÃE:- O que é isso que o filhinho tem na mãozinha? O que o filhinho trouxe pra Mãezinha?

 FELINI:- Uma máquina de tirar retrato, MÃE! Vou ser retratista! Olha! (Tira uma foto da Mãe com a Polaroid. A Mãe olha-o, espantada).

 MÃE:- Uma maquinazinha de retratinho, não é, filhinho? Pra tirar retratinho da Mãezinha, não é, filhinho?

 FELINI:- É sim, Mãezinha! Gostou? Mãezinha gostou? Filhinho vai ganhar dinheirinho com retratinho de turistinhas!...

 MÃE (pegando-o pela orelha):- Filhinho imbecilzinho... filhinho imbecilzinho!... E ladrãozinho! E ladrãozinho! De quem filhinho roubou? Diga pra Mãezinha, diga!

 FELINI:- Eu não roubei, Mãezinha, eu juro... eu não roubei... eu não roubei...

 MÃE (tomando-lhe a máquina):- Agora é da Mãezinha! Agora é da Mãezinha! Vai vender pro Tiãozinho da venda! Vai vender pro Tiãozinho da venda! E ganhar dinheirinho! E ganhar dinheirinho!

 

(A Mãe sai e Felini fica chorando e resmungando. Vai até o lado oposto de onde saiu a Mãe, toma uma filmadora e vem andando lentamente, “filmando” tudo à volta, até topar de novo com a Mãe).

  

MÃE:- E então, filhinho! Mais brinquedinho pra Mamãezinha fazer dinheirinho? Mais maquininha?

 FELINI (recobrando-se do susto):- Não, Mãezinha, não me toma o brinquedinho... Não é maquininha... é... é... (Tenta fugir. A MÃE toma-lhe a frente). É maquininha... pra Mamãezinha... (Entrega-lhe a filmadora).

 MÃE:- Filhinho fica quietinho... que Mamãezinha vai ali e volta já... Ouviu?

  

(A Mãe sai e Felini se contorce no chão, em posição fetal, chupando o dedo. A Mãe volta, contando dinheiro, que guarda no seio).

  

FELINI:- Mãezinha! Felinizinho já sabe o que vai ser quando crescer!

 MÃE:- Que gracinha do filhinho da Mãezinha! Conta, conta pra Mãezinha o que o filhinho vai serzinho quando crescidinho! Conta!

 FELINI:- Ah! Mãezinha! Tive uma visão! Vou fazer cinema!

 MÃE:- Cinema! Cruz! Só cinema?

 FELINI:- Sim, Mãezinha, só cinema! Vou...

 MÃE:- Mas por que só cinema? Você não pode fazer também casa... igreja... edifício... barraco?...

 FELINI:- O que Mãezinha tá dizendo?

 MÃE:- Por que fazer só cinema? Pedreiro que faz só cinema... ganha dinheirinho?

 FELINI:- Não, Mãe! Não é fazer cinema... o prédio... é fazer filme! Filme! Que os outros vão lá pra assistir!

 MÃE:- Filme? Aqui? Na favela? Como na televisão?

  

(Neste momento entra a polícia).

 

 POLICIAL:- Mãos ao alto! Tá todo mundo preso!

  

(Felini se esconde atrás da Mãe).

  

MÃE:- Que é isso, seu polícia? Presa? Presa por quê?

 POLICIAL:- Vender mercadoria roubada! É isso aí! Tá todo mundo preso. (Mostra a filmadora).

 MÃE (ajoelhando-se):- Não! Por favor! Não levem o meu filhinho! Eu sei que ele roubou... até bati nele... eu ia devolver... “ta’qui” o dinheiro... olha... ele jura que não rouba mais... não leve o meu filhinho... eu já falei pra ele... filhinho não pode roubar... Mamãe dá tudo pra filhinho... Filhinho não precisa roubar turista na praia... ele não vai  mais fazer isso, seu polícia... eu prometo...

 POLICIAL:- Ah! Então é esse o ladrãozinho, heim?! Levem o elemento pro juizado! Levem ele pro juizado!

  

(Pegam e arrastam Felini, que vai aos berros. A Mãe vira as costas à saída do filho, pega o dinheiro e conta-o com satisfação. A cena seguinte ocorre no set de filmagem. Dois atores vestidos como jagunços nordestinos lutam com facões, numa coreografia acompanhada pelo som de berimbaus, cantando os seguintes versos).

