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SBAT – 34.001
Isaias Edson Sidney
S.P.22.2.96
(TEXTO
CLASSIFICADO NO IV CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA “VLADIMIR MAIAKOVSKI”, DE
SÃO JOSÉ DOS CAMPOS, CONFORME COMUNICADO DA FUNDAÇÃO CULTURAL CASSIANO RICARDO,
DE 6 DE DEZEMBRO DE 1996, ASSINADO POR ELISABETH BRAIT ALVIM, DIRETORA
PRESIDENTE INTERINA DA FUNDAÇÃO CASSIANO RICARDO).
PERSONAGENS
1. FELINI
2. BRUXAS :
·
BRUXA
1
·
BRUXA
2
·
BRUXA
3
3. MÃE
4. AMAZONA/ATRIZ
5. ILUMINADOR/ASSISTENTE/MÉDICO
6. POLICIAL/POLÍCIA/SOLDADO
7. JAGUNÇO
1/ ATOR 1/ATOR/ENFERMEIRO
8. JAGUNÇO
2/ ATOR 2/ENFERMEIRO
(Só
um foco de luz sobre Felini, agachado, gemendo).
FELINI:-- Ai! Ui! São
dores horríveis! Por quê? Por quê?! Que merda ! Já estou velho demais para
suportar isso! Antes, uma dorzinha como essa eu tirava de letra! Mas, agora!...
Que merda! Ai! Ai! Ai! Vem, dor maldita! Traz a loucura de volta ao meu
pensamento! Vem, mistura tudo! Vida! Morte! Horrores! E a luz... luz... câmera!
Ação! Ação! Vamos, seus putos! Botem emoção nessa porra de beijo!
(Surge
a Bruxa, como por encanto. Rodeia-o como uma borboleta em torno da lâmpada).
BRUXA:- Felini, seu
filho da puta! Nem no delírio tu esquece! Desgraçado!
FELINI:- Você! Vai embora! Me deixa!
BRUXA (gargalhando):- FELINI! Eu sou o teu
delírio, desgraçado!
FELINI:- Não! Você não existe! Sai! Vai
embora!
BRUXA:- É claro que eu
existo, seu falso! Eu sou a tua ilusão, como tudo que você criou! Ilusão!
Ouviu? Tudo ilusão!
FELINI:- Não! Vai embora! Ai! Ui!
BRUXA:- Grita, filho da
loucura! Grita de dor! Teu delírio é minha vida! E eu sou tão falsa quanto a
tua vida!
FELINI:- Não! Minha vida não é falsa! Eu
criei! Eu criei!
BRUXA:- Criou o quê, Felini? Ilusões?
(A
Bruxa sai, “voando”, às gargalhadas. Felini debruça-se sobre a sua dor e
mergulha nas lembranças. Uma luz ilumina a Mãe).
FELINI:- MÃE? MÃE? MÃE! É você, MÃE?
MÃE:- Sou eu, filhinho! Vem, vem no colo, queridinho, vem?!
FELINI:- Ai, MÃE... É
tão bom o teu colo! Por que você não fica mais comigo, MÃE? Por quê? (Chora).
MÃE (acariciando-o):- Mamãe tão ocupada!
Precisa ganhar dinheirinho pro filhinho! Precisa ganhar dinheirinho pro
filhinho! Olha! Vai vender esses pirulitinhos na praia, vai, meu neguinho! (Entrega-lhe um cesto com enormes pirulitos
fálicos). Todo mundo quer chupar pirulitinhos que Mãezinha de Felinizinho
fez!
(Felini
pega a cesta, esboça um bailado meio trôpego, ameaça sair e volta).
FELINI:- Mãezinha!
MÃE:- Sim, filhinho!
FELINI:- Filhinho pode fazer perquntinha?
Pode?
MÃE:- Se perguntinha
for rapidinha... Felinizinho pode fazer perguntinha pra mamãezinha!
FELINI (escondendo o rosto, como a esperar uma
porrada):- Mamãezinha! Quem... quem... quem é meu paizinho?
(A
Mãe ameaça bater-lhe, pára o gesto no ar, abre um sorriso safado e canta).
MÃE:- Paizinho de Felinizinho!
Paizinho de Felinizinho!
Irineu? que tanto amei?
Ivan? que tanto trepei?
Que mais
aconteceu?
Manhã? Messias! Messias!
Quase me matei!
Todos os santos... tantos...
Valdir, Válter e Vanderlei!
Cada um que me... fui eu...
Fui que me estrepei!
Felinizinho... Felinizinho,
Ouça bem Mãezinha... escuta:
Um dia você nasceu...
