DRAMA
(Alberto
Magri - Dentro il mulino di Menocchio)
ISAIAS
EDSON SIDNEY
Telefone
(11)5011-9628
2005
RESUMO:
Drama épico.
No século dezesseis, numa cidadezinha perdida no norte da Itália, Domenico
Scandella, o Menocchio, baseado em leituras condenadas pela Igreja, cria uma
cosmovisão contrária aos princípios cristãos, o que leva o Santo Ofício a
julgá-lo duas vezes e, finalmente, a condená-lo à fogueira por heresia.
Contemporâneo de outro ilustre italiano, Giordano Bruno, também queimado por
heresia, Menocchio ficaria esquecido se não fosse o trabalho de micro história
desenvolvido por Ginzburg, em seu livro O Queijo e os Vermes, no qual se
inspira esse texto.
MONTAGEM:
Há um número
grande de personagens e, por isso, exige-se um número mínimo de 7 atores (6 atores
e uma atriz).
(sambenito)
“Pois São Paulo diz que tudo o que
fazemos
por palavras ou atos deve ser feito
em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Malleus Maleficarum
APRESENTAÇÃO
Século XVI: tempos de
mudança. Momento em que a Europa começa a abandonar os princípios econômicos,
sociais e filosóficos da Idade Média e inicia a construção do mundo em que
vivemos hoje. E como em toda época de transição, o passado e o futuro se
encontram, para fazer do presente um cadinho de contradições. É nesse ambiente
que se insere a história de um moleiro, Domenico Scandella, que nasceu em 1532
e foi queimado pelo Santo Ofício provavelmente em 1600, no Friul, nordeste da
Itália. Fiz dele o herói de minha peça, menos interessado nos aspectos
históricos de sua vida e muito mais na personagem Menocchio, seu apelido, e em
suas idéias, estranhas e avançadas para o lugar e o momento. Chamou-me a
atenção, em especial, sua cosmogonia e a sua teimosia em enfrentar por duas
vezes, até ser condenado como herege, o Tribunal do Santo Ofício. Nesta peça,
não estão contempladas todas as teses, teorias e elucubrações de Menocchio,
pois não era esta a sua finalidade, o que pode ser conhecido pela leitura das
obras de referência e pesquisa citadas no final.
Numa época em que,
coincidentemente, também era condenado e queimado Giordano Bruno, o caso de
Menocchio passaria despercebido e ficaria para sempre esquecido, não fosse o acaso
colocá-lo diante do historiador Carlo Ginzburg. Sua obra serviu de inspiração
para este texto que tem a pretensão de homenagear um herói anônimo e pôr em
discussão, mais uma vez, num século de contradições, como o XXI, a questão da
liberdade da palavra diante do fanatismo e das forças conservadoras.
INDICAÇÕES TÉCNICAS
ÉPOCA: século XVI.
LOCAL: Vila de Monte Real, pequena
localidade situada no Friul, nordeste da Itália.
CENÁRIOS:
- Praça de Monte Real.
- Moinho de Menocchio.
- Tribunal do Santo Ofício.
- Igreja de Monte Real.
- Prisão do Santo Ofício.
PERSONAGENS:
- Domenico Scandella, o Menocchio (ou Domenego): tem
mais ou menos 50 anos, quando começa a peça.
- Francesco Fasseta, amigo de infância de Menocchio.
- Padre Odorico Vorai, pároco de Monte Real.
- Nicola, um pintor.
- Ziannuto, filho de Menocchio.
- Companhia de Teatro Mambembe, formada por vários
artistas.
- Benandanti, ou andarilhos do bem, grupo formado por
várias pessoas.
- Companheiros de taberna.
- Camponeses e gente do povo; advogado.
- Inquisidores.
( Francisco de Goya - Escena de
Inquisición)
Praça de Monte Real, cidade do norte da
Itália. Artistas de teatro mambembe
armam o palco e apresentam o seu espetáculo.
APRESENTADOR:- Senhores e senhoras dessa magnífica vila de Monte
Real... Neste ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1582, todos terão a
honra de assistir a mais um espetáculo espetacular da Companhia Os Irreverentes... apresentando sua
obra-prima “Quem ao diabo promete, com o
diabo se compromete”, com os melhores atores do Friul, desde Veneza até
Monte Real... (Palmas). Acomodai os
velhos... que não tenham achaques durante o espetáculo... (risos). Que as mulheres ponham os peitos pra fora... (murmúrio de reprovação) para dar de
mamar a seus filhos... que eles não chorem durante o espetáculo... (Risos e alguns aplausos) Que os homens
sosseguem seus... Deixa pra lá... Vamos ao espetáculo... Aqui vemos, no início,
o padre Odorico, já muito, muito velho, a chorar a morte de seu amigo, o
moleiro Domenego que... bem, os senhores verão...
PADRE:- Ai, ai, ai... meu querido amigo... Deus o levou...
para sempre. Não vou vê-lo nunca mais. Tantas trapalhadas passamos juntos. Eu
até o ajudei a escapar da fogueira uma vez! Agora, está lá... nas chamas do
inferno... Perdi... eu perdi sua alma para aquele diabo horroroso... Tinha
prometido voltar do paraíso, pra me consolar...
Mas, do inferno... quem pode voltar?
MOLEIRO (no inferno):-
Farfarelo, Farfarelo... você é mesmo um diabo. Está vendo lá em cima o meu
amigo Padre se lamentando, todo choroso... Deixa que eu vá lá, consolá-lo... só
um pouquinho... deixa!
FARFARELO:- Sou diabo, mas não sou bobo... Se você daqui me sai, aqui não me vorta...
MOLEIRO:- Eu prometo... eu prometo que volto...
FARFARELO:- Creio que me
podemos entrar em entendimento... (Ao
lado) Quem sabe mais uma alma não consigo pescar? (Para o Moleiro) Tu daqui não me
sais, mas podemos fazer com que seu amigo aqui me venha.
MOLEIRO:- Como? E se ele aqui “me” vem... o diabo daqui não o
deixará sair...
FARFARELO:- Não. Se você me
prometer trazê-lo, eu prometo deixá-lo partir...
Cruza os dedos nas costas.
MOLEIRO:- E o que você ganha com isso?
FARFARELO:- Ora, nada... nada... só sua amizade, para sempre...
MOLEIRO:- Está bem... Eu prometo trazê-lo até aqui. Então o que
eu faço?
FARFARELO:- Finge... você me
finge que está em grande sofrimento... Ele te ouvirá e me virá correndo e, então...
MOLEIRO:- ... e então...
FARFARELO:- ... e então, nada, uai! Ocêis dois conversa e ocê consola ele...
MOLEIRO:- Ai, ai, ai... estou sofrendo... como doem esses
ferimentos no meu corpo... O diabo me espeta de manhã... o diabo me espeta à
tarde... o diabo me espeta à noite... o diabo me espeta... (leva um tranco de Farfarelo). Ai, ai,
ai, eu queria tanto que meu amigo viesse aqui me ver... sofro tanto a sua
falta...
O Padre ouve os lamentos do moleiro e
vai em sua direção. Encontram-se no meio do caminho. O diabo Farfarelo fica ao
longe, tentando ouvir a conversa dos dois.
PADRE:- Meu querido amigo Domenego! Prometeste voltar e eu é
que tenho de ir ao teu encontro... Estás com uma aparência estranha! Não tens
comido bem?
MOLEIRO (alto):- Ai, ai, ai... tenho sofrido muito, meu amigo. Um diabo me azucrina o
tempo todo... (Olha para cara de bravo de
Farfarelo e fala no ouvido do amigo). Fala baixo, aquele diabo ali é o... é
o diabo. Ele está querendo te pegar. (Alto)
Como vão as coisas lá em cima, meu querido amigo... já tomaste a extrema-unção?
PADRE (alto, entrando no jogo):-
Que nada, meu caro amigo... Não morro
tão cedo. Tenho só uns achaquesinhos de tosse... Mas sinto tua falta. (Baixo) Vou te roubar desse diabo: tua
alma é minha... isto é, de Deus. (Alto)
Dize-me uma coisa, meu caro Domenego: como é a vida de uma alma pecadora nesse
inferno de lágrimas?
MOLEIRO (alto):-
Não é mole, não, meu caro. Não é mole, não. Tem diabo de mais e pecadores de
menos, então sobra muita porrada no nosso lombo... (Baixo) Ele quer a tua alma também: prometi levá-la para ele, mas eu
só queria te ver... para a gente combinar um estratagema para enganá-lo... finge
que vai comigo e, assim que eu te fizer
um sinal, nós saímos correndo o mais rápido que nossas pernas bambas
conseguirem... (Alto) Mas não posso
me queixar, não... Tenho um amigão aqui embaixo, um tal de Farfarelo... Ele
quer te conhecer... de tanto que eu falei de ti... Vem, vamos lá, que eu vou te
apresentar para ele...
O Moleiro finge que vai em direção ao
diabo, pega o Padre pelo braço e ambos tentam sair correndo. Mas o diabo é mais
esperto, pula na frente dos dois e agarra o braço do Moleiro. O Padre e o diabo
ficam puxando o Moleiro cada um para seu lado, até que o Padre, por ser muito
velho, cai estatelado no chão, deixando ver um rabo bifurcado por baixo da
batina.
FARFARELO:- Seu moleiro maldito e mentiroso... Vou te jogar na
mais profunda escuridão de meu inferno, seu desgraçado. Você me prometeu...
MOLEIRO:- Prometi... prometi e não cumpri...
FARFARELO:- Desgraçado! Quem promete tem que cumprir... tem que
cumprir, mesmo que seja no inferno!
Aplausos moderados da platéia e
entusiasmados de Menocchio, o Moleiro.
MENOCCHIO:- Bravo! É isso aí... (Assobia). Promessa tem de ser cumprida... mesmo no inferno. (Ri).
A seu lado, o amigo Fasseta cutuca-o.
FASSETA:- Sossega, Domenego, sossega. Que diacho: tudo agora é
motivo de provocação?
MENOCCHIO:- Que provocação que nada... Não gosto de hipocrisia,
você sabe...
FASSETA:- Olha lá o padre: não tira o olho de você.
MENOCCHIO (faz um gesto de
provocação para o padre):- Tudo mentiroso, Fasseta, tudo mentiroso, uns
hipócritas. Prometem o que não podem cumprir... nem no inferno!
Enquanto um dos artistas passa o chapéu
para arrecadar umas moedas e os outros vão desmontando o palco, alguém se
aproxima de Menocchio.
MENOCCHIO:- Meu amigo, Nicola!... Dê cá um grande abraço. Por
onde anda, homem de Deus?
NICOLA:- Por aí, pintando umas igrejas...
MENOCCHIO:- Tirando dos padres o que os padres tiram da gente,
não é?...
NICOLA:- Tenho... tenho algo para você... Comprei numa feira
em Pórcia, acho que vai gostar...
MENOCCHIO:- Vamos nos afastar um pouco, que o padre Odorico não
tira o olho da gente... Vem, também, Fasseta... Em você eu confio...
FASSETA:- Nada disso, senhores... Vou cuidar de meus sapatos,
que ganho mais do que cuidar do que eu sei que vocês vão conversar... Tenha
cuidado, Menocchio... tenha cuidado...
Fasseta sai, enquanto Nicola e Menocchio
se afastam para um canto. Padre Odorico faz um gesto de desânimo e também sai.
Nicola abre uma bolsa e entrega a Menocchio um livro, que este examina rapidamente
e esconde sob as roupas.
NICOLA:- Em língua vulgar, Menocchio... nada de latim.
MENOCCHIO:- Muito bom, meu amigo, muito bom... Quanto lhe devo?
NICOLA:-
Dois soldos, Domenego, mas
depois a gente acerta... passe adiante... como sempre... passe adiante...
depois que você ler... Existem mais livros, muitos mais... Mas, cuidado,
sempre, hem! E até a quinta-feira, não esqueça... equinócio, você sabe...
Os dois se abraçam e se afastam.
Menocchio está sentado à frente de seu
moinho, lê um livro por alguns instantes, fecha-o e começa a carregar uns sacos
de grãos para dentro. Passa o sapateiro Francesco Fasseta.
FASSETA:- Que ganância é essa, Menocchio?! Hoje é domingo! Os
padres vão te excomungar...
MENOCCHIO:- Que se danem os padres, amigo Fasseta. Que se danem!
Eu tenho mulher e sete filhos, se não trabalhar duro, quem vai pagar minhas
contas? Os padres?
FASSETA:- Mas hoje é dia de missa, Menocchio... hoje é dia de
missa!... Respeite os sacramentos de Deus, homem!
MENOCCHIO:- Bah! Que sacramentos que nada... tudo mercadoria...
tudo invenção dos homens, dos padres, para tirar dinheiro da gente.
Fasseta tenta impedir que Menocchio
continue carregando os sacos.
FASSETA:- Você precisa se confessar, se comungar, abrandar
esses maus modos, Menocchio, respeitar as leis de Deus... E parar de ler esses
livros... eles estão fazendo a sua
cabeça... para o mal! Você é só um moleiro, Domenego, não um... um professor...
um padre...
MENOCCHIO:- Olha aqui, meu caro amigo, você com seus sapatos e eu
com minhas idéias... e meus livros. Eu respeito, e muito, as leis de Deus...