  

JAGUNÇO 1-: Entonces, Zé das Cobra,

                         Tuma lá essa paulada...

 JAGUNÇO 2:-: Num vai sê c’uma facada

                          Que esse véio já se dobra...

 JAGUNÇO 1:- Mas vosmicê há de convi

                         Que já tá indo pro beleléu...

 JAGUNÇO 2:- Vosmicê me faiz é ri

                          Indo a caminho do céu...

 JAGUNÇO 1:- ‘Cê matô é mais de cem,

                          Mas agora é sua vez...

 JAGUNÇO 2:- ‘Ocê nunca matô ninguém

                          E num vai sê nessa pelez...

 FELINI:- Corta! Corta! Tá uma merda! Vocês tão parecendo duas velhas resmungando! Mais força! Mais vibração! Mais tesão, seus frouxos. Retoca aqui a maquiagem desses maricas! Ilumina mais a cena, ô seu iluminador de merda! Quero luz! Muita luz! Isso é uma obra-prima, ouviram? E você, seu camerazinha de porra nenhuma, mais atenção nos detalhes! Vamos repetir! Todos a postos! Luz! Câmera! Ação!

  

(A cena se repete. Felini acompanha tudo como um louco, pulando, incentivando, gesticulando, quase atrapalhando os câmeras).

 

 FELINI:- Corta! Chega por hoje! Está quase bom! (Para os atores). Vão descansar! Amanhã repetiremos.

 ATORES:- Repetiremos?!

 FELINI:- Sim, repetiremos! É preciso repetir, repetir, repetir... mil vezes... até a exaustão... até a perfeição! Ouviram? Per-fei-ção! Vocês sabem o que é isso? Sabem? O mínimo que eu quero desta bosta de filme é a per-fei-ção! E isso vale para todos! Ouviram? Para todos! Per-fei-ção!

 

 (Os dois atores se retiram, desanimados).

  

ASSISTENTE:- E agora, seu Felini? Que cena vamos filmar?

 FELINI:- A cena do beijo! A cena do beijo!

 ASSISTENTE:- Mas já fizemos esta cena ontem!

 FELINI:- Está péssima! Horrível! Entendeu? Horrível! Vamos fazer de novo!

 ASSISTENTE:- Que entrem os atores da cena do beijo!

 

 (Entram dois rapazes, vestidos com longas túnicas. Um sofá é colocado no meio da cena. Eles se sentam, de frente um para o outro).

  

ASSISTENTE:- Todos prontos? Silêncio! Claquete!

 FELINI:- Luz! Câmera! Ação!

 ASSISTENTE:- Silêncio! Filmando! Cena 82, tomada 25!

  

(Os dois rapazes começam a se acariciar e lentamente vão-se aproximando até se abraçarem num beijo cada vez mais forte. Felini está quase em cima deles, como um louco, olhos esbugalhados, berrando).

  

FELINI:- Mais forte! Vamos! Mais forte! Vamos, seus putos. Força. Tesão. (Da boca dos atores começa a correr sangue). Isso! Isso! Eu quero ver sangue! Sangue verdadeiro! Vamos! Mais... mais...

  

(A tensão da cena vai aumentando, até que um dos atores não suporta mais a dor e o sangue e salta como um louco na frente de Felini, com a boca pingando sangue).

  

ATOR:- Chega, seu velho desgraçado! (Cospe sobre Felini). É isso o que você quer? Matar a todos? Sangrar a todos até morrer? Vai se foder, ouviu? Vai se foder!

 FELINI:- É isso! É isso! Bravos! (Corre para o câmera). Filma tudo... não para... É isso mesmo... Fantástico! Fantástico, não: sublime! Era assim que eu queria! Bravos!

  

(Os atores estão estupefatos, parados, com as bocas sangrando. Felini continua, cada vez mais exaltado).

  

FELINI:- Aqui! Um close! Vamos! E aqui! Feche a câmera... rápido... agora abra devagar... Vamos... Mais luz sobre esse aqui... Assim... Vejam que rostos! É isso a tragédia humana! É isso o que eu quero! Bravos!

