quinta-feira, 29 de abril de 2021

MÊS DE CACHORRO LOUCO



 (Archibald Motley) 

  

Isaias Edson Sidney

 

SBAT – 34.572

tel.5011-9628


isasidney@gmail.com

  

1997

 LEITURA PÚBLICA NA MOSTRA DE DRAMATURGIA DO SEMDA, REALIZADA EM 1997, NO TEATRO DA PRAÇA - RUA TREZE DE MAIO, 830 - SÃO PAULO, COM A SEGUINTE DIREÇÃO E ELENCO:

DIREÇÃO: ANTÔNIO DE ANDRADE

 ELENCO:

 LIZETTE NEGREIROS (narração)

 LUCIMARA MARTINS (a mãe: Aparecida Serrano)

ESTÊVÃO MAYA-MAYA (o pai: Sebastião Serrano)

EDSON MONTENEGRO (o filho mais velho: Vítor Serrano)

 DENI GALVÃO (o filho do meio: Véber Serrano)

GUILHERME SANTANA (o filho mais novo: Válber Serrano)

RESUMO

 A saga de uma família de negros do interior de Minas Gerais, na sua luta pela ascensão social. Vidas humanas marcadas por uma trajetória trágica que se funde com a própria condição do pobre e, principalmente, do negro pobre, numa sociedade que esconde sob o tapete da falsa tolerância toda a iniquidade do preconceito e do racismo

PERSONAGENS

 ·  SEBASTIÃO SERRANO (patriarca da família)

·  APARECIDA SERRANO (esposa)

·  VÍTOR SERRANO (o filho mais velho)

·  VÉBER SERRANO (o filho do meio)

·  VÁLBER SERRANO (o filho mais novo)

 

 CENÁRIO:

 

Palco totalmente despojado. Sugerem-se, ao fundo, ruas e casario de uma cidade do interior. A ação se passa em Lavras, Sul de Minas, nas décadas de 50 a 90, e é contada através da memória das personagens. O clima deve ser, portanto, um pouco mágico, um tanto obscuro. Todos os personagens são negros.


(Ao abrirem-se as cortinas - ou ao começar a peça - entra Válber. Tem pouco mais de quarenta anos. Porta uma pequena bolsa de mão, pois está chegando de viagem. São cinco horas da manhã, tempo assinalado pelas batidas de um carrilhão de igreja, ouvido a distância).

 

VÁLBER:-  É cedo... não vou acordar minha mãe... Estou precisando mesmo de exercício... Pisar cada pedra dessas ruas mil vezes pisadas é lembrar... lembrar o que vivi, sonhei, sofri... Bom dia, seu Mário (para um invisível transeunte). Aqui todos me conhecem... Lembrar, eu não quero lembrar... mas não consigo esquecer... Quadros já gastos da memória... gastos de tanto tentar esquecer... Eu tinha trinta e três anos quando saí daqui pela primeira vez ... Cristo morreu aos trinta e três... depois de uma longa vida... A minha vida também já era longa, naquele tempo, com um grande buraco bem no meio... Não, não quero pensar nisso... (pausa) Minha terra... parece que faz séculos que eu nasci aqui... e tudo continua igual... Minha mãe deve estar me esperando... como toda semana... não tão cedo... vou descer devagar a rua do bonde... do bonde que não existe mais... um bonde que nunca teve nome: apenas subia e descia essas ruas tortas e infinitas... Minha mãe... ela não quer sair daqui... ir para a capital... Tem medo de morrer longe e não conhecer os vizinhos de túmulo... 

  

(Afaga um imaginário cachorro).

  

 VÁLBER:-  Oi, tiuzinho... os cães daqui me conhecem e eu conheço cada um deles... cães de rua... necessitados de um afago... gosto do seu ar maroto e de seu olhar tristonho... escapam sempre das armadilhas da vida... só não escapam do mês de agosto... Agosto é mês de cachorro louco... poucos sobrevivem... Eu sobrevivi... sobrevivi a meus irmãos... Vítor, o mais velho de nós...

  

(Um foco de luz mostra o corpo nu de um homem negro sobre uma mesa de necrotério).

  

VÁLBER:- Sua pele negra, meu irmão, estava ainda mais negra quando te encontrei jogado nu em cima da pedra fria do necrotério...

  

(Apaga-se o foco).

 

 

VÁLBER:-  E você, Véber...

  

(Um foco de luz destaca outro homem negro, sentado numa cadeira de braços, inerme, com a cabeça para trás e uma grande mancha de sangue no peito).

  

VÁLBER:-  O irmão do meio... tínhamos nossas diferenças, mas você não merecia... não, não merecia... Cães e irmãos... merecemos todos o mesmo afago... Mas agosto foi sempre implacável... maldito mês de cachorro louco...

  

(A iluminação destaca jovem senhora arrumando apressada e nervosamente a mesa para uma refeição).

  

VÁLBER:-  Minha mãe...dona Aparecida...talvez já tenham visto esta cena antes... milhares de vezes... mãe arrumando mesa para  refeição da família... minha família... não, não é diferente das outras...

  

(Válber se retira e a ação se concentra em dona Aparecida).

  

APARECIDA:-   Véber, Vítor, Válber... já pra sala... seu pai está pra chegar... a janta tá quase pronta...

  

(Ouve-se barulho de algazarra de crianças, risos).

  

APARECIDA:-   Véber! O que é que tá acontecendo aí... ‘Ceis querem apanhar de novo? Onde já se viu... Já pra sala... Num vô falar mais... deixo pro seu pai...Que coisa... esses menino num têm jeito... uns capeta... só o pai é que pode com eles... Véber, Vítor... Eu aqui me matano pra deixar a casa em ordem... esses menino... Ajudem o Válber a se vestir... Parem com isso... Num’dianta! Limpo, cozinho, lavo, corro o dia inteirinho... e parece que num rende... e esses capeta... tão sempre fazendo arte... Meninos... andem... seu pai tá chegano! A gente num tem um minuto de sossego nessa vida... e ainda ficam falano que sô ranheta...

  

(Os três meninos entram pela sala, correndo e brincando, na maior folia, sentam-se à mesa, disputando lugar. Estão todos impecavelmente vestidos de branco).

  

APARECIDA:-   Parem com isso... levanta daí... anda...

  

(Tenta pôr ordem na confusão)

  

APARECIDA:- ... seu pai já tá chegano... que coisa... depois ele vem recramar que eu num controlo ocêis... vamo... levantem da mesa... não mexam nos talher... saiam...

  

(Ouve-se barulho de porta abrindo-se e fechando-se. Os três meninos levantam-se imediatamente. Postam-se um ao lado do outro, em posição de sentido e procuram ficar sérios. Aparecida corre a dar os últimos retoques na mesa. Entra o pai, sob o maior silêncio. O senhor Sebastião é alto, forte, andar altivo. Veste um macacão azul da Rede Mineira de Viação, cujo monograma  (RMV) é visto no bolso. Mesmo em veste tão simples, está impecável, como se não tivesse saído do trabalho. Traz na mão um pequeno embrulho que entrega à Aparecida, que corre a guardá-lo na cozinha e volta imediatamente. Em silêncio, dirige-se a uma pia imaginária, lava as mãos, o rosto, enxuga-os cuidadosamente, penteia os cabelos, olha-se a um espelho também imaginário durante alguns segundos. A cena se congela, Válber se adianta e dirige-se à plateia).

  

VÁLBER:- Meu pai... o Serrano... como todos o conheciam... abominava o primeiro nome, Sebastião.. homem rígido... Diziam antigamente: têmpera de aço... Moral inatacável...... chefe das oficinas da Rede Mineira de Viação... ex-pracinha... foi à Itália como chauffeur, como se dizia então... A lama e a neve da Itália nunca sujaram suas botas... Voltou apenas mais orgulhoso do que era. Seus gestos de hoje têm o ferro dos trilhos, não o ferro das armas... Tínhamos todos de andar nos trilhos... nos trilhos daquilo que ele julgava ser o melhor para nós... forjados para vencer... às vezes, na pancada como cães de rua... outras vezes, com duros castigos... O senhor Sebastião Serrano é a lei, nesta casa. O aço dos trilhos da Rede Mineira de Viação só não endureceu o coração de minha mãe...