São interrompidos pela presença dos
artistas do teatro.
ARTISTA:- Bons dias, senhores... Acho que os senhores estiveram
ontem em nossa apresentação...
FASSETA:- Estivemos, sim... Aquela porcaria de peça... que só
confundiu ainda mais a cabeça do meu amigo aqui...
MENOCCHIO:- Calma, Fasseta, calma... São boa gente, não estão
querendo confusão...
ARTISTA:- Desculpe... é que, sabe, ontem... acho que o povo não
gostou... A grana foi curta... Estamos sem dinheiro até para comer...
MENOCCHIO:- A vida está difícil pra todo mundo, meu amigo... Mas
nós, os pobres, somos honrados e nos ajudamos (dá uma olhada feia para Fasseta)... com a graça de Deus... Olha
aqui, pega um saco de farinha desses aí... Já servirá para alguma coisa... um
mingau... uma sopa... Ou então podem vender... Enfim, é o que posso contribuir
com gente que alegra a vida das pessoas...
Os artistas pegam um saco de farinha,
agradecem muito, com gestos e abraços, ao Menocchio. Alguém tenta abraçar o
Fasseta também, mas é repelido. Retiram-se.
FASSETA:- Idiota... é o que você é, Menocchio...
MENOCCHIO:- Eu sou o idiota, não é? Só porque sigo a lei de
Deus... Sabe o que eu acho? Eu acho que em vez de ficarem lambendo as botas dos
padres, que nos querem debaixo de seus pés, as pessoas deviam seguir a lei de
Jesus... Eu conheço Deus melhor do que eles...
E sabe o que mais, meu amigo? Gostaria que se acreditasse na majestade
de Deus, que fôssemos homens de bem e que se fizesse como Jesus Cristo
recomendou, quando respondeu àqueles judeus que lhe perguntaram que lei se
deveria seguir. Ele respondeu: “Amar a Deus e ao próximo”. Só isso, só isso já
é ser um homem de bem, Fasseta...
FASSETA:- Diacho, homem, fica falando essas coisas por aí... E
discutindo com todo mundo sobre a fé... Até com o pároco! Tá certo, eu sou
sapateiro; mas você é moleiro, e você não é culto. Sobre o que é que nós vamos
discutir? Hem, sobre o quê, Menocchio? Pelo amor de Deus, não vai falando essas
coisas por aí!Você ainda vai se dar mal, Menocchio, eu te digo, você ainda vai
se dar mal...
MENOCCHIO:- Você me conhece desde menino, Fasseta... Se me
chamarem, por causa de minhas idéias, eu irei, sim... sem problema... Mas se me
baterem! Ah! Aí eu boto a boca no mundo... tenho muito o que falar com os
superiores sobre as más obras desses padres... Se me matarem depois que eu
tiver dito tudo o que penso, eu nem vou ligar...
FASSETA:- Tá bom, tá bom... Eu só me preocupo... mas não
adianta, você é mais teimoso que um burro de moleiro... Cuidado com a língua, o
padre Odorico não é flor que se cheire...
MENOCCHIO:- Está bem, está bem... Você fez direitinho o trabalho
dos padres no domingo: me convenceu a parar de trabalhar. Já terminei mesmo...
vamos lá em casa tomar um vinho e cantar umas musiquinhas...
Menocchio pega no interior do moinho um
violão e sai cantando, ao lado de Fasseta, enquanto a Lua cheia surge no céu,
ao fundo.
MENOCCHIO :- “Sina minha, minha sina,
Digo sempre o que me vem
Nesta aldeia pequenina
Prego o mal e faço o bem
Sina minha, minha sina
Tudo vai e tudo vem
Minha crença me anima
Vou cantando, vou levando
Minha vida, minha sina
Só a Deus eu vou louvando...
Sina minha, minha sina...”
Num banco da praça, Nicola lê, com
atenção, um livro. Padre Odorico senta-se a seu lado, assustando-o. Nicola
esconde o livro entre as roupas.
ODORICO:- Sempre um livro nas mãos, hem, senhor Nicola?... Não
entendo como um simples pintor como o senhor gosta tanto de livros...
NICOLA:- Com... com... licença... eu já estava me retirando...
ODORICO:- Nada disso. Fique bem aí, que eu quero lhe fazer umas
perguntinhas...
NICOLA:- Mas, seu padre... eu... eu tenho confessado e
comungado todo ano na sua paróquia...
ODORICO:- Você não conhece, por acaso, alguém que viva em
pecado aqui em Monte Real, conhece, senhor Nicola?
NICOLA:- Em... em pecado? Como assim, seu padre?
ODORICO:- Você deve conhecer algum feiticeiro, não é mesmo? Um
benandante?
NICOLA:- Não, não conheço nenhum feiticeiro nem nenhum
benandante... (Começa a rir) Ora,
padre... não que eu tenha conhecimento... também não sou um benandante... não é
essa a minha profissão!
ODORICO:- Mas, o senhor, há cinco anos me contou umas
histórias... não levei em consideração, na época, mas agora...
NICOLA:- Ora, ora, padre Odorico... eram histórias, apenas
histórias...
ODORICO:- Então, porque está rindo tanto?
NICOLA:- Porque não se deve perguntar sobre essas coisas, isso
é ir contra a vontade de Deus, padre Odorico...
ODORICO:- Não entendi: por que falar dessas coisas é ir contra
a vontade de Deus, hem, seu Nicola?
NICOLA:- Eu nunca falei com o senhor sobre nenhum feiticeiro,
nem a respeito de combates noturnos, nunca, ouviu, nunca! Eu não sei o que é
ser um benandante...
ODORICO:- Mas o senhor uma vez falou, sim, que os benadanti
voltavam cansados de seus jogos e, se não achavam água nas casas, urinavam no
vinho e o vinho ficava azedo... Eu me lembro muito bem, agora...
NICOLA (ainda rindo, nervosamente):- Oh! mundo cruel... oh! mundo cruel!...
ODORICO:- O senhor sabe que, se disser a verdade, isso será
levado em conta e o senhor será tratado com misericórdia?
Nicola permanece em silencio. O padre
espera alguns instantes. Faz sinal a dois guardas que se aproximam, amarram
Nicola e levam-no.
Noite de lua cheia. Na floresta, várias
pessoas, homens e mulheres, vão-se reunindo, trazendo galhos de erva-doce. O
líder bate um tambor e alguém a seu lado traz uma bandeira de tafetá branco,
bordado a ouro, com um leão. Parecem estar num sono ou transe profundo e só
acordam quando o líder começa a falar. Entre eles, Menocchio. Fazem um círculo,
iluminado por archotes.
LÍDER:- Nós somos os benandanti... os andarilhos do bem...
Aqui estamos reunidos, neste Quarto Tempo do ano, início da primavera, para
combater o bom combate de todas as lavouras...
MENOCCHIO (baixo, para a
mulher a seu lado):- Você viu o Nicola, o pintor?
MULHER:- Não, não vi... deve ter viajado, para pintar outra
igreja...
MENOCCHIO:- Estranho... ele nunca falta às nossas reuniões...
O círculo começa a se movimentar e a
dançar. Cantam.
TODOS:- Proteger a terra,
Proteger o vinho,
Combater quem erra
Não estou sozinho!
Deus de todos nós,
Dono desse mundo,
Dá a tua graça
Expulsa o imundo!
Dá a tua graça
Expulsa o imundo!
Dono desse mundo
Expulsa, expulsa sim
Sem dó nem piedade,
Expulsa o imundo!
LÍDER:- Deus, senhor das colheitas, protegei nossas vindimas!
TODOS:- Que o vinho seja bom!
LÍDER:- Deus, senhor das colheitas, protegei nossos campos!
TODOS:- Que os frutos da terra sejam bons!
LÍDER:- Deus, senhor de tudo o que se move na terra, protegei
nossos animais!
TODOS:- Assim seja! Amém! Amém!
LÍDER:- Os diabos são nossos inimigos... as feiticeiras são
nossas inimigas... Vamos lutar contra o mal e, com a graça de Deus, vamos
vencer mais uma vez esse combate. Nossos campos devem ficar protegidos de todo
o mal. Lutemos, irmãos, lutemos!
Os participantes se organizam, como um
exército e, cantando, simulam um combate contra um inimigo invisível, com os galhos
de erva-doce. Quando o “inimigo bate em retirada”, eles pulam de alegria,
dançam, se abraçam e se beijam. Depois, sentam-se em círculo, para comemorar,
com pães e vinhos e doces.
LÍDER:- Meus irmãos, vocês conhecem nossos regulamentos: quem
contar alguma coisa de nossas reuniões será severamente punido... com a morte,
se for preciso. Portanto, renovemos o juramento de silêncio.
Todos se dão as mãos e repetem as
palavras de juramento do líder.
LÍDER:- Nós, os benandanti... os caminhantes do bem... aqui
reunidos... sob a graça de Deus... vencemos mais uma vez nossos inimigos... e
prometemos manter... dentro da boca nossas línguas... sob pena... de encontrar
o castigo de Deus... Amém!
Todos se abraçam, comem e bebem e se
divertem.
Cela de uma prisão. Nicola está
pendurado numa roda medieval de tortura e o Inquisidor interroga-o.
INQUISIDOR:- Que coisa vos prometeu: mulheres, comida, danças, que
outras coisas? Fale, Nicola, vamos, fale em nome de Deus!
NICOLA:- Não me prometeu nada, eu juro por Deus! Os outros
dançam, pulam, fazem sexo, eu vi! Mas nós os combatemos... eles é que são o
mal...
INQUISIDOR:- Quantas vezes você viu aquele anjo?
NICOLA:- Toda vez que eu saía... quatro... quatro vezes por
ano... ele vinha comigo... é ele que guia a nossa bandeira...
INQUISIDOR:- Como se dava isso? Vamos, explique bem... bem
direitinho essa história, Nicola...
O Inquisidor aumenta a tortura.
NICOLA:- Eu... eu conto... eu conto... Quando dormimos, o anjo
vem e nos leva... em espírito... o corpo continua dormindo... Então nós nos
encontramos... em espírito... na mata... e combatemos o mal... Somos muitos...
dois mil... cinco mil... Cantamos e dançamos... e vencemos aqueles que querem
destruir nossas colheitas, azedar nosso leite... Quatro vezes ao ano... quatro
vezes...
Na frente de seu moinho, Menocchio
organiza uma pequena fila de camponeses que lhe trazem, em sacos e cestos,
grãos para moer.
MENOCCHIO:- É como lhes digo: quem é que vocês pensam que seja
Deus? Deus não é nada além de um pequeno
sopro e tudo mais que o homem imagina.
UM CAMPONÊS:- Ei, Menocchio, você está dizendo que Deus não existe?
MENOCCHIO:- Não foi isso o que eu disse: Deus existe, sim. Tudo o
que se vê é Deus e nós somos deuses.
OUTRO CAMPONÊS:- Nós somos deuses?? Como assim?...
MENOCCHIO:- O céu, a terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno,
tudo é Deus. É no que eu acredito.
UM CAMPONÊS:- E Jesus, Menocchio, o filho de Deus... o que você diz
de Jesus?
MENOCCHIO:- O que é que vocês pensam? Que Jesus Cristo nasceu da
Virgem Maria? Não, não é possível que ela tenha dado à luz e tenha continuado
virgem. Pode muito bem ser que ele tenha sido um homem qualquer de bem, ou
filho de algum homem de bem...
Fasseta se aproxima.
FASSETA:- Você está indo longe demais nisso, Menocchio... Não
vê que só faz mal a si mesmo? Pára com isso, homem...
MENOCCHIO:- Chegue aqui, amigo Fasseta... Queria mesmo falar com
você...
FASSETA:- Não me venha com essa sua ladainha de falar de
Deus... das escrituras... que eu vou embora!
MENOCCHIO:- Não, não... Espere só um minuto... Você aí, pode
levar o seu cesto lá para dentro... (Grita
para dentro do moinho). Já vai mais um... não deixem a mó parar, seus
palermas... E andem com isso que tem gente esperando!... Então, amigo Fasseta,
senta aí e me conta uma coisa: estou preocupado com o pintor Nicola. Faz mais
de um ano que ele não aparece...
FASSETA:- Aquele pilantra, vendedor de livros que não prestam
pra nada? Esquece... esquece aquele... aquele... feiticeiro, Menocchio.
MENOCCHIO:- Feiticeiro? O que é isso, Fasseta? Estou estranhando
suas palavras. Nicola nunca foi feiticeiro... Um pintor de igrejas, isso é o
que ele é...
FASSETA:- Desculpe, Domenego, não quis dizer isso... Desculpe...
Estou preocupado é com você... Você sabe: Nicola anda muito por essas
estradas... vê tudo... observa... Enfim, ninguém sabe dele. Pode estar pintando
alguma igreja num lugarejo perdido aí do Friul, como pode estar morto numa vala
qualquer desses caminhos... Vá Deus saber, Menocchio...
Menocchio puxa Fasseta para longe das
pessoas e procura falar baixo.
MENOCCHIO:- Eu queria saber outra coisa: o padre Odorico...
FASSETA:- Não disse mais nada... está na encolha... Mas, se eu
fosse você, não ficava muito sossegado, não...
MENOCCHIO:- Você acha que ele ainda...