  

(A cena se congela por alguns instantes, com focos de luz sobre os rostos machucados e espantados dos atores. Pouco a pouco, a equipe começa a aplaudir, as luzes se abrem, todos se abraçam comovidos, dançam, ao som da música cada vez mais alta, fazem uma roda com Felini no meio, agradecendo os aplausos, beijando a uns e outros, numa ciranda até o clímax. Tudo se apaga de repente e depois de alguns instantes, no espaço vazio, um facho ilumina apenas o rosto de Felini, deitado no chão).

  

FELINI:- Sonho! A vida foi um sonho! E eu criei fantasias mil... sonhos que embalaram na sala escura os desejos de milhares de outros sonhos de pessoas que não conheço nem conhecerei... mas que viajaram nas imagens que eu inventei... que eu tirei de meus delírios...

  

(De repente, vindas do alto, caem quase sobre ele, as bruxas. Gritam e dançam ao seu redor, ameaçadoras).

  

BRUXA 1:- Sonhando, hem seu Felini!

 BRUXA 2:- Seu Felini uma ova... Que “seu” Felini que nada! Isso aí é um monstro! Um monstro! É o que ele é...

  

(As bruxas gargalham. Percebe-se que ele está preso, amarrado ao solo).

  

FELINI:- Me deixem em paz! Suas bruxas de merda! Eu é que criei vocês!

 AS BRUXAS (cantando):- Felini nos criou! Felini nos criou! Felini nos criou!

 FELINI:- Sim! Eu criei vocês! E eu destruirei vocês!

 AS BRUXAS (cantando):- Olhem como ele é...

                                              Olhem como ele é...

                                              Olhem como ele é...

                                              Poderoso... absoluto...

                                              Nem parece que ele é

                                              Um grande puto,

                                              Um grande puto!

 FELINI:- Criatura ordinárias! Me soltem! Eu sou o seu criador! Eu fiz vocês, demônios das trevas... Vão embora! Xô! Xô!

 AS BRUXAS (cantando):- Xô, Satanás!

                                              Xô, Satanás!

                                              Que vamos, que vamos

                                              Que vamos todas...

                                              Atrás! Atrás! Atrás!...

  

(Pulam, gritam e jogam sobre ele um monte de porcarias).

 

 FELINI:- Parem! Ouçam! Eu tenho uma proposta para vocês!

 BRUXA 1:- Uma proposta?

 BRUXA 2:- Que bosta!

 BRUXA 3:- Você não gosta?

 BRUXA 1:- Vamos ouvir!

 BRUXA 2:- Você pode latir!

 BRUXA 3:- Mas eu vou rir!

 FELINI:- Não! Por favor, parem! Rima, não! Rima, não! Suas Bruxas velhas e fedidas!

 AS BRUXAS:- Fedidas

                          E atrevidas...

 BRUXA 1:- Mas bem fornidas!

 BRUXA 2:- E muito metidas!

 BRUXA 3:- Vestidas...

 TODAS:- Ou despidas!

 FELINI:- Chega! Me poupem! Ouçam, por favor. (Mudando o tom de voz). Felinizinho quer as bruxinhas bem comportadinhas... bem quietinhas...

 AS BRUXAS (cantando e imitando Felini):-

 

                                                            Quietinhas...quietinhas...

                                          Quietinhas ficaremos...

                                          Com o filhinho das Mãezinhas...

                                           Nós... nós... nós...

                                           Fornicaremos!

 BRUXA 1:- Vem pro colinho da Mãezinha!

 BRUXA 2:- Mãezinha tem leitinho pro filhinho...

 BRUXA 3:- Pra mamãe ganhar dinheirinho...

  

(As Bruxas desamarram-no e, sempre gritando e pulando, se reúnem numa roda e fazem surgir, no meio de grande fumaça e de um grande estrondo, a figura da Mãe).

  

FELINI:- MÃE! Mãezinha! A senhora está aí, Mãezinha?

 MÃE:- Sim, filhinho! Mãezinha vela soninho de filhinho! (Canta). Boi, boi, boi da cara preta...

 FELINI:- MÃE?! Eu sonhei!

 MÃE:- Sonhou com a Mamãezinha, filhinho? Sonhou?

 FELINI:-  Sim, Mãezinha! Sonhei com a senhora!

 MÃE:- Sonhinho bom, filhinho?