FELINI:- Ah! Mãezinha! Então eu sou um...
um...
MÃE (completando o canto):- Um lindo...
lindinho... filhinho... da puta!
(Sai
a Mãe e entra uma mulher vestida de amazona, cavalgando um ator que imita
cavalo. Há um set de filmagem, com câmeras, técnicos etc.).
FELINI (falando através de um megafone):- Vamos,
seus palermas! Luz! Câmera! Ação! Aqui! Esse ângulo! E você, sua molenga, mais
vibração: vamos, esporeie o cavalo! Vamos! Bata nele com o chicote! Mais força!
Mais força! Vamos! Você está cavalgando numa estepe russa! Numa estepe russa!
Ouviu? Gelada!
AMAZONA:- Mas, seu
Felini!... O senhor disse que era uma praia!...
FELINI:- Ah! Ousa me
contrariar? Eu te tiro do filme! Eu tiro! Você sabe quem eu sou? Sabe? Sou
Felini Brasileiro da Silva! Ouviu? O maior diretor dessa bosta de terra! Ouviu?
ATOR:- Ai! Seu Felini!
Eu num guento mais! Minha bunda está doendo de tanto chicote!
FELINI (imitando o ator, de forma caricata):- Ai!
Seu Felini! Eu num guento mais! Minha bunda está doendo... E vai doer mais, seu
palerma! Bata! Açoite! (Para o câmera).
Vamos, seu bosta! Close na bunda dele! Close na bunda dele! Fica quieto, seu
puto! Você é um merda como ator, mas vai ter uma bunda famosa! Ilumina aqui,
seu veado! Parece que não entende de luz!? Será que eu tenho de ficar falando
tudo, pra vocês entenderem?
ILUMINADOR (do alto da cena):- O senhor quer mais
luz, “seu” FELINI?
FELINI:- Não, seu puto,
quero o rabo de sua mãe! Será que eu preciso repetir? Luz! Luz na bunda desse
cavalo besta!
ATRIZ (chicoteando cada vez mais forte):- É
assim, seu Felini? É assim que o senhor quer?
ATOR:- Ai! Chega! Tá doendo!
FELINI:- Calem a boca,
seus imbecis! Uma obra-prima está nascendo... e vocês ficam aí resmungando!
Vamos! Filma tudo! Mais luz! Mais luz! Vamos! Gritem, berrem! Mais alto!
(A
cena é um pandemônio: os atores berram e Felini berra ainda mais alto, ao som
de instrumentos musicais cada vez mais altos, até o máximo possível! E, de repente,
tudo pára. No silêncio que se segue, Felini volta à infância. Todos se retiram
lenta e silenciosamente. Somente um foco de luz em Felini e na Mãe).
FELINI:- Mãezinha!
Mãezinha! Olha o que eu achei! (Mostra
uma máquina fotográfica).
MÃE:- O que é isso
que o filhinho tem na mãozinha? O que o filhinho trouxe pra Mãezinha?
FELINI:- Uma máquina de
tirar retrato, MÃE! Vou ser retratista! Olha! (Tira uma foto da Mãe com a
Polaroid. A Mãe olha-o, espantada).
MÃE:- Uma
maquinazinha de retratinho, não é, filhinho? Pra tirar retratinho da Mãezinha,
não é, filhinho?
FELINI:- É sim,
Mãezinha! Gostou? Mãezinha gostou? Filhinho vai ganhar dinheirinho com
retratinho de turistinhas!...
MÃE (pegando-o pela orelha):- Filhinho
imbecilzinho... filhinho imbecilzinho!... E ladrãozinho! E ladrãozinho! De quem
filhinho roubou? Diga pra Mãezinha, diga!
FELINI:- Eu não roubei,
Mãezinha, eu juro... eu não roubei... eu não roubei...
MÃE (tomando-lhe a máquina):- Agora é da
Mãezinha! Agora é da Mãezinha! Vai vender pro Tiãozinho da venda! Vai vender
pro Tiãozinho da venda! E ganhar dinheirinho! E ganhar dinheirinho!
(A Mãe sai e Felini fica chorando e
resmungando. Vai até o lado oposto de onde saiu a Mãe, toma uma filmadora e vem andando lentamente, “filmando” tudo à volta,
até topar de novo com a Mãe).
MÃE:- E então,
filhinho! Mais brinquedinho pra Mamãezinha fazer dinheirinho? Mais maquininha?
FELINI (recobrando-se do susto):- Não, Mãezinha,
não me toma o brinquedinho... Não é maquininha... é... é... (Tenta fugir. A MÃE toma-lhe a frente). É
maquininha... pra Mamãezinha... (Entrega-lhe
a filmadora).
MÃE:- Filhinho fica
quietinho... que Mamãezinha vai ali e volta já... Ouviu?
(A
Mãe sai e Felini se contorce no chão, em posição fetal, chupando o dedo. A Mãe volta,
contando dinheiro, que guarda no seio).
FELINI:- Mãezinha!
Felinizinho já sabe o que vai ser quando crescer!
MÃE:- Que gracinha do
filhinho da Mãezinha! Conta, conta pra Mãezinha o que o filhinho vai serzinho
quando crescidinho! Conta!
FELINI:- Ah! Mãezinha! Tive uma visão! Vou
fazer cinema!
MÃE:- Cinema! Cruz! Só cinema?
FELINI:- Sim, Mãezinha, só cinema! Vou...
MÃE:- Mas por que só
cinema? Você não pode fazer também casa... igreja... edifício... barraco?...
FELINI:- O que Mãezinha tá dizendo?
MÃE:- Por que fazer
só cinema? Pedreiro que faz só cinema... ganha dinheirinho?
FELINI:- Não, Mãe! Não é
fazer cinema... o prédio... é fazer filme! Filme! Que os outros vão lá pra
assistir!
MÃE:- Filme? Aqui? Na favela? Como na televisão?
(Neste
momento entra a polícia).
POLICIAL:- Mãos ao alto! Tá todo mundo preso!
(Felini
se esconde atrás da Mãe).
MÃE:- Que é isso, seu polícia? Presa? Presa por quê?
POLICIAL:- Vender
mercadoria roubada! É isso aí! Tá todo mundo preso. (Mostra a filmadora).
MÃE (ajoelhando-se):- Não! Por favor! Não
levem o meu filhinho! Eu sei que ele roubou... até bati nele... eu ia
devolver... “ta’qui” o dinheiro... olha... ele jura que não rouba mais... não
leve o meu filhinho... eu já falei pra ele... filhinho não pode roubar... Mamãe
dá tudo pra filhinho... Filhinho não precisa roubar turista na praia... ele não
vai mais fazer isso, seu polícia... eu
prometo...
POLICIAL:- Ah! Então é
esse o ladrãozinho, heim?! Levem o elemento pro juizado! Levem ele pro juizado!
(Pegam
e arrastam Felini, que vai aos berros. A Mãe vira as costas à saída do filho,
pega o dinheiro e conta-o com satisfação. A cena seguinte ocorre no set de
filmagem. Dois atores vestidos como jagunços
nordestinos lutam com facões, numa coreografia acompanhada pelo som de
berimbaus, cantando os seguintes versos).
JAGUNÇO 1-: Entonces, Zé
das Cobra,
Tuma lá essa
paulada...
JAGUNÇO 2:-: Num vai sê c’uma facada
Que esse véio já se
dobra...
JAGUNÇO 1:- Mas vosmicê há de convi
Que já tá indo pro
beleléu...
JAGUNÇO 2:- Vosmicê me faiz é ri
Indo a caminho do
céu...
JAGUNÇO 1:- ‘Cê matô é
mais de cem,
Mas agora é sua
vez...
JAGUNÇO 2:- ‘Ocê nunca matô ninguém
E num vai sê nessa
pelez...
FELINI:- Corta! Corta!
Tá uma merda! Vocês tão parecendo duas velhas resmungando! Mais força! Mais
vibração! Mais tesão, seus frouxos. Retoca aqui a maquiagem desses maricas!
Ilumina mais a cena, ô seu iluminador de merda! Quero luz! Muita luz! Isso é
uma obra-prima, ouviram? E você, seu camerazinha de porra nenhuma, mais atenção
nos detalhes! Vamos repetir! Todos a postos! Luz! Câmera! Ação!
(A
cena se repete. Felini acompanha tudo como um louco, pulando, incentivando,
gesticulando, quase atrapalhando os câmeras).
FELINI:- Corta! Chega
por hoje! Está quase bom! (Para os atores).
Vão descansar! Amanhã repetiremos.
ATORES:- Repetiremos?!
FELINI:- Sim,
repetiremos! É preciso repetir, repetir, repetir... mil vezes... até a
exaustão... até a perfeição! Ouviram? Per-fei-ção! Vocês sabem o que é isso?
Sabem? O mínimo que eu quero desta bosta de filme é a per-fei-ção! E isso vale
para todos! Ouviram? Para todos! Per-fei-ção!
(Os
dois atores se retiram, desanimados).
ASSISTENTE:- E agora, seu Felini? Que cena vamos
filmar?