FASSETA:- Bem... os tempos são difíceis... Ouvi dizer que
queimaram uma bruxa no mês passado em Pordenone... E andaram perseguindo uns
hereges em Aviano... O Santo Ofício tem olhos e ouvidos em tudo quanto é
lugar... Temo por você, meu amigo, pára com essas pregações em público...
MENOCCHIO:- Sossega, Fasseta. . Sou dono de meu nariz! Sei ler e
somar... já fui até administrador da
paróquia, você se lembra? E então, meu amigo, nada vai acontecer comigo... Esse
povo aí da vila precisa ser esclarecido...
FASSETA:- E é você quem vai esclarecer, Menocchio? Tenha tino,
amigo, tenha tino!
MENOCCHIO:- Além do mais, eu gostaria mesmo que me levassem...
Tenho muita coisa para falar... Ah! E como eu ia falar!
Está amanhecendo. A Lua, pouco a pouco,
vai sumindo no céu. Zannuto, filho mais
velho de Menocchio, chega ao moinho, abre suas portas e espera. Pega um violão,
senta numa pedra e cantarola, enquanto vão chegando algumas pessoas, com cestos
de grãos para moer.
ZANNUTO:- O pão vem do trigo,
O trigo que mói a mó
A mó não tem dó
Não tem dó, não tem dó
Do trigo
Da pedra se faz a mó
Da terra vem a pedra
Na terra o trigo medra
Mas a mó não tem dó
Não tem dó, não tem dó
Do trigo...
UM CAMPONÊS:- Então, Zannuto, cadê o seu pai?
OUTRO:- Já é tarde! Cadê o Menocchio, Zannuto?
ZANNUTO:- Calma, gente, meu pai já vem... Deve ter dormido
demais...
Chega correndo um mensageiro.
MENSAGEIRO:- Zannuto! Zannuto! Corre que prenderam seu pai...
Levaram para Pordenone... O Santo Ofício... O Santo Ofício...
Advogado entrega a Zannuto uma petição.
ADVOGADO:- Aqui está: é tudo o que posso fazer por seu pai... O
caso não é complicado, mas com o Santo Ofício nunca se sabe...
Zannuto passa os olhos pela petição.
ZANNUTO:- Mas, senhor advogado, nesta petição está escrito que
meu pai abjura de todas as crenças absurdas e se mostra absolutamente
arrependido de tudo quanto disse, de tudo quanto pregou esses anos todos e
volta para o seio da Santa Madre Igreja...
ADVOGADO:- É pegar ou largar: o Santo Ofício pode não ter muito
interesse em queimar um membro atuante da comunidade, se esse membro não for
acusado de bruxaria... O que não é o caso.
ZANNUTO:- O próprio Inquisidor mandou-me procurá-lo... Quanto
lhe devo, afinal?
ADVOGADO:- Sei que Domenico Scandella tem posses...
ZANNUTO:- Meu pai nada tem além de dois moinhos de aluguel e
dois campos arrendados... São o sustento de nossa pobre família...
ADVOGADO:- Pobre e de nariz empinado, língua solta... Vai custar
caro, meu jovem, vai custar caro!
Tribunal do Santo Ofício.
INQUISIDOR:- Que entre a testemunha, padre Odorico Vorai, da
paróquia de Monte Real...
O padre Odorico faz o juramento sobre a
Bíblia e beija o anel do Inquisidor.
INQUISIDOR:- Fale, senhor cura...
ODORICO:- Desculpe, senhor... mas não posso me lembrar bem do
que ele disse. Tenho memória fraca e estava com outras coisas na cabeça.
O Inquisidor dispensa, com um gesto, a
testemunha.
INQUISIDOR:- Agora entre nós, senhor Domenico Scandella... Estamos
todos interessados em ouvir suas teorias sobre os sacramentos... Mas, antes, o
senhor confirma o que aqui disseram várias testemunhas: que, se encontrasse
quem o ouvisse, contaria tudo?
MENOCCHIO:- Sim, excelência, é verdade, eu disse que, se me fosse
permitida a graça de falar diante do papa, de um rei ou de um príncipe que me
ouvisse, diria muitas coisas... depois, se me matassem, não me incomodaria nem
um pouco.
INQUISIDOR:- Mas, pelo que eu sei, o senhor não sabe latim, para
falar com tal ilustre platéia...
MENOCCHIO:- Na minha opinião, falar latim é uma traição aos
pobres. Nas discussões, as pessoas mais pobres não sabem o que está sendo dito
e são enganadas. Pra falar qualquer coisa, quatro palavras, só com a ajuda de
um advogado.
INQUISIDOR:- O senhor condena os bens da Igreja...
MENOCCHIO:- O papa, os cardeais, os padres, todos são tão grandes
e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam a vida dos
pobres. Se os pobres têm dois campos arrendados, esses são ou da Igreja ou de
tal bispo ou de tal cardeal.
INQUISIDOR:- Fale-nos sobre o santo sacramento do Batizado...
MENOCCHIO:- Acho que, quando nascemos, nós já nascemos batizados,
porque Deus, que abençoa todas as coisas, já nos batizou. O batismo é uma invenção
dos padres... Os padres começam a nos comer a alma antes do nascimento e vão
continuar comendo-a até depois da morte.
INQUISIDOR:- O senhor se confessa, senhor Domenico?
MENOCCHIO:- Nas festas, na Sexta Feira Santa, até que sim, eu me
confesso, porque a isso me obrigam os amigos, a família, o padre. Mas na
verdade eu acho que ir se confessar com padres ou frades é a mesma coisa que
falar com uma árvore. Se esta árvore conhecesse a penitência, daria no mesmo;
alguns homens procuram os padres porque não sabem quais penitências devem ser
feitas para seus pecados e esperam que os padres as ensinem... se eles soubessem, não teriam necessidade de
procurar padre nenhum... eles iriam se confessar à majestade de Deus em seus
corações e pedir ao próprio Deus perdão por seus pecados.
INQUISIDOR:- Consta dos autos que o senhor disse ao padre que a
hóstia é apenas massa...
MENOCCHIO:- Eu disse, sim, que aquela hóstia é somente um pedaço
de massa, mas que o Espírito Santo vem do céu e está nela. E eu realmente acredito
nisso.
INQUISIDOR:- E quem o senhor acha que seja o Espírito Santo?
MENOCCHIO:- Acho que é Deus.
INQUISIDOR:- O senhor sabe quantas são as pessoas da Santíssima
Trindade?
MENOCCHIO:- Sim, senhor: Pai, Filho e Espírito Santo.
INQUISIDOR:- Em qual dessas três pessoas o senhor acha que a
hóstia se converte?
MENOCCHIO:- Acho que no Espírito Santo.
INQUISIDOR:- Quando o pároco fez os sermões sobre o santíssimo
sacramento, quem ele disse que estava naquela hóstia?
MENOCCHIO:- O padre disse que era o corpo de Cristo... Mas eu
achava que era o Espírito Santo... Isso porque eu acho que o Espírito Santo é
maior que Cristo. Cristo era só um homem, mas o Espírito Santo veio pelas mãos
de Deus...
INQUISIDOR:- Senhor Domenico, o Santo Ofício deseja saber com
quantas outras pessoas o senhor discutiu essas idéias, ou melhor, qual foi o
herege que as colocou em sua cabeça...
MENOCCHIO:- Nunca em minha vida eu discuti com alguém que fosse
herege, eminência... Eu acho que tenho cabeça sutil... Sempre quis procurar as
coisas maiores, as coisas que não conhecia. Não sei se o que eu disse é a
verdade, nem acredito muito nisso, mas quero ser obediente à Santa Igreja. Tive
opiniões enganosas, mas o Espírito Santo me iluminou e peço a misericórdia do
magno Deus, do Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo... E que ele me faça morrer se não estou dizendo
a verdade.
Entram o advogado e Zannuto. O advogado
entrega a petição ao Inquisidor.
INQUISIDOR:- Temos aqui uma petição do senhor advogado em favor do
réu... Para apreciá-la, suspendemos até amanhã a sessão. Que seja o prisioneiro
conduzido de volta à cela.
MENOCCHIO:- Senhores, eu vos peço em nome da paixão do Senhor
Jesus Cristo que resolvam sobre o meu caso... Se mereço a morte, que me seja
dada, mas, se mereço misericórdia, que concedam, porque quero viver como bom
cristão!
Na praça de Vila Real, o teatro mambembe
apresenta-se ao público.
APRESENTADOR:- Ele quer viver como bom cristão! Bom cristão! Pois,
sim. Um moleiro que pretendia dar lições da Bíblia aos padres! Um moleiro que
lia um monte de livros que não entendia! Então, vamos assistir à história de um
moleiro que enfrentou o Santo Ofício com um monte de idéias loucas, mas que
quer viver como bom cristão...
Atores caracterizados como moleiros e
diabos cantam e dançam.
ATORES:- Lá vem o
moleiro
Está tão bonito
Está tão faceiro
Em seu sanbenito!
Contou tanta lorota
No santo tribunal
Meteu a mão pela bota
Misturou bem e mal
Levou bordoada
Ficou bem quietinho
No santo tribunal
Pulou miudinho
Gemendo de dor
Chorou bem baixinho
Na mão do inquisidor
Lá vem o moleiro
Não está mais tão bravo
Vestiu um sanbenito
É mula do diabo
Lá vem o moleiro
Um tipo faceiro!
Entra ator vestido como moleiro e com um
sanbenito*, caminhando de quatro e conduzindo em suas costas outro ator vestido
de diabo, com chifre, rabo e tridente.
DIABO:- Vamos, bom cristão, vamos... Adoro cavalgar bons
cristãos, mas esse aqui é teimoso e empacado como burro de moleiro!
MOLEIRO:- Piedade, senhor diabo! Piedade! Eu sou um bom
cristão!
DIABO:- Se você é um bom cristão, porque está vestido com a
roupa dos hereges, hem! hem! Me diga, seu burro de moleiro...
Diabo desmonta e fica cutucando o
moleiro com o tridente, pulando e dançando a sua volta.
MOLEIRO:- Foi a Santa Inquisição que me mandou fazer umas
penitências, para salvar a minha alma...
DIABO:- A sua alma é minha, seu burro...
MOLEIRO:- Mas eu fui perdoado, seu diabo, eu fui perdoado...
DIABO:- Eu fui perdoado, seu diabo, eu fui perdoado... mas
ando escorraçado, vestido de herege, com meu sanbenito, com meu sanbenito...
Não é bonito? Todo amarelinho: parece um pintinho na casca no ovo... Moleiro
bobo de cabeça sutil! Moleiro bobo de cabeça sutil!
Entra o Padre, com um porrete na mão, dá
na cabeça do Diabo, que cai, estrebuchando. Pega o moleiro e tenta sair
correndo com ele. Mas o Diabo se recupera e puxa o Moleiro por um braço,
enquanto o Padre puxa pelo outro. Ficam nessa turra por alguns segundos, até
que o Moleiro dá uma rasteira no Diabo e outra no Padre e ambos caem abraçados.
Pode-se ver um rabo em forma de forquilha sob a batina do Padre. O moleiro sai
correndo. Mas os dois se ajudam a levantar, se abraçam e saem correndo atrás do
moleiro, numa grande folia que transcorre muda, para que se ouça, enquanto isso,
a intervenção de Menocchio, falando com seu amigo Fasseta.
MENOCCHIO:- Toda a cidade está rindo de mim, amigo Fasseta... Com
essas vestes ridículas, sou o palhaço da vila... Ninguém mais me respeita...
Ninguém compreende que eu só queria ajudar as pessoas, que elas não fossem
enganadas pelas promessas desses padres... Passei dois anos na prisão, Fasseta,
para nada... Eu sempre fui e ainda sou um bom cristão, não é mesmo, amigo
Fasseta?... Eu sou um bom cristão!...
Enquanto Fasseta tenta consolar Menocchio,
retirando-o de cena, a pantomima do teatro também se dissolve, sob aplausos,
gritos e assobios do povo, com o moleiro correndo do diabo e do padre, gritando
“eu sou um bom cristão!’
Na igreja, uma pequena fila de homens e
mulheres, para receber do padre Odorico a comunhão. Entre eles, Menocchio.
Quando chega sua vez, o padre lhe nega a hóstia e coloca-o à parte, pedindo-lhe
que espere. Termina o ofício, todos se retiram.
MENOCCHIO:- Por quê, padre Odorico? Por quê?
ODORICO:- Você negou os sacramentos da Santa Madre Igreja,
Menocchio...
MENOCCHIO:- Mas o Santo Ofício já me perdoou... Eu abjurei... Eu
pedi perdão a Deus!
ODORICO:- Enquanto estiver usando esse... esse... essa
vestimenta de herege, não pode receber o corpo de Cristo...
MENOCCHIO:- Nunca mais poderei comungar, Padre Odorico? Nunca
mais?
ODORICO:- Paciência, Menocchio, paciência! Espere baixar a
poeira de seu julgamento... Então, quem sabe? Uma petição... um novo pedido de
perdão...
Menocchio sai, cabisbaixo, depois de
fazer o sinal da cruz e rezar por alguns segundos.
Na taverna, vários homens e mulheres se
divertem: cantam, dançam, tomam vinho, jogam punho de ferro.
HOMEM:- Aqui, somos todos irmãos...