 FELINI:- Sim, Mãezinha!

 MÃE:- Que bom, filhinho!

 FELINI:- Sim, Mãezinha! Que bom, que bom!

 MÃE:- Felinizinho conta pra Mãezinha?

 FELINI:- FELINI tem vergonha! FELINI tem vergonha!

 MÃE:- Felinizinho, Felinizinho!

 FELINI:- Ah! Mãezinha! Que sonhinho gostosinho!

 MÃE:- Conta, filhinho! Que Mamãezinha repete sonhinho do filhinho.

 FELINI:- A senhora promete, Mãezinha? Promete?

 MÃE:- Prometo, filhinho!

 FELINI:- Jura? Jura por todos os meus pais?

 MÃE:- Juro, filhinho!

 FELINI:- Ah! Mãe! Foi um alumbramento!...

 MÃE:- Alumbramento, filhinho?

 FELINI:- Meu primeiro alumbramento, Mãezinha!

 MÃE:- Como o do poeta, filhinho?

 FELINI:- Sim, Mãezinha, como o do poeta!

 MÃE:- Aquele do Recife, filhinho?

 FELINI:- Sim, Mãezinha! Que você gosta tanto!

 MÃE:- Aquele que diz que seu primeiro alumbramento foi...

 FELINI:- Nuinha, Mãe, nuinha...

 MÃE:- A moça do banho... Nuinha...

 FELINI:- Mãe!

 MÃE:- Sim, filhinho!

 FELINI:- Você... você prometeu!

 MÃE:- Eu... eu prometi...

 FELINI:- Alumbramento...

 MÃE:- Seu primeiro alumbramento... (Despe-se e deita-se lentamente).

 FELINI (aconchegando-se ao corpo da Mãe, colocando-se em posição fetal e sugando-lhe o seio):- Alumbramento... alumbramento...

  

(No set de filmagem, todos aguardam as ordens de Felini, que anda de um lado para o outro, como em transe).

  

FELINI:- O beijo... o beijo e a cavalgada... Assim se fez um povo... Amor... aventura... Está faltando algo... Eu sinto... As Bruxas que me visitaram.. É isso... Já sei... está faltando um pouco de... ASSISTENTE! ASSISTENTE! Chame o ator que faz o Nero!

 ASSISTENTE:- O Nero, senhor diretor? Mas não era o Conselheiro?

 FELINI:- Sim, esse mesmo! Chame-o! Vamos filmar!

  

(O assistente sai e volta com um ator trajando uma longa túnica suja e esfarrapada, com uma longa cabeleira desgrenhada).

  

FELINI:- É isso! Assistente! Ponha uma coroa sobre a cabeça dele!

 ASSISTENTE:- Rápido, uma coroa!

 FELINI:- É isso! Falta ainda uma cítara!

 ASSISTENTE:- Uma cítara, senhor Diretor? Não temos nenhuma cítara à mão. Temos que mandar buscar... e pode demorar...

 FELINI:- Não, eu quero agora... Uma cítara... uma harpa... ou mesmo, um violão...

 ASSISTENTE:- O nosso iluminador toca violão... Quem sabe? (Para o iluminador). Está aí o seu violão? Então, traga-o aqui. Rápido.

 FELINI (colocando o violão nas mãos do ator):- Vamos, segure isso e... toque... vamos, toque...

 ATOR:- Mas, Diretor, eu não sei...

 FELINI:- Não importa... agora você sabe... Vamos, toque!

  

(O ator dedilha o violão, desajeitadamente).

  

FELINI:- Isso, mais forte... Assim... Vamos... vamos... Isso... Pare! Agora vamos filmar...

 ASSISTENTE:- Silêncio! Claquete!

 FELINI:- Luz! Câmera! Ação!

 ASSISTENTE:- Cena 103. Tomada 1.

