Isaias Edson Sidney
SBAT – 34.572
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isasidney@gmail.com
1997
DIREÇÃO: ANTÔNIO DE ANDRADE
ESTÊVÃO MAYA-MAYA (o pai: Sebastião Serrano)
EDSON MONTENEGRO (o filho mais velho: Vítor Serrano)
GUILHERME SANTANA (o filho mais novo: Válber Serrano)
PERSONAGENS
· APARECIDA SERRANO (esposa)
· VÍTOR SERRANO (o filho mais velho)
· VÉBER SERRANO (o filho do meio)
· VÁLBER SERRANO (o filho mais novo)
Palco
totalmente despojado. Sugerem-se, ao fundo, ruas e casario de uma cidade do
interior. A ação se passa em Lavras, Sul de Minas, nas décadas de 50 a 90, e é
contada através da memória das personagens. O clima deve ser, portanto, um
pouco mágico, um tanto obscuro. Todos os personagens são negros.
(Ao abrirem-se as cortinas - ou ao começar a peça - entra
Válber. Tem pouco mais de quarenta anos. Porta uma pequena bolsa de mão, pois
está chegando de viagem. São cinco horas da manhã, tempo assinalado pelas
batidas de um carrilhão de igreja, ouvido a distância).
VÁLBER:- É cedo... não vou acordar minha mãe... Estou
precisando mesmo de exercício... Pisar cada pedra dessas ruas mil vezes pisadas
é lembrar... lembrar o que vivi, sonhei, sofri... Bom dia, seu Mário (para um invisível transeunte). Aqui
todos me conhecem... Lembrar, eu não quero lembrar... mas não consigo esquecer...
Quadros já gastos da memória... gastos de tanto tentar esquecer... Eu tinha
trinta e três anos quando saí daqui pela primeira vez ... Cristo morreu aos
trinta e três... depois de uma longa vida... A minha vida também já era longa,
naquele tempo, com um grande buraco bem no meio... Não, não quero pensar
nisso... (pausa) Minha terra...
parece que faz séculos que eu nasci aqui... e tudo continua igual... Minha mãe
deve estar me esperando... como toda semana... não tão cedo... vou descer
devagar a rua do bonde... do bonde que não existe mais... um bonde que nunca
teve nome: apenas subia e descia essas ruas tortas e infinitas... Minha mãe...
ela não quer sair daqui... ir para a capital... Tem medo de morrer longe e não
conhecer os vizinhos de túmulo...
(Afaga um imaginário cachorro).
VÁLBER:-
Oi, tiuzinho... os cães daqui me
conhecem e eu conheço cada um deles... cães de rua... necessitados de um
afago... gosto do seu ar maroto e de seu olhar tristonho... escapam sempre das
armadilhas da vida... só não escapam do mês de agosto... Agosto é mês de
cachorro louco... poucos sobrevivem... Eu sobrevivi... sobrevivi a meus
irmãos... Vítor, o mais velho de nós...
(Um foco de luz mostra o corpo nu de um homem negro sobre uma mesa de
necrotério).
VÁLBER:- Sua pele negra, meu
irmão, estava ainda mais negra quando te encontrei jogado nu em cima da pedra
fria do necrotério...
(Apaga-se o foco).
VÁLBER:- E você, Véber...
(Um foco de luz destaca outro homem negro, sentado numa cadeira de
braços, inerme, com a cabeça para trás e uma grande mancha de sangue no peito).
VÁLBER:- O irmão do meio... tínhamos nossas diferenças,
mas você não merecia... não, não merecia... Cães e irmãos... merecemos todos o
mesmo afago... Mas agosto foi sempre implacável... maldito mês de cachorro
louco...
(A iluminação destaca jovem senhora arrumando apressada e nervosamente a
mesa para uma refeição).
VÁLBER:- Minha mãe...dona Aparecida...talvez já tenham
visto esta cena antes... milhares de vezes... mãe arrumando mesa para refeição da família... minha família... não,
não é diferente das outras...
(Válber se retira e a ação se concentra em dona Aparecida).
APARECIDA:- Véber, Vítor, Válber... já pra sala... seu
pai está pra chegar... a janta tá quase pronta...
(Ouve-se barulho de algazarra de crianças, risos).
APARECIDA:- Véber! O que é que tá acontecendo aí...
‘Ceis querem apanhar de novo? Onde já se viu... Já pra sala... Num vô falar
mais... deixo pro seu pai...Que coisa... esses menino num têm jeito... uns
capeta... só o pai é que pode com eles... Véber, Vítor... Eu aqui me matano pra
deixar a casa em ordem... esses menino... Ajudem o Válber a se vestir... Parem
com isso... Num’dianta! Limpo, cozinho, lavo, corro o dia inteirinho... e
parece que num rende... e esses capeta... tão sempre fazendo arte... Meninos...
andem... seu pai tá chegano! A gente num tem um minuto de sossego nessa vida...
e ainda ficam falano que sô ranheta...
(Os três meninos entram pela sala, correndo e brincando, na maior folia,
sentam-se à mesa, disputando lugar. Estão todos impecavelmente vestidos de
branco).