MULHER:- Apesar de quase bêbado, você disse uma verdade: na
taverna, o espírito prevalece... o espírito do vinho... Bebamos, dancemos... A
vida é curta...
OUTRO HOMEM:- Mais curta é a solidariedade do homem...
MULHER:- O que você está querendo dizer? Já não basta sermos
irmãos, pelo menos aqui?
HOMEM:- Vejam o caso do Menocchio...
MULHER:- O que tem o moleiro bundão com o fato de estarmos
aqui a nos tratar de irmãos?
OUTRO HOMEM:- Menocchio é um espírito livre... fala o que quer...
MULHER:- Menocchio é um lambe-botas dos padres... Na hora h,
fez foi muita merda nas calças...
HOMEM:- Sh.... quietos, ali está o filho dele... com o
violão...
MULHER:- Vamos pedir que ele cante para nós... e não se fala
mais nisso...
Vão até Zannuto e lhe pedem que cante.
ZANNUTO:- Vocês querem uma canção alegre, para dançar... mas eu
só sei cantar coisas tristes...
HOMEM-: Não faz mal... canta assim mesmo... nós queremos
música...
MULHER:- E depois, se for triste a sua música, a gente fica
alegre assim mesmo...
ZANNUTO:- Está bem. Essa canção, eu fiz para o meu pai... Um
espírito livre, como alguém disse...
Zannuto afina o violão e canta.
ZANNUTO-: Ouvi no campo um passarim
Ouvi seu canto em meu ouvido
E com ele eu canto sempre assim
Sou feliz e tenho vivido
Com a minha alma em paz
Porque meu canto é belo
Não sou escravo nem capataz
Respiro brisa e como farelo
Nos campos sou um passarim
Vivo livre e sou feliz assim...
Vivo livre e sou feliz assim...
Todos aplaudem muito, cantando o refrão
com o Zannuto. Chega Menocchio. Faz-se um silêncio constrangedor. O moleiro
fica sem graça e começa a retirar-se.
FASSETA:- Que é isso, meus amigos? Só porque está com esse
avental amarelo, vocês não reconhecem mais o velho Menocchio? Venha, sente-se
conosco, beba um vinho, venha...
Fasseta toma Menocchio pelo braço e o
conduz até o grupo que, aos poucos, retoma suas atividades. Logo estão de novo
dançando, jogando punho de ferro e bebendo.
MULHER:- Ei, taverneiro, traga um pedaço de queijo aqui para
nós...
HOMEM:- Não, queijo, não! Só mais vinho!
MULHER:- Como, não?! Quero mais queijo, sim... Pode trazer!
HOMEM:- Não podemos comer queijo na frente do Menocchio!
MULHER:- Que negócio é esse?...
HOMEM:- Menocchio acha que o queijo é Deus, então estaremos
comungando sem ter confessado!
OUTRO HOMEM:- E, nesse caso, estaremos em pecado...
MULHER:- Ainda mais dentro de uma taverna!
Todos riem muito. Só Menocchio fica
sério.
MENOCCHIO:- Eu perdôo a todos vocês... Estão já meio passados...
Não vão nunca compreender...
HOMEM:- Compreender o quê, Menocchio? Você fica lendo uma
porção de livros e depois inventa umas coisas que as pessoas não entendem...
MULHER:- Isso, mesmo... Conta pra gente essa história de Deus
ser um queijo... Nós queremos saber...
O taverneiro coloca sobre a mesa um
queijo e algumas garrafas de vinho.
MENOCCHIO:- Está bem... eu explico a vocês o que eu penso...
Vejam, aqui está o queijo... Como é se faz o queijo?
MULHER:- Ora, Menocchio, todos sabem que é de leite... leite
azedo...
MENOCCHIO:- Isso, leite azedo. Mas o que azeda o leite?
HOMEM:- O coalho.
MULHER:- Que tem uma porção de bichinhos dentro...
MENOCCHIO:- Os vermes, uma porção de vermes, não é mesmo?
MULHER:- É, acho que é... Mas o que tem isso a ver com Deus?
Menocchio se inflama à medida que fala,
circulando pelo grupo, dando a um ou a outro um pedaço de queijo, subindo numa
cadeira e depois na mesa.
MENOCCHIO:- Pois então, senhores e senhoras... eu vou lhes contar
como o mundo foi feito... a verdadeira história, não a que os padres usam para
enganar a gente.. Segundo meu pensamento e crença, no começo dos tempos, tudo
era um caos... isto é, terra, ar, água e
fogo... juntos, tudo junto... E de todo
aquele volume em movimento se formou uma massa, assim, do mesmo modo como o
queijo é feito do leite... quando se
coloca o coalho e então surgem os vermes... Esses vermes foram os anjos, e
entre todos aqueles anjos estava Deus... Deus também foi criado daquela massa,
naquele mesmo momento! E Deus foi feito senhor e com ele quatro capitães:
Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. O tal Lúcifer quis se fazer de senhor, ficou
se comparando ao rei, que era a majestade de Deus... Por causa dessa soberba,
Deus ordenou que fosse mandado embora do céu com todos os seus seguidores e
companhia. Esse Deus, esse mesmo Deus, depois, fez Adão e Eva e o povo... o povo em enorme quantidade para encher os
lugares dos anjos expulsos! Mas aí, o povo deixou de
cumprir
os mandamentos de Deus... O que ele fez? Mandou seu filho, que foi preso e
crucificado pelos judeus. Ele se deixou crucificar... e esse que foi
crucificado era um dos filhos de Deus... porque todos somos filhos de Deus, da
mesma natureza daquele que foi crucificado. Era homem como nós, mas com uma
dignidade maior, como o papa hoje, que é homem como nós, mas com maior
dignidade do que nós porque pode fazer... Aquele que foi crucificado nasceu de
são José e da Virgem Maria...
Alguém joga um pedaço de queijo em
Menocchio e todos o imitam, às gargalhadas.
HOMEM:- Toma lá um pedaço de Deus, Menocchio...
MULHER:- Com uma porção de gente... ou de vermes...
HOMEM:- Somos vermes ou somos deuses, Menocchio?
MULHER:- Cheira aqui o cheiro de Deus, Menocchio! (Levanta a saia) Vamos, cheira! Tem ou
não tem o cheiro de Deus?
No meio das gargalhadas e da folia,
Fasseta abana a cabeça, consternado, passa os braços sobre os ombros de
Menocchio e retira-se com ele.
Menocchio e Fasseta sentam-se na
calçada. Menocchio tira uma garrafa de vinho e dois copos de dentro do
sanbenito. Bebem.
FASSETA:- A vida é mais complicada do que ensinam os seus
livros, Menocchio.
MENOCCHIO:- Eu sei, Fasseta, eu sei bem como é isso: todo mundo
vê o quanto de vinho eu tomo, mas ninguém leva em conta os tombos que eu
levo...
Menocchio tira um livro de dentro do
sanbenito. Fasseta pega-o e fica curioso.
FASSETA:- Sou quase um analfabeto, Menocchio, mas isso está
parecendo uma Bíblia...
MENOCCHIO:- Sou apenas um moleiro, meu amigo, não sei latim, como
de resto todo o povo desse lugar... Você está certo: é uma Bíblia (**)...
FASSETA:- Se você não sabe latim, para que essa Bíblia?
MENOCCHIO:- Veja... Tente ler essa linha aqui... Deixe achegar a
lanterna... Isso... Vê se é capaz de ler...
Fasseta tenta ler, devagar, gaguejando,
o texto apontado por Menocchio.
FASSETA:- No... prin... prin... cí... pio... No princípio...
e... era... o... o... V... é...r... ver... b... o... o Verbo... No princípio
era o Verbo... Diacho, Menocchio... o que é o Verbo?
MENOCCHIO:- Era uma espécie de queijo...
FASSETA:- Queijo!?
MENOCCHIO:- É! Queijo: como a Lua lá em cima... Queijo...
FASSETA:- Sei... e é desse queijo que... Eu não quero mais ler
isso... está muito estranho. Isso devia estar em latim e, no entanto, até eu
consigo ler...
MENOCCHIO:- A Bíblia, Fasseta, já está em língua que todos
entendem... Desde que um padre alemão, um tal de Lutero, fez uma tradução
dela...
FASSETA:- Para o alemão! Se eu não consigo ler na nossa língua,
você quer que eu leia em alemão...
MENOCCHIO:- Deixa pra lá... O importante é que os padres
inventaram muita coisa que não está na Bíblia... e mesmo nesse livro há coisas
que confundem a cabeça de um homem... principalmente uma cabeça sutil como a
minha...
FASSETA:- Ei, Menocchio... você já não está falando coisa com
coisa... Daqui a pouco, vai começar a falar dos germes e eu não estou a fim de
misturar isso com o vinho... que, aliás, está muito bom... Bebamos!
MENOCCHIO:- Bebamos! Mas, veja aqui, por exemplo... Aqui diz que
Deus descansou depois... no sétimo dia da criação...
Fasseta conta os dias nos dedos.
FASSETA:- Começa com o domingo... Domingo é domenico, não é?,
Domenico é você...(Ri)... Então
começa com você... que engraçado... é você o primeiro dia... Domingo...
segunda... terça... quarta... quinta... sexta... sábado... Então, foi no
sábado?
MENOCCHIO:- Mas os padres contam a partir da segunda... então,
cai no domingo!
FASSETA:- É... pode ser, mas então Deus descansou dois dias:
sábado e domingo!
MENOCCHIO:- Também isso não importa muito, porque eu não acho que
Deus tenha descansado coisa nenhuma... Por isso, eu trabalho de segunda a
segunda... Não tem dia de descanso, não... O trigo não deixa de crescer só
porque é domingo... ou sábado... A natureza não descansa, Fasseta...
FASSETA:- Mas os padres... os padres dizem que trabalhar no
domingo...
MENOCCHIO:- Esquece os padres... esquece a Bíblia, Fasseta... Tem
muita coisa errada aí...
FASSETA:- Lá vem você de novo com suas arengas... Fala, fala e
também não explica muita coisa... Por exemplo: como você explica Deus? Eu, por
exemplo... mesmo depois desse vinho todo... nunca vi Deus... Você já viu Deus,
Menocchio?
MENOCCHIO:- Olha... olha bem para mim... O que você vê?
FASSETA:- Que bobagem é essa agora, Menochio?... O que eu vejo?
Ora, o que eu vejo é você... um moleiro já meio muxibento... de olho caído... cara enrugada...
MENOCCHIO:- Estou falando sério... Olha bem nos meus olhos... o
que você vê, Fasseta, o que você vê?
FASSETA:- Um olho... um olho torto... vermelho de tanto
vinho...
MENOCCHIO:- Você está vendo Deus, Fasseta... Você está vendo
Deus!
FASSETA:- Você está é besta, homem! Acho que prefiro o
capeta...
MENOCCHIO:- É isso mesmo, meu amigo, eu sou Deus... você é
Deus... está me entendendo?... Deus está em toda parte... em mim, em você... na
terra... nesse vinho... no trigo que cresce... em toda parte... Tudo é Deus,
Fasseta, tudo é Deus... por isso ele não podia descansar no sétimo dia... a
natureza não descansa, Fasseta...
FASSETA:- Bebamos...
MENOCCHIO:- Bebamos...
FASSETA:- À Lua...
MENOCCHIO:- À Lua!...
Menocchio, já meio bêbado, puxa o balão-lua
para si, abraça-o um pouco e começa a brincar com ele, jogando-o de um lado
para o outro, como uma criança.
MENOCCHIO:- Aqui está a Lua, Fasseta... a Lua que ilumina os meus
caminhos... Lua que eu persigo... Lua de meus sonhos, inconstante como a vida...
Às vezes, bela e cheia; outras vezes, envergonhada e sumida no céu... Sempre
procuro a Lua, Fasseta, na sua caminhada incerta pelo céu, a nascer ora muito
tarde, ora muito cedo... Já vi a Lua, Fasseta, até mesmo durante o dia...
Senhora da noite a desafiar o Sol, como a dizer ao Sol: veja, sou bela, sou
livre, não preciso de ti... Essa a Lua que eu amo: a Lua livre, bela... um
queijo... um queijo enorme... acho que até vejo os vermes... um queijo que pode
fazer o que quer no céu... O sol é como um papa: grande, luminoso, poderoso...
A Lua, não... a Lua ilumina com suavidade os caminhos... A Lua é toda doçura...
é a verdade simples da sombra e da luz... traz somente paz, Fasseta... traz
somente paz...
FASSETA:- A paz dos loucos e dos rebeldes, Menocchio... dos
loucos e dos rebeldes!
Menocchio solta o balão-lua e senta-se
ao lado de Fasseta. Parecem adormecer. O diabo/ator do teatro mambembe aparece
na frente de Menocchio, que leva um susto e pula
MENOCCHIO:- Quem... quem... quem é você?!
DIABO:- Sou o seu inimigo... não me reconhece? Afinal,
estávamos lá... no dia da criação... eu era um dos vermes... o mais belo...
MENOCCHIO:- Miguel? Miguel Arcanjo?
DIABO:- Em pessoa!
MENOCCHIO:- Não seja bobo: Miguel Arcanjo não era tão feio...
DIABO:- Não me provoque... Cada um me vê como quer...
MENOCCHIO:- Que besta eu sou...
DIABO:- Besta você vai virar daqui a pouco...