 FELINI (dirigindo a cena como um possesso, falando às vezes ao megafone, aproximando-se e afastando-se, gritando, implorando etc.):- Isso mesmo... toque o violão... com mais força... isso... Agora dance! Vamos, dance, como os loucos dançam... Você sabe... Isso... assim... mais forte... roda ... roda... toque... balance o corpo para frente... isso... olhe para cima... você está vendo um deus lá no alto... veja... ele está chamando você... ofereça a ele a sua música... o seu corpo... Você está sobre a montanha... E o deus fala com você... O povo aguarda a palavra... a sua palavra... mas você só tem a música... Toque... toque... mais alto... Dance! Dance! Até morrer! Até morrer! A morte o libertará! Rode! Rode até cair... Isso... Isso mesmo... Corta! Corta! (Pausa. Levantam o ator, exausto). Muito bem! Filmaram tudo como determinei, não filmaram? (Sua voz vai, pouco a pouco, readquirindo a normalidade e passa, ao final, a um alheamento meio louco). É isso... o meu filme... agora começo a perceber... e vocês também percebem, não percebem? Um povo... uma nação se faz com cavalgadas, com beijos e com sonhos. São esses os elementos primordiais da alma humana. E nós, nós aqui, neste filme, estamos captando esse momento mágico. Vocês estão fazendo a história! E eu, eu sou aquele que dirige tudo isso... Eu sonho... eu deliro... eu realizo... Não sou, também, um deus? Não sou? Eu, Felini Brasileiro da Silva, um deus... um deus...

  

(Neste momento ouve-se um tiro, seguido de gritos. Após alguns instantes, entra um ator correndo).

  

ATOR:- Senhor Felini, senhor Felini.... Uma tragédia! Uma tragédia!

 FELINI:- A vida é uma tragédia! Vamos, fale, o que aconteceu de tão grave?...

 ATOR:- É... é a nossa atriz... ela se matou...

 FELINI:- Como?! Como ela ousou fazer isso sem que eu estivesse dirigindo?!... Como?!...

 ASSISTENTE:- Senhor Diretor, ouça... A nossa atriz se matou de verdade!

 FELINI:- Não foi uma cena?

 ATOR:- Não, senhor. Foi de verdade!

 FELINI:- Mas, por que ela fez isso?

 ATOR:- Estão dizendo que ela recebeu notícia do noivo... ele está com AIDS...

 FELINI:- Oh! Como é pobre a realidade! Matar-se porque o noivo está com AIDS... É por isso que não gosto dessa... dessa... coisa que vocês chamam vida real... cheia... de dores... de desencantos...

 ATOR:- Mas, senhor Diretor, o senhor não diz sempre que arte é vida levada ao paroxismo?

 FELINI:- Eu disse?... Eu digo sempre isso?... Vida? Arte? Paroxismo da vida ou da arte?... Não... sei... Por que matar-se pela vida? Não é mais lógico matar-se pela arte?... Você disse... Não, eu disse paroxismo... Um vez, há muito tempo, minha Mãe...

  

(As luzes vão-se apagando à proporção que um foco sobre Felini vai aumentando. Todos se retiram em silêncio).

 

 FELINI (senta-se numa cadeira):- Minha Mãe! Onde você está? Onde? Tenho sentido tanto sua falta! (Pausa). MÃE! É o seu filhinho, Mãezinha! Estou precisando de você! (Ouve-se um riso abafado). Eu sei que você está aí. (Outro riso, mais claro). Filhinho precisa de Mãezinha! Filhinho precisa de Mãezinha! (Uma gargalhada). É você mesmo, Mãe? Estou com medo!

 VOZ:- Filhinho está com medinho? Coitadinho! Coitadinho!

  

(Gargalhada).

  

FELINI:- Não! Você, não! Desgraçada!

 BRUXA (pulando sobre ele, às gargalhadas):- Sou euzinho, sou euzinho, cantando pro filhinho... Filhinho com medinho... Filhinho com medinho...

 FELINI:- Criatura dos quintos dos infernos! Vai-te embora! Te esconjuro!

  

(A Bruxa canta e dança ao redor de Felini, imobilizando-o e amarrando-o).

  

BRUXA:- Medo de escuro

                 É um medo tão puro

                 Por isso te esconjuro

                 Menino dedo-duro

                 Menino dedo-duro!

 FELINI:- Não, não! Dedo duro, não! Sua filha da puta!

  

(A Bruxa liga uma máquina de choque elétrico aos órgãos sexuais de Felini).

  

BRUXA:- Menino medroso,

                 Menino medroso,

                 Na noite tão fria,

                 Toca piano, toca,

                 Na delegacia!