  

(Apaga-se o foco sobre Válber adulto. A cena prossegue. Sebastião passa uma revista minuciosa nos filhos: mãos, orelhas, sapatos, roupa. Como tudo está em ordem, senta-se à cabeceira da mesa, aguarda os filhos se acomodarem. Aparecida, ainda de pé, serve o marido e depois os filhos).

  

APARECIDA (sentando-se; com voz ligeiramente trêmula):- O boletim do Vítor já chegou... tem uma nota vermelha...

  

(Vítor abaixa a cabeça ao receber o olhar fulminante do pai).

  

APARECIDA:-  Mas foi só em geografia, por causa daquele probrema... ocê lembra... ele teve que faltar por causo da doença do tio  Chiquinho... perdeu uma prova... as outra nota tão boa... ocê sabe, o Vitinho é danado... ocê devia ter um pouco mais de...

  

(Cala-se diante do olhar de reprovação do marido. Comem por um instante em silêncio. Véber tosse, todos olham para ele).

  

APARECIDA:-   O Véber tá com tosse cumprida, ocê deixa dinheiro que vô na farmácia comprá um xarope... é um xarope novo... eu ouvi o recrame no rádio... diz que é muito bão... (Pausa). Amanhã é a missa de sétimo dia do falecido Antoninho da comadre Luísa, que Deus o tenha... (faz o sinal da cruz. Pausa). A tia Elisa mandô um recado pr’ocê passá lá amanhã, acho que é pra consertar a torneira de novo... Ocê sabe, o tio Faria só entende de sapato e é sempre ocê que tem que cuidar da casa deles... Ah! Ia esquecendo... a viúva dona Irma, do falecido Joãosinho Resende, que Deus o tenha (faz o sinal da cruz), apesar de tudo o que ele fez pra coitada da dona Irma, ela mandô dizê que o chuveiro elétrico pifô de novo... Acho que esse povo pensa que ocê num tem o que fazê... depois que chega da Rede... que coisa!... será que não vão te deixar sossegado nunca?

  

(A cena continua muda. Válber adulto retoma a narrativa. À medida que vai falando, a luz esmaece e apaga a cena familiar e passa a acompanhar o pai)..

 

 VÁLBER:- Eram assim nossos jantares... papai mudo... absorto em seus pensamentos lá dele... Jantávamos quase sempre muito cedo, no máximo seis, seis e meia da tarde... Papai levantava da mesa, ligava o rádio, um velho rádio enorme, num móvel que tinha também um toca-discos, ficava ouvindo as notícias até que os acordes do Guarani anunciavam a Voz do Brasil... Vicente Celestino ou Chico Alves substituíam o noticiário... Nesse momento, não havia aço em seu semblante... ele se tornava um príncipe de um país distante da África de nossos ancestrais proibidos... Sete e meia em ponto...

  

(Sebastião consulta o relógio de bolso e apronta-se para sair: terno branco, sapatos lustrosos, gravata etc. A luz ilumina-o, então, numa pose de altivez ao mesmo tempo que ilumina Válber. Começa a tocar um dobrado por uma banda militar).

  

VÁLBER:-  Não... não!

 

 (Válber tapa os ouvidos e chora e se desespera até que a música cessa e o foco sobre Sebastião se apaga. Ele se recompõe).

  

VÁLBER:- Uma noite... acho que eu tinha uns quinze anos... eram mais de três da manhã... sonhei com um ruído... acordei...

  

(A luz ao fundo ilumina uma cama de casal, onde está deitada Aparecida e o vão de porta invisível. Serrano está encostado num dos batentes, extático, mal conseguindo parar de pé. Ouve-se o ruído de batidas. Aparecida acende um abajur ao lado da cama, senta-se por um instante, como se tentasse identificar de onde vêm as batidas. Levanta-se lentamente e, arrastando os chinelos, vai até a porta. Abre-a e Serrano quase despenca sobre ela. Equilibra-o com dificuldade. Ampara-o numa lenta caminhada até o leito, onde ele praticamente se joga. Despe-o com dificuldade, deixando-o apenas de cuecas e meias. Sai por um instante e volta com uma bacia com água e toalhas. Lentamente, passa sobre o rosto e o corpo de Serrano uma toalha molhada e depois enxuga-o. O homem permanece o tempo todo com os olhos abertos e uma expressão alheada. Quando termina de limpá-lo, ele se volta para o outro lado e começa a ressonar, como num sono profundo. Aparecida apaga a luz do abajur e fica apenas um foco sobre ela. Ajoelha-se ao lado da cama, tira do bolso da camisola um terço e reza silenciosamente. Ouvem-se ao longe as batidas de três horas de um carrilhão de igreja, o pio de uma coruja e latidos de cães. Toda a cena foi vista por Válber, que está num canto do palco. Após um breve blackout, a cena começa de novo a iluminar-se lentamente, indicando amanhecer. Ouvem-se badaladas do carrilhão a anunciar seis horas e cantos de pássaros. Aparecida continua ajoelhada, encurvada sobre o corpo do marido. Acorda assustada  com a claridade e levanta-se. Válber não está mais lá. Aparecida arrumando a mesa de jantar, numa repetição da cena 1. Algazarra de crianças ao fundo).

  

APARECIDA:-   Crianças... já tão prontas? O pai está chegando...

 

 (Chega até a porta, apreensiva).

  

APARECIDA:-   E o diabo do Vítor, que num aparece... o que será que aconteceu, meu Deus do céu... E o Serrano já tá pra chegar... que coisa! Meninos, venham, o pai chegou!...

  

(Serrano entra, repetindo os mesmos gestos da primeira cena. Os dois meninos estão alinhados, esperando a revista paterna. Serrano aproxima-se deles, ante o olhar preocupado de Aparecida).

  

SEBASTIÃO:- Onde está o Vítor?

 APARECIDA:-   Deve de tá chegando... acho que ficou de castigo na escola...

  

(Todos se sentam à mesa. Aparecida serve-os. Começa a falar, visivelmente preocupada, tentando disfarçar a situação de ausência do filho mais velho).

  

APARECIDA:-  Fiz o ora-pro-nobis qu’ocê me pediu... com carne moída e angu... tá gostoso... Ocê passou na casa da tia Elisa? Ah! Deixa eu te contá o que aconteceu hoje aí na rua... tava passando uma boiada, acho que uns cinqüenta boi... Sabe a Mariinha da comadre Gilda? Tava lavando roupa lá no quintal e foi estender uma saia vermelha no varal... aí um boi enorme... pulou o barranco pra dentro do quintal... quase pegou a coitada da Mariinha que quase morreu de susto... inda bem que ela correu a tempo... E pra tirá o boi lá de dentro?! O bicho empacô qui nem burro velho... num tinha cristo que fizesse o danado subir de vorta o barranco... juntô gente... o bicho cada veiz mais bravo... ficô nessa encrenca acho que umas duas horas... até que chamaram um vaqueiro mais véio... ele conseguiu colocá uma argola no focinho do bicho e puxaram ele pra cima... o quintal da dona Gilda ficô qui nem tivesse uma guerra... fiquei morreno de dó... as pranta... os arame de varal tudo no chão... uma desgraceira... mas o boi tamém ficô bastante machucado, coitado...

  

SEBASTIÃO:- Boi que desgarra da boiada, só pode mesmo é levar pancada!...

 APARECIDA:-   Ocê num tá pensano...

 SEBASTIÃO:- Não estou pensando nada...

  

(Pausa. Entra Vítor correndo. Assusta-se com a presença do pai, como se não esperasse encontrá-lo. Tem seus treze, quatorze anos. Veste um uniforme de escola todo sujo e traz uma bola de futebol nas mãos. Aparecida corre ao encontro do filho, como a tentar protegê-lo).

 

 APARECIDA:-   Vítor... meu filho... o que aconteceu? Vá logo se lavar... seu pai... seu pai... já tava morrendo de preocupação com ocê... meu filho... como ocê faz uma coisa dessas?...

  

(Abraça-o e tenta sair com ele da sala).