MENOCCHIO:- Já sei quem você é... Você é Lúcifer!
DIABO:- Eta moleiro burro! Demorou a desconfiar!...
MENOCCHO:- O que está fazendo aqui? Seu lugar é no inferno...
DIABO:- Vim me bater com você... Em guarda!
MENOCCHIO:- Ai! Afasta esse tridente da minha bunda... Por que
você quer lutar comigo, seu diabo feio?
DIABO:- Ora, você não é Deus? Então: vim lutar com Deus... e
estou pronto a vencê-lo, numa luta leal, como dois grandes competidores que
somos...
O diabo espeta mais uma vez o traseiro
de Menocchio e, enquanto este se contorce de dor, passa-lhe uma corda no
pescoço, dá-lhe uma rasteira e monta-o como um burro.
DIABO:- Eia, Deus... Eia... que burro mais sem jeito esse...
Vamos... cavalga direito... Sem relinchar... sem relinchar... Burro bom não
relincha!...
Dá várias voltas cavalgando Menocchio.
Ouvem-se vozes cantando e o Diabo sai correndo. Passam os
benandanti, em sua coreografia de guerra, cantando uma canção. Menocchio se
livra dos arreios e junta-se a eles, mas volta, em seguida, a sentar-se ao lado
de Fasseta.
BENANDANTI:- Proteger a terra,
Proteger o vinho,
Combater quem erra
Não estou sozinho!
Chega Zannuto, com o violão às costas,
dá com os dois ali, dormindo de roncar, sacode-os e faz que eles o acompanhem
para casa. Menocchio abraça o filho e beija-o.
MENOCCHIO:- Zannuto... meu filho... o único filho que me
entende... o único! Dos sete que eu tenho... esse é o Zannuto... o que me
apoiou quando... quando fui preso... o único que cata os meus restos... os
restos desse moleiro... de quase sessenta anos... nas carraspanas de um fim de
semana... Meu filho! Que gosta de serenatas... de vinho... e da Lua... Meu único
filho...
Na porta do moinho, Menocchio organiza a
fila dos camponeses, com seus sacos de grãos. Um camponês, de nome Giovanni,
sai de dentro do moinho com meio saco de farelo.
GIOVANNI:- Ei, Menocchio, olha só isto: entreguei ao seu filho
um saco bem cheio de grãos e olha o que recebi de volta... Isto não está
certo...
MENOCCHIO:- Qual é o problema? Você acha o quê?
GIOVANNI:- Não acho nada... Mas é muito pouco farelo para o
tanto de grão...
MENOCCHIO:- Você e todos os demais já estão cansados de saber que
há uma diferença de peso entre o grão que entra com casca e o que sai já limpo
e em forma de farelo...
GIOVANNI:- Mas essa diferença está muito grande, Menocchio...
MENOCCHIO:- Você acha que o moinho está te roubando, Giovanni,
você acha? Não seja estúpido, homem... A roda do moinho não conhece fulano ou
beltrano: ela gira igual para todos...
GIOVANNI:- Não é o que parece...
MENOCCHIO:- Olha aqui, Giovanni... Se você está duvidando de
minha honestidade...
GIOVANNI:- Eu sei que você é homem honesto, Giovanni... Mas quem
está operando o moinho não é você... é seu filho Zannuto...
MENOCCHIO:- Olha aqui, Giovanni: quem sai aos seus não degenera,
ouviu? Deus me fez um homem bom, que não gosta de fazer mal aos outros... Mas
se você continua com essa arenga, eu juro por Deus que arrebento a sua cara...
Em nome de Deus e de todos os santos...
Os camponeses fazem o sinal da cruz.
UM CAMPONÊS:- Você está blasfemando, Menocchio!...
MENOCCHIO:- Zannuto! Zannuto! Traga aqui os restos dos grãos do
Giovanni, antes que eu perca a cabeça...
Zannuto sai do moinho com um saco nas
mãos.
ZANNUTO:- Aqui está, meu pai. Tinha muita sujeira nos grãos que
o Giovanni trouxe... Não pude aproveitar muita coisa... Até acrescentei um
pouco das sobras de outros, que estavam sem nenhum proveito...
Zannuto abre a boca do saco e mostra a
todos.
MENOCCHIO:- Vocês estão vendo... pelas barbas de Cristo... vocês
estão vendo.
Os camponeses se persignam de novo.
UM CAMPONÊS:- Cuidado com as blasfêmias, Menocchio...
GIOVANNI:- Está certo... eu exagerei... peço desculpas. Mas é
que eu acho... e todos também... que você está cobrando muito caro, Menocchio!
Nós... nós, os camponeses... temos passado por dificuldade...
MENOCCHIO:- Estão é reclamando de barriga cheia: as batalhas
contra as bruxas do mal tiveram sucesso esse ano, eu sei muito bem disso, e
vocês sabem também... Colheita farta, muitos casamentos e muitos batizados para
engordar a conta do senhor vigário... Eu sei o que vocês estão tramando, seus folgados!
Aqui, ó... vocês só querem saber é disso...(faz
um gesto de conotação sexual, o que provoca risadas nos camponeses). Agora
vêm reclamar de meus preços!... Quem explora vocês sãos os padres... cobrando
caro o arrendamento das terras... E mais: vocês deviam reclamar é dos preços
das mercadorias que os padres vendem pra vocês como se fossem sacramentos!
Aquilo, sim, é que é caro além de inútil... tudo mercadoria...
OUTRO CAMPONÊS:- Você está blasfemando de novo, Menocchio...
MENOCCHIO:- Você não sabe de nada, meu amigo... Blasfemar não é
pecado, porque só faz mal a si próprio e não ao próximo... Vou mostrar para
vocês... Vejam aqui... estão vendo este saco de farinha?
Pega um saco vazio.
CAMPONÊS:- De quem é este saco? É seu?
MENOCCHIO:- É, sim, é meu: então, se eu resolvo rasgá-lo assim...
picá-lo em pedaços... a quem eu prejudico?
OUTRO CAMPONÊS:- A mim pouco me importa se você destrói o que é seu...
MENOCCHIO:- Então... entenderam aonde eu quero chegar,
entenderam?...
CAMPONÊS:- Mais ou menos... isto é... o que tem a ver esse saco
rasgado com as blasfêmias que você proferiu há pouco?
MENOCCHIO:- Preste atenção: eu acredito que quem não faz mal ao
próximo não comete pecado... Somos todos filhos de Deus... Se um não fizer mal
ao outro... Por exemplo: eu tenho sete filhos... Vocês também têm filhos, não
é? Pois então: se um dos filhos, o Zannuto, que está aqui... (Pega o braço de Zannuto) Se ele diz
para mim, aqui na minha cara: “maldito
seja, meu pai”, o que vocês acham que eu
vou fazer? O quê? Vou perdoar... ele é meu filho... eu tenho que perdoar... (Pega uma pedra no chão e se aproxima de
Giovanni). Está vendo essa pedra, não está?
(Põe a pedra na mão de Zannuto).
Se esse meu filho resolve abrir a cabeça de outro irmão... aqui, o Giovanni,
por exemplo... que acusou o meu filho de
ladrão... mas eu não sei se ele fez
isto... eu não sei... são irmãos... (faz
um sinal a Zannuto que ameaça bater em Giovanni, que sai correndo, com seu saco
de farinha, provocando riso em todos)... O que vocês acham que eu devo
fazer com esse filho, me digam, o que eu devo fazer?
CAMPONÊS:- Bem... eu... eu acho que você deve castigá-lo... não
é?
MENOCCHIO:- Isso mesmo, ele tem que pagar por esse crime, não
é?... É por isso que eu disse que blasfemar não é pecado... Afinal, blasfemar
não faz mal a ninguém...
Chega correndo o Fasseta.
FASSETA:- Menocchio, Menocchio... vim... correndo... puxa vida!
Deixa eu respirar um pouco...
MENOCCHIO:- Deve trazer notícias o meu amigo Fasseta... Espero
que sejam boas!
FASSETA:- Uma boa e outra ruim... O que você quer ouvir
primeiro?
MENOCCHIO:- Conta lá a boa primeiro... Boas notícias preparam
melhor o coração para o que de pior vier depois... Vamos, diga logo a boa nova,
assim comemoramos e nos alegramos...
FASSETA:- Seu cargo... o cargo de administrador da igreja...
Você foi o escolhido, Menocchio... Você foi o escolhido! Você é o novo
administrador da igreja de Santa Maria!
Todos festejam e cumprimentam Menocchio,
que grita para o interior do moinho para seu filho Zannuto lhe trazer vinho.
Ele traz algumas garrafas e distribui entre os camponeses, que bebem e circulam
as garrafas entre si.
MENOCCHIO:- Muito bem, meus amigos... é o que eu sempre digo:
Deus é pai... Deus é pai... e perdoa todos os pecados de seus filhos... quando
os filhos não fazem mal uns aos outros... Agora, a má notícia, Fasseta... Vamos
lá... Acho que nada perturbará a nossa alegria...
FASSETA:- Vendo assim, até que a má notícia não é assim tão
desgraçada...
MONOCCHIO:- Fale, homem, não nos deixe esperando o dia todo...
FASSETA:- O sanbenito, Menocchio...
MENOCCHIO:- Esta porcaria aqui? O que tem esta merda de
sanbenito, Fasseta?
FASSETA:- Seu pedido... seu pedido de dispensa do sanbenito...
Eles negaram, Menocchio...
MENOCCHIO:- Paciência. Se querem que eu use isso, eu uso...
Afinal, é só uma mercadoria como qualquer outra bobagem inventada pelos
padres... só mais uma mercadoria... Não serei melhor nem pior com ele ou sem
ele...
UM CAMPONÊS:- E vai continuar com a língua solta, não é, Menocchio?
Todos riem e bebem e abraçam Menocchio.
MENOCCHIO:- Vamos comemorar, minha gente... E que Deus nos ajude
a ser bons uns com os outros... Mesmo com aqueles que nos acusam... E depois da
festa, o trabalho! Não podemos deixar a roda do moinho parar!
O povo aplaude o cortejo da rainha, que
passa por Monte Real.
MENOCCHIO:- Bela, muito bela a imperatriz... e importante,
também... muito importante...
FASSETA:- Viva a imperatriz!
POVO:- Viva!
MENOCCHIO:- Sabe o que eu penso, quando vejo a imperatriz
assim... nesse cortejo?
FASSETA:- Cuidado com as palavras, Menocchio... Quando você
começa a pensar, com esse olho perdido no espaço, porca miséria! eu até fico
arrepiado...
MENOCCHIO:- Penso na Virgem...
FASSETA:- Virgem?! Que virgem? Não me diga que você...
MENOCCHIO:- Me respeite, Fasseta, me respeite... Estou falando da
mãe de Jesus, a Virgem Maria...
FASSETA:- Ah! Bom... Bom que nada: você já vai começar a falar
bobagens... Olha o povo ao redor... Toma tento com as palavras, Menocchio...
MENOCCHIO:- Eu só estava pensando aqui comigo que a imperatriz é
muito mais importante para o povo do que a Virgem...
FASSETA:- Você está negando a importância de Nossa Senhora,
Menocchio?
As pessoas ao redor começam a prestar
atenção em Menocchio.
MENOCCHIO:- O povo acabou de ver a imperatriz... Sabe que ela está
ali, naquele coche dourado... acenou para todos... Mas, e a Virgem Nossa
Senhora? Alguém aqui já viu a Virgem, a mãe de Jesus? Já acenou para ela?
UM POPULAR:- Vejo todo dia, Menocchio... lá na igreja...
MENOCCHIO:- O que você vê, meu amigo, é apenas uma imagem da
Virgem... feita, com certeza, por alguém como o Nicola, que vive de pintar
imagens de santos nas igrejas... Esse mesmo Nicola me contou que andou
quebrando umas imagens por aí... que eram tudo mercadoria... que não é preciso
colocar imagens nas igrejas... que tudo isso é mentira... tudo mentira... invenção dos padres...
OUTRO POPULAR:- Mas você estava dizendo que a imperatriz é mais
importante que a Virgem...
MENOCCHIO:- Aqui... aqui, neste mundo... a imperatriz é mais
importante! No mundo de lá, invisível, sim, Nossa Senhora é que é mais
importante...
POPULAR:- Rezo todo dia para Nossa Senhora... Sou devoto da
Virgem, Menocchio... e ela sempre atende os meus pedidos... me abençoa... e
abençoa minha plantação, meu gado... Dou muita importância, sim, a Nossa
Senhora, mãe de Deus...
MENOCCHIO:- Meus amigos, meus amigos... Nossa Senhora é
importante, sim, eu torno a dizer... lá no mundo onde todos somos invisíveis...
Eu estava me referindo a este mundo... Sabem, vou lhes contar uma historinha
que li no livro de Nossa Senhora... Quando Nossa Senhora morreu, foram
prestadas muitas honras a ela... e os apóstolos, o povo, todo mundo estava
levando o seu corpo para sepultar... Alguém... alguém quis desonrá-la... tentou
tirá-la dos ombros dos apóstolos... Sabem o que aconteceu? Essa pessoa ficou
com as mãos grudadas nela... Tudo isso está lá, nesse livro...
UM POPULAR:- Você lê as coisas nos livros, Menocchio... Mas nós
temos a nossa fé...