APARECIDA:- Parem com isso... levanta daí... anda...
(Tenta pôr ordem na confusão)
APARECIDA:- ... seu pai já tá
chegano... que coisa... depois ele vem recramar que eu num controlo ocêis...
vamo... levantem da mesa... não mexam nos talher... saiam...
(Ouve-se barulho de porta abrindo-se e fechando-se. Os três meninos
levantam-se imediatamente. Postam-se um ao lado do outro, em posição de sentido
e procuram ficar sérios. Aparecida corre a dar os últimos retoques na mesa.
Entra o pai, sob o maior silêncio. O senhor Sebastião é alto, forte, andar
altivo. Veste um macacão azul da Rede Mineira de Viação, cujo monograma (RMV) é visto no bolso. Mesmo em veste tão
simples, está impecável, como se não tivesse saído do trabalho. Traz na mão um
pequeno embrulho que entrega à Aparecida, que corre a guardá-lo na cozinha e
volta imediatamente. Em silêncio, dirige-se a uma pia imaginária, lava as mãos,
o rosto, enxuga-os cuidadosamente, penteia os cabelos, olha-se a um espelho
também imaginário durante alguns segundos. A cena se congela, Válber se adianta
e dirige-se à plateia).
VÁLBER:- Meu pai... o Serrano...
como todos o conheciam... abominava o primeiro nome, Sebastião.. homem
rígido... Diziam antigamente: têmpera de aço... Moral inatacável...... chefe
das oficinas da Rede Mineira de Viação... ex-pracinha... foi à Itália como
chauffeur, como se dizia então... A lama e a neve da Itália nunca sujaram suas
botas... Voltou apenas mais orgulhoso do que era. Seus gestos de hoje têm o
ferro dos trilhos, não o ferro das armas... Tínhamos todos de andar nos
trilhos... nos trilhos daquilo que ele julgava ser o melhor para nós...
forjados para vencer... às vezes, na pancada como cães de rua... outras vezes,
com duros castigos... O senhor Sebastião Serrano é a lei, nesta casa. O aço dos
trilhos da Rede Mineira de Viação só não endureceu o coração de minha mãe...
(Apaga-se o foco sobre Válber adulto. A cena prossegue. Sebastião passa
uma revista minuciosa nos filhos: mãos, orelhas, sapatos, roupa. Como tudo está
em ordem, senta-se à cabeceira da mesa, aguarda os filhos se acomodarem.
Aparecida, ainda de pé, serve o marido e depois os filhos).
APARECIDA (sentando-se; com voz ligeiramente trêmula):- O boletim do Vítor já
chegou... tem uma nota vermelha...
(Vítor abaixa a cabeça ao receber o olhar fulminante do pai).
APARECIDA:- Mas foi só em geografia, por causa daquele
probrema... ocê lembra... ele teve que faltar por causo da doença do tio Chiquinho... perdeu uma prova... as outra
nota tão boa... ocê sabe, o Vitinho é danado... ocê devia ter um pouco mais
de...
(Cala-se diante do olhar de reprovação do marido. Comem por um instante
em silêncio. Véber tosse, todos olham para ele).
APARECIDA:- O Véber tá com tosse cumprida, ocê deixa
dinheiro que vô na farmácia comprá um xarope... é um xarope novo... eu ouvi o
recrame no rádio... diz que é muito bão... (Pausa).
Amanhã é a missa de sétimo dia do falecido Antoninho da comadre Luísa, que Deus
o tenha... (faz o sinal da cruz. Pausa).
A tia Elisa mandô um recado pr’ocê passá lá amanhã, acho que é pra consertar a
torneira de novo... Ocê sabe, o tio Faria só entende de sapato e é sempre ocê
que tem que cuidar da casa deles... Ah! Ia esquecendo... a viúva dona Irma, do
falecido Joãosinho Resende, que Deus o tenha (faz o sinal da cruz), apesar de tudo o que ele fez pra coitada da
dona Irma, ela mandô dizê que o chuveiro elétrico pifô de novo... Acho que esse
povo pensa que ocê num tem o que fazê... depois que chega da Rede... que
coisa!... será que não vão te deixar sossegado nunca?
(A cena continua muda. Válber adulto retoma a narrativa. À medida que
vai falando, a luz esmaece e apaga a cena familiar e passa a acompanhar o
pai)..
(Sebastião consulta o relógio de bolso e apronta-se para sair: terno
branco, sapatos lustrosos, gravata etc. A luz ilumina-o, então, numa pose de
altivez ao mesmo tempo que ilumina Válber. Começa a tocar um dobrado por uma
banda militar).
VÁLBER:- Não... não!
VÁLBER:- Uma noite... acho que
eu tinha uns quinze anos... eram mais de três da manhã... sonhei com um
ruído... acordei...
(A luz ao fundo ilumina uma cama de casal, onde está
deitada Aparecida e o vão de porta invisível. Serrano está encostado num dos
batentes, extático, mal conseguindo parar de pé. Ouve-se o ruído de batidas.