  

 APARECIDA:-   Vamo... vamo tirá essas roupa... lavá esse rosto...

  

(Sebastião levanta-se da mesa e tira o cinto),

 

 

SEBASTIÃO:- Espere...

  

(Aparecida tenta um gesto de proteção).

  

SEBASTIÃO:- Você sabe o que acontece com quem sai da linha... Vem...

  

(Sebastião pega o menino pelo braço e sai. Num instante, ouvem-se os ruídos das chibatadas, umas dez. Enquanto isso, Aparecida permanece extática, rezando silenciosamente e os demais meninos correm para perto dela. Sebastião volta, trazendo Vítor pelas orelhas. O rosto do menino expressa dor, mas ele não chora, numa pose de quase desafio).

  

SEBASTIÃO:- A surra não foi tanto pelo atraso, mas pelo futebol... Já disse que não quero vê-lo mais jogando bola... Isso é coisa de negro... Já sei: você vai dizer que também é negro... Mas bota isso na sua cabeça: vocês... nós... nós somos diferentes... temos que ser diferentes... A vida aí fora não admite fraquezas... Vocês vão aprender a ser gente! Nem que eu precise...

  

(Pára ante o olhar de susto dos outros meninos).

  

SEBASTIÃO:-  Agora já para o castigo... e só sai quando eu mandar...

  

(Vítor dirige-se para uma canto onde se ajoelha , para cumprir o castigo. Aparecida retoma suas atividades de dona de casa, tirando a mesa do jantar. Sebastião liga o rádio, os dois meninos menores ficam brincando no chão. Wálber retoma a narrativa).

  

VÁLBER:- Um dia, meu pai...

  

(Não conclui a frase, interrompido pela entrada de Vítor adulto, que pára um instante perto do Vítor adolescente, beija a mãe e esboça um gesto de carinho para o pai. Os dois irmãos se defrontam, por um breve instante. Válber retira-se. Enquanto ele fala, a cena ao fundo irá se apagando pouco a pouco, para voltar ao passado de Vítor).

  

VÍTOR:- Os castigos de meu pai... o milho que marcava os joelhos deixava na alma um sentimento de insegurança... Nunca soube qual pai odiar, nunca soube qual pai amar... Acho que não soube nunca como tudo isso marcou minha vida, meus amores e até mesmo a minha morte...

  

(Ao fundo, as luzes revelam: Sebastião ouvindo no rádio a transmissão do final da copa do mundo de 58, enquanto Aparecida, envolta num xale, costura algo, próxima a um berço e dois meninos brincam sentados no chão).

 

 VÍTOR:-  Minha lembrança mais antiga do pai... eu tinha talvez seis para sete anos...

  

(Vítor adulto toma o lugar do Vítor criança. Depois de alguns instantes, em que o locutor enaltece conquista do Brasil, Vítor dirige-se ao pai).

  

VÍTOR:-  Pai, o que é isso? O que está acontecendo?

 SEBASTIÃO:- O Brasil, meu filho... nossa pátria... acaba de ganhar a copa do mundo... O Brasil é campeão do mundo, meu filho!

 VÍTOR:-   Campeão do mundo?

 SEBASTIÃO:- O melhor futebol do mundo... nós precisamos comemorar! Aparecida, traz aquela garrafa de vinho... vamos brindar ao nosso país...

 APARECIDA:-   Credo, Serrano... ocê nunca foi de bebê!?...

  

(Levanta-se e vai buscar a garrafa de vinho).

  

APARECIDA:-   Não vai dá mau exempro para as criança... que coisa... onde já se viu...

  

(Serve-lhe uma taça de vinho).

  

SEBASTIÃO:- Beba você também, Aparecida...

 APARECIDA:-  Cruz credo... Deus me livre... ocê sabe que num gosto de bebida...

  

(Volta para junto do berço e, disfarçadamente prova um pouco do vinho).

  

SEBASTIÃO:- Vítor, meu filho... você agora talvez não entenda, mas ainda vai sentir muito orgulho de nosso país... de nossa raça... graças a um menino... um menino de dezessete anos, chamado Pelé...

 VÍTOR:- Pelé?!

 SEBASTIÃO:- Sim, um negro... um negro como nós... ele vai ser grande... meu filho... e você também...

  

( Vítor dirige-se à platéia, enquanto a iluminação vai lentamente apagando-se até o blackout, ficando apenas um foco sobre ele).

  

VÍTOR:- Nunca soube o que se quebrou dentro de meu pai... aquelas palavras, quase proféticas... nunca mais o reconheci...

  

(Entra Válber. Ele e Vítor se encaram).

  

VÍTOR:- É você, Válber?

 VÁLBER:- Não é esta a pergunta correta...

 VÍTOR:- Qual é então a pergunta correta?

 VÁLBER:- Quem somos nós?!

 VÍTOR:- Se você quer assim, também esta não é a pergunta correta...

 VÁLBER:- Não?!

 VÍTOR:- Devemos indagar quem foi nosso pai...

 VÁLBER:- Nosso pai está morto...

 VÍTOR:- Engano seu... ele está vivo... e cada vez mais vivo...

 VÁLBER:- Mas você está morto...

 VÍTOR:- Mortos estamos todos... o caminho escolhido, largo e possível, só conduziu ao abismo...

 VÁLBER:- Chega de conversa... você não pode me acusar!

 VÍTOR:- Sua consciência, sim!

 VÁLBER:- Palavras, apenas palavras... que nada revelam de nosso pai...

 VÍTOR:- Não são palavras, apenas, Válber, são ameaças... que se revelam apenas no passado...

 VÁLBER:- O passado está morto... você mesmo disse... Sem passado, não pode haver futuro!

  

(Neste momento, ao som da marcha fúnebre, passa uma procissão de Sexta-feira Santa. Um pouco distante do pálio, vem Sebastião batendo uma matraca, em vestes simples, cabisbaixo...)

  

VÍTOR:- Futuro! O meu futuro! Onde foi parar o meu futuro? Diga-me... onde? Vocês fizeram tudo para destruir o meu futuro...

 VÁLBER:- Não! Você e Véber é que nada deixaram para mim... que fui o último...

 VÍTOR:- O que mais você queria? Você teve tudo... até mesmo o amor de nosso pai...

 VÁLBER:- Amor... amor que virou ódio, quando...

 VÍTOR:- O que está dizendo? Você... você odiava... você odiava nosso pai? Por quê? Por quê? Não posso entender... não posso...

 VÁLBER:- N... nã... não... Acho que me expressei mal... Não era ódio... Talvez um rancor profundo...

 VÍTOR:- Ainda assim, não entendo... Você teve tudo... tudo que não tivemos... liberdade... isso, liberdade... era tudo o que eu e o Véber queríamos... ele só pôde escolher o trabalho, trabalho e mais trabalho... e eu, eu só pude escolher o destino de tentar me revoltar...

 VÁLBER:- Depois que ele morreu... para aporrinhar nossa mãe... para deixá-la sempre de cabelo em pé com suas trapalhadas... para fazê-la sofrer... um sofrimento que só eu vi, porque fiquei sempre ao lado de nossa mãe... enquanto vocês... só se preocuparam em seguir os passos que o pai deixou marcados para vocês... Passos de ambição...

  

(Novamente a marcha fúnebre anuncia a procissão de Sexta-feira Santa. Agora, Sebastião veste uma opa vermelha da Congregação do Sagrado Coração de Jesus e, já próximo ao pálio, conduz uma lanterna de papel colorido. Seu andar é mais altivo que da vez anterior).

  

VÍTOR:-  Ambição! O que você entende de ambição? Você, que sempre viveu à sombra de nossa mãe, como... como...

 VÁLBER:- Não ouse... não ouse me acusar... Fui eu, eu que a protegi, sempre... Protegi dele... e de vocês...

 VÍTOR:- Uma proteção muito conveniente, não é mesmo? Enquanto eu e o Véber nos ralávamos para ganhar nossa vida, você aqui, no bem bom... desfrutando da nossa casa... e da pensão de nossa mãe...