OUTRO POPULAR:- É verdade... nós só acreditamos naquilo que o padre
fala, na missa... Ele é que sabe dizer o certo que está escrito nesses
livros... Não você...
MENOCCHIO:- Eu sei mais de Deus do que esses padres aí, que você
está falando... A Sagrada Escritura foi dada por Deus, mas os homens adaptaram
tudo... modificaram a palavra de Deus... Sabem, é como essas histórias de
batalhas... Vem um, conta de um jeito... vem outro, conta de outro... e aquele
outro inventa mais uma outra coisa... no fim, já ninguém sabe o que é verdade e
o que é invenção...
Enquanto Menocchio falava, o povo foi-se
afastando, deixando-o sozinho com Fasseta, que bate em seu ombro, balança a
cabeça e também se vai.
MENOCCHIO:- Eu falo, falo... e esse povo não me escuta... eu só
digo o que sei, o que li, o que aprendi... Ai, meu Deus, essa minha boca... Eu
preciso falar... abrir a cabeça dessa
gente que só ouve os padres e é explorada por eles... Não sei se é o Espírito
Santo... não sei se é o demônio... mas eu tenho que falar... Deus meu, me tira
essa bendita sina, meu Deus... me tira maldita sina!
Zannuto se aproxima do pai, abraça-o e
retira-se com ele. No céu, uma Lua em quarto minguante.
ZANNUTO:- Vamos, meu pai, vamos... a rainha já passou... o povo
foi embora... há muito trabalho a ser feito no moinho... E o padre parece que
quer falar com o senhor...
Igreja de Monte Real. Padre Odorico
mostra a Menocchio o livro de contabilidade da igreja.
MENOCCHIO:- Sim, padre, tenho feito as contas da paróquia, para
isso fui escolhido... com muita honra...
ODORICO:- Essas contas, Menocchio... essas contas...
MENOCCHIO:- O que há com elas, padre? Até ao Espírito Santo eu
presto contas...
ODORICO:- Ao Espírito Santo! Sim, ao Espírito Santo... Mas aqui
há um espírito de porco me dizendo que essas contas não batem, Menocchio!
MENOCCHIO:- Sempre fiz e refiz todas as contas, padre Odorico... O
senhor mesmo tem acompanhado que os fiéis não têm mais contribuído tanto...
Talvez uma campanha para arrecadar donativos... uma festa... uma procissão...
ou até mesmo vender umas indulgências...
ODORICO:- Não se trata disso, Menocchio... a arrecadação vai
bem, com a graça de Deus... O que eu não entendo são as suas contas,
Menocchio... as suas contas... Deus me livre e guarde de fazer acusações, mas
eu não as entendo... Eu não as entendo!
Menocchio pega o livro, fecha-o e
prepara-se para sair.
MENOCCHIO:- Padre Odorico, as contas aqui da terra, posso
corrigir perfeitamente... o que não dá para mudar são as contas que a gente tem
de prestar a Deus... Pode deixar, que vou trabalhar de novo nesses números...
Pode deixar...
Persigna-se e sai.
Noite. No céu, a Lua cheia. Porta do moinho de
Menocchio, que está sentado ao lado de uma pequena fogueira, tendo ao lado um
livro enorme. Tem os braços cruzados sobre o corpo e geme alto.
MENOCCHIO:-
Ai... ai... ai... Não consigo dormir... dói... dói muito... Porca miséria...
Deus, seu verme imundo, porque me reservou tanta dor?... Sai do seu queijo e me
dá uma graça! Pelo rabo de satanás! Ai... ai... Pelas penas do Espírito
Santo!...
Chega Fasseta.
FASSETA:-
Blasfemando de novo, Menocchio?
MENOCCHIO:-
Amigo Fasseta, que susto! O faz aqui a essa hora?
FASSETA:-
Não conseguia dormir... Vi o lume da fogueira... e cá estou. Por que toda essa
agonia, meu amigo?
MENOCCHIO:-
Ah! Fasseta, meu amigo, a roda do moinho do tempo tem moído meus ossos... Tudo
me dói, neste corpo já maltratado pelo tempo... Mas o que dói mais, Fasseta, o
que dói muito é o que está aqui dentro de meu peito... Tenho passado por dores
muito fortes, no corpo e na alma, desde que meu filho e minha mulher
morreram... Sinto mais falta de Zannuto do que até mesmo de minha mulher, que
já estava velha, como eu... Era meu braço direito, meu faz tudo... Os outros
filhos estão por aí, no mundo, cuidando de suas vidas... Zannuto era o único
que se importava comigo... Ai, ai...
FASSETA:- Paga-se o preço,
meu amigo, paga-se o preço... Somos velhos, já caminhamos para o fim da vida...
Você tem lá seus sessenta e cinco e eu, eu estou quase lá, também... Logo,
logo, nós estaremos matando a saudade dos entes queridos que se foram... Eles,
com certeza, estão esperando por nós... Deus sabe o que faz, Menocchio, Deus
sabe o que faz...
MENOCCHIO:-
Ouça! Você está ouvindo?...
FASSETA-:
Espere... o quê... ouvindo o quê...
MENOCCHIO:-
Quieto... ouça...
FASSETA:-
Sim, sim, estou ouvindo... são vozes... cantos...
MENOCCHIO:-
São os benandanti, com certeza... estamos na virada do tempo... lua negra...
logo vem o tempo de semear e, então, é preciso combater o bom combate...
Combater as bruxas do mal, para que a colheita seja boa...
O canto dos benandanti faz-se ouvir ao longe e aumenta
em progressão. Passa diante dos dois amigos a procissão coreografada, como um
combate, cantando.
BENANDANTI:- Proteger a terra,
Proteger o vinho,
Combater quem erra
Não estou sozinho!
Deus de todos nós,
Dono desse mundo,
Dá a tua graça
Expulsa o imundo!
Dá a tua graça
Expulsa o imundo!
Dono desse mundo
Expulsa, expulsa sim
Sem dó nem piedade,
Expulsa o imundo!
Silêncio. Os dois amigos estão como que petrificados
sob seus capuzes.
FASSETA:-
Você... você foi um deles, não é, Menocchio?... Por que não vai agora atrás
deles? O que te impede de segui-los, Menocchio?
MENOCCHIO:-
Isso é coisa para os jovens, que dormem muito e profundamente... Eu acordo a
cada instante, com dor aqui, dor ali... não posso mais deixar meu corpo e
cavalgar um galo, por exemplo, para combater as bruxas do mal... Se deixar meu
corpo, posso acordar... Se acordar, pode não achar o caminho de volta a minha
alma... que ficará vagando por aí... nas trevas... São os males da idade,
Fasseta...
FASSETA:-
Todo mundo que não morre antes fica velho, Menocchio... Mas, veja: trouxe aqui
um vinho para aquecer a noite... e esquentar a alma...
Fasseta abre o vinho, serve-se e serve a Menocchio.
FASSETA:-
Bebamos àqueles que esperam por nós...
MENOCCHIO:-
Bebamos aos que nos deixaram...
Bebem.
MENOCCHIO:-
Obrigado, velho amigo... Já me sinto melhor... Queria um abraço, um abraço
seu...
FASSETA:-
Ficamos sentimentais com o tempo... com o vinho... Um abraço? Claro, um
abraço... Pode não diminuir a dor um abraço... mas melhora nosso ânimo...
MENOCCHIO:-
Sim, mas espera... Antes preciso fazer uma coisa...
Tira o sanbenito e joga-o na fogueira.
MENOCCHIO:- Não
me vale mais para nada esta porcaria... Usei isso por muitos anos... Um bom
amigo não merece abraçar um renegado da fé que use tal pano sujo... e
vergonhoso... Vai servir, agora, para alguma coisa: aquecer a nossa noite...
Os dois amigos se abraçam. Menocchio limpa as
lágrimas. Pega o livro.
MENOCCHIO:-
Obrigado, velho amigo, muito obrigado... Sabe, estava lendo aqui este livro...
Vou ler um trecho para você entender o que eu quero dizer...
Abre o livro e lê um pequeno trecho para Fasseta, com
alguma dificuldade, por causa da pouca iluminação.
MENOCHIO:-
Aqui, ouça: “Este
Imperador, Padre João, é cristão, e grande parte do seu reino também é cristã.
No entanto, eles não têm toda nossa fé conforme nós temos. Eles acreditam
bastante no Pai, no Filho, e no Espírito Santo. E eles são inteiramente
devotados e corretos uns com o outros....”
(***) Chega... já me falta a
vista... O que eu quero dizer é que este livro conta muitas aventuras do
oriente... de cavaleiros que conquistaram terras distantes... que viajaram
muito por esse mundão de Deus... De gente que tem uma fé cristã, uma fé
cristão, Fasseta, mas diferente... diferente de nós... E são gente boa,
Fasseta, gente que respeita o próximo... gente correta... E eu fiquei pensando
em mim... no que eu tenho falado a vida inteira... E então veio a saudade do
meu filho e da minha velha... Vieram as dores... Vivi a vida inteira aqui, em
Monte Real, Fasseta, nessa vila perdida... A minha alma está presa nesse corpo
já corroído e fraco... e este corpo está preso nessa vila... Queria ser livre,
Fasseta! Viajar, conhecer pessoas importantes que se importassem comigo... que
pudessem me ouvir e discutir comigo... Você sabe... minha cabeça... minha
cabeça é sutil e pensa coisas que não sei de são de Deus ou do demônio... mas
ela pensa...
FASSETA:- E
sua língua fala... fala...
MENOCCHIO:-
Bebamos... bebamos à minha língua... e à Lua lá em cima, tão bela e tão
livre...
FASSETA:-
Bebamos...
MENOCCHIO:-
Mas ninguém me escuta, Fasseta... devem debochar de mim pelos becos... nem o
padre Odorico me leva muito a sério...
FASSETA:-
Você confia muito nesse padre, Menocchio... sei não se não foi ele que te
encrencou daquela vez...
MENOCCHIO:-
Se foi, já perdoei... Até foi bom ter ido lá... Os padres me ouviram, até
anotaram o que eu falei...
FASSETA:-
Anotaram e te prenderam... e quase te queimaram...
MENOCCHIO:-
Ia de novo, Fasseta... ia de novo... Só para que me ouvissem... Embora o que eu
queria mesmo era poder falar para o Papa... discutir com ele... mostrar que a
Igreja devia seguir outro caminho, mais pelos pobres... sem tanta riqueza...
sem tanta pompa... E falar com príncipes... e doutores... e discutir com
eles...
FASSETA:- E
o que te prende aqui, Menocchio?...
MENOCCHIO:-
Você tem razão... acho que nada...
Começa a rasgar algumas páginas do livro. É impedido
por Fasseta.
FASSETA:- O
que você está fazendo, homem?...
MENOCCHIO:-
Jogando no fogo os meus últimos sonhos... Podem nos aquecer tanto quanto o
sanbenito... Agora, vamos...
FASSETA:-
Vamos?! Para onde?
MENOCCHIO:-
Para Pordenone, Fasseta... Lá me espera o meu destino...
FASSETA:-
Enlouqueceu? O que vamos fazer em Pordenone... aquela terra de inquisidores?
MENOCCHIO:-
Então... inquisidores... Veja: aqui está a convocação...
Estende-lhe um papel. Fasseta vira-o e revira-o.
FASSETA:-
Que merda é essa, Menocchio... com o timbre do Santo Ofício?...
MENOCCHIO:-
Estão me chamando, Fasseta... Estão me chamando de novo: quem não pode
conquistar mundos no Oriente, pode, pelo menos, ir a Pordenone para falar, e
falar muito, com os inquisidores... Vamos!
Menocchio apresenta-se ao Tribunal do Santo Ofício.
INQUISIDOR 1:-
Aqui vieste de livre e espontânea vontade?
MENOCCHIO:-
Sim, eminência. Padre Odorico aconselhou-me a vir, de livre e espontânea vontade,
ante a convocação que suas eminências...
INQUISIDOR 1:-
Nome e profissão.
MENOCCHIO:-
Domenico Scandella, moleiro e...
INQUISIDOR 1:-
Não temos registro de convocação a este egrégio tribunal de nenhum Domenico
Scandella. (Para o outro inquisidor).
Já ouviu falar de Domenico Scandella?
INQUISIDOR 2:-
Há uma denúncia de heresia contra um tal Menocchio... da vila de Monte Real, no
Friul... mas nada consta neste momento contra Domenico Scandella...
MENOCCHIO:-
Perdão, eminências...
INQUISIDOR 1:-
Cala-te. Aqui o réu só fala quando interrogado.
MENOCCHIO:-
Mas, eminência...
INQUISIDOR 2:-
É mister que dispensemos algumas diligências sobre este caso. Se não há nenhum
Menocchio, pode não haver nenhum processo.
INQUISIDOR 1:-
Então, precisamos responder com urgência: quem é Menocchio?
MENOCCHIO:-
Sou eu, eminência...
INQUISIDOR 1:-
Então, deste declaração falsa a esta corte?! Isto pode ser um crime inominável!
MENOCCHIO:-
Sou Domenico Scandella...
INQUISIDOR 2:-
Insistes nesta tolice? Afinal, quem és tu, homem? Domenico Scandella ou
Menocchio, o moleiro...