Aparecida acende um abajur ao lado da cama, senta-se por um instante, como se
tentasse identificar de onde vêm as batidas. Levanta-se lentamente e,
arrastando os chinelos, vai até a porta. Abre-a e Serrano quase despenca sobre
ela. Equilibra-o com dificuldade. Ampara-o numa lenta caminhada até o leito, onde ele praticamente se
joga. Despe-o com dificuldade, deixando-o apenas de cuecas e meias. Sai por um
instante e volta com uma bacia com água e toalhas. Lentamente, passa sobre o
rosto e o corpo de Serrano uma toalha molhada e depois enxuga-o. O homem
permanece o tempo todo com os olhos abertos e uma expressão alheada. Quando
termina de limpá-lo, ele se volta para o outro lado e começa a ressonar, como
num sono profundo. Aparecida apaga a
luz do abajur e fica apenas um foco sobre ela. Ajoelha-se ao lado da cama, tira
do bolso da camisola um terço e reza silenciosamente. Ouvem-se ao longe as
batidas de três horas de um carrilhão de igreja, o pio de uma coruja e latidos
de cães. Toda a cena foi vista por Válber, que está num canto do palco. Após um
breve blackout, a cena começa de novo a iluminar-se lentamente, indicando
amanhecer. Ouvem-se badaladas do carrilhão a anunciar seis horas e cantos de
pássaros. Aparecida continua ajoelhada, encurvada sobre o corpo do marido.
Acorda assustada com a claridade e
levanta-se. Válber não está mais lá. Aparecida
arrumando a mesa de jantar, numa repetição da cena 1. Algazarra de crianças ao
fundo).
APARECIDA:- Crianças... já tão prontas? O pai está
chegando...
APARECIDA:- E o diabo do Vítor, que num aparece... o que
será que aconteceu, meu Deus do céu... E o Serrano já tá pra chegar... que
coisa! Meninos, venham, o pai chegou!...
(Serrano entra, repetindo os mesmos gestos da primeira cena. Os dois
meninos estão alinhados, esperando a revista paterna. Serrano aproxima-se
deles, ante o olhar preocupado de Aparecida).
SEBASTIÃO:- Onde está o Vítor?
(Todos se sentam à mesa. Aparecida serve-os. Começa a
falar, visivelmente preocupada, tentando disfarçar a situação de ausência do
filho mais velho).
APARECIDA:- Fiz o ora-pro-nobis qu’ocê me pediu... com
carne moída e angu... tá gostoso... Ocê passou na casa da tia Elisa? Ah! Deixa
eu te contá o que aconteceu hoje aí na rua... tava passando uma boiada, acho
que uns cinqüenta boi... Sabe a Mariinha da comadre Gilda? Tava lavando roupa
lá no quintal e foi estender uma saia vermelha no varal... aí um boi enorme...
pulou o barranco pra dentro do quintal... quase pegou a coitada da Mariinha que
quase morreu de susto... inda bem que ela correu a tempo... E pra tirá o boi lá
de dentro?! O bicho empacô qui nem burro velho... num tinha cristo que fizesse
o danado subir de vorta o barranco... juntô gente... o bicho cada veiz mais
bravo... ficô nessa encrenca acho que umas duas horas... até que chamaram um
vaqueiro mais véio... ele conseguiu colocá uma argola no focinho do bicho e
puxaram ele pra cima... o quintal da dona Gilda ficô qui nem tivesse uma
guerra... fiquei morreno de dó... as pranta... os arame de varal tudo no
chão... uma desgraceira... mas o boi tamém ficô bastante machucado, coitado...
SEBASTIÃO:- Boi que desgarra da
boiada, só pode mesmo é levar pancada!...
(Pausa. Entra Vítor correndo. Assusta-se com a presença do pai, como se
não esperasse encontrá-lo. Tem seus treze, quatorze anos. Veste um uniforme de
escola todo sujo e traz uma bola de futebol nas mãos. Aparecida corre ao
encontro do filho, como a tentar protegê-lo).
(Abraça-o e tenta sair com ele da sala).
APARECIDA:- Vamo... vamo tirá essas roupa... lavá esse
rosto...
(Sebastião levanta-se da mesa
e tira o cinto),
SEBASTIÃO:-
Espere...
(Aparecida tenta um gesto de proteção).
SEBASTIÃO:- Você sabe o que
acontece com quem sai da linha... Vem...
(Sebastião pega o menino pelo braço e sai. Num instante, ouvem-se os
ruídos das chibatadas, umas dez. Enquanto isso, Aparecida permanece extática,
rezando silenciosamente e os demais meninos correm para perto dela. Sebastião
volta, trazendo Vítor pelas orelhas. O rosto do menino expressa dor, mas ele
não chora, numa pose de quase desafio).
SEBASTIÃO:- A surra não foi tanto
pelo atraso, mas pelo futebol... Já disse que não quero vê-lo mais jogando
bola... Isso é coisa de negro... Já sei: você vai dizer que também é negro...
Mas bota isso na sua cabeça: vocês... nós... nós somos diferentes... temos que
ser diferentes... A vida aí fora não admite fraquezas... Vocês vão aprender a
ser gente! Nem que eu precise...
(Pára ante o olhar de susto dos outros meninos).
SEBASTIÃO:- Agora já para o castigo... e só sai quando eu
mandar...
(Vítor dirige-se para uma canto onde se ajoelha , para
cumprir o castigo. Aparecida retoma suas atividades de dona de casa, tirando a
mesa do jantar. Sebastião liga o rádio, os dois meninos menores ficam brincando
no chão. Wálber retoma a narrativa).
VÁLBER:- Um dia, meu pai...
(Não conclui a frase, interrompido pela entrada de Vítor adulto, que
pára um instante perto do Vítor adolescente, beija a mãe e esboça um gesto de
carinho para o pai. Os dois irmãos se defrontam, por um breve instante. Válber
retira-se. Enquanto ele fala, a cena ao fundo irá se apagando pouco a pouco, para
voltar ao passado de Vítor).
VÍTOR:- Os castigos de meu
pai... o milho que marcava os joelhos deixava na alma um sentimento de
insegurança... Nunca soube qual pai odiar, nunca soube qual pai amar... Acho
que não soube nunca como tudo isso marcou minha vida, meus amores e até mesmo a
minha morte...
(Ao fundo, as luzes revelam: Sebastião ouvindo no rádio a transmissão do
final da copa do mundo de 58, enquanto Aparecida, envolta num xale, costura
algo, próxima a um berço e dois meninos brincam sentados no chão).
(Vítor adulto toma o lugar do Vítor criança. Depois de alguns instantes,
em que o locutor enaltece conquista do Brasil, Vítor dirige-se ao pai).
VÍTOR:- Pai, o que é isso? O que está acontecendo?
(Levanta-se e vai buscar a garrafa de vinho).
APARECIDA:- Não vai dá mau exempro para as criança... que
coisa... onde já se viu...
(Serve-lhe uma taça de vinho).
SEBASTIÃO:- Beba você também,
Aparecida...
(Volta para junto do berço e, disfarçadamente prova um
pouco do vinho).
SEBASTIÃO:- Vítor, meu filho...
você agora talvez não entenda, mas ainda vai sentir muito orgulho de nosso
país... de nossa raça... graças a um menino... um menino de dezessete anos,
chamado Pelé...
( Vítor dirige-se à platéia, enquanto a iluminação
vai lentamente apagando-se até o blackout, ficando apenas um foco sobre ele).
VÍTOR:- Nunca soube o que se quebrou
dentro de meu pai... aquelas palavras, quase proféticas... nunca mais o
reconheci...
(Entra Válber. Ele e Vítor se encaram).
VÍTOR:- É você, Válber?
(Neste momento, ao som da marcha fúnebre, passa uma procissão de Sexta-feira
Santa. Um pouco distante do pálio, vem Sebastião batendo uma matraca, em vestes
simples, cabisbaixo...)
VÍTOR:- Futuro! O meu futuro!
Onde foi parar o meu futuro? Diga-me... onde? Vocês fizeram tudo para destruir
o meu futuro...
(Novamente a marcha fúnebre anuncia a procissão de Sexta-feira Santa.
Agora, Sebastião veste uma opa vermelha da Congregação do Sagrado Coração de
Jesus e, já próximo ao pálio, conduz uma lanterna de papel colorido. Seu andar
é mais altivo que da vez anterior).
VÍTOR:- Ambição! O que você entende de ambição? Você,
que sempre viveu à sombra de nossa mãe, como... como...
(Pela terceira vez, a procissão de Sexta-feira Santa. Sebastião, agora
um dos condutores do pálio, bem à frente, caminha altivo. Blackout. Sala de jantar: os três meninos sentados à
mesa, fazem seus deveres de escola. Entra Sebastião, vindo do trabalho).
SEBASTIÃO:- ‘Parecida!? (repete mais três vezes). Onde está a mãe
de vocês?
(Ouvem-se miados de gatos, que cessam de repente. Breve silêncio.)
SEBASTIÃO:- O que sua mãe está
fazendo lá no quintal?
(Aparecida entra, com um lenço na cabeça e uma enxada
na mão).
APARECIDA :- Prantando gato...
prantando gato, seu Serrano... Num ia deixá essa mardita gata e esse monte de
gatinho tormentando meus ouvido noite e dia... Enterrei todos!
APARECIDA:- Maldade! Maldade é eu ficá aqui sozinha
ouvindo os miado dessa gataria... Vai, vai tomá seu banho... isquece esses
gato... Vai!
(Sebastião sai, desolado. Ela continua como se falasse para si mesma).
APARECIDA:- Deus que me perdoe... eu sei que é
maldade... esses gato... mas eu tinha qui fazê isso... num pudia mais
suportá... o Serrano me paga... ah! se me paga! A vida desses gato vai nos
salvá... era a vida deles pelo Serrano... ele vai deixá essa vida... vai, vai
sim, se não for por bem, será por mal... pelos menino... A comadre Ambrosina
tinha razão: home qui num presta uma veiz, num presta nunca mais... Mas eu num
posso... num posso vivê sem ele... e com ele tá difice... Quê que eu faço, meu
Deus! Quê que eu faço?