 FELINI:- Não, isso não! Eu conto! Eu falo tudo! Mas não me machuque! Eu quero minha Mãezinha! Eu quero minha Mãe! (Chora). Mãe! Por que você deixou que eles fizessem isso comigo? Por quê, Mãe?

  

(A iluminação destaca, pouco a pouco, a Mãe, que declama).

  

MÃE:- Era tão puro o meu menininho!

            Meu menininho era tão puro!

            De nada sabia,

            Pois nada ouvia!

            Ouvia somente, na noite tão fria,

            A cama que rangia,

            Um cão que latia...

            Mas nada ouvia

            Do preço da vida,

            Da dor da ferida...

            Ouvia uma cama ranger

            E pensava, deitado no escuro,

            Meu menino tão puro,

            Pensava apenas ser

            Um grande filho da puta!

            A cama, no entanto,

            Era o campo da luta,

            Era a voz do meu canto,

            O grito da verdade,

            Voz de liberdade!

            E o filhinho tão puro

            Virou dedo-duro.

            O menino pensava

            Que a mãe só trepava

            E nada ouvia

            Da dor que se cala,

          

            E nada ouvia

            Do preço da vida,

            Da dor da ferida,

            Ferida de bala.

            Aos Guerreiros da luta

            Fazia-me de puta,

            Pra dar ao menino,

            O menino tão puro,

            Um pouco da dança

            Chamada esperança...

            E o menino tão puro,

            E o menino tão burro

            Se fez dedo-duro!

 FELINI:- Mãe! Mãe! Por favor, Mãe, me perdoa! Me perdoa! Ai! Ai! Eles me forçaram, Mãe! Eles me torturaram! Me enrabaram, Mãe!

  

(A Bruxa canta, dança e tortura Felini).

  

BRUXA:- Menininho gostoso!

                 Menininho mentiroso!

                 Um choque... arrepia.

                 Um murro... estrebucha.

                 Menino então fazia,

                 Da mente medrosa

                 Surgir uma bruxa!

                 Menininho gostoso!

                 Menininho mentiroso!

 FELINI:- Não! Não sou mentiroso! Eu não criei essas bruxas desgraçadas! Elas... elas vieram povoar meus sonhos! Eu não sabia, Mãezinha, eu não sabia!

 MÃE (cantando):- Boi, boi, boi,

                               Boi da cara preta!

                               Pega esse menino

                               Que tem medo de careta.

                               Boi, boi, boi,

                               Boi da cara preta!

 

(A figura da Mãe vai-se esmaecendo, pouco a pouco, até que fique visível somente o rosto).

  

MÃE:- Filhinho queridinho da Mãezinha! Mãezinha vai embora! Deixa beijinho! Deixa beijinho!

 FELINI:- Não, por favor! Não vá embora, minha Mãe! Eu preciso saber... eu tenho de saber...

 MÃE:- Saber? Saber o quê, filhinho? Filhinho já sabe tudo! Filhinho já sabe de lutas e cavalgadas, de dores de amores e de beijos de dores, de aventuras e de sonhos... de sonhos tão loucos!... Filhinho é famoso... Fazedor de grandes feitos em fitas de celulóide! Filhinho é tão sábio!

 FELINI:- Nada sei, minha Mãe, nada sei se não sei o mistério maior de minha vida...

 MÃE:- Lá vem filhinho querendo saber quem foi paizinho... Lá vem filhinho curiosinho do nominho de paizinho...

 FELINI:- Não, Mãe! Dessa vez você se enganou. (Leva um choque da Bruxa). Ai! Sua maldita! Desgraçada! Xô, diabo do inferno que eu mesmo fiz!

 BRUXA (dançando e cantando):- Dodói no filhinho!

                                                          Dodói no filhinho!

                                                          Filhinho mentiroso

                                                          Virou curioso!

                                                          Filhinho tão gostoso!

                                                          Ficou tão furioso!

 MÃE:- Então, diz, meu filho, diz logo, que estou indo embora. Já quase forças não tenho para te ver. Logo não mais poderei te responder.

 FELINI:- Há um só mistério em minha vida e esse mistério não é meu pai. Há muito desisti de pensar num pai. Sou teu filho apenas, um filho que traiu porque te amou. Mas teu filho. Só teu filho.

 MÃE:- Filhinho está com mais mistérios que o mistério da dor!