MENOCCHIO:-
De fato, sou Domenico Scandella, já que assim me batizaram, com a graça de
Deus, os meus pais... Mas todos me conhecem por Menocchio, e alguns até mesmo
me chamam Domenego...
Inquisidor 1 vai até uma estante e retira um enorme
dossiê.
INQUISIDOR 1:- Domenico
Scandella! Ei-lo, então, de volta ao seio do Santo Ofício... Uma vez herege,
sempre herege, não é Domenico? Ou devo chamar-te Menocchio?
MENOCCHIO:-
Como vossa eminência desejar, que atenderei com prazer o vosso chamado...
INQUISIDOR 2:-
Lembro-me dele, agora... Há quinze anos... nariz empinado, como sempre...
Palrador... tem a língua nos cotovelos... Não terás, agora, nenhum prazer,
senhor Scandella, não terás, com certeza, nenhum prazer... Tuas heresias
chegaram ao príncipe do condado, e de lá até nós...
MENOCCHIO:-
Ao príncipe?! Afinal, o príncipe se preocupa com tão humilde servo... quanta
honra, eminência, quanta honra!
INQUISIDOR 1:-
Iniciemos os procedimentos.
Organiza-se o tribunal: bancada para os inquisidores,
tribuna, cadeiras para testemunhas e público, livros, uma máquina de tortura
etc.
Os atores do teatro se apresentam, não mais como
atores, mas cantores.
APRESENTADOR:-
Senhores e senhoras dessa inesquecível Vila de Monte Real! Os Irreverentes, companhia de trovadores...
HOMEM:- Ei!
Mas não eram atores? Nós viemos ver uma peça de teatro!
APRESENTADOR:-
O teatro está em crise... não há mais público... Viramos cantores...
POVO:-
Queremos teatro! Queremos teatro!
APRESENTADOR:-
Está certo: não é teatro, mas é quase. Vamos apresentar a luta entre o diabo e
o padre pela alma do moleiro em forma de desafio cantado... Vejam!
Apresentam-se as figuras do diabo, do padre e do
moleiro, com seus instrumentos.
HOMEM:- De
música estamos por aqui... Todos aqui na vila sabem cantar, tocar uma corda,
soltar um grasnido qualquer...
POVO:-
Queremos teatro!
APRESENTADOR:-
Para quê? Não lhes basta o teatro da vida? Por que vocês não vão ver o teatro
que os padres armam para julgar os hereges? Esse o teatro que todos gostam de
ver!
HOMEM:- Isso
fica lá em Pordenone... muito longe... Somos pessoas de bem, não queremos ver
bruxas arder no fogo!
APRESENTADOR:-
Nem um herege? Que tal um herege como Menocchio...
HOMEM:-
Menocchio é só um tolo que fala demais...
MULHER:- Nós
nem mesmo conhecemos o Menocchio...
OUTRA MULHER:-
Não queremos saber de hereges... Nem de Menocchio... que fala de um deus que
nasceu do queijo, como vermes...
Risos, vaias e aplausos.
HOMEM:- E
Menocchio nem era um bom moleiro... o pobre homem!
MULHER:- Era
só mais um desgraçado, como todos que nascem nessa vila miserável... Desgraçado
e boquirroto!
POVO:- Fora
Menocchio! Fora Menocchio! Queremos teatro! Queremos teatro!
APRESENTADOR:-
Se não querem música, não terão música... Mas também não terão teatro! Vamos
embora, pessoal, que esse povo é sovina e ignorante! Se desprezam quem aqui
nasceu, imaginem o que farão com pobres cantores como nós...
Os artistas se retiram, com suas tralhas e
instrumentos, sob protestos, vaias e pedradas do povo.
No tribunal do Santo Ofício.
INQUISIDOR 1:-
Olha bem para isto, senhor Domenico Scandella: sabes o que é?
MENOCCHIO:-
Claro que sei: é um livro... o meu livro...
INQUISIDOR 1:-
Como sabes que é teu?
MENOCCHIO:-
Eminência, posso ser tolo, ter a cabeça sutil, falar coisas que nem sempre eu
mesmo concordo, mas sei que o que está diante de mim é o livro que tenho lido
por essa minha vida desgraçada...
INQUISIDOR 1:-
Senhoras e senhores, este livro... este livro ímpio, em linguagem vulgar, foi
encontrado na casa de Domenico Scandella e devidamente apreendido e agora
reconhecido por seu dono. Tu sabes com certeza o seu nome, não é senhor
Scandella?
MENOCCHIO:-
Se o tenho lido e quase sei de cor o seu conteúdo, é evidente que sei o seu
nome. Trata-se de Il fioretto della bibbia... um livro santo, que traz os
evangelhos e outras histórias de fé e santidade...
INQUISIDOR 1:- Um moleiro que sabe ler... um moleiro, meus
senhores!... Não apenas sabe ler, como lê os livros proibidos pela Santa Madre
Igreja... Onde estamos? Onde estamos? Fica como prova e testemunho de mais uma
heresia, dentre tantas que tem cometido seguidamente este... este...
insolente... Sabes, senhor Menocchio, que a Santa Madre Igreja condena esse
tipo de leitura?
MENOCCHIO:- Vocês, padres e frades, não querem permitir
que se conheça a verdade... são como demônios... querem ser deuses aqui na
terra... saber tanto quanto Deus da mesma maneira que o demônio... Quem pensa
que sabe muito é quem, na verdade, nada sabe.
O inquisidor, cheio de fúria, esbofeteia Menocchio. É
afastado por outro membro do Santo Ofício.
INQUISIDOR 2:-
Observamos, senhor Menocchio, que seu espírito está cheio de certos humores e
má doutrina, mas o Santo Tribunal deseja que o senhor revele seu pensamento.
Então, espera-se que o senhor possa continuar...
MENOCCHIO:-
Meu espírito é elevado e só deseja uma única coisa: que exista um mundo novo e
um novo modo de viver, pois a Igreja não vai bem e não deveria ter tanta pompa.
Tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres. Se os pobres têm
dois campos arrendados, esses são da Igreja, de tal bispo ou de tal cardeal.
INQUISIDOR 2:- A
heresia espalha-se como o vento... Livros! Livros proibidos que semeiam a
discórdia no seio da Santa Madre Igreja, trazendo as idéias heréticas daquele
maldito padre alemão. Luterano! O senhor se confessa seguidor de Lutero? É
isso? O senhor é luterano?!
MENOCCHIO:-
Eu acredito que seja luterano quem siga ensinando o mal e coma carne às sextas
e sábados.
O inquisidor faz um gesto de desânimo.
INQUISIDOR 2:-
O senhor está falando sério ou está brincando com este tribunal, senhor
Domenico Scandella? Ou o senhor está imitando alguém?
DOMENICO:-
Eminência, nunca encontrei alguém que tivesse essas opiniões. As minhas
opiniões saíram da minha própria cabeça.
INQUISIDOR 2:-
É preciso que o senhor revele o nome de seus companheiros.
Faz um gesto para o carrasco, que amarra Menocchio à
máquina de tortura. Ele grita e geme de dor.
MENOCCHIO:-
Tenho a cabeça sutil! Só eu... Não tenho ninguém... não tenho ninguém... Não
obrigo ninguém a ter minhas idéias...
INQUISIDOR 1:-
Olha bem dentro de meus olhos, Domenico Scandella... O que vês, hem? O que vês?
Por acaso, estás vendo Deus em meus olhos, Menocchio? Estás?
MENOCCHIO:-
Não! Por favor, não! Eu falo tudo quanto vossas eminências quiserem saber... eu
falo... mas isso, não!... Isso, não... eu não estou vendo Deus... eu não estou
vendo Deus...
INQUISIDOR 1:-
É verdade que tu acreditas que pode haver mais de uma fé? Que uma pessoa pode
fazer as suas próprias leis? Que um turco faz muito bem continuando a ser
turco?
MENOCCHIO:-
Há mais ou menos... quinze... dezesseis anos... eu tenho... essa opinião... foi
quando a comecei a pensar nisso... foi o
diabo... o diabo meteu essa idéia na minha cabeça. Não sei... não sei, eu
juro... não sei com quem foi que comecei
a pensar nessas coisas...
INQUISIDOR 1:-
Sapientíssima Igreja! Na sua imensa sabedoria, tem a Santa Madre Igreja
combatido satanás... que se esconde nesses livros sujos... nesses malditos
livros que espalham heresias... heresias que chegam até mesmo a um moleiro!...
Um moleiro de uma vila perdida... Sabes, Menocchio, o fim dos hereges? Tu sabes
o que te espera?
MENOCCHIO:-
A única coisa que eu sei... a única... é que Cristo ajudou a nós, os
cristãos... Ele sofreu... ele sofreu por nos amar... e quer que nós morramos...
que nós soframos por amor a ele. Não é nenhuma maravilha morrer... não é,
não... Deus também quis que seu filho morresse...
INQUISIDOR 2:-
Tu negas que Cristo morreu para redimir a humanidade, Menocchio! Tu negas a
redenção da carne! És herético e blasfemador! Em que acreditas, afinal: em
Cristo e na salvação eterna ou nas tuas heresias?
MENOCCHIO:-
Eu... eu... acredito... acredito que se alguém... se alguém tem pecados... é
preciso que faça penitência... Vossas eminências... querem... que eu ensine a
estrada verdadeira? Querem? Então... então, ouçam: tentem... tentem só fazer o
bem... é preciso... trilhar o caminho de meus antecessores... e seguir o que Santa
Madre Igreja ordena...
INQUISIDOR 1:-
A grandeza do Espírito Santo! Na tortura, o Espírito Santo se manifesta até
mesmo através da boca dos ímpios! Tu renegas, Menocchio, tu renegas o que
disseste?
MENOCCHIO:-
Aquelas palavras... aquelas palavras... que eu disse antes... eu dizia, eu
dizia... por tentação... era... era o espírito maligno... o maligno... que me
fazia acreditar naquelas coisas...
INQUISIDOR 1:-
E quem foi que colocou na tua cabeça, na tua boca, aquelas palavras? Vamos! Não
foi só o maligno – que Deus me livre e guarde de suas chamas – não foi só o
maligno quem te soprou no ouvido as tuas heresias...
MENOCCHIO:-
Eu... eu acho... que amar... que amar o próximo... é mais importante que amar a
Deus... eu li... eu li isso... nos livros... quando chegar o dia... o dia do
Juízo... Deus dirá... Deus dirá a um anjo: você é mau... nunca fez o bem...
nunca... nunca fez o bem para mim... E o anjo... o anjo responde: Senhor...
Senhor... eu nunca... nunca o vi... para lhe fazer o bem... E o Senhor... o Senhor
dirá... eu tinha fome... e não me deu o que comer... eu tinha sede e não deu...
não me deu o que beber... Estava nu... e não me vestiu... Quando estava na
prisão... quando estava na prisão... não me vinha visitar... E por isso...
eu... achava... que Deus fosse... que Deus fosse o próximo... porque ele
disse... Eu era... eu era aquele pobre...
INQUISIDOR:-
Menocchio, Menocchio! Brincas com as palavras de Deus... brincas com a Santa
Doutrina da Igreja... Tu e teus livros... tu e tuas idéias... Pela última vez,
Menocchio: as tuas opiniões, as tuas palavras, quem as colocou em tua boca?
MENOCCHIO:-
As minhas opiniões... as... minhas... opiniões... elas saíram... elas saíram...
de... minha própria... cabeça... ELAS SAÍRAM DE MINHA PRÓPRIA CABEÇA!
Menocchio desmaia.
Num calabouço da Santa Inquisição, Menocchio está
dormindo, gemendo e sonhando. Através das grades, vislumbra-se a Lua cheia. Aparece-lhe
um padre encapuzado, envolto em longo manto negro, com o sacramento da
eucaristia.
MENOCCHIO:- Demônio! Quem... quem... é você, demônio!
PADRE:- Não
blasfeme, meu filho... Deus, e não o demônio, deve povoar os seus sonhos.
MENOCCHIO:-
Eu morri e estou no inferno... Por que, meu Deus, por quê? Rezei sempre para
Deus, sempre fiz penitência, fui sempre um homem de bem, procurei sempre ajudar
o próximo...
PADRE:- Você
renegou os sacramentos da Santa Madre Igreja, Menocchio... É preciso
comungar... Aqui está a hóstia sacrossanta... Ajoelhe-se e tome-a...
MENOCCHIO:-
Pela Virgem Maria, são muito grandes essas bestas, Padre... São muito
grandes... não cabem na minha boca...
PADRE:- É o
corpo de Deus... é corpo de Deus, Menocchio!
MENOCCHIO:-
Não! Afasta isso! Isso aí é só um pedaço de massa! Como é que pode ser Deus? E
o que é esse tal Deus a não ser terra, água e ar?
O padre joga longe as vestes sacerdotais: é o mesmo
demônio do sonho anterior de Menocchio. Derruba Menocchio e cavalga-o,
gritando.
DIABO:- Você
não é Deus, Menocchio? Vamos, vamos, cavalinho... Pula direito, seu deus de
bosta! Vamos, pule! Eu sou o seu diabo, Menocchio... eu sou o seu diabo! Você
me chamou e estou aqui, Menocchio... Você não é Deus? Vamos, vamos, lute... ou
pule como um jumento...
O canto dos benandanti faz-se ouvir ao longe e aumenta
em progressão. Os andarilhos chegam até Menocchio, expulsam o diabo, numa luta
coreografada, e vão embora, cantando.
BENANDANTI:- Proteger a terra,
Proteger o vinho,
Combater quem erra
Não estou sozinho!
Deus de todos nós,
Dono desse mundo,
Dá a tua graça
Expulsa o imundo!
Dá a tua graça
Expulsa o imundo!
Dono desse mundo
Expulsa, expulsa sim
Sem dó nem piedade,
Expulsa o imundo!
Menocchio volta a dormir e a gemer, em seu catre de
prisioneiro. A Lua, por trás da janela, vai esmaecendo e o dia nasce. Entram,
em procissão, os padres do Santo Ofício, acordam Menocchio, vestem-no com um
sanbenito e levam-no de volta ao tribunal.
No tribunal do Santo Ofício.
INQUISIDOR:-
Aqui está, Domenico Scandella, a resposta do Santo Padre ao teu pedido de
clemência. (Mostra-lhe um rolo
manuscrito). Antes, porém, de saber o que decidiu o Vaticano, deseja o
Santo Ofício ouvi-lo pela última vez... O que tens a declarar em tua defesa?
MENOCCHIO:-
Vossas eminências estão me concedendo a graça de me ouvir? Estão? A um moleiro
que nasceu e viveu preso em seu corpo e seu corpo preso em Monte Real? Posso
falar o que eu penso?
INQUISIDOR 1:- O
Santo Ofício permite que fales, senhor Menocchio.
MENOCCHIO:- Tudo
o que um homem leva desta vida são as palavras que ele profere. Eu, Domenico
Scandella, o Menocchio, nasci cristão e quero continuar cristão. Se tivesse
nascido turco, ia querer continuar turco. Permitam-me vossas eminências que eu
beije o vosso anel? (Os inquisidores
aquiescem com a cabeça, Menocchio aproxima-se de cada um e beija o anel).
Permitem vossas eminências que eu tome de vossas santas mãos, por um instante,
esses tão preciosos anéis? (Os
inquisidores titubeiam um pouco, entreolham-se e entregam, ao fim, três anéis a
Menocchio). Ouçam-me todos: um grande senhor declarou seu herdeiro aquele
que tivesse um certo anel precioso; aproximando-se da morte, mandou fazer
outros dois anéis parecidos com o primeiro e, como tinha três filhos, deu a
cada um deles um anel. (Entrega cada anel
a seu dono). Cada um deles julgava ser o herdeiro e ter o verdadeiro anel,
mas dada a semelhança, não se podia saber ao certo. Do mesmo modo, Deus possuiu
vários filhos que ama, isto é, os cristãos, os turcos e os judeus, e a todos
deu a vontade de viver dentro da própria lei e não se sabe qual seja a melhor.
Por isso eu disse que, tendo nascido cristão, quero continuar cristão e, se
tivesse nascido turco, ia querer viver como turco. Eu penso que cada um acha
que a sua fé seja a melhor, mas não se sabe qual é a melhor; mas, porque meu
avô, meu pai e os meus são cristãos, eu quero continuar cristão e acredito que
essa seja a melhor fé. A majestade de
Deus distribuiu o Espírito Santo para todos - cristãos, heréticos, turcos,
judeus – e tem a mesma consideração por todos, e de algum modo todos se
salvarão.
INQUISIDOR 2:-
O que pregas, herege? O que tens a coragem de pregar diante do Santo Ofício?
Que a Igreja não detém a única verdade? Que o Cristo não morreu para nos
salvar? Que não haverá o dia do Juízo Final? O teu julgamento chega ao fim,
Menocchio. Vê com teus próprios olhos a resposta do Santo Papa ao teu pedido de
clemência.
Desdobra o pergaminho diante de Menocchio que, após
alguns segundos que lhe permitam dar-se conta do que está escrito, abaixa a
cabeça.
MENOCCHIO:-
Reafirmo minha fé: nasci cristão, quero morrer cristão.
O inquisidor guarda com cuidado o pergaminho contendo
a resposta do Vaticano. Faz sinal a todos que se levantem. E, ao som de um
tambor, que marca as suas palavras, lê a sentença de Menocchio.
INQUISIDOR 1:-
Neste ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1599, a 13 de novembro, em
nome do Santo Padre Papa Clemente VIII, o Tribunal do Santo Ofício de
Pordenone, reinado de Friul, aqui reunido,
profere contra Domenico Scandella, dito Menocchio, moleiro de profissão,
residente na vila de Monte Real, a seguinte sentença. Porque não quiseste e não
queres abandonar os teus erros, preferindo a condenação e a morte eternas à
abjuração e ao retorno ao seio da Igreja e à salvação da alma, nós te
excomungamos e te afastamos do rebanho do Senhor e te proibimos de qualquer
participação na Igreja, nesta Igreja que tudo fez para te converter, e que não
dispõe de nenhum outro meio para fazê-lo. Nós, bispo e inquisidor, na qualidade
de juízes no que compete à fé, com assento neste Tribunal, condenamos-te e
decretamos-te, judicialmente, que és realmente herege e impenitente e, como
tal, te entregamos e abandonamos ao braço secular. E, da mesma maneira que,
através desta sentença, te excluímos da esfera eclesiástica, e te entregamos ao
braço secular e aos seus poderes, da mesma forma pedimos a esta Cúria Secular
para não chegar, na sua própria sentença, ao derramamento de teu sangue e à
pena de morte. Com isso, damos por encerrada a nossa participação etc. etc.
etc....
Enquanto Menocchio é amarrado e conduzido de volta à
prisão, os artistas mambembes encenam, de forma caricata, a vida e a morte do
moleiro.
APRESENTADOR:-
Senhores e senhoras, os Irreverentes que, cansados de levar pedradas por
cantarem tão mal, retornam àquilo que pior sabem fazer: ao teatro! E
apresentamos a empolgante história do moleiro falastrão de Monte Real, que
falou tanto e tanto e tanto, que acabou fodido no fogo fátuo do inferno...
Apresenta-se um palhaço vestido de moleiro.
PALHAÇO/MOLEIRO:- Eu sou Menocchio, o moleiro, moedor de farinha, mas o que sei mesmo
fazer é falar... Por isso, a minha língua é tão comprida... (Puxa uma enorme língua vermelha). E eu
sei como o mundo foi criado... (Pega uma
espécie de gamela com uma massa). Isso aqui, que estão vendo, é uma massa
de queijo... o mundo era um queijo assim... e então apareceram os vermes... (Tira de dentro da massa uma porção de
“minhocas” e joga sobre o “público”)... Esse verme aqui, ó, esse.. era
Deus... e esse outro, o anjo Gabriel...
Entra o diabo e derruba tudo, sai correndo atrás do
palhaço, pega-o e cavalga-o.
DIABO:- Esta
alma é minha... eu sempre lutei para tê-la... Vejam como eu subo em suas
costas... e faço esse jumento de moleiro... ou melhor, faço o moleiro de
jumento... Upa, cavalinho... Pula, cavalinho...
Pula até que topa com um padre encapuzado. Leva um
susto e desmonta do moleiro, que tenta sair correndo, mas é seguro pelo padre,
sob cuja batina pode-se ver um rabo bifurcado.
PADRE:- Vem
cá, moleiro, que tua alma é minha... Toma o sacramento da comunhão, em nome de
Deus...
O padre joga água benta no diabo, que sai correndo,
gritando. O moleiro se ajoelha diante do padre, que tira uma enorme hóstia de
dentro do hábito e bate com ela na cabeça do moleiro, que cai.
PALHAÇO/MOLEIRO:- Perdão, santo padre, perdão...
PADRE:- Que
perdão que nada... Você é um herege. Vai para a fogueira...
Prende o moleiro e amarra-o em cima de uma fogueira.
PADRE:-
Deixa pôr essa mordaça na boca dele... Senão ele vai ficar gritando
impropérios... palavrões... e ninguém merece ouvir isso, não é, mesmo? Queremos
que o condenado se comporte quando as chamas da fogueira atingirem os seus
pés... torrando dedinho por dedinho... e depois subirem até suas canelas...
queimando e torrando essas pernas finas... depois, pouco a pouco, subindo e
subindo e queimando suas coxas... fazendo escorrer a gordura dessas coxas... e
atingindo o ventre... ai, ai, ai... e então... devagarinho... ui, ui, ui...
durante horas, ali, naquele fogo... ui... ui.. ui.. Mas chega de conversa! Vamos
ver ao vivo como ele se comporta...
Acende o fogo. Aparece o diabo.
DIABO:- Que
merda é essa! Eu é que tenho o direito de queimar as almas... Fogueira é o meu
negócio... e detesto concorrência!
O diabo chuta a fogueira, dá com o tridente na cabeça
do padre, desamarra o moleiro e sai correndo com ele.
Na prisão, Menocchio recebe a visita de Fasseta. Por
entre as grades da prisão, a visão da lua cheia.
FASSETA:-
Veja, Menocchio, permitiram que eu trouxesse um pouco de pão e uma garrafa de
vinho... Como você está, meu amigo?
MENOCCHIO:-
Como Deus manda, caro Fasseta, aqui, esperando o que eu sei que nem devia mais
esperar, mas ainda assim um cristão...
FASSETA:-
Bebamos...
MENOCCHIO:-
Bebamos... à vida...
FASSETA:-
Arrependido?
MENOCCHIO:-
Uma vez eu lhe disse, amigo, que, se me ouvissem, eu morria satisfeito...
FASSETA:-
Palavras, Menocchio, palavras...
MENOCCHIO:-
As palavras conduziram minha vida, as palavras me levam à morte...
FASSETA:-
Ia-me esquecendo... Trouxe-lhe um outro presente, aqui, escondido... Você sabe,
os inquisidores entraram em sua casa... levaram tudo... acho que queimaram,
depois...
Tira de dentro da roupa um livro.
FASSETA:- Eu
sei que você gostava dele... tanto que uma vez quase o rasgou inteiro, lembra?
MENOCCHIO:-
Você salvou meu Mandevile... o livro de viagens do Mandevile... você o salvou,
Fasseta! Ainda há esperança... ainda há esperança... AINDA HÁ ESPERANÇA!
Menocchio abraça e beija o livro.
FASSETA:- Que
mais queres que faça por ti, amigo?
MENOCCHIO:-
Reze, reze muito por minha alma, para que ela não fique vagando por aí,
assombrada, até o juízo final. Eu te prometo uma coisa, amigo, que promessa tem
que ser cumprida, mesmo que no inferno: que, eu, por minha vez, quando encarar
o Criador, terei muito o que lhe contar e terei muito o que lhe cobrar...
FASSETA:-
Bebamos...
MENOCCHIO:-
Bebamos... à lua livre no céu... e aos
livros!...
FIM

Xfig fogueira da
inquisição
NOTAS
(*)SANBENITO: :
Uma casula amarela usada pelos condenados pela Inquisição.
Ver capa.
(**) Na verdade, trata-se do Fioretto della
Bibbia, obra em língua vulgar, com passagens selecionadas da Bíblia
e outras narrativas.
(***)This
text, attributed to "Sir John Mandeville" was written circa 1366, and
presents a series of picturesque fables about the east. These stories
fascinated Western Europeans, as did the more reliable [slightly!] stories of
Marco Polo. One way of understanding Western interest in the rest of the world
is to see the process by which interest became research, research became
knowledge, and knowledge became power. By the time Europe
was able to expand in the 16th century and later, it was far better equipped to
understand, and if necessary undermine, other cultures than other cultures were
to understand Europe.
(http://www.fordham.edu/halsall/source/mandeville.html).
FONTES
- Ginzburg,
Carlo, 1939. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de moleiro
perseguido pela Inquisição; trad.: Maria Betania Amoroso, - São Paulo:
Companhia das Letras, 1987. Título original: Il formagio e i vermi: il
cosmo de um mugnaio del’500.
·
Historia de la Inquisicion, I.Grigulevich, Ed.Progresso, 1976.
·
A História da Civilização, Will Durant, vol. VI, Ed. Record,
2ªed., 1957.
·
Mirador Intarnacional, Ed. Milano, 1970.
·
Carlo, Ginzburg, 1939. Os andarilhos do bem. Feitiçarias e cultos
agrários nos séculos XVI e XVII. Trad. Jônatas Batista Neto. – São Paulo: Companhia
das Letras, 1968. Título original: I benandanti: stregoneria e culti agrari tra
Cinquecento e Seicento.
·
Le Manuel des Inquisiteurs, Manaual dos Inquisidores (Directorium
Inquisitorum), Nicolau Eymerich, 1376 revisto por Fco. de La Peña, 1578.
Traduzido para o francês em 1973 por Louis Sala-Moulins.
·
Kramer, Heinrik; Sprenger, Jacobus. Malleus Maleficarum, Manual de
Caça às Bruxas, Planeta Especial, Ed. Três, São Paulo, dezembro 1976.
·
Kramer, Heirich, Spengler, James; O Martelo das Feiticeiras;
introdução histórica: Rose Marie Muraro; prefácio: Carlos Beynton; tradução:
Paulo Froes, 11ª ed., Rio de Janeiro: Record : Rosa dos Tempos. 1995. Tradução
de: Malleus Maleficarum, publicado em 1489.