(Entra Válber adulto. Enquanto ele fala, a cena ao fundo continua muda,
com os meninos guardando o material escolar, Aparecida arrumando a mesa do
jantar e Sebastião sentando-se no lugar de sempre, após ligar o rádio para
ouvir o noticiário).
VÁLBER:- Eu era muito pequeno
para entender o que minha mãe tinha feito... mas no fundo eu sabia o que ela
queria... Mesmo do tempo eu tinha uma vaga noção... sabia que era agosto,
porque as aulas mal haviam começado, após as férias de meio de ano... Minha
família... sempre a rotina da rigidez de meu pai... das rezas de minha mãe...
No mês de cachorro louco, não tínhamos licença para brincar na rua... O pai não
deixava... Meus irmãos, presos à rotina, às vezes escapavam, sob o olhar condescendente
da mãe... às vezes o pai os pegava... e tome surra... e tome castigo... Eu,
não! Poucas vezes apanhei de meu pai...
(A cena ao fundo escurece. Entra Vítor, com uma mala na mão).
VÍTOR:- Para mim, chega, eu
tenho que ir... O convite do Santos é irrecusável... Se não for agora, nunca
mais...
VÍTOR:- Meu pai! Como? Por quê?
APARECIDA (como se falasse para si mesma):-
Filhos! Como os dedo da mão... diferente... cada um... mas tudo parte da
mesma mão... Serrano... ele tá morto, eu sei... Eu tava tão sozinha! Aqueles
gatos miano na minha cabeça... eu tô mais sozinha agora, num tô? Meus filhos...
a herança do Serrano... Deus me livre e guarde de acontecê alguma coisa com
eles... Não... Eles são os meus filho... não são os gato que mia no porão de
noite... abandonado pela mãe... Vitinho!... (ele se aproxima) Você tem que vortá, meu filho, ocê tem que cumpri
seu destino... cê promete, num promete?
APARECIDA:- O Serrano... ele tava tão bonito... tão
garboso... todo de branco... Todas as moça queria ele... tinha voltado da
guerra... Ele podia tê todas... escolheu eu, eu... que num tinha nem pai nem
mãe... criada pela vó Emerenciana... minha mãe verdadeira, que Deus a tenha...
O casamento... o dia mais feliz da minha vida... Os filho... que foram nascendo
um a um... Até o Válber, o último... Nunca mais pude tê outros filho... por
muito tempo num pude sê a mulher que o Serrano tinha... Como eu chorei, meu
Deus... Quanta promessa pra Nossa Senhora Aparecida... Fiquei boa, com a graça
de Deus, mas... era tarde, tarde demais... Serrano num me esperou... Deus num permitiu
de tudo vortá a sê como antes... Esses gato, miano na minha cabeça... Serrano!
Deus me livre e guarde de ficá sozinha de novo... Válber... ele vai ficá
comigo... sempre... eu sei... Serrano partiu, pela vontade de Deus... Não...
num posso me arrependê... Deus perdoa o Válber... tão bom, o meu filho...
(Levanta-se, arruma a sala, na disposição que sempre teve, vai até a
mesa de jantar e prepara o lugar onde Serrano sempre se sentava. Sobre o prato,
coloca um arranjo de flores, acerta a cadeira de espaldar alto e contempla por
um instante a sua obra).
APARECIDA:- Ele vai tá sempre aqui... presente... com a
graça de Deus e de Nossa Senhora Aparecida...
(Faz o sinal da cruz. Blackout.
Válber está entrando na sala com uma
gaiola coberta).
VÁLBER:-
Um pintassilgo... um filhote de pintassilgo... consegui! Veja, meu pai, não é
lindo?
(Sebastião abaixa o som do rádio e afasta o jornal).
SEBASTIÃO:- Também gosto de
pássaros... e um pintassilgo irá alegrar a casa...
(Reparando melhor no filho).
SEBASTIÃO:- Mas precisava sujar tanto essa roupa? Vá se
lavar... você está imundo! Aparecida! Olhe esse menino...
(Ela aparece e conduz o jovem para dentro, enquanto Serrano volta à
leitura, em frente ao velho rádio).
VÁLBER (adulto): Foi uma época de tranqüilidade, em casa... Vítor fazia
sucesso no Santos e já estava cotado para ser titular, ao lado de Pelé... era o
orgulho do pai... Véber trabalhava em São Paulo...e trabalhar era o verbo da
sua vida... Eu, bem, eu reinava... Meu pai mantinha seus hábitos: trabalho,
ouvir rádio após o jantar e sair à noite... sempre... Seu coração abrandara, no
entanto... De tanto bater em meus irmãos, não sobraram para mim muitas
porradas...
(Entra Vítor, intempestivamente).
VÍTOR:- Pai! Mãe! Não dá
mais... acabou...
VÍTOR:- Deixei o Santos...
casei... minha mulher está grávida! Pronto: é isso!
(Válber retoma a narrativa).
(Válber entra na cena onde já estão Serrano e Vítor. Um pássaro canta
numa gaiola ao fundo).
SEBASTIÃO:- Nada do que você
disser altera o fato de você ter jogado fora sua vida... nada altera o fato de
você ser um irresponsável... nada altera o fato de você não ter ouvido uma só
palavra do que eu lhe disse a vida inteira...
(Breve pausa. O som do canto alegre do pintassilgo parece tomar toda a
cena).
VÍTOR:- Esse pássaro! Meu filho
morrendo e esse maldito pássaro cantando...
(Em desespero, dá um violento murro na gaiola, que cai, calando o canto
do pássaro. Blackout. Sala de jantar,
mais de cinco anos depois da morte de Serrano. Quase tudo igual, exceto pela
foto do patriarca ao fundo e o seu lugar como Aparecida o arrumou no dia do
enterro. Os três irmãos sentados à mesa, com papéis espalhados. Válber está na
cabeceira oposta, como centro da tensão entre eles).
VÉBER (esmurrando a mesa):- Isso tudo é um absurdo!
(Véber, que já estava de pé, caminha pela sala e senta-se na cadeira do
pai, à cabeceira da mesa).
VÁLBER:- Levanta daí... é a
cadeira do pai...
(Véber levanta-se rápido, como tomando consciência do que fizera).
VÍTOR:- Eu podia te ajudar no
escritório, Véber...
(Entra Aparecida, com uma bandeja na mão).
APARECIDA:- Parem já com isso... que coisa mais feia...
Desde que o finado Serrano se foi qu’ocêis só fazem é brigá... Ocês são todos
filho do mesmo sangue... cada um tem suas razão... mas num pode continuá
assim... num é possível, meu Deus do céu... Rezo noite e dia pra tê paz nessa
casa... pr’ocêis vivê em harmonia... quase nunca se encontra... e quando se
encontra é esse inferno... Ocêis tem de pará com isso... E se acontece alguma
coisa comigo... já tô ficano velha... o que vai sê d’ocêis brigano desse jeito?
A vida num ensinô nada pr’ocêis? Se a gente se dividi a gente se enfraquece...
cada um lutô muito pra vencê... ainda tá lutano... pra tê uma vida melhor...
Graças a Deus que o finado Serrano deixou uma pensão boa pra mim... ninguém
aqui nunca pricisô robá pra vivê... Ocêis são bons, meus filhos... ocêis tem
que se entendê... pará com essas discussão boba... quando eu morrê, tudo isso é
de vocêis... e eu num vô querê vê ocêis brigano à toa... que coisa! Vamos...
parem com isso... vamo tomá café... fiz uns bolinho... uma broa... chega de
confusão!
(Aparecida vai arrumando a mesa, enquanto os três irmãos, meio a
contragosto, um tanto desenxabidos, procuram sentar-se e começam a servir-se. A
luz vai-se esmaecendo pouco a pouco. Válber retoma seu posto de narrador).
VÁLBER:- Minha mãe... era assim
minha mãe... e muito mais... No tempo do
pai, quantas vezes a surpreendi chorando baixinho enquanto lavava uma louça ou
assava uma broa de milho... Só comecei a entender alguma coisa, a tomar
consciência de tudo o que, no fundo, já sabia, quando uma noite em que meu pai
ia sair...
(Foco de luz em Serrano, impecavelmente vestido de branco, olhando-se ao
espelho, passando em si mesmo detalhada vistoria).
SEBASTIÃO:- ‘Parecida! ‘Parecida!
(Ela entra, enxugando as mãos no avental).
SEBASTIÃO:- Você não lustrou
direito meus sapatos... estão uma droga... será que nem pra isso eu tenho
mulher?
(Ela ajoelha-se, tenta limpar os sapatos dele).
SEBASTIÃO:- Chega! Agora não dá mais tempo! Não sei que
hora vou voltar... não me espere...
(Sai. Aparecida enxuga as lágrimas, levanta-se e sai vagarosamente. Luz
sobre Válber).
VÁLBER:- Eu vi o olhar de meu
pai... não era ódio... não, não era ódio... Quem odeia, também pode amar... Era
desprezo... Segui-o, sim, eu o segui... E o resultado disso nunca contei pra
ninguém... Mas acho que todos já sabiam... Minha mãe, principalmente... Mas
depois que ele morreu, nossa vida... bem, muita coisa mudou...
(Serrano, impecavelmente vestido de branco, cumprimentando imaginárias
personagens de um bar, bebe do copo de um e de outro, convida para dançar o
tango uma das mulheres; Válber toma o lugar da mulher imaginária e os dois
prosseguem dançando vários ritmos. A iluminação destaca, num outro plano, a
Véber, em várias ocupações: como operário, de capacete e macacão, depois como
escriturário e, em seguida, como chefe de escritório, já de paletó e gravata.
Ao mesmo tempo, num terceiro plano, Aparecida borda um pano, sentada numa
cadeira de balanço, numa atitude de sofrimento e conformismo. Entra Vítor, toma
o lugar de Válber na dança com o pai. Válber dirige-se para o plano da mãe,
chega até ela, beija-a e senta-se a seus pés, com a cabeça em seus joelhos. A
cena prossegue por alguns instantes, até que as luzes destaquem apenas a figura
de Véber, no escritório, falando ao telefone).