 FELINI:- Ouça, Mãe, e me responda. Apenas isso: meu nome! Por que Felini! Por que, Mãe?

 MÃE:- Felini Brasileiro da Silva! Os nomes traçam destinos insondáveis! O teu Felini vem do sonho e do delírio em que devias te transformar... Felini Brasileiro da Silva! Da favela para o sonho! Da vida para a dor de viver! Felini, nada há de mais nesse mistério que o teu próprio delírio... Não posso mais falar... Adeus! Não sei se ainda terei forças para te perdoar...

  

(A Mãe desaparece).

  

BRUXA:- Menininho ficou sozinho!

                 Menininho ficou sozinho!

                 Mas já está crescidinho

                 E pode levar mais um choquinho!

 FELINI:- Bruxa do inferno! Eu vou te matar, desgraçada!

  

(Felini consegue desamarrar-se e passa a perseguir a bruxa que, às gargalhadas, foge de um lugar para outro. Figuras estranhas surgem de todos os lados e encetam um bailado, ao som de gritos e sons estridentes, em torno de Felini que, exausto, desmaia. Tudo silencia e desaparece de repente. Quando as luzes voltam a acender, Felini está semiconsciente. Entram soldados, enfermeiras e um médico).

  

SOLDADO:- Está morto?

 MÉDICO (examinando-o rapidamente):- Ainda vive.

  

(O soldado chuta a bunda de FelinI).

  

FELINI:- Bruxa desgraçada... vai embora...

 MÉDICO (para os soldados):- Levantem o cara...

 FELINI (abrindo um só olho):- Ah! As bruxas tão querendo me enganar, é? Xô! Vão embora!

 SOLDADO:- Está louco?

 MÉDICO:- Sempre foi...

 FELINI:- Louco é a mãe, bruxas malditas...

 SOLDADO (dando-lhe um safanão):- Acorda, idiota... Você está preso!

 FELINI (recobrando-se):- Preso?! (Livra-se dos que o seguram). É isso! Vamos! Prenda-me. É a cena final. Eu mando, vocês obedecem. Eu, Felini Brasileiro da Silva, o gênio... (Faz uma careta, solta um grunhido e ameaça pular em cima do grupo. Todos se assustam). Luz! Câmara! Ação! (Estende os braços para um dos soldados). Vamos, soldado! Cumpra o seu dever: prenda o louco. (O soldado fica alguns instantes sem saber o que fazer. O médico faz-lhe um sinal de concordância. Ele algema Felini). Algemas, não, imbecil! Não se prende um louco com algemas! Vamos, tire isso! (O soldado obedece-lhe. Felini coloca-se, ameaçadoramente, na frente do médico). Você, seu médico de bosta! Me diz: como se prende um louco?

 MÉDICO (assustado):- Com... com uma camisa de força...

 FELINI (imitando-o):- Com uma camisa de força... Que canastrão! Repita comigo: (fala de forma afetada) Com uma camisa de força, senhor Felini! Vamos, repete o que eu disse...

  

(O médico tenta repetir).

  

FELINI:- Vamos ter que repetir! Repetir! Re-pe-tir! Mil vezes! Mas agora é só um ensaio. Vamos, manda colocar uma camisa-de-força em mim!

 

MÉDICO (recuperando-se):- Façam o que ele mandou! Uma camisa-de-força... rápido!

  

(Os enfermeiros colocam-lhe uma camisa-de-força).

  

FELINI:- Muito bem, seus imbecis! Está melhorando! E agora? Onde vão colocar o louco? Me digam! Onde? (Pausa. Indecisão entre o grupo). Não sabem, não é? Pois, vejam (aponta para o alto): é mais um de meus truques! (Desce uma jaula do teto). Vamos! Tranquem o louco! Tranquem o louco!

  

(Colocam Felini na jaula. As luzes vão-se apagando lentamente, ficando um só foco sobre ele, que retoma a posição em que estava no início).

  

FELINI:- Ai! Ui! São dores horríveis! Por quê?! É a dor maldita que traz de volta a loucura! Meu pensamento... tudo misturado... vida... arte... loucura... E a luz... luz ... câmera! Ação! Ação! Tudo merda! Merda! MERDA!

  

FIM

 

 

ISAIAS EDSON SIDNEY

 

S.PAULO, 20/96

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário