domingo, 23 de maio de 2021

O ABUTRE

 



 

Versão radiofônica de conto homônimo de Franz Kafka.

 

Isaias Edson Sidney

 

2003/ novembro

 

 

Personagens: dois homens.

 

 

 

Ruflar de asas.

 

Passos e voz que se aproximam.

 

 

 

Ruflar de asas que se distanciam e depois se aproximam. Voz interior. Cansaço.

 

 

 

Em voz alta, meio esganiçada.

 

 

 

 

 

Voz interior. Asas se distanciam.

 

 

 

 

 

 

 

 

Ruído de água. Voz interior.

 

 

 

 

 

 

 

 

Ruflar de asas que se torna cada vez mais próximo. Voz do homem se fortalece.

 

 

 

Tropeção e queda.

 

 

 

 

 

Bicadas. Luta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Passos. A luta cessa.

 

 

 

 

Voz que se aproxima.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Passos e voz que se distanciam.

 

 

Voz interior. Ruído de asas que vão aos poucos se tornando mais fortes. Ruído de luta que cresce e depois se extingue.

 

 

 

 

 

 

 

Voz interior que se afasta.

 

 

 

HOMEM 1:- Ave maldita... vai embora... Xô! ... Vai embora... Minha carne não é para teu bico... Vai...

 

 

HOMEM 1:- Meu caminho... este o meu caminho. Sei que é este o meu caminho. Só não sei se é este o meu destino...

 

 

 

 

HOMEM 1:- Você, de novo! Sai! Me deixa... Tu tens o céu todo para ti... E eu? Eu só tenho esse caminho...

 

 

 

HOMEM 1:- Já é lento o meu caminhar... e esse caminho que desce, desce... depois sobe, sobe... Uma planície imensa... agora o deserto... depois, montanhas... que de repente viram de cabeça para baixo e eu desabo... e caminho... meus pés doem... meu corpo dói... Não! Não há sofrimento... somente dor...

 

 

 

HOMEM 1:- Sede... sede... Preciso mitigar minha sede... Essa água... parece pura... Argh! É pó... a água virou pó... e eu morro... Não! Eu tenho que seguir o meu destino... É este o meu caminho... e eu só tenho este caminho de montanhas que descem... que descem...

 

 

 

HOMEM 1:- Tu, de novo! Eu sei o que tu queres, ave maldita! Eu... tenho somente este caminho... E tu, tu só tens a mim, não é? Tu só tens a mim!

 

 

 

HOMEM 1:- Ai! Ai! Ai meu pé... maldito caminho! E eu só tenho este maldito caminho! Vem, meu anjo negro... ou demônio... Vem. Meu sangue também vai virar pó ao teu bico, maldito! E eu é que...

 

 

HOMEM 1:- Eu vou... eu vou... pegar tua garganta, maldito!... Quero... quero matá-lo... Ai! Ai! Não... não, por favor... Leva-me para o inferno de onde não devias ter saído... Não! Não!... Por quê? Ó deuses, por quê?... Quero mexer-me... deixa-me levantar... Não posso me mexer! Não consigo me mexer... Vai embora, covarde! Como ousas comer os meus sapatos, se não posso me defender? Ai! Como ousas comer o meu pé, se ainda há caminhos a percorrer com eles? Como ousas, maldito? Ai!

 

 

 

HOMEM 1:- Ouço passos... Como pode? Esse caminho é só meu... Como pode... alguém... alguém caminhando o meu caminho... Quem está aí?

 

 

HOMEM 2:- Vinha seguindo o teu caminho... por instantes. Como podes... como podes suportar esse... esse abutre?

 

HOMEM 1:- Estou sem defesa. Ele veio e atacou-me. Ele é forte... não vês? Muito forte. Quis matá-lo... estrangulá-lo... Não pude! Um bicho desses... Ia atacar-me a face... preferi sacrificar os pés...

 

HOMEM 2:- Estão quase despedaçados.

 

HOMEM 1:- E há o caminho que tenho de seguir... e só eu posso fazê-lo...

 

HOMEM 2:- Deixar-se torturar dessa maneira!? Basta um tiro e... pronto!

 

HOMEM 1:- Acha que sim?

 

HOMEM 2:- Está calmo, agora... a observar-nos... ora um... ora outro...

 

HOMEM 1:- Quer disparar o tiro?

 

HOMEM 2:- Certamente! Dói muito?

 

HOMEM 1:- Uma dor... uma dor pavorosa!

 

HOMEM 2:- É só ir a casa buscar a espingarda. Agüenta esperar meia hora?

 

HOMEM 1:- Não sei... não sei dizer... os caminhos me chamam... mas a dor me faz caminhar outros caminhos... sem montanhas... sem desertos... só  planícies... e dor.

 

HOMEM 2:- Se não quer...

 

HOMEM 1:- Ele... veja... ele está calmo, agora... Ai, ai... De qualquer modo, vai... eu te peço...

 

 

 

HOMEM 2:- Vou o mais rápido possível.

 

 

 

 

 

HOMEM 1:- Ficaste aí... abutre em pose de abutre... Ouviste tudo... que queres de mim? Não me olhes assim... eu preciso caminhar o meu caminho... só eu... só eu posso caminhar o meu caminho... mesmo sem pés... eu vou... Não... não batas as asas... Não venhas... não venhas... Ai! Ai! A! Ai!

 

 

HOMEM 1:- Ele elevou-se... magnífico... com um bater de asas... Empinou, tomou impulso... uma flecha... uma flecha... Enfiou-me o bico pela boca... atravessou minha garganta... até o mais fundo do meu ser... Tinha-me levantado... caí de novo... Alívio... Alívio! O abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.

 

FIM

 

 

 

 

Isaias Edson Sidney

domingo, 23 de maio de 2021

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