VÉBER:- Ouça: não vou repetir
outra vez... Não tem acordo... Esse ponto não tem acordo... Não abro mão... Ela
sabe disso, sempre soube... Ela já tá saindo dessa relação com mais do que
entrou... se eu permito isso, vou ter de permitir outras coisas... Não,
absolutamente, não! O erro foi dela e eu não vou pagar por isso... Claro,
claro... Inclusive o menino não quer nem ver a mãe... o que ela fez não se faz
com um filho, uma criança... Arrependimento? Não, mil vezes não... É tarde
demais... O meu ódio é maior que todo o amor que lhe dei, durante todos esses
anos... Acabou! Sem concessões, sem concessões!
(Bate o telefone, fica pensativo por alguns instantes, abre a gaveta,
tira um maço de dinheiro e começa a contar e registrar num livro. Pausa. De
repente, uma figura encapuzada toma-lhe a frente, dá-lhe um tiro no peito, pega
algumas notas apressadamente e sai. O foco de luz destaca Véber baleado, como
na primeira cena. Válber retoma a narrativa e, enquanto ele fala, o corpo de
Véber é colocado num caixão e Aparecida coloca-se numa posição exatamente igual
à do velório de Serrano).
VÁLBER:- Meu pai... foi... foi
embora num mês de agosto... Era agosto quando Véber foi assassinado... Mais um
pedaço de minha mãe foi arrancado naquele dia... Nunca se soube quem matou meu
irmão... O ladrão não levou praticamente nada... Ficaram as suspeitas... Quando
Rita, a viúva de Véber, abriu o inventário, só encontrou dívidas... Toda aquela
aparente riqueza - apartamento luxuoso, carro do ano, melhor escola para o
Júnior... - tudo aparência... Meu irmão morreu por nada... Foi essa a lição de
Serrano?... de meu pai?...
(Vítor entra, abraça o irmão e a mãe. Válber coloca-se ao lado dela, que
reza, apenas reza, como alheada a tudo e ali fica, enquanto o cortejo sai).
VÁLBER:- A Rita está aí, minha
mãe... Veio buscar o menino...
(Mesa de bar. Vítor tamborila um samba. Canta, dança, diverte-se.
Sentado do outro lado da mesa, Serrano, mas Vítor não o vê. Serrano imita-lhe
os gestos, como se gostasse do que vê. Enquanto Vítor continua divertindo-se,
agora numa cena muda, Serrano levanta-se).
SEBASTIÃO:- Eu, Sebastião Serrano, eu estive lá... Eu
ouvi o zumbido das balas, o rugir dos canhões... Senti o frio da neve e fome
das trincheiras... Vi o medo nos olhos até mesmo de oficiais... Não vou
esquecer nunca... Eu, Sebastião Serrano, ali, nos campos da Itália construí meu
passado... Deixei de ser o órfão tantas vezes enjeitado, para ser gente...
quase um herói... A vida nos campos da Itália deixou em mim lições, lições de
força, de orgulho, de vida... que eu tinha que deixar para meus filhos...
Aparecida, também ela órfã como eu... Perfeita para dar os filhos que eu
queria... iniciar uma família... um clã... sem passado, só futuro... Uma
geração forte, limpa de ligações com um passado que não conheço, mas que só
pode ter sido vil... Pessoas de fibra para vencer... meus filhos... os filhos
que Aparecida me deu... apenas três... Eu precisava de mais, eu queria mais...
um exército... um exército que lutasse nos campos da vida... que vencesse as batalhas
da nossa raça... As armadilhas da vida: depois de Válber, Aparecida não pôde,
não pôde me dar mais filhos... nem mulher mais ela era... Eu me perdi... Eu,
Sebastião Serrano, que devia dar o exemplo, o melhor exemplo para meu
exército... eu me perdi nas trilhas da vida... E agora meus filhos... eles já
estão moços... cobram de mim...
principalmente Válber, o mais novo, aquele que veio para ser diferente... Oh!
meu Deus, perdoa os pecados desse vosso servo... ilumina o meu filho Válber...
ele também deve aprender a perdoar, meu Pai... como eu vou perdoar tudo o que
ele vai pensar de mim... tudo o que ele vai dizer para mim... tudo o que ele
vai fazer...
(Serrano volta a seu lugar. A cena com Vítor volta a ter som. Entra
Válber. Vítor vai ao seu encontro e abraça-o).
VÍTOR:- Que milagre, meu irmão!
Você, no meu reino...
(Válber retira-se ante gestos de desdém de Vítor, que continua por
alguns instantes a cantar, beber e brincar. Aos poucos, fica somente uma luz
sobre Serrano, que espera. Válber retoma a narrativa).
VÁLBER:- O tiro no peito de
Véber... devia ter servido para nos aproximar... Vítor, no entanto, parecia
cada vez mais perdido... Eu nada podia fazer, a não ser tentar esconder da mãe,
o máximo possível, as suas trapalhadas... Só não pude esconder sua morte... sua
trágica morte... queimado vivo, enquanto dormia... por sua companheira
ciumenta, depois de mais uma noitada de farra e uma grande briga por ciúmes...