FELINI:- A cena do beijo! A cena do beijo!
ASSISTENTE:- Mas já fizemos esta cena ontem!
FELINI:- Está péssima!
Horrível! Entendeu? Horrível! Vamos fazer de novo!
ASSISTENTE:- Que entrem os atores da cena do
beijo!
(Entram
dois rapazes, vestidos com longas túnicas. Um sofá é colocado no meio da cena.
Eles se sentam, de frente um para o outro).
ASSISTENTE:- Todos prontos? Silêncio! Claquete!
FELINI:- Luz! Câmera! Ação!
ASSISTENTE:- Silêncio! Filmando! Cena 82, tomada
25!
(Os
dois rapazes começam a se acariciar e lentamente vão-se aproximando até se
abraçarem num beijo cada vez mais forte. Felini está quase em cima deles, como
um louco, olhos esbugalhados, berrando).
FELINI:- Mais forte!
Vamos! Mais forte! Vamos, seus putos. Força. Tesão. (Da boca dos atores começa a correr sangue). Isso! Isso! Eu quero
ver sangue! Sangue verdadeiro! Vamos! Mais... mais...
(A
tensão da cena vai aumentando, até que um dos atores não suporta mais a dor e o
sangue e salta como um louco na frente de Felini, com a boca pingando sangue).
ATOR:- Chega, seu
velho desgraçado! (Cospe sobre Felini).
É isso o que você quer? Matar a todos? Sangrar a todos até morrer? Vai se
foder, ouviu? Vai se foder!
FELINI:- É isso! É isso!
Bravos! (Corre para o câmera). Filma
tudo... não para... É isso mesmo... Fantástico! Fantástico, não: sublime! Era
assim que eu queria! Bravos!
(Os
atores estão estupefatos, parados, com as bocas sangrando. Felini continua,
cada vez mais exaltado).
FELINI:- Aqui! Um close!
Vamos! E aqui! Feche a câmera... rápido... agora abra devagar... Vamos... Mais
luz sobre esse aqui... Assim... Vejam que rostos! É isso a tragédia humana! É
isso o que eu quero! Bravos!
(A
cena se congela por alguns instantes, com focos de luz sobre os rostos
machucados e espantados dos atores. Pouco a pouco, a equipe começa a aplaudir,
as luzes se abrem, todos se abraçam comovidos, dançam, ao som da música cada
vez mais alta, fazem uma roda com Felini no meio, agradecendo os aplausos,
beijando a uns e outros, numa ciranda até o clímax. Tudo se apaga de repente e
depois de alguns instantes, no espaço vazio, um facho ilumina apenas o rosto de
Felini, deitado no chão).
FELINI:- Sonho! A vida foi
um sonho! E eu criei fantasias mil... sonhos que embalaram na sala escura os
desejos de milhares de outros sonhos de pessoas que não conheço nem
conhecerei... mas que viajaram nas imagens que eu inventei... que eu tirei de
meus delírios...
(De
repente, vindas do alto, caem quase sobre ele, as bruxas. Gritam e dançam ao
seu redor, ameaçadoras).
BRUXA 1:- Sonhando, hem seu Felini!
BRUXA 2:- Seu Felini
uma ova... Que “seu” Felini que nada! Isso aí é um monstro! Um monstro! É o que
ele é...
(As
bruxas gargalham. Percebe-se que ele está preso, amarrado ao solo).
FELINI:- Me deixem em
paz! Suas bruxas de merda! Eu é que criei vocês!
AS BRUXAS (cantando):- Felini nos criou! Felini nos criou! Felini nos criou!
FELINI:- Sim! Eu criei vocês! E eu destruirei
vocês!
AS
BRUXAS (cantando):-
Olhem como ele é...
Olhem como ele é...
Olhem como ele é...
Poderoso... absoluto...
Nem parece que ele é
Um grande puto,
Um grande puto!
FELINI:- Criatura
ordinárias! Me soltem! Eu sou o seu criador! Eu fiz vocês, demônios das
trevas... Vão embora! Xô! Xô!
AS BRUXAS (cantando):-
Xô, Satanás!
Xô, Satanás!
Que vamos, que vamos
Que vamos todas...
Atrás! Atrás! Atrás!...
(Pulam,
gritam e jogam sobre ele um monte de porcarias).
FELINI:- Parem! Ouçam! Eu tenho uma proposta
para vocês!
BRUXA 1:- Uma proposta?
BRUXA 2:- Que bosta!
BRUXA 3:- Você não gosta?
BRUXA 1:- Vamos ouvir!
BRUXA 2:- Você pode latir!
BRUXA 3:- Mas eu vou rir!
FELINI:- Não! Por favor,
parem! Rima, não! Rima, não! Suas Bruxas velhas e fedidas!
AS BRUXAS:- Fedidas
E atrevidas...
BRUXA 1:- Mas bem fornidas!
BRUXA 2:- E muito metidas!
BRUXA 3:- Vestidas...
TODAS:- Ou despidas!
FELINI:- Chega! Me
poupem! Ouçam, por favor. (Mudando o tom
de voz). Felinizinho quer as bruxinhas bem comportadinhas... bem
quietinhas...
AS
BRUXAS (cantando e
imitando Felini):-
Quietinhas...quietinhas...
Quietinhas ficaremos...
Com o
filhinho das Mãezinhas...
Nós... nós... nós...
Fornicaremos!
BRUXA 1:- Vem pro colinho da Mãezinha!
BRUXA 2:- Mãezinha tem leitinho pro filhinho...
BRUXA 3:- Pra mamãe ganhar dinheirinho...
(As
Bruxas desamarram-no e, sempre gritando e pulando, se reúnem numa roda e fazem
surgir, no meio de grande fumaça e de um grande estrondo, a figura da Mãe).
FELINI:- MÃE! Mãezinha! A senhora está aí,
Mãezinha?
MÃE:- Sim, filhinho!
Mãezinha vela soninho de filhinho! (Canta).
Boi, boi, boi da cara preta...
FELINI:- MÃE?! Eu sonhei!
MÃE:- Sonhou com a Mamãezinha, filhinho? Sonhou?
FELINI:-
Sim, Mãezinha! Sonhei com a senhora!
MÃE:- Sonhinho bom, filhinho?
FELINI:- Sim, Mãezinha!
MÃE:- Que bom, filhinho!
FELINI:- Sim, Mãezinha! Que bom, que bom!
MÃE:- Felinizinho conta pra Mãezinha?
FELINI:- FELINI tem vergonha! FELINI tem
vergonha!
MÃE:- Felinizinho, Felinizinho!
FELINI:- Ah! Mãezinha! Que sonhinho
gostosinho!
MÃE:- Conta,
filhinho! Que Mamãezinha repete sonhinho do filhinho.
FELINI:- A senhora promete, Mãezinha?
Promete?
MÃE:- Prometo, filhinho!
FELINI:- Jura? Jura por todos os meus pais?
MÃE:- Juro, filhinho!
FELINI:- Ah! Mãe! Foi um alumbramento!...
MÃE:- Alumbramento, filhinho?
FELINI:- Meu primeiro alumbramento, Mãezinha!
MÃE:- Como o do poeta, filhinho?
FELINI:- Sim, Mãezinha, como o do poeta!
MÃE:- Aquele do Recife, filhinho?
FELINI:- Sim, Mãezinha! Que você gosta tanto!
MÃE:- Aquele que diz que seu primeiro alumbramento foi...
FELINI:- Nuinha, Mãe, nuinha...
MÃE:- A moça do banho... Nuinha...
FELINI:- Mãe!
MÃE:- Sim, filhinho!
FELINI:- Você... você prometeu!
MÃE:- Eu... eu prometi...
FELINI:- Alumbramento...
MÃE:- Seu primeiro
alumbramento... (Despe-se e deita-se
lentamente).
FELINI (aconchegando-se ao corpo da Mãe,
colocando-se em posição fetal e sugando-lhe o seio):- Alumbramento...
alumbramento...
(No
set de filmagem, todos aguardam as ordens de Felini, que anda de um lado para o
outro, como em transe).
FELINI:- O beijo... o
beijo e a cavalgada... Assim se fez um povo... Amor... aventura... Está
faltando algo... Eu sinto... As Bruxas que me visitaram.. É isso... Já sei...
está faltando um pouco de... ASSISTENTE! ASSISTENTE! Chame o ator que faz o
Nero!
ASSISTENTE:- O Nero, senhor
diretor? Mas não era o Conselheiro?
FELINI:- Sim, esse mesmo! Chame-o! Vamos
filmar!
(O
assistente sai e volta com um ator trajando uma longa túnica suja e
esfarrapada, com uma longa cabeleira desgrenhada).
FELINI:- É isso! Assistente!
Ponha uma coroa sobre a cabeça dele!
ASSISTENTE:- Rápido, uma coroa!
FELINI:- É isso! Falta ainda uma cítara!
ASSISTENTE:- Uma cítara,
senhor Diretor? Não temos nenhuma cítara à mão. Temos que mandar buscar... e
pode demorar...
FELINI:- Não, eu quero
agora... Uma cítara... uma harpa... ou mesmo, um violão...