 VÁLBER:- Dinheiro! Vocês sempre só pensaram em dinheiro... e o que é o pior: fracassaram! Fracassados! É o que são... fra-cas-sa-dos! E agora vem me acusar de aproveitador? Você nunca imaginou que eu também queria ser livre? Que eu também sonhava? Que eu perdi aqui a minha mocidade? Ser aviador... cruzar os céus pilotando nem que fosse um paulistinha... livre! E eu pude? Me diz: eu pude? Não, Vítor! Você não sabe da missa a metade... Você não sabe o quanto eu fiz por vocês... por minha mãe... Morrerá comigo o segredo... mas você tem de entender o quanto eu também me sacrifiquei...

 VÍTOR:- Sacrifício! Você falando em sacrifício... Essa é muito boa... O bon vivant... o que sempre teve tudo... o que nunca trabalhou na vida... falando em sacrifício... Você quer saber de sacrifício? Quer? Então, ouça bem: teve um tempo em que odiei nosso pai... eu confesso... mas depois aprendi a respeitá-lo... e entender suas idéias... a perceber o quanto ele, sim, ele se sacrificou... para nos educar... para nos ensinar os caminhos do mundo... a ter orgulho de nossa pele... de nosso cabelo... ele, que veio de tão baixo... que soube, nesse mundinho de cidade pequena, conquistar um lugar... um lugar que nós não soubemos conservar...

  

(Pela terceira vez, a procissão de Sexta-feira Santa. Sebastião, agora um dos condutores do pálio, bem à frente, caminha altivo. Blackout. Sala de jantar: os três meninos sentados à mesa, fazem seus deveres de escola. Entra Sebastião, vindo do trabalho).

  

SEBASTIÃO:- ‘Parecida!? (repete mais três vezes). Onde está a mãe de vocês?

  

(Ouvem-se miados de gatos, que cessam de repente. Breve silêncio.)

  

SEBASTIÃO:- O que sua mãe está fazendo lá no quintal?

  

(Aparecida entra, com um lenço na cabeça e uma enxada na mão).

  

APARECIDA :- Prantando gato... prantando gato, seu Serrano... Num ia deixá essa mardita gata e esse monte de gatinho tormentando meus ouvido noite e dia... Enterrei todos!

 SEBASTIÃO:- Você... você enterrou os gatos vivos, ‘Parecida? Vivos?

 APARECIDA:-   Tá com dó, tá? Vai lá e desenterra... Mas leva eles pra bem longe daqui, ouviu? Bem longe!

 SEBASTIÃO:- Eu não posso acreditar! Isso é maldade!

 

APARECIDA:-   Maldade! Maldade é eu ficá aqui sozinha ouvindo os miado dessa gataria... Vai, vai tomá seu banho... isquece esses gato... Vai!

  

(Sebastião sai, desolado. Ela continua como se falasse para si mesma).

  

APARECIDA:-   Deus que me perdoe... eu sei que é maldade... esses gato... mas eu tinha qui fazê isso... num pudia mais suportá... o Serrano me paga... ah! se me paga! A vida desses gato vai nos salvá... era a vida deles pelo Serrano... ele vai deixá essa vida... vai, vai sim, se não for por bem, será por mal... pelos menino... A comadre Ambrosina tinha razão: home qui num presta uma veiz, num presta nunca mais... Mas eu num posso... num posso vivê sem ele... e com ele tá difice... Quê que eu faço, meu Deus! Quê que eu faço?

  

(Entra Válber adulto. Enquanto ele fala, a cena ao fundo continua muda, com os meninos guardando o material escolar, Aparecida arrumando a mesa do jantar e Sebastião sentando-se no lugar de sempre, após ligar o rádio para ouvir o noticiário).

  

VÁLBER:- Eu era muito pequeno para entender o que minha mãe tinha feito... mas no fundo eu sabia o que ela queria... Mesmo do tempo eu tinha uma vaga noção... sabia que era agosto, porque as aulas mal haviam começado, após as férias de meio de ano... Minha família... sempre a rotina da rigidez de meu pai... das rezas de minha mãe... No mês de cachorro louco, não tínhamos licença para brincar na rua... O pai não deixava... Meus irmãos, presos à rotina, às vezes escapavam, sob o olhar condescendente da mãe... às vezes o pai os pegava... e tome surra... e tome castigo... Eu, não! Poucas vezes apanhei de meu pai...

  

(A cena ao fundo escurece. Entra Vítor, com uma mala na mão).

  

VÍTOR:- Para mim, chega, eu tenho que ir... O convite do Santos é irrecusável... Se não for agora, nunca mais...

 VÁLBER:- O Santos? Você tem certeza? Você vai jogar ao lado de Pelé?

 VÍTOR:-  Vou, vou sim, Válber! Serei tão grande quanto ele! Você vai ver! Eu vou vencer, Válber! Eu vou vencer! (Blackout).

 

 (Na sala, ao centro, o caixão fechado, com uma grande coroa de flores e os dizeres “expedicionário Sebastião Serrano, saudades”. Aparecida sentada ao lado, toda de preto, rosto coberto por um véu, também negro, tem às mãos um rosário. À cabeceira do caixão, Válber, com ar alheado, parece contemplar o nada. Breve silêncio. Entra Véber, abraça a mãe, ajoelha-se a seus pés e apóia a cabeça em seus joelhos, chorando baixinho. Breve silêncio. Entra Vítor).

  

VÍTOR:-  Meu pai! Como? Por quê?

 APARECIDA:-   Coração, meu filho, coração...

 VÍTOR:-  Ele nunca teve nada...

 VÉBER (levantando-se):- A que horas...

 VÍTOR:- Já está pensando no tempo que está perdendo, meu irmão?

 VÉBER:- Não admito que fale assim comigo!

 VÍTOR:- Dinheiro, dinheiro e trabalho... é tudo o que você sempre pensa!

 VÁLBER:- Respeitem o pai... não estão vendo que ele morreu?!

 VÉBER:- E só o filhinho do pai está aí todo sentido, como se...

 VÁLBER:- Cale-se! Só eu sei o que eu vi... o que eu sinto...

 VÉBER:- Você sempre esteve aqui... devia dizer o que fez, não o que sente...

 VÁLBER:- Vitinho tem razão: são outros os seus interesses...

 VÉBER:- Sigo as palavras do pai: temos de vencer... não como certas pessoas que parecem folha de bananeira e viram para onde sopra o vento...

 VÍTOR:- Sou livre: também é lição do pai... Faço o que quero: não vendi minha vida, não casei com uma branca descascada para fazer farol... apurar a raça...

 VÉBER:- Você me respeita... se não...

 VÍTOR:- Se não... o quê?... Me diga...

 

 (Os três irmãos encaram-se ameaçadoramente em silêncio, por um instante).

  

APARECIDA (como se falasse para si mesma):-   Filhos! Como os dedo da mão... diferente... cada um... mas tudo parte da mesma mão... Serrano... ele tá morto, eu sei... Eu tava tão sozinha! Aqueles gatos miano na minha cabeça... eu tô mais sozinha agora, num tô? Meus filhos... a herança do Serrano... Deus me livre e guarde de acontecê alguma coisa com eles... Não... Eles são os meus filho... não são os gato que mia no porão de noite... abandonado pela mãe... Vitinho!... (ele se aproxima) Você tem que vortá, meu filho, ocê tem que cumpri seu destino... cê promete, num promete?

 VÍTOR:- Tarde demais, minha mãe!

 APARECIDA:-   Véber!... (ele se aproxima) Onde tá minha nora, Véber? Ela num vem pro enterro? Ocê num pode sê assim, meu filho, cê tem que pará um pouco... isso num é vida... onde já se viu? Trabaiá também mata, meu filho...

 VÉBER:- A Rita não pode vir, mãe, o médico proibiu...

 APARECIDA:-   Ela tá doente, meu filho? Que que ela tem?

 VÁLBER:- Eu ia te dizer, minha mãe... depois... Rita está grávida...

 APARECIDA:-   Ocê tá me dando um neto, meu filho... um neto pro Serrano... Deus te proteja, meu filho, ocê e sua mulher... Um neto!... (Pausa). Válber! Cadê ocê, meu filho?...

 VÁLBER:- Aqui, mãe, estou sempre aqui...

 APARECIDA:-   Já tá tudo pronto pro enterro? Tá todo mundo aí? O padre já veio?

 VÁLBER:- Sim, minha mãe... Fique sossegada... já providenciei tudo...

 

 (Aparecida levanta-se, aproxima-se do caixão, faz uma breve oração, o sinal da cruz e volta a sentar-se. Os três irmãos saem com o caixão, ao som da marcha fúnebre. Só um foco sobre Aparecida).

  

APARECIDA:-   O Serrano... ele tava tão bonito... tão garboso... todo de branco... Todas as moça queria ele... tinha voltado da guerra... Ele podia tê todas... escolheu eu, eu... que num tinha nem pai nem mãe... criada pela vó Emerenciana... minha mãe verdadeira, que Deus a tenha... O casamento... o dia mais feliz da minha vida... Os filho... que foram nascendo um a um... Até o Válber, o último... Nunca mais pude tê outros filho... por muito tempo num pude sê a mulher que o Serrano tinha... Como eu chorei, meu Deus... Quanta promessa pra Nossa Senhora Aparecida... Fiquei boa, com a graça de Deus, mas... era tarde, tarde demais... Serrano num me esperou... Deus num permitiu de tudo vortá a sê como antes... Esses gato, miano na minha cabeça... Serrano! Deus me livre e guarde de ficá sozinha de novo... Válber... ele vai ficá comigo... sempre... eu sei... Serrano partiu, pela vontade de Deus... Não... num posso me arrependê... Deus perdoa o Válber... tão bom, o meu filho...

  

(Levanta-se, arruma a sala, na disposição que sempre teve, vai até a mesa de jantar e prepara o lugar onde Serrano sempre se sentava. Sobre o prato, coloca um arranjo de flores, acerta a cadeira de espaldar alto e contempla por um instante a sua obra).

  

APARECIDA:-   Ele vai tá sempre aqui... presente... com a graça de Deus e de Nossa Senhora Aparecida...

  

(Faz o sinal da cruz. Blackout. Válber está entrando na sala com uma gaiola coberta).

  

VÁLBER:- Um pintassilgo... um filhote de pintassilgo... consegui! Veja, meu pai, não é lindo?

  

(Sebastião abaixa o som do rádio e afasta o jornal).

  

SEBASTIÃO:- Também gosto de pássaros... e um pintassilgo irá alegrar a casa...

 

 

(Reparando melhor no filho).

  

SEBASTIÃO:-  Mas precisava sujar tanto essa roupa? Vá se lavar... você está imundo! Aparecida! Olhe esse menino...

  

(Ela aparece e conduz o jovem para dentro, enquanto Serrano volta à leitura, em frente ao velho rádio).

  

VÁLBER (adulto): Foi uma época de tranqüilidade, em casa... Vítor fazia sucesso no Santos e já estava cotado para ser titular, ao lado de Pelé... era o orgulho do pai... Véber trabalhava em São Paulo...e trabalhar era o verbo da sua vida... Eu, bem, eu reinava... Meu pai mantinha seus hábitos: trabalho, ouvir rádio após o jantar e sair à noite... sempre... Seu coração abrandara, no entanto... De tanto bater em meus irmãos, não sobraram para mim muitas porradas...

  

(Entra Vítor, intempestivamente).

  

VÍTOR:- Pai! Mãe! Não dá mais... acabou...

 APARECIDA:-   ‘Cabou... ‘cabou o quê, meu filho? ‘Ocê mata a gente do coração!...

 SEBASTIÃO:- Deixa ele falar, ‘Parecida! Que será que esse moleque aprontou agora? Vamos, fale!

 

VÍTOR:- Deixei o Santos... casei... minha mulher está grávida! Pronto: é isso!

  

(Válber retoma a narrativa).

 

 VÁLBER :- Era a bomba a prenunciar tudo o que viria depois... Meses se passaram... Vítor voltara para casa, com a mulher prenha... o menino nasceu... crescia... Vitinho trabalhava num banco em São Paulo e vinha a cada quinze dia para casa... Brigas homéricas faziam parte de nosso cotidiano...

  

(Válber entra na cena onde já estão Serrano e Vítor. Um pássaro canta numa gaiola ao fundo).

  

SEBASTIÃO:- Nada do que você disser altera o fato de você ter jogado fora sua vida... nada altera o fato de você ser um irresponsável... nada altera o fato de você não ter ouvido uma só palavra do que eu lhe disse a vida inteira...

 VÍTOR:- Meu filho doente e você vem com a ladainha de sempre...

 SEBASTIÃO:- Dobre a língua, moleque... Pra falar comigo, é senhor, ouviu, senhor...

 VÍTOR:- Meu filho está morrendo lá dentro... meu filho está morrendo... o senhor não tem o direito... ele é seu neto!

 SEBASTIÃO:- Que exemplo você vai deixar para essa criança? Diz? O exemplo de um fracasso... de um moleque irresponsável... que jogou pela janela a oportunidade de sua vida?! Você vai ser sempre um negro! Apenas mais um negro!

 VÁLBER:- Calma, meu pai... o Vitinho...

 SEBASTIÃO:- Vitinho! Já é um homem...

 VÍTOR:- Me ajude, meu pai! Meu filho... ele não pode... não pode morrer... é tudo o que eu tenho... Eu... eu peço perdão... Perdão, meu pai... eu prometo...

 SEBASTIÃO:- Não prometa o que você não vai cumprir... não prometa! Mil vezes você prometeu... mil vezes você fez tudo errado... Até essa criança... Talvez fosse melhor que...

  

(Breve pausa. O som do canto alegre do pintassilgo parece tomar toda a cena).

  

VÍTOR:- Esse pássaro! Meu filho morrendo e esse maldito pássaro cantando...

  

(Em desespero, dá um violento murro na gaiola, que cai, calando o canto do pássaro. Blackout. Sala de jantar, mais de cinco anos depois da morte de Serrano. Quase tudo igual, exceto pela foto do patriarca ao fundo e o seu lugar como Aparecida o arrumou no dia do enterro. Os três irmãos sentados à mesa, com papéis espalhados. Válber está na cabeceira oposta, como centro da tensão entre eles).

  

VÉBER (esmurrando a mesa):- Isso tudo é um absurdo!

 VÁLBER:- Faz quase seis anos que o pai morreu e toda vez que lhe mostro a contabilidade da pensão do velho, você diz isso... Por que não fica aqui e faz o meu serviço? Heim? Acha que é pouco o que eu faço?

 VÍTOR:- Suas contas são muito estranhas...

 VÁLBER:- Estranha é sua vida...

 VÍTOR:- Eu vivo, tá bem... tenho mulher... tenho filhos...

 VÁLBER:- Não tenho porque não quero...

 VÍTOR:- Ou porque gosta de outras frutas...

 VÁLBER:- Se repetir isso eu meto a mão na sua cara...

 VÉBER:- Parem com isso... Acho que passou da hora de abrir o inventário de nosso pai...

 VÁLBER:- Nem por cima de meu cadáver... Fica tudo como está...

 VÍTOR:- E você na maior folga, enquanto eu e o Véber nos ralamos...

 VÁLBER:- Vocês se ralam porque querem... E olha: vocês podem se ferrar, que eu não estou nem aí... Protejo nossa mãe... só ela é que interessa...

 VÍTOR:- Você tem é inveja...

 VÁLBER:- Das suas orgias, Vítor? Da sua vida desregrada? Cada dia com uma mulher diferente... com filhos que nem você sabe se são seus ou não... Ouve bem o que lhe digo: isso ainda vai acabar mal...

 VÍTOR:- O pai já morreu... não vai ser você, agora...

 VÁLBER:- Você ainda vai se foder, meu irmão... E você, Véber, com essa pose de negro que casa com branca... pra apurar a raça... como queria o pai... ainda vai acabar levando...

 VÉBER:- Levando o quê? Me diga?

 VÁLBER:- Isso mesmo que você pensou... se é que já não levou... aquela barata descascada não presta, meu irmão...

 VÉBER:- O Vitinho tem razão... é inveja o que você tem... Quem pensa que é para julgar minha mulher? Você, que tá aí... sem ninguém...

 VÁLBER:- Ela quer é o teu dinheiro...

 VÉBER:- Trabalhei pra ganhar, dou pra quem quiser...

  

(Véber, que já estava de pé, caminha pela sala e senta-se na cadeira do pai, à cabeceira da mesa).

  

VÁLBER:- Levanta daí... é a cadeira do pai...

  

(Véber levanta-se rápido, como tomando consciência  do que fizera).

  

VÍTOR:- Eu podia te ajudar no escritório, Véber...

 VÉBER:- De novo desempregado? Pra trabalhar comigo tem que ter pique... tem que dar duro...

 VÍTOR:- E você acha que...

 VÉBER:- Acho... acho, sim... você não tem um mínimo de responsabilidade...

 VÍTOR:- Aquela porcaria de escritório... aqueles seus empregados devem tá metendo a mão...

 VÉBER:- Com empregado, eu mando embora, entrego pra polícia... Com um irmão... o que eu faria, heim, seu Vitinho... o quê?

 

 (Vítor parte pra cima do irmão e é contido por Válber).

 

 VÍTOR:- Ladrão, não, Véber! Posso ser tudo, menos ladrão... No fundo, você também tem inveja da vida que eu levo... Eu sou livre, ouviu, bem? Livre! Não preciso de esmola sua... nem vou precisar nunca... seu... seu... merda... filho-da-puta...

  

(Entra Aparecida, com uma bandeja na mão).

  

APARECIDA:-   Parem já com isso... que coisa mais feia... Desde que o finado Serrano se foi qu’ocêis só fazem é brigá... Ocês são todos filho do mesmo sangue... cada um tem suas razão... mas num pode continuá assim... num é possível, meu Deus do céu... Rezo noite e dia pra tê paz nessa casa... pr’ocêis vivê em harmonia... quase nunca se encontra... e quando se encontra é esse inferno... Ocêis tem de pará com isso... E se acontece alguma coisa comigo... já tô ficano velha... o que vai sê d’ocêis brigano desse jeito? A vida num ensinô nada pr’ocêis? Se a gente se dividi a gente se enfraquece... cada um lutô muito pra vencê... ainda tá lutano... pra tê uma vida melhor... Graças a Deus que o finado Serrano deixou uma pensão boa pra mim... ninguém aqui nunca pricisô robá pra vivê... Ocêis são bons, meus filhos... ocêis tem que se entendê... pará com essas discussão boba... quando eu morrê, tudo isso é de vocêis... e eu num vô querê vê ocêis brigano à toa... que coisa! Vamos... parem com isso... vamo tomá café... fiz uns bolinho... uma broa... chega de confusão!

  

(Aparecida vai arrumando a mesa, enquanto os três irmãos, meio a contragosto, um tanto desenxabidos, procuram sentar-se e começam a servir-se. A luz vai-se esmaecendo pouco a pouco. Válber retoma seu posto de narrador).

  

VÁLBER:- Minha mãe... era assim minha mãe... e  muito mais... No tempo do pai, quantas vezes a surpreendi chorando baixinho enquanto lavava uma louça ou assava uma broa de milho... Só comecei a entender alguma coisa, a tomar consciência de tudo o que, no fundo, já sabia, quando uma noite em que meu pai ia sair...

  

(Foco de luz em Serrano, impecavelmente vestido de branco, olhando-se ao espelho, passando em si mesmo detalhada vistoria).

  

SEBASTIÃO:- ‘Parecida! ‘Parecida!

  

(Ela entra, enxugando as mãos no avental).

  

SEBASTIÃO:- Você não lustrou direito meus sapatos... estão uma droga... será que nem pra isso eu tenho mulher?

  

(Ela ajoelha-se, tenta limpar os sapatos dele).

  

SEBASTIÃO:-  Chega! Agora não dá mais tempo! Não sei que hora vou voltar... não me espere...

  

(Sai. Aparecida enxuga as lágrimas, levanta-se e sai vagarosamente. Luz sobre Válber).

  

VÁLBER:- Eu vi o olhar de meu pai... não era ódio... não, não era ódio... Quem odeia, também pode amar... Era desprezo... Segui-o, sim, eu o segui... E o resultado disso nunca contei pra ninguém... Mas acho que todos já sabiam... Minha mãe, principalmente... Mas depois que ele morreu, nossa vida... bem, muita coisa mudou...

  

(Serrano, impecavelmente vestido de branco, cumprimentando imaginárias personagens de um bar, bebe do copo de um e de outro, convida para dançar o tango uma das mulheres; Válber toma o lugar da mulher imaginária e os dois prosseguem dançando vários ritmos. A iluminação destaca, num outro plano, a Véber, em várias ocupações: como operário, de capacete e macacão, depois como escriturário e, em seguida, como chefe de escritório, já de paletó e gravata. Ao mesmo tempo, num terceiro plano, Aparecida borda um pano, sentada numa cadeira de balanço, numa atitude de sofrimento e conformismo. Entra Vítor, toma o lugar de Válber na dança com o pai. Válber dirige-se para o plano da mãe, chega até ela, beija-a e senta-se a seus pés, com a cabeça em seus joelhos. A cena prossegue por alguns instantes, até que as luzes destaquem apenas a figura de Véber, no escritório, falando ao telefone).

  

VÉBER:- Ouça: não vou repetir outra vez... Não tem acordo... Esse ponto não tem acordo... Não abro mão... Ela sabe disso, sempre soube... Ela já tá saindo dessa relação com mais do que entrou... se eu permito isso, vou ter de permitir outras coisas... Não, absolutamente, não! O erro foi dela e eu não vou pagar por isso... Claro, claro... Inclusive o menino não quer nem ver a mãe... o que ela fez não se faz com um filho, uma criança... Arrependimento? Não, mil vezes não... É tarde demais... O meu ódio é maior que todo o amor que lhe dei, durante todos esses anos... Acabou! Sem concessões, sem concessões!

  

(Bate o telefone, fica pensativo por alguns instantes, abre a gaveta, tira um maço de dinheiro e começa a contar e registrar num livro. Pausa. De repente, uma figura encapuzada toma-lhe a frente, dá-lhe um tiro no peito, pega algumas notas apressadamente e sai. O foco de luz destaca Véber baleado, como na primeira cena. Válber retoma a narrativa e, enquanto ele fala, o corpo de Véber é colocado num caixão e Aparecida coloca-se numa posição exatamente igual à do velório de Serrano).

  

VÁLBER:- Meu pai... foi... foi embora num mês de agosto... Era agosto quando Véber foi assassinado... Mais um pedaço de minha mãe foi arrancado naquele dia... Nunca se soube quem matou meu irmão... O ladrão não levou praticamente nada... Ficaram as suspeitas... Quando Rita, a viúva de Véber, abriu o inventário, só encontrou dívidas... Toda aquela aparente riqueza - apartamento luxuoso, carro do ano, melhor escola para o Júnior... - tudo aparência... Meu irmão morreu por nada... Foi essa a lição de Serrano?... de meu pai?...

  

(Vítor entra, abraça o irmão e a mãe. Válber coloca-se ao lado dela, que reza, apenas reza, como alheada a tudo e ali fica, enquanto o cortejo sai).

  

VÁLBER:- A Rita está aí, minha mãe... Veio buscar o menino...

 APARECIDA:-  Tá certo... tá certo... É direito dela... O finado Véber com certeza num vai gostá... mas a gente num pode fazê nada... A vida deve seguir seu destino, meu filho... Agora somos só nós... eu, você e o Vítor...

 VÁLBER:- E os netos, minha mãe... o filho do Vítor e o filho do Véber...

 APARECIDA:-  É.. tá certo... os neto... Os neto do finado Serrano... (Blackout).

  

(Mesa de bar. Vítor tamborila um samba. Canta, dança, diverte-se. Sentado do outro lado da mesa, Serrano, mas Vítor não o vê. Serrano imita-lhe os gestos, como se gostasse do que vê. Enquanto Vítor continua divertindo-se, agora numa cena muda, Serrano levanta-se).

  

SEBASTIÃO:-  Eu, Sebastião Serrano, eu estive lá... Eu ouvi o zumbido das balas, o rugir dos canhões... Senti o frio da neve e fome das trincheiras... Vi o medo nos olhos até mesmo de oficiais... Não vou esquecer nunca... Eu, Sebastião Serrano, ali, nos campos da Itália construí meu passado... Deixei de ser o órfão tantas vezes enjeitado, para ser gente... quase um herói... A vida nos campos da Itália deixou em mim lições, lições de força, de orgulho, de vida... que eu tinha que deixar para meus filhos... Aparecida, também ela órfã como eu... Perfeita para dar os filhos que eu queria... iniciar uma família... um clã... sem passado, só futuro... Uma geração forte, limpa de ligações com um passado que não conheço, mas que só pode ter sido vil... Pessoas de fibra para vencer... meus filhos... os filhos que Aparecida me deu... apenas três... Eu precisava de mais, eu queria mais... um exército... um exército que lutasse nos campos da vida... que vencesse as batalhas da nossa raça... As armadilhas da vida: depois de Válber, Aparecida não pôde, não pôde me dar mais filhos... nem mulher mais ela era... Eu me perdi... Eu, Sebastião Serrano, que devia dar o exemplo, o melhor exemplo para meu exército... eu me perdi nas trilhas da vida... E agora meus filhos... eles já estão moços...  cobram de mim... principalmente Válber, o mais novo, aquele que veio para ser diferente... Oh! meu Deus, perdoa os pecados desse vosso servo... ilumina o meu filho Válber... ele também deve aprender a perdoar, meu Pai... como eu vou perdoar tudo o que ele vai pensar de mim... tudo o que ele vai dizer para mim... tudo o que ele vai fazer...

  

(Serrano volta a seu lugar. A cena com Vítor volta a ter som. Entra Válber. Vítor vai ao seu encontro e abraça-o).

  

VÍTOR:- Que milagre, meu irmão! Você, no meu reino...

 VÁLBER:- Reino onde você é o rei... o rei da malandragem...

 VÍTOR:-  Aqui eu vivo... e sou feliz... como era meu pai longe de casa...

 VÁLBER:- Não foi pra falar do pai que eu vim aqui...

 VÍTOR:-  Desembucha, irmão... nada vai me irritar... Vamos, fale...

 VÁLBER:- Acho que não vai adiantar... Você não vai deixar nunca essa vida!

 VÍTOR:-  Sábias palavras, irmão...

 VÁLBER:- Você está brincando com fogo, Vitinho... essa tua mulher não é flor que se cheire... Eu vi a ficha dela na polícia...

 VÍTOR:-  Você! Você fez isso! Seu... seu... filho da puta!

 VÁLBER:- Olha o respeito... não fale assim... de... nossa mãe!

 VÍTOR:-  Tá... tá... retiro o filho da puta, mas você não tinha e não tem o direito de se meter na minha vida!

 VÁLBER:- Teu filho... meu irmão, teu filho... já está ficando moço... Precisa de sua presença... Você já não é mais criança... Está na hora de tomar juízo... Por Deus, será que não bastou tudo o que você já jogou fora? Uma carreira, sucesso, dinheiro... E só te encontro nesses muquifos, como um qualquer... Cadê o orgulho de nosso...

 VÍTOR:-  Chega dessa ladainha, Válber... e deixa nosso pai em paz! Deixa ele em paz, ouviu! E lave a boca quando falar nele! Ou você pensa que...

 VÁLBER:- Cuidado com suas palavras, Vítor... cuidado! Não pense você que tenho medo de suas ameaças... Sou muito homem pra te enfrentar... Você é o mais velho, mas não tem moral nenhuma pra me condenar em qualquer coisa... Você não sabe nada, nunca soube nada, nem saberá nada... Ouviu?

 VÍTOR:- E o que tem pra saber, heim, meu irmão? O quê?

 VÁLBER:- Não tem papo com você... É inútil... Adeus! E cuide-se... aquela tua mulherzinha!...

  

(Válber retira-se ante gestos de desdém de Vítor, que continua por alguns instantes a cantar, beber e brincar. Aos poucos, fica somente uma luz sobre Serrano, que espera. Válber retoma a narrativa).

  

VÁLBER:- O tiro no peito de Véber... devia ter servido para nos aproximar... Vítor, no entanto, parecia cada vez mais perdido... Eu nada podia fazer, a não ser tentar esconder da mãe, o máximo possível, as suas trapalhadas... Só não pude esconder sua morte... sua trágica morte... queimado vivo, enquanto dormia... por sua companheira ciumenta, depois de mais uma noitada de farra e uma grande briga por ciúmes...

  

(As luzes, ao fundo, iluminam o caixão de Vítor e mostram Aparecida na mesma postura dos enterros anteriores).

  

VÁLBER:- Mais sofrimento para nossa mãe... outro pedaço de vida que se vai... Agora somos só nós, minha mãe...

  

(Válber dirige-se até Aparecida, agacha-se em seu regaço e contempla-a com abnegação).

  

VÁLBER:- Só restamos eu e você, mãezinha, todos te abandonaram... Eu, não... ficarei sempre com a senhora... Nunca, ouviu, nunca eu vou te deixar... Enxugue suas lágrimas... guarde sua dor... eu serei o seu guardião... eu serei o Véber... eu serei o Vítor... eu serei seus filhos e serei seus netos... Para nós, não haverá nunca mês de cachorro louco...

  

(Aparecida e Válber saem acompanhando o enterro de Vítor, ao som da marcha fúnebre. Somente um foco em de luz em Serrano, que bebe e espera. Volta Válber).

  

VÁLBER (para o público):-  Eu já havia feito vinte e cinco                                                                           anos. Não estudava, não trabalhava. Só queria saber de farras com os amigos, de desfrutar o bem-bom que a situação me permitia... Meus irmãos já estavam longe, cuidando de suas vidas, ainda não totalmente arruinadas por tudo aquilo que já contei... Ninguém podia compreender como a minha criação estava sendo tão diferente da de meus irmãos, que cresceram debaixo dos rigores da lei do pai, debaixo de pancadarias homéricas, castigos brutais... Comigo, não... Se não fazia do velho gato e sapato, porque ainda assim o temia, pelo menos o meu grau de obediência a ele era bem menor. Meu ócio já era um escândalo. Até que um dia nos defrontamos. Foi à mesa de fundo de um bar decadente, num domingo à noite. Uma noite de agosto. Não posso me esquecer desse dia: havia encontrado de manhã, quando voltava para casa, depois de mais uma noitada, a cachorrinha vira-lata que todos nós adotáramos como mascote... Tínhamos dado a ela o nome de Sua-mãe... o que era motivo de muitas piadas... Pois é, naquela manhã, a piada era de gosto duvidoso, de humor negro: encontrei Sua-mãe morta, na calçada em frente à minha casa... Fora envenenada... Agosto é mês de cachorro louco... Poucos sobreviviam... Meu pai me esperava à mesa, tomando uma cerveja que nunca entrava em nossa casa... Até hoje não sei o que ele usava para disfarçar o hálito da bebida, quando chegava em casa, para minha mãe não desconfiar... Da praça vinha o som da furiosa, a bandinha do Batalhão, que se dobrava e desdobrava em executar, literalmente, suas valsas e dobrados.

  

(Válber dirige-se à mesa, onde está sentado Sebastião, com fisionomia carregada. Ouve-se, ao fundo, o som de uma valsa e, depois, de um dobrado, executado por uma banda marcial. O tempo das músicas deve coincidir com o tempo da cena).

 

 SEBASTIÃO:- Não vou continuar admitindo esta situação... Você tem que me obedecer...

 VÁLBER:- Com que autoridade...

 SEBASTIÃO:- A autoridade com que criei os seus irmãos...

 VÁLBER:- Meus irmãos só ganharam porrada...

 SEBASTIÃO:- Mas hoje são homens de respeito...

 VÁLBER:- Respeito! Respeito? Você vem falar de respeito? Você?

 SEBASTIÃO:- Você, não, seu cachorrinho vira-lata, que não sou um seu cumpincha qualquer... Sou seu pai... me trate de senhor, se não...

  

 (Válber encara com ódio o gesto esboçado de um tapa).

  

VÁLBER):- Bate! Bate, que toda a cidade vai ficar sabendo quem é o senhor... quem é você... Ouviu? Você!

 SEBASTIÃO:- Maldito! Não te considero mais...

 VÁLBER:- Teu filho? Eu é que não quero mais ser seu filho... Canalha!

 SEBASTIÃO:- Não me desafie... você não sabe do que eu sou capaz...

 VÁLBER:- Sei, sei sim do que você é capaz... de fingir... de trair... de usar uma máscara de honradez para cobrir os podres de sua vida!

 SEBASTIÃO:- Você me seguiu!

 VÁLBER:- Segui! Segui, sim... E não foi uma vez só, não... Foram muitas... Eu sei tudo, meu... seu Sebastião Serrano... Teus caminhos não têm volta... Minha mãe...

 SEBASTIÃO:- Não ponha sua mãe na história... ela...

 VÁLBER:- Ponho, ponho, sim... ela foi sempre a vítima...a que mais sofreu e sofreria ainda mais se desconfiasse um mínimo que fosse de suas falcatruas!

 SEBASTIÃO:- Vítima... que sabe você de vítimas e de sofrimentos? Que sabe você, seu fedelho ainda cheirando a cueiros, de amores e de ódios? Eu, sim, posso dizer o que é o sofrimento, a dor, o desespero... Eu estive na guerra...

 VÁLBER:- E o que você fez na guerra, seu Sebastião?... O quê? Me conta!...

 SEBASTIÃO:- Eu estive lá e esse mérito ninguém pode me tirar, ouviu? Ninguém!

 VÁLBER:- Eu só queria ver uma medalha sua de bravura, uma só, unzinha que fosse, para poder acreditar nas suas bravatas... Talvez assim eu até pudesse te respeitar... de novo... eu pudesse ter de volta o pai... o pai que você deixou de ser quando...

 SEBASTIÃO:- Eu não deixei de ser seu pai... você é que deixou de ser meu filho... Nunca, nunca você vai conseguir entender minhas razões... Teus irmãos, teus irmãos... eu sei... eles... sofreram... sofreram muito nas minhas mãos... mas era preciso... Eu tinha que prepará-los para a vida.. E a vida, Válber...

 VÁLBER:- ... não é uma guerra, meu pai... seu Sebastião... não, não é a guerra que está na sua cabeça... Uma guerra que nem sei se você lutou...

 SEBASTIÃO:- Olha para suas mãos, olhe-se no espelho... para gente como nós, é, sim, a vida é uma guerra diária... principalmente quando viemos de baixo...

 VÁLBER:- Você... você nunca se preocupou com isso... aqui, em nossa terra...

 SEBASTIÃO:- Você nunca entendeu... Olha, olha bem para o meu terno, para a minha camisa, até mesmo minhas meias: têm a cor da alma que eles queriam que eu tivesse... Por que você acha que eu fui para a guerra? Por que você acha que eu os criei desse jeito? Vocês tinham que ser fortes... mais fortes que eu... vocês tinham que vencer!

 VÁLBER:- Vencer!... Você só fala em vencer... mas só deixou que vencesse o ódio...

 SEBASTIÃO:- Não! Não era ódio: era...

 VÁLBER:- Amor? Essa palavra não existe pra você... Algum dia, você disse à minha mãe que a amava? Um gesto seu de carinho, um único olhar que não fosse de zanga, de reprovação... de... de... vistoria, como um sargento... é isto: você foi sempre o sargentão... um único gesto seu de amor, seu Sebastião, um único que eu me lembrasse poderia te salvar... E agora você fica aí com esse ar de arrependimento...

 SEBASTIÃO:- Não é hora de arrependimentos...

  

(Disfarçadamente limpa um lágrima e fala como se fosse para si mesmo)...

  

SEBASTIÃO:- Um homem de verdade não pode olhar para trás e arrepender-se... Eles estão preparados para a vida, isto ninguém poderá negar... E ainda vão me agradecer por isso...

 VÁLBER:- Não haverá tempo para isso, meu pai... não haverá tempo...

 SEBASTIÃO:- Não entendo o que você está dizendo...

 VÁLBER:- Não importa... viemos aqui para resolver de uma vez por todas essa situação...

 SEBASTIÃO:- Não tem o que resolver... você me obedece e pronto!

 VÁLBER:- Não é tão fácil...

 SEBASTIÃO:- Já conversei lá na Rede, com um ex-companheiro meu que agora é o chefe, no meu lugar, e ele disse que não tem problema... Segunda-feira, amanhã, amanhã mesmo você começa a trabalhar...

 VÁLBER:- Perdeu seu tempo, seu Sebastião... perdeu seu tempo...

 SEBASTIÃO:- É isso o que dá afrouxar com os filhos... eu já devia...

 VÁLBER:- Devia... mas não pôde, não é, seu Sebastião, não pôde e não pode... Agora acabou... seu tempo acabou...

 SEBASTIÃO:- Não pode um pai odiar um filho...

 VÁLBER:- Mas um filho pode odiar um pai!

 SEBASTIÃO:- Ódio! Foi isso o que eu...

 VÁLBER:- Sim, foi isso o que você plantou... e agora vai colher...

 SEBASTIÃO:- Deus não permitirá...

 VÁLBER:- Agora é minha vez de lhe pedir: não ponha Deus no meio desta prosa... A encrenca é nossa... eu e você... somente...

 SEBASTIÃO:- Meu filho...

 VÁLBER:- Você já disse que eu não sou seu filho...

 SEBASTIÃO:- Válber, entenda... de uma vez por todas... existem motivos para tudo... eu errei, não nego, mas nunca deixei que faltasse nada em casa... mesmo sua mãe, lá no mundo dela, sempre teve tudo... não teve mais porque não pediu...

 VÁLBER:- Não soube pedir... como as outras...

 SEBASTIÃO:- Tá, tá certo... não vamos agora brigar por isso... Eu prometo que...

 VÁLBER:- Chega! Não quero ouvir tuas promessas... não quero ouvir mais nada... chega... Não pode haver compaixão em meu peito...

 SEBASTIÃO:- Você já me condenou!...

 VÁLBER:- Só falta dar a sentença...

 SEBASTIÃO:- Válber, meu... meu... olha aqui: o tempo é o melhor amigo do homem... podemos um dia, quem sabe?...

 VÁLBER:- O tempo acabou...

 

 (Retira do bolso um pequeno envelope, abre-o, despeja no copo onde o pai bebia e oferece-lhe).

  

VÁLBER:- Vamos, beba, vai lhe fazer bem... Vai fazer bem para todos nós...

  

(O pai bebe, num gesto de desafio. A música da banda aumenta ao máximo. Blackout. Válber está de novo em pé à frente do público, agora mais triste, ombros curvados, como se tivesse muitos anos mais além dos quarenta, os cabelos brancos, a voz arrastada).

  

VÁLBER:- Meu pai... um homem rígido... um homem orgulhoso... Hoje é nome de rua aqui... nesta cidade de ladeiras compridas como a vida... Não sei se as pessoas que moram na rua Sebastião Serrano sabem quem foi ele... Mas naquele mês de agosto, mês do desgosto, mês de cachorro louco, todos sabiam quem era o homem - ainda tão forte nos seus cinquenta e oito anos - que estava ali naquele caixão...

  

(A luz ao fundo ilumina o velório de Serrano).

  

VÁLBER:- E ninguém desconfiou... um ataque cardíaco foi diagnosticado... Era mesmo  mês de cachorro louco... Nunca mais pude ouvir uma valsa ou um dobrado sendo tocados por uma banda militar... Mas as bandas militares quase não existem mais, não é mesmo?

  

(Dirige-se lentamente para o velório, segura uma das alças do caixão, empertiga-se numa pose igual à do pai e sai com o enterro, ao som de um dobrado militar, enquanto Aparecida, sentada a um canto, coberta por um véu negro, balbucia suas orações).

  

FIM

 

 

ISAIAS EDSON SIDNEY

Nenhum comentário:

Postar um comentário