(As luzes, ao fundo, iluminam o caixão de Vítor e mostram
Aparecida na mesma postura dos enterros anteriores).
VÁLBER:- Mais sofrimento para
nossa mãe... outro pedaço de vida que se vai... Agora somos só nós, minha
mãe...
(Válber dirige-se até Aparecida, agacha-se em seu regaço e contempla-a
com abnegação).
VÁLBER:- Só restamos eu e você,
mãezinha, todos te abandonaram... Eu, não... ficarei sempre com a senhora...
Nunca, ouviu, nunca eu vou te deixar... Enxugue suas lágrimas... guarde sua
dor... eu serei o seu guardião... eu serei o Véber... eu serei o Vítor... eu
serei seus filhos e serei seus netos... Para nós, não haverá nunca mês de
cachorro louco...
(Aparecida e Válber saem acompanhando o enterro de Vítor, ao som da
marcha fúnebre. Somente um foco em de luz em Serrano, que bebe e espera. Volta
Válber).
VÁLBER (para o público):- Eu já
havia feito vinte e cinco
anos. Não estudava, não trabalhava. Só queria saber de farras com os
amigos, de desfrutar o bem-bom que a situação me permitia... Meus irmãos já
estavam longe, cuidando de suas vidas, ainda não totalmente arruinadas por tudo
aquilo que já contei... Ninguém podia compreender como a minha criação estava
sendo tão diferente da de meus irmãos, que cresceram debaixo dos rigores da lei
do pai, debaixo de pancadarias homéricas, castigos brutais... Comigo, não... Se
não fazia do velho gato e sapato, porque ainda assim o temia, pelo menos o meu
grau de obediência a ele era bem menor. Meu ócio já era um escândalo. Até que
um dia nos defrontamos. Foi à mesa de fundo de um bar decadente, num domingo à
noite. Uma noite de agosto. Não posso me esquecer desse dia: havia encontrado
de manhã, quando voltava para casa, depois de mais uma noitada, a cachorrinha
vira-lata que todos nós adotáramos como mascote... Tínhamos dado a ela o nome
de Sua-mãe... o que era motivo de muitas piadas... Pois é, naquela manhã, a
piada era de gosto duvidoso, de humor negro: encontrei Sua-mãe morta, na
calçada em frente à minha casa... Fora envenenada... Agosto é mês de cachorro
louco... Poucos sobreviviam... Meu pai me esperava à mesa, tomando uma cerveja
que nunca entrava em nossa casa... Até hoje não sei o que ele usava para
disfarçar o hálito da bebida, quando chegava em casa, para minha mãe não
desconfiar... Da praça vinha o som da furiosa, a bandinha do Batalhão, que se
dobrava e desdobrava em executar, literalmente, suas valsas e dobrados.
(Válber dirige-se à mesa, onde está sentado Sebastião,
com fisionomia carregada. Ouve-se, ao fundo, o som de uma valsa e, depois, de
um dobrado, executado por uma banda marcial. O tempo das músicas deve coincidir
com o tempo da cena).
(Válber
encara com ódio o gesto esboçado de um tapa).
VÁLBER):- Bate! Bate, que toda
a cidade vai ficar sabendo quem é o senhor... quem é você... Ouviu? Você!
(Disfarçadamente limpa um lágrima e fala como se fosse para si mesmo)...
SEBASTIÃO:- Um homem de verdade
não pode olhar para trás e arrepender-se... Eles estão preparados para a vida,
isto ninguém poderá negar... E ainda vão me agradecer por isso...
VÁLBER:- Vamos, beba, vai lhe
fazer bem... Vai fazer bem para todos nós...
(O pai bebe, num gesto de desafio. A música da banda aumenta ao máximo.
Blackout. Válber está de novo em pé à frente do público, agora mais triste,
ombros curvados, como se tivesse muitos anos mais além dos quarenta, os cabelos
brancos, a voz arrastada).
VÁLBER:- Meu pai... um homem
rígido... um homem orgulhoso... Hoje é nome de rua aqui... nesta cidade de
ladeiras compridas como a vida... Não sei se as pessoas que moram na rua
Sebastião Serrano sabem quem foi ele... Mas naquele mês de agosto, mês do
desgosto, mês de cachorro louco, todos sabiam quem era o homem - ainda tão
forte nos seus cinquenta e oito anos - que estava ali naquele caixão...
(A luz ao fundo ilumina o velório de Serrano).
VÁLBER:- E ninguém desconfiou...
um ataque cardíaco foi diagnosticado... Era mesmo mês de cachorro louco... Nunca mais pude
ouvir uma valsa ou um dobrado sendo tocados por uma banda militar... Mas as
bandas militares quase não existem mais, não é mesmo?
(Dirige-se lentamente para o velório, segura uma das alças do caixão,
empertiga-se numa pose igual à do pai e sai com o enterro, ao som de um dobrado
militar, enquanto Aparecida, sentada a um canto, coberta por um véu negro,
balbucia suas orações).
FIM
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