ASSISTENTE:- O nosso
iluminador toca violão... Quem sabe? (Para
o iluminador). Está aí o seu violão? Então, traga-o aqui. Rápido.
FELINI (colocando o violão nas mãos do ator):-
Vamos, segure isso e... toque... vamos, toque...
ATOR:- Mas, Diretor, eu não sei...
FELINI:- Não importa... agora você sabe...
Vamos, toque!
(O
ator dedilha o violão, desajeitadamente).
FELINI:- Isso, mais
forte... Assim... Vamos... vamos... Isso... Pare! Agora vamos filmar...
ASSISTENTE:- Silêncio! Claquete!
FELINI:- Luz! Câmera! Ação!
ASSISTENTE:- Cena 103. Tomada 1.
FELINI (dirigindo a cena como um possesso, falando
às vezes ao megafone, aproximando-se e afastando-se, gritando, implorando etc.):-
Isso mesmo... toque o violão... com mais força... isso... Agora dance! Vamos,
dance, como os loucos dançam... Você sabe... Isso... assim... mais forte...
roda ... roda... toque... balance o corpo para frente... isso... olhe para
cima... você está vendo um deus lá no alto... veja... ele está chamando você...
ofereça a ele a sua música... o seu corpo... Você está sobre a montanha... E o
deus fala com você... O povo aguarda a palavra... a sua palavra... mas você só
tem a música... Toque... toque... mais alto... Dance! Dance! Até morrer! Até
morrer! A morte o libertará! Rode! Rode até cair... Isso... Isso mesmo...
Corta! Corta! (Pausa. Levantam o ator,
exausto). Muito bem! Filmaram tudo como determinei, não filmaram? (Sua voz vai, pouco a pouco, readquirindo a
normalidade e passa, ao final, a um alheamento meio louco). É isso... o meu
filme... agora começo a perceber... e vocês também percebem, não percebem? Um
povo... uma nação se faz com cavalgadas, com beijos e com sonhos. São esses os
elementos primordiais da alma humana. E nós, nós aqui, neste filme, estamos
captando esse momento mágico. Vocês estão fazendo a história! E eu, eu sou
aquele que dirige tudo isso... Eu sonho... eu deliro... eu realizo... Não sou,
também, um deus? Não sou? Eu, Felini Brasileiro da Silva, um deus... um deus...
(Neste
momento ouve-se um tiro, seguido de gritos. Após alguns instantes, entra um
ator correndo).
ATOR:- Senhor Felini,
senhor Felini.... Uma tragédia! Uma tragédia!
FELINI:- A vida é uma
tragédia! Vamos, fale, o que aconteceu de tão grave?...
ATOR:- É... é a nossa atriz... ela se matou...
FELINI:- Como?! Como ela
ousou fazer isso sem que eu estivesse dirigindo?!... Como?!...
ASSISTENTE:- Senhor Diretor,
ouça... A nossa atriz se matou de verdade!
FELINI:- Não foi uma cena?
ATOR:- Não, senhor. Foi de verdade!
FELINI:- Mas, por que ela fez isso?
ATOR:- Estão dizendo
que ela recebeu notícia do noivo... ele está com AIDS...
FELINI:- Oh! Como é
pobre a realidade! Matar-se porque o noivo está com AIDS... É por isso que não
gosto dessa... dessa... coisa que vocês chamam vida real... cheia... de
dores... de desencantos...
ATOR:- Mas, senhor
Diretor, o senhor não diz sempre que arte é vida levada ao paroxismo?
FELINI:- Eu disse?... Eu
digo sempre isso?... Vida? Arte? Paroxismo da vida ou da arte?... Não... sei...
Por que matar-se pela vida? Não é mais lógico matar-se pela arte?... Você
disse... Não, eu disse paroxismo... Um vez, há muito tempo, minha Mãe...
(As
luzes vão-se apagando à proporção que um foco sobre Felini vai aumentando.
Todos se retiram em silêncio).
FELINI (senta-se numa cadeira):- Minha Mãe! Onde
você está? Onde? Tenho sentido tanto sua falta! (Pausa). MÃE! É o seu filhinho, Mãezinha! Estou precisando de você!
(Ouve-se um riso abafado). Eu sei que
você está aí. (Outro riso, mais claro).
Filhinho precisa de Mãezinha! Filhinho precisa de Mãezinha! (Uma gargalhada). É você mesmo, Mãe?
Estou com medo!
VOZ:- Filhinho está com
medinho? Coitadinho! Coitadinho!
(Gargalhada).
FELINI:- Não! Você, não! Desgraçada!
BRUXA (pulando sobre ele, às gargalhadas):- Sou
euzinho, sou euzinho, cantando pro filhinho... Filhinho com medinho... Filhinho
com medinho...
FELINI:- Criatura dos
quintos dos infernos! Vai-te embora! Te esconjuro!
(A
Bruxa canta e dança ao redor de Felini, imobilizando-o e amarrando-o).
BRUXA:- Medo de escuro
É um medo tão puro
Por isso te esconjuro
Menino dedo-duro
Menino dedo-duro!
FELINI:- Não, não! Dedo duro, não! Sua filha
da puta!
(A
Bruxa liga uma máquina de choque elétrico aos órgãos sexuais de Felini).
BRUXA:- Menino medroso,
Menino medroso,
Na noite tão fria,
Toca piano, toca,
Na delegacia!
FELINI:- Não, isso não!
Eu conto! Eu falo tudo! Mas não me machuque! Eu quero minha Mãezinha! Eu quero
minha Mãe! (Chora). Mãe! Por que você
deixou que eles fizessem isso comigo? Por quê, Mãe?
(A
iluminação destaca, pouco a pouco, a Mãe, que declama).
MÃE:- Era tão puro o meu menininho!
Meu menininho era tão puro!
De nada sabia,
Pois nada ouvia!
Ouvia somente, na noite tão fria,
A cama que rangia,
Um cão que latia...
Mas nada ouvia
Do preço da vida,
Da dor da ferida...
Ouvia uma cama ranger
E pensava, deitado no escuro,
Meu menino tão puro,
Pensava apenas ser
Um grande filho da puta!
A cama, no entanto,
Era o campo da luta,
Era a voz do meu canto,
O grito da verdade,
Voz de liberdade!
E o filhinho tão puro
Virou dedo-duro.
O menino pensava
Que a mãe só trepava
E nada ouvia
Da dor que se cala,
E nada ouvia
Do preço da vida,
Da dor da ferida,
Ferida de bala.
Aos Guerreiros da luta
Fazia-me de puta,
Pra dar ao menino,
O menino tão puro,
Um pouco da dança
Chamada esperança...
E o menino tão puro,
E o menino tão burro
Se fez dedo-duro!
FELINI:- Mãe! Mãe! Por
favor, Mãe, me perdoa! Me perdoa! Ai! Ai! Eles me forçaram, Mãe! Eles me
torturaram! Me enrabaram, Mãe!
(A
Bruxa canta, dança e tortura Felini).
BRUXA:- Menininho gostoso!
Menininho mentiroso!
Um choque... arrepia.
Um murro...
estrebucha.
Menino então fazia,
Da mente medrosa
Surgir uma bruxa!
Menininho gostoso!
Menininho mentiroso!
FELINI:- Não! Não sou
mentiroso! Eu não criei essas bruxas desgraçadas! Elas... elas vieram povoar
meus sonhos! Eu não sabia, Mãezinha, eu não sabia!
MÃE (cantando):- Boi, boi, boi,
Boi da cara
preta!
Pega esse menino
Que tem medo de careta.
Boi, boi, boi,
Boi da cara
preta!
(A
figura da Mãe vai-se esmaecendo, pouco a pouco, até que fique visível somente o
rosto).
MÃE:- Filhinho queridinho
da Mãezinha! Mãezinha vai embora! Deixa beijinho! Deixa beijinho!
FELINI:- Não, por favor!
Não vá embora, minha Mãe! Eu preciso saber... eu tenho de saber...
MÃE:- Saber? Saber o
quê, filhinho? Filhinho já sabe tudo! Filhinho já sabe de lutas e cavalgadas,
de dores de amores e de beijos de dores, de aventuras e de sonhos... de sonhos
tão loucos!... Filhinho é famoso... Fazedor de grandes feitos em fitas de
celulóide! Filhinho é tão sábio!
FELINI:- Nada sei, minha
Mãe, nada sei se não sei o mistério maior de minha vida...
MÃE:- Lá vem filhinho
querendo saber quem foi paizinho... Lá vem filhinho curiosinho do nominho de
paizinho...
FELINI:- Não, Mãe! Dessa
vez você se enganou. (Leva um choque da Bruxa).
Ai! Sua maldita! Desgraçada! Xô, diabo do inferno que eu mesmo fiz!
BRUXA (dançando e
cantando):- Dodói no filhinho!
Dodói no filhinho!
Filhinho mentiroso
Virou curioso!
Filhinho tão gostoso!
Ficou tão furioso!
MÃE:- Então, diz, meu
filho, diz logo, que estou indo embora. Já quase forças não tenho para te ver.
Logo não mais poderei te responder.
FELINI:- Há um só
mistério em minha vida e esse mistério não é meu pai. Há muito desisti de
pensar num pai. Sou teu filho apenas, um filho que traiu porque te amou. Mas
teu filho. Só teu filho.
MÃE:- Filhinho está com mais mistérios que o mistério da
dor!
FELINI:- Ouça, Mãe, e me
responda. Apenas isso: meu nome! Por que Felini! Por que, Mãe?
MÃE:- Felini Brasileiro
da Silva! Os nomes traçam destinos insondáveis! O teu Felini vem do sonho e do
delírio em que devias te transformar... Felini Brasileiro da Silva! Da favela
para o sonho! Da vida para a dor de viver! Felini, nada há de mais nesse
mistério que o teu próprio delírio... Não posso mais falar... Adeus! Não sei se
ainda terei forças para te perdoar...
(A
Mãe desaparece).
BRUXA:- Menininho ficou sozinho!
Menininho ficou sozinho!
Mas já está crescidinho
E pode levar mais um
choquinho!
FELINI:- Bruxa do inferno! Eu vou te matar,
desgraçada!
(Felini
consegue desamarrar-se e passa a perseguir a bruxa que, às gargalhadas, foge de
um lugar para outro. Figuras estranhas surgem de todos os lados e encetam um
bailado, ao som de gritos e sons estridentes, em torno de Felini que, exausto,
desmaia. Tudo silencia e desaparece de repente. Quando as luzes voltam a
acender, Felini está semiconsciente. Entram soldados, enfermeiras e um médico).
SOLDADO:- Está morto?
MÉDICO (examinando-o
rapidamente):- Ainda vive.
(O
soldado chuta a bunda de FelinI).
FELINI:- Bruxa desgraçada... vai embora...
MÉDICO (para
os soldados):- Levantem o cara...
FELINI (abrindo um só olho):- Ah! As bruxas tão
querendo me enganar, é? Xô! Vão embora!
SOLDADO:- Está louco?
MÉDICO:- Sempre foi...
FELINI:- Louco é a mãe, bruxas malditas...
SOLDADO (dando-lhe um safanão):- Acorda,
idiota... Você está preso!
FELINI (recobrando-se):- Preso?! (Livra-se dos que o seguram). É isso!
Vamos! Prenda-me. É a cena final. Eu mando, vocês obedecem. Eu, Felini Brasileiro
da Silva, o gênio... (Faz uma careta,
solta um grunhido e ameaça pular em cima do grupo. Todos se assustam). Luz!
Câmara! Ação! (Estende os braços para um
dos soldados). Vamos, soldado! Cumpra o seu dever: prenda o louco. (O soldado fica alguns instantes sem saber o
que fazer. O médico faz-lhe um sinal de concordância. Ele algema Felini).
Algemas, não, imbecil! Não se prende um louco com algemas! Vamos, tire isso! (O soldado obedece-lhe. Felini coloca-se,
ameaçadoramente, na frente do médico). Você, seu médico de bosta! Me diz:
como se prende um louco?
MÉDICO (assustado):-
Com... com uma camisa de força...
FELINI (imitando-o):- Com uma camisa de força...
Que canastrão! Repita comigo: (fala de
forma afetada) Com uma camisa de força, senhor Felini! Vamos, repete o que
eu disse...
(O
médico tenta repetir).
FELINI:- Vamos ter que
repetir! Repetir! Re-pe-tir! Mil vezes! Mas agora é só um ensaio. Vamos, manda
colocar uma camisa-de-força em mim!
MÉDICO (recuperando-se):- Façam o que ele
mandou! Uma camisa-de-força... rápido!
(Os
enfermeiros colocam-lhe uma camisa-de-força).
FELINI:- Muito bem, seus
imbecis! Está melhorando! E agora? Onde vão colocar o louco? Me digam! Onde? (Pausa. Indecisão entre o grupo). Não
sabem, não é? Pois, vejam (aponta para o
alto): é mais um de meus truques! (Desce
uma jaula do teto). Vamos! Tranquem o louco! Tranquem o louco!
(Colocam
Felini na jaula. As luzes vão-se apagando lentamente, ficando um só foco sobre
ele, que retoma a posição em que estava no início).
FELINI:- Ai! Ui! São
dores horríveis! Por quê?! É a dor maldita que traz de volta a loucura! Meu
pensamento... tudo misturado... vida... arte... loucura... E a luz... luz ...
câmera! Ação! Ação! Tudo merda! Merda! MERDA!
FIM
ISAIAS EDSON SIDNEY
S.PAULO, 20/96
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